Talvez seja matéria de caso clínico para uma revista de Psicologia Prática este comportamento estranho de certo tipo de turista — ou viajante com pretensões estéticas, como este que aqui escreve —, analisar as emoções que se agitam no exacto momento em que se decide imortalizar, em imagem, um qualquer edifício de valor histórico, artístico ou sentimental.
Não falo do registo apressado e funcional, feito de passagem, com o dedo gorduroso a bater no ecrã do telemóvel e a mochila ainda a bambolear nas costas. Refiro-me ao instante sagrado em que o sujeito — um homem maduro, com laivos de teimosia beneditina e senso de composição — deseja uma fotografia limpa, límpida, sem trapos humanos, nem carros, nem trotinetes, nem balões de gelado, nem quaisquer outras deformações visuais. Mesmo que a arma seja um iPhone manhoso.

Chamo-lhe aqui “o drama da imagem limpa”, que é como quem diz: o suplício da espera inglória por uma nesga de espaço-tempo em que o mundo colabore com a intenção artística de um anónimo com telemóvel.
Eis que, dando graças ao sol oblíquo de fim de tarde em Riga, capital da Letónia, posicionei-me — com estoicismo e sentido de composição — diante dos célebres Três Irmãos. Para os não sabedores: trata-se de três edifícios contíguos na Rua Mazā Pils, talvez o conjunto habitacional mais antigo e carismático da cidade. Representam três séculos distintos de arquitectura, do gótico ao barroco, e reza a lenda que terão sido mandados construir pela mesma família em diferentes gerações — ou, no mínimo, por gente com afinidades estéticas entre si.
Pois eu cheguei e quis a fotografia perfeita, mesmo sem máquina decente ou objectiva capaz: a luz a beijar as fachadas, sem sombra de humanos, sem reflexos em janelas, sem lixo visual. Coisa limpa. Coisa digna.

Mas logo irromperam — como actores saídos das coxias do caos — os arruaceiros visuais. Para facilitar o relato, escolho cinco casos, sem prometer veracidade absoluta. Se não foram estes, terão sido outros de efeito igualmente nefasto.
Caso 1: O encostador oblíquo.
Um homem — com toda a calma dos bem alimentados — encostou-se à porta do número 17 (o mais velho dos três irmãos), decidido a deglutir o seu gelado. Ficou ali, estático, com a pose lânguida de quem espera por alguém que jamais chegará. A parede branca, pacientemente envelhecida por séculos, servia-lhe de espaldar; a t-shirt fluorescente fazia de cartaz da ignorância. Ninguém nasce perfeito.
Caso 2: A influenciadora de saltos e véus.
Veio do nada, num vestido amarelo com franjas, acompanhada por um acólito que se revezava entre fotógrafo e porta-bolsa. A criatura ensaiou poses de sonho: braços ao alto, perna flectida, rodopios de algodão doce. A rua medieval transformou-se em passerelle, e os Três Irmãos ficaram, por longos minutos, sequestrados pela vaidade alheia.

Caso 3: O grupo de turistas indecisos.
Um grupo de alemães. Ou talvez neerlandeses. Ou apenas turistas universais, desses que parecem sair todos do mesmo catálogo. Caminhavam, paravam, consultavam o Google Maps (presumo), riam-se, apontavam, voltavam atrás. A dada altura, alguém decidiu tirar uma fotografia. O mais jovem ficou encarregado. A avó aproximou-se. Repetiu-se o ritual. Dez minutos se passaram, e não avançaram mais de dois metros.
Caso 4: O homem do telemóvel e do tempo suspenso.
Postado mesmo no centro da rua — como uma coluna romana em plena decadência — um cavalheiro de ar funcional telefonava. Alto e bom som, em letão ou outra coisa eslava. Passaram-lhe três fotógrafos por trás, dois cães por diante e uma trotinete pelo flanco, mas o senhor não arredava pé. Estou a inventar a trotinete, porque a calçada nem permitiria. Estava, por certo, a redefinir o futuro da Letónia pelo empenho com que falava e o meu futuro fotográfico ficou indefinidamente suspenso.
Caso 5: O pintor de aguarela.
Este, confesso, era respeitável. Estava sentado, calmo, com pincéis e cavalete, a pintar os Três Irmãos com vagar e ternura. Só que, para minha infelicidade, posicionou-se de tal modo que seria impossível tirar a fotografia desejada sem o incluir. E não tive coragem de lhe pedir que se retirasse. Afinal, respeitava-lhe mais a arte do que a dos outros quatro juntos.

Enfim, o pintor é inventado. Admito-o. Daria um ar romântico a qualquer retrato.
Certo é que, ao cabo de longos minutos — talvez vinte, talvez trinta; perdi a noção do tempo e da dignidade —, sentado à sombra de um poeta (na verdade, num umbral de porta), observei um a um os que me arruinavam a composição. Vi outros como eu: turistas que sacavam do telemóvel, ajoelhavam-se, testavam ângulos, baixavam os braços em desânimo, vencidos pelo ruído humano. Uns insistiam; outros tiravam como calhava e seguiam.
Havia, sim, algo de kafkiano nesta luta pelo instante: cada turista queria ser o único turista. Cada um desejava aniquilar, fotograficamente, todos os outros.
Por momentos, imaginei-me parte da paisagem — um homem petrificado, guardião da simetria estética de uma rua do século XV.

E então, por milagre pagão — ou intervenção de algum espírito letão protector da geometria urbana —, o instante chegou: ninguém à frente dos Três Irmãos. Nenhum véu, nenhum cão, nenhuma sombra alheia. A luz estava exacta, a calçada vazia.
Tirei três fotografias. Uma de frente, uma oblíqua, uma com céu a dominar.
E em vez de continuar — como qualquer pessoa mentalmente sã faria —, achei que o episódio merecia ser crónica. Fui rabiscando frases no ecrã do telemóvel, enquanto as pernas adormeciam e o rabo ficava quadrado na pedra da soleira, que já ali está, presumo, desde 1897.

Durante os trinta minutos seguintes, escrever tornou-se forma de sublimar a espera. Mas fui notando que, estranhamente, enquanto escrevia, a rua esteve frequentemente vazia. Teria tido, no mínimo, vinte outras oportunidades para repetir a foto límpida.
Comecei então a desconfiar que o problema não era a rua. Nem os outros. O problema sou eu. Ou os que são como eu.
Concluí, com resignação, que alguns de nós — ou serei só eu? — sofrem de uma obsessão inconfessável: são doentes do instante perfeito, lunáticos da geometria urbana, chatos da fotografia sem humanos.

E por isso mesmo, a fotografia nunca está perfeita, nem nunca estará. Há sempre um X que se fica Y, ou um Z que vira V — ou seja: um bocejo, uma criança que chora, uma cabeça que espreita, uma sombra que invade, um chapéu que voa, uma bicicleta que bufa, um fio eléctrico. Só imperfeições num mundo imperfeito.
E talvez seja isso, no fundo, o mais verdadeiro da viagem — e da vida: o fracasso do instante ideal, a persistência do mundo em contrariar os nossos planos. No fim, o drama da imagem limpa é, afinal, o drama de quem procura a beleza no meio da confusão — e encontra, por fim, apenas o espelho das suas manias.