‘Sem corpo, sem crime?’ Os limites da prova e os perigos da condenação com base em prova indiciária


Uma pequena nota introdutória, no sentido de informar que a presente crónica deve ser lida em conjunto com as anteriores Punir (e ver punir) sabe bem! , e Portugal punitivo: um dos países mais pacíficos do mundo… mas com um sistema penal hiperactivo? , e que todas elas são parte de um ensaio contínuo que se pretende levar a efeito sobre algumas questões no âmbito da Justiça.

1. Quando falta o corpo: um caso recente em Portugal

O recente acórdão do tribunal do júri em Aveiro (Portugal), no caso da chamada “grávida da Murtosa” voltou a colocar sob os holofotes da opinião pública uma das questões mais complexas do direito processual penal: pode haver condenação por homicídio quando o corpo da suposta vítima nunca apareceu? E que tipo de evidências são juridicamente aceitáveis para presumir a morte e responsabilizar criminalmente um arguido?

Em Portugal, o desaparecimento de uma pessoa pode, ao fim de certo tempo, dar lugar à presunção de morte por via civil (artigos 114.º e seguintes do Código Civil Português). Contudo, essa presunção não se confunde com a prova da morte exigida no processo penal. Para condenar por homicídio, o tribunal tem de estar convencido, para além de dúvida razoável, de que a pessoa está efectivamente morta e de que essa morte foi causada por um acto humano. Sem corpo, essa prova exige um raciocínio indutivo sustentado em evidência indireta, o que levanta desafios éticos, epistemológicos e práticos.

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2. Os Estados Unidos: condenações com base em indícios

Nos Estados Unidos, onde centenas de condenações por homicídio sem corpo já ocorreram, o ex-procurador Tad DiBiase compilou e analisou centenas de casos (mais concretamente 399). No seu livro “No-Body Homicide Cases, A Pratical Guide to Investigaating, Prosecuting, and Winning Cases When the Victim is Missing”, DiBiase identifica três pilares essenciais para a prova indiciária em tais situações:

  1. Motivo claro e documentado, como conflitos familiares, relações abusivas ou interesses patrimoniais;
  2. Evidência circunstancial coerente e cumulativa, como testemunhos, mudanças abruptas no comportamento do arguido, desaparecimento inexplicável da vítima, e cessação de rotinas e contactos;
  3. Evidência forense indireta, como vestígios hemáticos, ADN, pegadas, geolocalização, ou buscas online comprometedoras.

Segundo o próprio DiBiase, até Setembro de 2024 registaram-se 604 julgamentos por homicídios sem corpo nos EUA, com uma taxa de condenação de cerca de 87%. Esses números, também confirmados pelo FBI em mais de 660 casos, mostram que a ausência de corpo não impede uma condenação, mas também revelam o peso crescente da prova indireta no processo penal moderno.

Plataformas como www.nobodycases.com ou www.charleyproject.org  reúnem dezenas de casos em que a investigação digital, os metadados, os comportamentos suspeitos e os testemunhos indiretos permitiram condenações sem corpo. Mas essa mesma tendência tem levantado preocupações legítimas sobre a margem de erro nos julgamentos baseados exclusivamente em indícios. Como adverte DiBiase, “a ausência de um corpo não é ausência de um crime, mas obriga a uma investigação mais difícil, mais longa e com muito menos margem para erros”.

O National Registry of Exonerations dos EUA reporta que, desde 1963, pelo menos 1.226 pessoas foram exoneradas de condenações por homicídio (ou seja, viram as suas condenações anuladas), muitas das quais baseadas em provas circunstanciais ou técnicas forenses posteriormente invalidadas. Destas, 381 envolviam erro ou má conduta processual grave.

Em 2024, das 147 exonerações ocorridas nos EUA, 85 ocorreram em casos de homicídio (57,82%), dos quais 67 tiveram como causa a má conduta oficial, que pode incluir a falha em divulgar provas exculpatórias à defesa, casos de adulteração de prova, perjúrio, má conduta policial em interrogatórios, desonestidade do Ministério Público no tribunal, ou má conduta forense.

Mais alarmante ainda: 51 do total das exonerações, onde se incluem os casos de homicídio, foram classificados como “no-crime”, ou seja, em que se concluiu mais tarde que nenhuma morte ocorreu. A média de tempo passado na prisão por estes inocentes é superior a dez anos. Réus negros, em particular, enfrentam um risco desproporcional: são exonerados por homicídio a uma taxa até sete vezes superior à dos brancos e, em média, passam mais tempo presos antes da reversão judicial.

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Entre os casos mais emblemáticos estão: o caso de Lawrence Martin que foi preso sob a lei “Three Strikes” por posse de faca num contexto sem crime — exonerado em 2020; o de Clifford Williams Jr. & Hubert Nathan Meyers, que passaram 42 anos presos por homicídio que não cometeram, e só foram exonerados em 2019; e alguns casos de homicídio infantil “no-crime”, em que 53 réus foram condenados e depois exonerados, com base em diagnósticos forenses errados (ex: “shaken baby syndrome”).

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3. Espanha: o precedente de Ramón Laso

Mesmo na Europa, onde os tribunais tendem a tratar com maior cepticismo os casos de pretenso homicídio sem cadáver, surgem algumas decisões paradigmáticas em Espanha, França, Alemanha ou o Reino Unido, demonstrativas de que, mesmo sem corpo, ainda é possível condenar, mas apenas com evidência indiciária técnica irrepreensível.

Em 2014 na Catalunha, Espanha, Ramón Laso foi condenado pelo duplo homicídio da sua segunda mulher e do cunhado, naquele que foi conhecido como o primeiro caso Espanhol de condenação por homicídio sem corpo(s) ou vestígios biológicos das vítimas, sem a arma do crime, e sem confissão.

A acusação e posterior condenação baseou-se em provas como o ADN encontrado em ferramentas e o rastreamento por GPS e telemóvel, demonstrando que o “Reo” foi a última pessoa a ter estado com ambas as vítimas. Esta condenação foi confirmada pelo Supremo Tribunal Espanhol em 2016.

a long hallway with a bunch of lockers in it

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4. França: o caso Narumi Kurosaki e a revisão judicial

O corpo de Narumi nunca foi encontrado, mas ficou provado que Zepeda deixou vestígios hemáticos na porta do quarto da ex-namorada, gravou um vídeo a falar sobre a sua intenção de punir Narumi por lhe ter desobedecido, mentiu a amigos sobre os seus movimentos na noite fatídica, bem como fez perguntas sobre como matar pessoas através de asfixia.

Entretanto, em 26 de Fevereiro de 2025, o Tribunal de Cassação, o mais alto tribunal de apelações de França, ordenou novo julgamento porquanto ficou demonstrado que os investigadores omitiram evidências da equipa de defesa.

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5. Alemanha: condenação sem corpo… e reabilitação póstuma

Na Baviera, Alemanha, o caso de Todesfall Rudolf Rupp mostra a fragilidade das provas indiciárias. Hermine Rupp e as suas duas filhas, assim como Mathias E., namorado de uma delas, foram condenados em 13 de Maio de 2005 pelo homicídio de Rudolf  a 13 de Outubro de 2001.

O corpo não apareceu, não existiam evidências robustas, para além de inúmeras contradições nas testemunhas da acusação, e a ausência do cadáver foi justificada pelo facto dos culpados terem morto a vítima e seguidamente desmembraram-no e deram como alimento aos cães. Toda a prova se baseou exclusivamente nas confissões supostamente “voluntárias” dos Réus.

Em Fevereiro de 2009 o carro de Rudolf foi encontrado e retirado do Rio Danúbio com seu corpo ainda no banco do motorista e nenhum sinal de prática de crime.

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6. Reino Unido: confissões falsas e vítimas vivas

Em Dezembro de 2003, no Reino Unido, Harry MacKenney e Terry Pinfold, viram anuladas as suas condenações de 1980 por vários homicídios cujos corpos nunca foram encontrados.

As suas condenações, foram baseadas na confissão de um suposto co-autor, John Bruce Childs que se encontrava a cumprir pena de prisão por outros crimes, que confessou e implicou MacKenney e Pinfold na morte de Terence Eve e mais cinco pessoas, que tinham desaparecido no período entre Novembro de 1974 e Outubro  1978, invocando que estes geriam um negócio como assassinos contratados.

Em 1980, Pinfold foi julgado por quatro assassinatos e MacKenney por seis. Não havia evidências de que as seis pretensas vítimas estivessem mortas, excepto para o testemunho de Bruce Childs. Pinfold foi condenado pelo homicídio de Eve. MacKenney foi condenado por quatro homicídios, mas foi absolvido pelo de Eve.

Em 1986, Childs retratou as suas declarações em julgamento e disse que testemunhou falsamente porque os promotores lhe ofereceram “o incentivo de que minha ‘cooperação’ no julgamento garantiria a sua libertação antecipada da prisão”.

Na pendência de um recurso, Pinfold foi libertado sob fiança em 2001. Em 2003, surgiram novas evidências que foram ocultadas pela promotoria. Tais evidências indicavam que em 1977, três anos após o suposto assassinato de Terence Eve, a Scotland Yard sabia que Eve estava a morar no oeste de Londres sob um nome falso.

Uma das razões apontadas para o facto da Scotland Yard ter protegido a nova identidade de Terence Eve, a ponto de permitir que Terry Pinfold e Harry MacKenney fossem julgados, condenados e presos por mais de duas décadas por um crime hediondo que nunca aconteceu, e pelo homicídio de mais cinco pessoas de que não existe qualquer evidência que estejam mortas, foi a existência de uma política/prática entre algumas polícias de protecção dos informadores, ainda que sacrificando pessoas inocentes.

Por exemplo, em Janeiro de 2001 o FBI foi exposto publicamente por acusar injustamente e conseguir a condenação de quatro pessoas pela morte de Edward Teddy Deegan em 1965. Os condenados passaram décadas na prisão. Louis Greco e Henry Tameleo acabaram por falecer enquanto estavam recluídos. Peter Limone e Joseph Salvati foram libertados em 2001.

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Veio também a demonstrar-se que a testemunha principal da acusação, Joseph Barboza, mentiu para proteger um companheiro que era informador do FBI, e o FBI sempre o soube. A juíza Nancy Gertner afirmou que a postura do governo neste caso era “absurda”.

Em consequência, em 2007 um juiz federal em Boston condenou o governo americano a pagar uma indemnização de 100 Milhões de dólares aos inocentes e seus familiares.  

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7. Brasil: o caso Eliza Samudio e as zonas cinzentas da justiça penal

Em Junho de 2010, a modelo brasileira Eliza Silva Samudio desapareceu após alegar que o futebolista Bruno Fernandes, então guarda-redes do Flamengo, era pai do seu filho. O corpo nunca foi encontrado. Ainda assim, Bruno e outros coarguidos foram condenados por homicídio e ocultação de cadáver com base em testemunhos, confissões parciais, elementos circunstanciais e sinais de violência no local.

O caso gerou enorme atenção mediática e reacendeu o debate sobre julgamento por presunção narrativa. Em 2013, Bruno e outros arguidos foram julgados por um tribunal do júri e foram condenados pelo homicídio qualificado de Eliza, a penas de prisão efectiva entre os 17 anos e 6 meses e os 22 anos.

A ausência do corpo não foi um obstáculo às condenações, o processo assentou numa construção coerente, mas essencialmente indiciária, confirmando o poder da narrativa mesmo sem cadáver.

Em 2024 a Netflix colocou na sua plataforma um documentário sobre o caso.

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8. Portugal: entre a prudência judicial e a pressão pública

Ao contrário dos EUA, a jurisprudência portuguesa tem sido cautelosa, mais em linha com a tradição de alguns países europeus. No caso conhecido como o da grávida da Murtosa, e de acordo com o que foi noticiado, o tribunal do júri terá absolvido o arguido, por, além do mais, considerar que não estava provado, para além de dúvida razoável, que Mónica tivesse morrido.

Os tribunais reconhecem que a inexistência de corpo não impede, por si só, a condenação, desde que a prova indiciária seja robusta, convergente e sem explicação alternativa plausível. A chave é a coerência interna do quadro probatório.

Mas justamente por serem casos em que falta a evidência mais objectiva, o cadáver, o grau de exigência da investigação tem de ser exponencialmente mais elevado. A tentação de encaixar factos em narrativas plausíveis, mas não demonstradas, multiplica o risco de erro. A prova indiciária deve formar um todo coerente, sim, mas também resistir ao contraditório e à dúvida razoável, sem lacunas ou interpretações forçadas.

O homicídio sem corpo desafia as categorias clássicas do processo penal. A ausência de cadáver é uma ausência simbólica e técnica que pode ser ultrapassada por investigações bem conduzidas e provas digitais e comportamentais. Mas também exige uma cultura judiciária capaz de lidar com a incerteza sem ceder ao desejo de punição e da pressão pública.

Na tensão entre a proteção da inocência e a busca da verdade, estes casos revelam-se como verdadeiros testes de maturidade para o sistema de justiça penal. E mostram que, quando o corpo não aparece, a prova tem de ser tanto mais densa quanto mais invisível é o crime. E, por isso mesmo, deve ser escrutinada com mais rigor.

a street light shines brightly in the dark

Os casos de homicídio sem corpo não confrontam apenas a estrutura legal do processo penal, desafiam a percepção, os afetos e as expectativas de todos os actores do sistema de justiça. A ausência do cadáver abre espaço à dúvida, mas também ao preenchimento dessa ausência com suposições, desejos e vieses.

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9. A tentação narrativa: neurociência, cognição e enviesamento

9.1. A necessidade da análise interdisciplinar

Analisemos agora como é que estas situações se podem manifestar nas diferentes perspectivas, começando pela relevância de se fazer tal análise.

Rodrigo Santiago, Professor de Direito Processual Penal e Advogado com especial intervenção em processos crime mediáticos, costuma dizer que ensinava o processo penal tal como ele vem nos códigos e nos livros, e não como ele é muitas vezes aplicado nos tribunais.

Os anglo-saxónicos têm uma expressão interessante para esta divergência, a law in action e a law in books. Existem vários motivos para que este “fenómeno” ocorra, alguns são contextos histórico-políticos de determinado país, mas a maioria estão relacionadas com a natureza humana e as suas dinâmicas (na verdade, como nos ensina António Damásio, é redutor referirmo-nos à natureza humana em algumas dessas circunstâncias, em especial em situações de cooperar ou enganar, porquanto elas fazem parte sim da natureza dos organismos vivos).

book lot on black wooden shelf

Geraldo Prado, Professor de Direito Processual Penal, Promotor de Justiça, Juiz de Direito, Juiz Desembargador e Advogado, elaborou uma reflexão, que tem tanto de impressiva, como de corajosa, desde logo porque em contracorrente com o status quo, identificando e assumindo a existência de um problema e elencando algumas das razões pelas quais ele existe e persiste na justiça brasileira, dos quais nos merecem relevo, por ora, os seguintes trechos relacionados com a assunção da questão:

“O texto deste trabalho surgiu de angústias e conversações… conversações sobre angústias. O lugar em que foi pensado não poderia ter sido melhor: o Instituto de História e Teoria das Ideias da Universidade de Coimbra. E os diálogos travados com o pensador Rui Cunha Martins, no âmbito de um projeto mais alargado, de reflexão sobre a construção sócio-político-econômica das categorias centrais do processo penal teria de rumar para o tema central das democracias em Estados cuja tradição autoritária consolidara-se fortemente no século XX.

Como investigador do processo penal brasileiro incomodava-me a persistente evocação de práticas autoritárias em um processo penal cujas linhas gerais, traçadas pela Constituição de 1988, não comportava interpretação dessa natureza.

Sem dúvida que o estado da arte do processo penal, como saber jurídico, pouco podia socorrer-me em minhas aflições. Afinal, o passar de olhos pela literatura sobre o assunto no Brasil, malgrado as distintas densidades das abordagens, parecia indicar o sucesso do processo democrático em dotar o Sistema de Justiça Criminal das ferramentas jurídicas adequadas para harmonizar o processo penal com as orientações extraídas dos principais textos de direitos humanos.

Como magistrado eu sabia que isso, porém, não correspondia à realidade onde quer que o Sistema de Justiça Criminal se manifeste.

A questão, portanto, residia em interrogar o que assegurava a permanência das citadas práticas autoritárias, em um ambiente aparentemente esquizofrênico no qual discurso e ação estavam visivelmente desencontrados.

Claro que um problema dessa magnitude é bastante complexo e não se presta a ser abordado ou explicado por um ângulo exclusivo.” (ob. citada em referências, pág. 11 e 12).

Alexandre Morais da Rosa, Professor de Direito e Juiz de Direito e Salah H. Khaled Jr., Professor de Direito, além do mais, em Sistemas Processuais Penais, também tocam na “ferida”, de forma bastante marcante:

“A Constituição brasileira completará trinta anos em 2018. Para um país com pouca tradição democrática como o Brasil, trata-se de uma data marcante, pois estamos historicamente acostumados a testemunhar a ruptura autoritária da ordem política. No entanto, não temos muito que comemorar: seu déficit de efetividade é claramente visível, particularmente no que se refere ao âmbito das práticas punitivas. Os atores do sistema penal permanecem propensos a violar direitos fundamentais e flexibilizar garantias, deformando na prática a estrutura regrada do devido processo legal e consagrando cada vez mais o decisionismo.

No que diz respeito ao universo jurídico-penal, a Constituição representa uma abertura democrática em sede processual, consagrando um sistema eminentemente acusatório. No entanto, continua irrealizada sua promessa acusatória, uma vez que nosso sistema processual penal ainda é animado por uma doentia ambição de verdade, que se recusa a arrefecer. Em nome dessa insaciável busca, permanece imperando um processo penal do inimigo, cujo sentido consiste na obtenção da condenação a qualquer custo.

O fetiche pela legislação infraconstitucional ainda seduz a imaginação persecutória de muitos magistrados: nosso Código de Processo Penal (de 1941) é tido como livro sagrado, continuamente apto a potencializar práticas visivelmente inquisitórias e antidemocráticas. Nada parece impedir a continuidade de sua aplicação e muito menos que diante da perspectiva de um novo código, os juízes se manifestam temerosos com a possibilidade de retirada de poderes que lhes permitam buscar a verdade real. Ainda temos que avançar e muito, pois permanecemos presos a um núcleo de pensamento autoritário que é preciso urgentemente superar para fortalecer a democracia.” (ob. citada em referências, pág. 22 e 23).

Da mesma forma que o Brasil, também Portugal teve um regime autoritário que se consolidou fortemente no Séc. XX. Os códigos e as normas mudam, mas as mentalidades e as práticas não mudam por decreto, levam o seu tempo.

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Deste lado do Atlântico também existem algumas vozes que alertam para algumas divergências, entre teoria e prática, no âmbito do direito aplicado nos tribunais. Para tanto, veja-se o que o Juiz Desembargador Jubilado Eurico Reis (de nome completo, Eurico José Marques dos Reis), escreveu num artigo de 2021 da Revista de Direito Comercial:

“E como nunca será demais repetir, o direito a ver integralmente cumprido, na prática quotidiana (Law in action), que não apenas na proclamação que consta de inúmeros diplomas legislativos (Law in books), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso e mediante processo equitativo [para usar a mundialmente conhecida expressão em língua inglesa, sendo que foi nesse ambiente cultural/jurídico que o conceito foi construído e apresentado pela primeira vez], constitui um pilar fundamental que dá corpo a um Princípio Ético sem cuja efectiva consagração não existe verdadeiramente um normal funcionamento das instituições do Estado de Direito.” (ob. citada em referências, ponto 44, pág. 779).

O primeiro passo para mitigar tais dissonâncias é a sua tomada de consciência, como em grande parte das situações em que é preciso resolver algo. Esta temática, sobretudo no âmbito do processo penal e dos seus imensos impactos, merece estudo autónomo, pelo que não nos alongaremos por ora. Deixemos pois, apenas uma breve introdução do problema (e sim, infelizmente, configura um problema).

No conceito utilizado por Nassim Nicholas Taleb – Professor Jubilado da cadeira de Engenharia de Risco no Tandon School of Engineering do Polytechnic Institute da New York University, autor do best-seller O Cisne Negro,  e que teve como  um dos seus principais temas de estudo a tomada de decisões num sistema opaco –, o Direito, tal como a Economia, entre outras áreas do saber, são ciências essencialmente normativas, baseadas numa perspectiva kantiana, do é porque deve ser, que permite lucubrações filosóficas muito bem elaboradas e sustentadas mas, em determinadas circunstâncias, têm pouca ou nenhuma adesão com a realidade (law in action versus law in books). Contrariamente, as ciências positivas baseiam-se no comportamento real das pessoas. (ob. citada em referências, pág. 227 e 228).

Isto é tanto mais assim, quanto maior for a relevância das emoções na aplicação de determinada teoria, o que em termos de ciências jurídicas, ocorre com especial relevância nas disciplinas de Direito adjectivo, como é o caso do processo civil, mas sobretudo no processo penal. Para que exista uma correcta aplicação das diversas teorias, bem como do que resulta das mesmas em sede de legislação processual, é fundamental a observação de estudos empíricos. Quando eles não existem, maior é a probabilidade de estarmos a cometer erros.

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Só os estudos de campo, testados e replicados, permitem perceber se o “é porque deve ser” é confirmado na prática, ou se o resultado se afasta largamente do objectivado aquando da elaboração da norma.

Em países como Portugal, são conhecidos poucos estudos empíricos (e infelizmente também não existe grande incentivo para que estes se realizem) que analisem de forma interdisciplinar, se os vários momentos de tomada de decisão no processo penal estão a ser bem aplicados, ou se existem desvios na sua concretização que urgem correcção face ao princípios subjacentes e, em caso afirmativo, em que termos deverá esta ser efectivada.

No entanto, são conhecidos inúmeros estudos internacionais das mais diversas áreas do saber que podem, e devem, ser observados e que nos podem auxiliar a melhorar esses mesmos processos de tomada de decisão que ocorrem ao longo de um processo penal.

Aury Lopes Jr., Professor de Direito Processual Penal e Advogado Criminalista, enuncia muito bem a necessidade de uma visão interdisciplinar quando refere que: “vivemos em uma sociedade complexa, em que o risco está em todos os lugares, em todas as atividades e atinge a todos de forma indiscriminada. Concomitantemente, é uma sociedade regida pela velocidade e dominada pela lógica do tempo curto. Toda essa aceleração potencializa o risco.

Alheio a tudo isso, o direito opera com construções técnicas artificiais, recorrendo a mitos como “segurança jurídica”, “verdade real”, “reversibilidade de medidas” etc. Em outros momentos, parece correr atrás do tempo perdido, numa desesperada tentativa de acompanhar o “tempo da sociedade”. Surgem então alquimias do estilo “antecipação de tutela”, “aceleração procedimental” etc.

O conflito entre a dinâmica social e a jurídica é inevitável, evidenciando uma vez mais a falência do monólogo científico diante da complexidade imposta pela sociedade contemporânea. Nossa abordagem é introdutória, um convite à reflexão pelo viés interdisciplinar, com todos os perigos que encerra uma incursão para além de um saber compartimentado. Sem esquecer que, em meio a tudo isso, está alguém sendo punido pelo processo e, se condenado, sofrendo uma pena, concreta, efetiva e dolorosa.” (Lopes Jr., Aury, ob. melhor citada em referências, pág. 45 e 46).

Os elementos da investigação, pressionados pela urgência da resolução e pela visibilidade mediática, enfrentam um dilema: quanto mais ausência de provas físicas, maior o risco de se saltar para conclusões por associação e do posterior viés de confirmação. A tendência para “amarrar o caso” à hipótese inicial compromete o escrutínio de outras possibilidades, criando uma visão de túnel. A ciência forense, quando usada como muleta narrativa em vez de ferramenta de validação, torna-se um instrumento de erro.

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9.2. Sistema 1 e vieses

“Um traço essencial da constituição da máquina associativa é representar apenas ideias ativadas. A informação que não é evocada (mesmo de forma inconsciente) da memória é como se não existisse. O Sistema 1 é excelente na construção da melhor história possível que incorpore ideias ativadas no momento, mas não permite (nem pode) informações que não possui.

A medida do sucesso para o Sistema 1 é a coerência da história que consegue criar. A quantidade e a qualidade dos dados em que a história se baseia são em grande parte irrelevantes. Quando a informação é escassa, o que ocorre com frequência, o Sistema 1 opera como uma máquina de saltar para conclusões.” (Kahneman, Daniel, “Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 117).

Na sequência desta citação de Daniel Kahneman – que em 2002 recebeu o Prémio Nobel da Economia por uma investigação pioneira na área da Psicologia (o prémio atribuído em Economia denomina-se Prémio do Banco da Suécia em Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel – foi atribuído pela primeira vez em 1969), sobre o modelo racional que preside à tomada de decisões, trabalho que teve um impacto profundo em campos como a Economia, a Medicina, ou a Política. Foi professor de Psicologia e de Relações Institucionais na Princeton School of Public and International Affairs –, importa perceber que Sistema 1 e Sistema 2 são metáforas que alguns autores utilizam para a forma de funcionamento do cérebro, de forma mais intuitiva, associativa e de resposta mais rápida ou de modo mais ponderado e não tão célere.

A propósito das metáforas sobre o cérebro, Lisa Feldman Barrett –Investigadora no campo da Psicologia e Neurociência, especialista mundial na Psicologia das emoções, Professora de Psicologia na Northeastern University, com ligação à Harvard Medical School e Massachusetts General Hospital, onde dirige o Center for Law, Brain & Behavior –, observou o seguinte: “Se ouviram dizer que o lado esquerdo do nosso cérebro é lógico e o lado direito é criativo, isso é apenas uma metáfora. Tal como a ideia de que o nosso cérebro tem um «Sistema 1» para respostas rápidas, instintivas, e um «Sistema 2» para um processamento mais lento e reflexivo, conceitos discutidos no livro Pensar, Depressa e Devagar, do psicólogo Daniel Kahneman. (Kahneman é muito claro ao dizer que os Sistemas 1 e 2 são metáforas sobre a mente; mas frequentemente, são confundidos com estruturas cerebrais).” (“7 lições e meia sobre o cérebro”, melhor citada em referências, pág. 41 e 42).

human anatomy model

Tenhamos presente que o cérebro funciona por previsão, com base nas informações existentes no nosso corpo, pelo que em situações de investigação criminal contribuirão as experiências passadas e vivenciadas pelos investigadores directa ou indirectamente, a que acrescem os dados sensoriais que recebemos do mundo exterior (vd. por todos Barrett, Lisa Feldman, “7 lições e meia sobre o cérebro”, melhor citada em referências, Lição n.º 4, pág. 79 a 97).

Situações como as investigações de homicídio com alta exposição mediática, podem gerar enorme pressão nos investigadores, tendo em vista uma resolução tão rápida quanto possível da investigação. E é aqui que, com base nas experiências passadas, o cérebro dos investigadores lhes pode pregar uma rasteira, ou seja, existe a possibilidade de partirem de palpites para hipóteses de trabalho demasiado delimitadas, descurando ou até ignorando os indícios que surgem em sentido contrário. Tais circunstâncias podem ter como resultado a tentação de encaixar indícios em narrativas pré-existentes e não construírem narrativas a partir do aparecimento dos indícios… com a elasticidade investigatória necessária para alterar rumos à medida que as evidências vão surgindo.

Assim nos explicam Daniel Kahneman, Olivier Sibony – Professor de Estratégia Empresarial e Estratégia Corporativa na HEC Paris Business School, escritor e consultor especializado em tomada de decisões estratégicas e organização de processo de decisão – e Cass R. Sunstein – Professor em Harvard, onde dirige o Programa de Economia Comportamental e Políticas Públicas. Entre 2009 e 2012, esteve à frente do gabinete para a Informação e Questões Regulamentares, na Casa Branca, e, entre 2013 e 2014, fez parte do Grupo de Estudo criado pelo presidente Barack Obama para Tecnologias da Informação e Comunicações. Em 2018, recebeu o Prémio Holberg do governo da Noruega, por vezes descrito como o equivalente ao Prémio Nobel do Direito e das Humanidades. Em 2020, a Organização Mundial da Saúde nomeou-o Presidente do seu grupo de consultoria técnica sobre Insights Comportamentais e Ciências para a Saúde: “Este exemplo ilustra um tipo diferente de enviesamento, a que chamamos enviesamento de conclusão, ou juízo prematuro. A exemplo de Lucas, começamos muitas vezes o processo de formulação de um juízo com uma inclinação para chegar a uma determinada conclusão. Quando fazemos isso, deixamos o nosso rápido e intuitivo Sistema 1 de pensamento sugerir uma conclusão. Ou tiramos essa conclusão precipitada e ignoramos o processo de reunir e integrar informações, ou então mobilizamos o Sistema 2 de pensamento – envolvendo-nos em pensamento deliberado – para conceber argumentos que apoiam o nosso juízo prematuro. Neste caso, a prova será selectiva e distorcida: devido ao enviesamento de confirmação e ao enviesamento de desejabilidade, tendemos a reunir e interpretar elementos de prova de forma selectiva para beneficiar um juízo em que já acreditamos ou que gostaríamos que fosse verdadeiro.

As pessoas apresentam muitas vezes racionalizações plausíveis para os seus juízos e pensam que elas são a causa das suas convicções. Um bom teste ao papel do juízo prematuro é imaginar que os argumentos que parecem apoiar a nossa convicção são de repente considerados inválidos.” (ob. citada em referências pág. 206 e 207).

O elevado risco deste modo de actuação, é que podem existir linhas de investigação que faria todo o sentido serem analisadas com base nos indícios já recolhidos, mas que pelo facto de estarem em contradição, ou até desmontarem por completo as hipóteses de trabalho em curso, são ignoradas. A coerência excessiva entra em acção e os erros podem acumular-se sem que os investigadores se apercebam: os vieses de confirmação fazem o seu trabalho e apenas os indícios que encaixam na narrativa são valorizados.

Conforme nos ensina Daniel Kahneman: “Não se consegue evitar lidar com a limitada informação que se possui como se fosse tudo aquilo que há para saber. Constroem-se as melhores histórias possíveis a partir da informação disponível e, se for uma boa história, acredita-se nela. Paradoxalmente, é mais fácil construir uma história coerente quando se sabe pouco, quando há menos peças para encaixar no puzzle. A nossa reconfortante convicção de que o mundo faz sentido baseia-se num alicerce seguro: a nossa capacidade quase ilimitada de ignorar a nossa ignorância.” (“Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 265 e 266).

Vale a pena recordar António Damásio, Médico, Neurologista e Neurocientista de renome internacional, conhecido pelas suas contribuições pioneiras para a compreensão das relações entre o cérebro, as emoções e a racionalidade. Professor da cátedra David Dornsife de Neurociência, Psicologia e Filosofia, bem como Director do Brain and Creativity Institute, que fundou em 2006 na University of Southern California, em Los Angeles:

“O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à ativação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória.” (ob. citada em referências, pág. 294).

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9.3. Confiança e ausência de dúvida

Como bem refere David J. Lieberman, Psicoterapeuta e líder internacionalmente reconhecido nos campos do comportamento humano e das relações interpessoais. Formou membros de todos os ramos das forças armadas dos EUA, bem como do FBI, da CIA e da NSA:

“As pessoas tendem a encontrar o que procuram e a ver o que esperam ver. Sempre em busca de provas que corroborem as nossas ideias, fechamos os olhos a qualquer prova que não esteja de acordo com as nossas expectativas. Este é um fenómeno conhecido como viés de confirmação. Concentramo-nos no que confirma o nosso pensamento, e subconscientemente filtramos as inconsistências.

Quando o viés de confirmação está em ação, a prova surge por si só – quase misticamente –, em padrões de identificação imediata. Isto faz parte do processo neurobiológico que o cérebro utiliza para dar sentido ao mundo. Os nossos cérebros basicamente criam ficheiros, tal como nós fazemos nos nossos computadores. No nosso cérebro, esta categorização enquadra-se no âmbito dos atalhos mentais, chamados heurística.

(…)

A heurística é útil para nos ajudar a resolver problemas de forma eficiente, mas pode conduzir a preconceitos que nos levam a entrar num modo «culpado até prova em contrário». Por exemplo, se um detetive que investiga o assassinato de uma mulher sabe que uma elevada percentagem de mulheres assassinadas são mortas pelos seus cônjuges, pode ser mais provável que assuma que o cônjuge o fez e comece a filtrar mentalmente as provas para se adequarem à sua teoria.” (ob. citada em referências, pág. 121 e 122).

Por seu turno, o Ministério Público com base na sua função acusatória, pode desenvolver uma narrativa incrivelmente persuasiva a partir de fragmentos, nomeadamente se tiver eco nos meios de comunicação social. Mas quando o corpo não está presente, essa construção depende fortemente de inferências.

Não podemos esquecer, como bem nos enuncia Aury Lopes Jr., que o Ministério Público no exercício da sua pretensão acusatória, formula a acusação, mas para que o devido processo Penal funcione: “é preciso que cada um ocupe o seu “lugar constitucionalmente demarcado” (clássica lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), com o MP acusando e provando (a carga da prova é dele), a defesa trazendo seus argumentos (sem carga probatória) e o juiz, julgando. Simples? Nem tanto, basta ver que a estrutura inquisitória e a cultura inquisitória (fortíssima) fazem com que se resista a essa estrutura dialética por vários motivos históricos, entre eles o mito da “busca da verdade real” e o anseio mítico pelo juiz justiceiro, que faça justiça mesmo que o acusador não produza prova suficiente.” (Lopes Jr., Aury, ob. citada em referências, pág. 224).

Acresce que, como já vimos, o risco de viés da narrativa coerente é acentuado: o procurador que constrói uma história lógica e emocionalmente satisfatória tenderá a ignorar dados que a contradigam (sucessão e perpetuação de erros que já vêm da investigação).

Como adverte Daniel Kahneman: “A confiança subjetiva num juízo não é uma avaliação sensata da probabilidade de esse juízo ser correto. A confiança é uma sensação, que reflete a coerência da informação e a facilidade cognitiva de a processar. É prudente levar as admissões de incerteza a sério, mas as declarações de elevada confiança dizem-vos principalmente que um indivíduo construiu uma história coerente na sua mente, não necessariamente que a história seja verdadeira.”  (“Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências pág. 279).

Para a família da vítima, o desaparecimento é bastante doloroso, porque não há ritual de luto, nem corpo, nem sepultura.

O reencontro do corpo, segundo estudos qualitativos com famílias, é frequentemente o momento que marca o início do luto: subitamente, o processo ganha uma base sensorial e simbólica, permitindo às vítimas iniciarem a reconciliação emocional.

pink and green flower bouquet on brown concrete wall

Na ausência do corpo, porque não foi encontrado, bem como em situações de absolvição do arguido, persiste uma situação de ambiguidade que dificulta o processo de encerramento e início do luto. Pauline Boss, Professora Emérita da University of Minnesota, membro da Associação Americana de Psicologia e da Associação Americana para Casamento e Terapia Familiar, e ex-presidente do Conselho Nacional de Relações Familiares, define este processo como ambiguous loss: sem corpo e sem condenação (embora o próprio processo judicial em si, seja muito difícil de suportar para os familiares das vítimas), não há rituais nem prova que simbolizem a morte e, portanto, a dor pode permanecer suspensa.

O sistema judicial é, muitas vezes, instrumentalizado como substituto do funeral: punir alguém torna-se a única forma de “fazer justiça”, o que pode pressionar as autoridades e os tribunais. Sobretudo se existirem meios de comunicação que já tenham providenciado “o pacote completo e fechado”, ou seja, tenham divulgado quem foi o autor do crime, de que modo o fez, e qual a motivação.

Casos sem corpo geram fascínio público e atraem mediatismo intenso. Isso tende a promover juízos precipitados, julgamentos paralelos e a exigência de “justiça emocional”.

Conforme nos descreve Morris B. Hoffman, Juiz Jubilado no Colorado, onde presidiu a várias divisões judiciais, incluindo o grande júri de Denver. Membro da MacArthur Research Network on Law and Neuroscience e investigador no Gruter Institute for Law and Behavioral Research, tem escrito e ensinado sobre direito penal, neurociência aplicada ao julgamento, história do júri e seleção de jurados:

“Nas minhas instruções iniciais aos jurados, esforço-me sempre por alertá-los para um problema fundamental: um julgamento é um processo profundamente antinatural, e o maior desafio será resistir à tentação de tirar conclusões antes do tempo. O ser humano não está feito para esperar passivamente até que todos os factos estejam em cima da mesa antes de julgar, muito menos para o fazer de forma linear, como exige o processo: primeiro uma parte, depois a outra. Julgamos continuamente, com base em fragmentos mínimos de informação, e esses juízos iniciais alteram profundamente a forma como recebemos e processamos o que vem a seguir, sobretudo aquilo que contradiz o que já decidimos.

O maior desafio para qualquer jurado é este: transformar-se de uma ‘máquina de julgamento instantâneo’ num recipiente paciente de julgamento ponderado.

Mas este problema não afeta apenas os jurados. Nos julgamentos sem júri, em que sou eu o decisor, há sempre um momento, por vezes cedo, por vezes tarde, em que se acende uma ‘luz’ na mente: parece que se vê o todo, que se compreende o essencial, que se antecipa o resultado. Tento lutar contra esse momento, voltar mentalmente ao estado de incerteza anterior, e até prestar atenção redobrada à prova que aponta noutra direção. Ainda assim, devo confessar: quando esse momento chega, raramente mudo de opinião quanto ao essencial.

man in black shirt sitting beside woman in white shirt

Passei anos a pensar em formas de mitigar este problema, o do julgamento precoce, do veredito em piscar de olhos. A verdade é que esses momentos de “luz acesa” surgirão inevitavelmente. Fazem parte do modo como decidimos. Talvez o melhor que possamos fazer seja empurrá-los o mais possível para o fim do processo. E, para isso, talvez baste reconhecer que o problema existe, e obrigar o jurado, ou o juiz, a reconhecê-lo também. Recordá-los, e recordarmo-nos, de que o julgamento é um processo antinatural, em que pedimos aos decisores que resistam à sua tendência natural de saltar para conclusões.” (Hoffman, Morris B., ob. citada em referências, pág. 272, 274 e 275).

O fenómeno da justiça performativa, que analisámos no artigo Punir (e ver punir) sabe bem!, está aqui particularmente activo: sem cadáver, o espetáculo judicial substitui a prova.

Nos sistemas com jurados, os riscos poderão ser amplificados: a ausência do corpo é muitas vezes compensada por emoção, empatia com a vítima ou desconfiança do arguido.

Juízes togados, por seu lado, podem ser vítimas do viés da coerência institucional, para além do viés de confirmação: validar o trabalho da investigação e acusação com base na construção lógica interna, mesmo sem evidência física central.

É importante sublinhar que o “viés confirmatório” é um processo inconsciente, que independe das boas ou más intenções do juiz, sendo um dos muitos erros cognitivos que pode o juiz incorrer nos diferentes processos decisórios que é chamado a realizar.

O viés confirmatório – confirmation bias –, explicam Morais da Rosa e Wojciechowski, constitui uma tendência natural das pessoas a procurarem ou favorecerem apenas as informações que corroborem os seus pontos de vista, hipóteses ou preconcepções, negligenciando evidências que apontem em sentido contrário. Parafraseando Cordero, é exatamente a prevalência da hipótese sobre os fatos. Ocorre quando o agente (pode ser o juiz ou, durante a investigação, a autoridade policial) primeiro decide e depois vai atrás da prova que (apenas serve para) confirmar a decisão já tomada, desconsiderando outras hipóteses. Primeiro decide “foi ele”, depois busca a prova exclusivamente confirmatória daa decisão já tomada. O viés de confirmação é o erro mais comum nas investigações e decisões judiciais, ainda que não seja o único, gerando graves injustiças.

Como apontam Alexandre e Paola, “as ideias são pegajosas”, conduzindo ao efeito perseverança. Por isso, é importante um agir contraintuitivo, que, consciente daa existência desse enviesamento, o agente busca atrasar ao máximo a tomada de decisões, estando cognitivamente aberto para confirmar ou negar a hipótese trazida.

O quadro mental é agravado pelo chamado “efeito aliança”, em que o juiz tendencialmente se orienta pela avaliação realizada pelo promotor. O juiz “vê não no advogado criminalista, mas apenas no promotor, a pessoa relevante que lhe serve de padrão de orientação”. Inclusive, aponta a pesquisa, o “efeito atenção” diminui drasticamente tão logo o juiz termine sua inquirição e a defesa inicie suas perguntas, a ponto de serem completamente desprezadas na sentença as respostas dadas pelas testemunhas às perguntas do advogado de defesa.

Tudo isto acaba por constituir um “caldo cultural” onde o princípio do in dubio pro reo acaba sendo virado de ponta-cabeça – na expressão de Schünemann –, pois o advogado vê-se incumbido de provar a incorreção da denúncia! Entre as conclusões de Schünemann encontra-se a impactante constatação de que o juiz é “um terceiro inconscientemente manipulado pelos autos da investigação preliminar.” (Lopes Jr., Aury, ob. citada em referências, pág. 81 e 82).

A piece of a puzzle with a missing piece

Por outro lado, na ausência de corpo, que numa análise sumária poderá parecer uma grande mais-valia para o arguido, existe o outro lado da moeda pois nessas circunstâncias o arguido também não pode partir da análise do cadáver em todas as suas vertentes periciais, para poder demonstrar que, por esta ou aquela razão, não pode ter sido ele o autor do crime. Inclusive, ficam mais difíceis as situações de tentativa de direcionamento para um outro possível agente do crime, que são estratégias de defesa comuns, sobretudo em latitudes em que existe uma verdadeira investigação defensiva e obrigatoriedade de partilha de indícios entre investigação/acusação e defesa.  

***

9.4. Remorso e julgamento emocional

Nestas situações, a atitude do arguido em julgamento (frieza, silêncio, contradições) pode ser sobrevalorizada como “indício de culpa”, ainda que emocionalmente neutra ou até justificada por medo ou trauma por estar a passar por todo o processo. O direito ao silêncio, longe de proteger, pode aqui funcionar contra si, contribuindo para alimentar narrativas especulativas.

A ausência de corpo transforma o processo penal num campo de disputa entre lógicas narrativas, emoções colectivas e percepções enviesadas. Mais do que em qualquer outro crime, o homicídio sem cadáver exige da justiça não só provas indiciárias coerentes e irrepreensíveis, mas um sistema imune à sugestão, à simplificação e ao desejo social de punição.

Quando o corpo não está, tudo o resto tem de estar: método, rigor, cepticismo, e sobretudo a coragem de dizer “não basta”, o que nem sempre é fácil, sobretudo em países, como Portugal, que têm uma tendência para punir mais, como analisado no artigo Portugal punitivo: um dos países mais pacíficos do mundo… mas com um sistema penal hiperactivo?

Por seu turno, a ausência de um corpo no contexto de um possível homicídio não é apenas uma lacuna probatória: é um vazio simbólico que o cérebro humano tem dificuldade em aceitar. Do ponto de vista neurobiológico e cognitivo, isso tem consequências profundas para todos os envolvidos, não só no processo penal propriamente dito, como em toda a atmosfera envolvente.

Um vazio como a ausência de um corpo numa situação de possível homicídio, tende a ser preenchido pelo cérebro humano do mesmo modo que processa a falta de pormenores de um acontecimento passado, numa situação de reconstituição de memória episódica.

Tal como descrito por Charan Ranganath, Professor de Psicologia e Neurociência na University of California, e Director do Dynamic Memory Lab da mesma universidade. É um pesquisador líder no campo da memória, usando imagens cerebrais, modelagem computacional e estudos de indivíduos com distúrbios de memória para investigar como nos lembramos de eventos passados e como a memória afecta vários aspectos de nossas vidas: “Acredito decididamente que o hipocampo nos permite entrar num estado mental passado e invocar alguns pormenores de um acontecimento passado. Mas também concordo com a opinião de Bartlett de que, assim que regressamos ao passado, não reproduzimos simplesmente as coisas à medida que elas aconteceram. Se assim fosse, ao relembrar uma conversa telefónica de dez minutos, passaríamos dez minutos a reviver tudo o que experienciámos durante essa conversa. Não é isso que acontece. Pelo contrário, geralmente comprimimos essa experiência numa narrativa mais breve que capta a sua essência. Assim, o hipocampo pode levar-nos até algumas das unidades celulares que estavam ativas durante alguns momentos dessa conversa, mas continuamos a ter de utilizar esquemas na rede-padrão para dar sentido àquilo que estamos a recordar. Contudo, esta reconstrução é suscetível ao erro porque os esquemas captam o que geralmente acontece, não o que deveras aconteceu.

Quando recordamos, somos como detetives a tentar resolver um mistério ao juntar as peças de uma narrativa a partir de um conjunto limitado de pistas. Um detetive pode alicerçar um caso com base numa compreensão do motivo do assassino, o que pode ser útil, mas também pode levar a vieses. Da mesma forma, quando recordamos acontecimentos, o motivo pode ter um importante papel explicativo, ajudando-nos a dar sentido ao que que aconteceu. Dá sentido à ação, o que nos permite reunir fios de informação e tecê-los numa narrativa memorável. Mas suposições sobre as motivações das pessoas também podem estimular a nossa imaginação, levando-nos a preencher os espaços em branco de acontecimentos de formas que deformam as nossas narrativas daquilo que aconteceu.” (ob. citada em referências, pág. 82 e 83).

a pair of scissors and a roll of money on a table

O cérebro humano detesta incerteza, sendo que estudos de neuroimagem mostram que a incerteza ou situações de tensão podem activar o circuito do stress, preparando o corpo para a acção, mais comumente conhecida pelo termo inglês fight or flight.

“Para iniciar a reação de lutar ou fugir, a amígdala ativa o hipotálamo. Com isso, envia sinais para os nossos nervos autonómicos, que controlam processos como a digestão e a respiração. O sistema nervoso simpático ativa então a reação de lutar ou fugir, levando as glândulas adrenais a libertarem duas hormonas da mesma família, a adrenalina e a noradrenalina, na corrente sanguínea.

As duas hormonas viajam pelo corpo, gerando um conjunto de alterações: o nosso ritmo cardíaco acelera, a respiração aumenta e o fluxo sanguíneo para os músculos cresce para lhes levar o máximo possível de oxigénio, caso precisemos de correr. Uma quantidade adicional de oxigénio viaja para o cérebro, fazendo-nos sentir alerta, e os nossos sentidos ficam mais despertos. Os níveis de açucar no sangue disparam, sendo libertado pelo fígado para alimentar os músculos.

Passados alguns segundos, o hipotálamo liberta um mensageiro químico que, através de uma reação em cadeia aciona a libertação de, entre outros, cortisol (uma hormona que conhecemos no Capítulo 2) pelas glândulas adrenais, que se situam por cima dos rins. Muitas vezes considerado a hormona do stress, o cortisol mantém o corpo num elevado estado de alerta, aumentando a pressão sanguínea e os níveis de glicose no sangue. É o cortisol que nos permite lidar com as situações tensas que duram mais do que alguns minutos.

Entretanto, quaisquer processos que não sejam necessários, e possam desperdiçar energia preciosa, são desligados. A digestão abranda ou acaba mesmo por parar, a produção de lágrimas e saliva sofre uma forte redução (gerando a sensação familiar de boca seca) e o precioso sangue é redirecionado para longe da pele, fazendo-nos ficar pálidos. O sistema imunitário é suprimido e, em casos extremos, os músculos da bexiga ficam relaxados. Libertar a urina que transportamos para reduzir o nosso peso poderá dar-nos aquela pequena melhoria na corrida que faz a diferença entre a vida e a morte. Estas duas vias, uma rápida mas de curta duração, viajando através dos nervos, e a outra mais lenta mas de maior duração, levada no sangue por substâncias químicas, significam que a reação durará o tempo que for preciso para nos livrar do perigo.” (Smith, Ginny, ob. citada em referências, pág. 88 e 89).

Este desencadear de reacções pode ocorrer a qualquer um dos intervenientes, inclusive na sala do tribunal em plena audiência. A intensidade com que as reacções do corpo se desenvolverão, terão a ver em grande medida, primeiro, com a rapidez do córtex pré-frontal em anular o que a amígdala iniciou, dizendo que foi falso alarme e que não existe um perigo real, segundo, que a pessoa não desenvolva um ataque de ansiedade, sem conseguir que o córtex pré-frontal anule a situação despoletada pela amígdala.

A maior ou menor duração deste processo nervoso-químico, vai ditar que tipo de consequências o corpo vai sentir ou somatizar, na medida em que a libertação de hormonas e a preparação do corpo para uma reacção física intensa (mas que depois não ocorre) pode ter efeitos desgastantes e até devastadores no estado físico e sobretudo psíquico da pessoa, diminuindo-lhe grandemente a capacidade mental.

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Curiosamente, conforme nos adverte Ginny Smith, especialista em Neurociência e consultora de comunicação científica, uma das consequências deste tipo de situações, e sobretudo da existência de stress, é o facto deste ter a capacidade de nos tornar mais susceptíveis a vieses. (ob. citada em referências, pág. 216, adaptado).

Tudo isto, permite-nos perceber porque a ausência de corpo pode ser emocionalmente mais perturbadora do que a visão de um cadáver, independentemente do estado deste, porquanto esta ausência causa uma ideia de não resolução, de não encerramento de uma narrativa, que obviamente se agrava em situações de absolvição em sede de processo crime. Nas circunstâncias em que o processo tiver sido muito mediatizado, as pessoas, mesmo aquelas que têm conhecimentos técnicos, tendem a dizer que não foi feita justiça (porque nessas situações fazer-se justiça, significa obrigatoriamente a existência de uma condenação).

Voltando a David J. Lieberman: “O nosso desconforto crónico com a ambiguidade leva-nos a interpretações previsíveis, confortáveis e familiares, mesmo que sejam apenas representações parciais ou totalmente desconectadas da realidade… Outras coisas que não encaixam, ficam pelo caminho. Estamos a impor interpretações coerente. Vemos o mundo de uma forma muito mais coerente do que é.” (ob. citada em referências, pág. 124).

Acresce que esta ambiguidade gera o que a psicologia chama de “aversão à incerteza” (uncertainty aversion), que normalmente se relaciona com decisões mais punitivas (sobretudo com muita emoção subjacente).

Estudos de neurociência social, como o de Buckholtz – Neurocientista e Professor na Stanford University, no Departamento de Psicologia. A sua investigação foca-se nos mecanismos cerebrais da moralidade, da punição e da regulação do comportamento social. Recorrendo a neuroimagem funcional, modelação computacional e psicologia experimental, estuda como o cérebro processa normas, emoções e julgamentos, especialmente em contextos de justiça criminal –  e Marois – neurocientista e Professor no Departamento de Psicologia da Vanderbilt University (EUA), onde dirige o Laboratório de Neurociência Cognitiva. O seu trabalho investiga os limites da atenção, da tomada de decisão e do controlo executivo, com ênfase na forma como o cérebro processa informação em contextos de sobrecarga e incerteza –, demonstram que o julgamento penal activa um circuito que integra emoção (amígdala), inferência de intenção (Junção Temporoparietal TPJ) e avaliação normativa (Córtex Pré-Frontal medial mPFC e Córtex Pré-Frontal DorsoLateral DLPFC). O castigo emerge da conjunção entre culpa presumida e dano sentido, mesmo que este último não seja empiricamente demonstrado, como sucede nos homicídios sem corpo. A punição, nestes casos, parece compensar cognitivamente a incerteza factual com a certeza emocional. E essa certeza é, como demonstram os autores, construída por processos cerebrais de generalização e inferência moral, não por evidência direta. (Buckholtz, Joshua W e Marois, René, ob. citada em referências, síntese adaptada).

Reiteramos, tal como descrito em Punir (e ver punir) sabe bem!, a punição activa os circuitos de recompensa, incluindo o núcleo accumbens, associado à dopamina. O desejo de ver punido o alegado autor de um homicídio sem corpo pode, assim, funcionar como compensação emocional da incerteza.

woman in white shirt sitting on the ground during sunset

O cérebro prefere claramente uma história errada ou com lacunas mas completa, do que uma verdade incompleta. Este mecanismo explica por que razão a comunidade, os jurados, e até os magistrados podem, inconscientemente, favorecer uma narrativa acusatória coerente em detrimento da dúvida razoável.

“Quando os jurados não recebem uma narrativa socialmente coerente, tendem a inventá-la. Tal como bebés que atribuem intenções boas ou más a figuras geométricas em movimento, os jurados (e também os juízes) atribuem intenções morais às partes em conflito, mesmo que os advogados não apresentem o julgamento nesses termos. Mais impressionante ainda: os jurados, depois do veredito, reconstroem mentalmente as provas para que se tornem consistentes com a decisão tomada. Em entrevistas realizadas após o julgamento, verificou-se que muitos já nem se lembravam de elementos que contradiziam o veredito. Esta vasta literatura sobre narrativas permite inferir que, durante as deliberações, os jurados fazem o mesmo que fazem depois: constroem uma história a partir das provas, ignoram os factos que não se encaixam e sobrevalorizam os que servem a coerência da narrativa.” (Hoffman, Morris B., ob. citada em referências, pág. 278).

“A confiança que os indivíduos têm nas suas crenças depende sobretudo da qualidade da história que conseguem contar acerca daquilo que veem, mesmo que vejam pouco. Falhamos muitas vezes na admissão da possibilidade de o testemunho que deveria ser crítico para o nosso juízo estar ausente – só há aquilo que vemos. Além disso, o nosso sistema associativo tende a contentar-se com um padrão coerente de ativação e suprime a dúvida e a ambiguidade.” (Kahneman, Daniel, “Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 120).

Como nos elucida Rui Cunha Martins, Professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde lecciona nas áreas de Filosofia do Direito, Epistemologia Jurídica e Teoria Crítica. É investigador integrado no Instituto de História Contemporânea (IHC) e Professor visitante em várias universidades no Brasil, Alemanha e América Latina. A sua obra explora as interfaces entre direito, tempo, linguagem e imaginação, tendo refletido criticamente sobre a função hermenêutica dos tribunais, o conceito de justiça narrativa e a crise da imparcialidade judicial no mundo contemporâneo:

“Terceiro “operador de contágio” residente no dispositivo da convicção: a confiança. A confiança não se opõe propriamente à prova. É mais sério que isso, torna-a desnecessária. O que há para provar ali onde nenhuma inquietude, nenhuma incerteza e nenhuma perturbação na força ostensiva do real pode instalar-se? A confiança tem contrato implícito com a evidência.

Epistemicamente falando, o exercício da confiança corresponderá a uma crença declaradamente não fundada. Ela “é um redobramento, um ´crer na crença´, uma disponibilidade para aderir que sai para fora da lógica da argumentação. A confiança, em termos empíricos, não é mesmo questão de argumento. O seu suporte é antes o de uma primordialidade roubada à discussão. Uma imagem do mundo´ que se aceita indiscutível – aquela onde o nosso questionamento retrospectivo sobre a ordem das coisas e sobre nós próprios acaba por se deter, incapaz ou sem vontade de cavar mais fundo – e que, a partir desse momento, se institui como base primordial de confiança, passando a sedimentar a nossa posição no mundo. Eis o que faz dos padrões de confiança uma espécie de “gonzos imóveis das práticas de que eles constituem as regras”.” (ob. citada em referências, pág. 34 e 35). 

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A ausência de cadáver gera uma lacuna sensorial que o cérebro tenta preencher com sinais substitutivos: olhares, posturas, contradições verbais, passados conturbados. Como vimos, o córtex pré-frontal medial e o circuito da teoria da mente (junção temporoparietal e sulco temporal superior) avaliam intenções, mas fazem-no com base em padrões arquétipos, ou seja, o cérebro procura encaixar o arguido num papel, por exemplo como mentiroso, como assassino, e, por vezes, ainda que de forma mais rara, como uma vítima de tudo o que lhe estão a fazer passar.

Este processo está na raiz da heurística da representatividade, em que o cérebro avalia a culpa com base na adesão ao “perfil típico” de culpado, mesmo sem prova empírica.

Em tais situações, o direito ao silêncio tende a ser interpretado por via racional como um mecanismo de proteção. Mas do ponto de vista neurológico e emocional, o silêncio perante a acusação é lido como dissonância, desvio ou manipulação, principalmente em contexto de alta emocionalidade colectiva.

Num estudo experimental com jurados simulados, Joseph Thomas,  investigador e Mestre em Psicologia pela Northern Illinois University, com uma dissertação sobre comportamentos não verbais de arguidos e a sua influência nas decisões dos jurados, demonstrou que a exibição de remorso – expressa por choro, olhar cabisbaixo ou postura encolhida – gera simpatia e conduz com frequência a recomendações penais mais brandas. Curiosamente, tanto a ausência total como o excesso de emoção foram interpretados como sinais de culpa, enquanto uma resposta emocional ‘moderada’ foi percepcionada como mais aceitável e menos condenável.

Os participantes no estudo traziam consigo expectativas prévias sobre o modo como um arguido “culpado” se deve comportar. Quando essas expectativas eram violadas, tendiam a interpretar o desvio como sinal de frieza ou desumanização. Tal como o autor conclui, o comportamento não verbal do arguido –  mesmo sem relevância jurídica direta – torna-se um factor determinante no juízo de culpabilidade e na severidade da pena sugerida. (Thomas, Joseph, ob. citada em referências, abstract, pág. 3 e 27, adaptado). 

O cérebro social interpreta o silêncio como incongruente com a inocência. A ausência do corpo e o silêncio do arguido amplificam a lacuna manifesta: não há corpo, não há palavra, logo, há espaço para projecção.

Tal como nota a jurista norte-americana Susan Bandes, Professora na DePaul University College of Law, especialista em emoções no julgamento criminal, mesmo em processos de pena capital (pena de morte), onde a vida do arguido está em jogo, a avaliação do remorso baseia-se frequentemente em expressões faciais e posturas corporais durante o silêncio em julgamento. A ausência de palavras ou emoção visível é muitas vezes interpretada como frieza ou culpa. É o corpo que fala, mas a leitura desse corpo raramente é neutra.

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Como salienta Bandes, mesmo que o remorso seja autêntico e profundo, dificilmente poderá ser adequadamente transmitido apenas por expressões faciais ou linguagem corporal. O problema não é apenas o fingimento: é a própria suposição de que o “íntimo” pode ser lido no rosto do outro, e que isso deve guiar decisões de vida ou morte. (Bandes, Susan A., ob. citada em referências, pág. 6 e 28, adaptado).

“As emoções não são reveladas de forma objetiva no rosto, na voz ou no corpo, apenas inferidas. Não é possível ‘ver’ remorso, raiva ou tristeza numa testemunha ou num arguido; só se pode formular suposições, umas mais informadas do que outras. Um julgamento justo exige sincronia entre quem vive a emoção (como o arguido) e quem a interpreta (como o juiz ou o jurado), mas essa sincronia é difícil, sobretudo quando existe distância emocional, ideológica ou étnica. A falta de empatia ou o desacordo político, por exemplo, podem tornar muito mais difícil reconhecer e compreender a emoção do outro.” E, como adverte Lisa Feldman Barrett, “as emoções não são expressas, exibidas ou reveladas de forma objetiva – só podem ser adivinhadas”. Daí que a frieza, o silêncio, ou a ausência de gestos codificados não possam ser lidos como sinais de culpa, apenas como projeções moldadas por contextos, expectativas e estereótipos.” (Barrett, Lisa Feldman, “How Emotions are Made, The secret life of the brain”, melhor citada em referências, pág. 244 e 245, adaptado).

***

10. Últimas notas

A complexidade dos homicídios sem corpo transcende a prova penal e desafia os próprios alicerces da racionalidade judicial. Como vimos, a ausência do cadáver não é apenas uma dificuldade técnica de investigação ou de demonstração factual, mas um catalisador de enviesamentos cognitivos, de distorções emocionais e de pressões sociais intensas.

A tentação narrativa, os vieses de confirmação, a busca de coerência, o desejo de punição, o sofrimento das famílias e a influência mediática convergem para um terreno de altíssimo risco. E nesse terreno, o sistema judicial é chamado a decidir não apenas com base no que falta – o corpo –, mas sobretudo no que sobra: fragmentos de indícios, leituras emocionais e construções interpretativas. Exige-se, por isso, mais do que nunca, uma justiça epistémica: lúcida perante os seus próprios limites, crítica das suas tentações internas e consciente de que o erro judicial, nestes casos, não é apenas provável – é estruturalmente possível.

E é precisamente nestes casos que o princípio da presunção de inocência, tantas vezes invocado como mero enunciado retórico, deve ser elevado à sua dimensão mais plena: a de verdadeira garantia contra o colapso do racional sob o peso da emoção.

Em suma, quando falta o corpo, o julgamento decorre tanto no tribunal como no cérebro dos intervenientes (mais ainda do que em situações de existência de cadáver). O cérebro, por natureza, detesta o vácuo e tende a preenchê-lo, com medo, com suposições, com desejo de castigo. Por isso, a justiça sem cadáver tem de ser a mais exigente, a mais rigorosa e a mais fria das justiças. Porque todos os outros sistemas – o imunológico, o límbico e o mediático – já estarão em ebulição.

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Em particular, o sistema mediático, muitas vezes formatado para entregar uma história antes do processo, tende a ocupar o espaço do corpo ausente com uma narrativa fechada, antecipando culpados, intenções e desfechos. A sua pressão simbólica pode, assim, não só moldar a opinião pública, como infiltrar-se, subtil mas persistentemente, nos próprios operadores judiciários.

Entre um culpado solto e um inocente condenado, a História ensinou-nos – nas masmorras, nos pelourinhos e nas fogueiras – que o verdadeiro erro da justiça não é falhar a punição, mas consagrá-la sem prova.

Quando não há corpo, que ao menos haja memória: da razão, da prudência e do primado da dúvida.

Miguel Santos Pereira é advogado, é membro: da Ordem dos Advogados Portugueses – OAP, da American Bar Association – ABA, com inscrição na divisão de Justiça Criminal, da Association Internationale De Droit Pénal – AIDP, da European Criminal Bar Association – ECBA, da Society for Judgment and Decision Making – SJDM, e do The Centre of Neurotechnology and Law.

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