Órgãos arrancados a doentes ainda vivos: o escândalo que está a abalar os Estados Unidos

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Nos Estados Unidos, um escândalo começou a abalar esta semana o sistema nacional de transplantes de órgãos: vários relatórios e testemunhos de profissionais e famílias denunciam que a recuperação de órgãos para transplante terá ocorrido — ou tentado ocorrer — em pacientes ainda vivos, contrariando os mais elementares princípios éticos da medicina.

Um dos casos mais perturbadores, escrutinado esta terça-feira num painel na Câmara dos Representantes durante a inquirição de uma entidade que supervisionava transplantes, ocorreu em 2021 no Estado do Kentucky com um homem que estava a ser preparado para a retirada de órgãos, mesmo balançando a cabeça em “não” e levando os joelhos ao peito.

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Foto: D.R.

O volume e gravidade dos casos levou Robert F. Kennedy Jr., Secretário da Saúde e Serviços Humanos (HHS) do Governo norte-americano, a anunciar uma profunda reforma do sistema de obtenção e transplante de órgãos. A gravidade das revelações está a provocar reacções em todo o país, com implicações legais, médicas e morais de largo alcance.

A polémica estalou após uma investigação conduzida pela Administração de Recursos e Serviços de Saúde (HRSA) ter revelado que, em apenas um dos estados analisados — o Kentucky — mais de 70 procedimentos de doação de órgãos foram interrompidos porque os pacientes começaram a mostrar sinais de recuperação.

No total, a HRSA analisou 351 casos de tentativas não concluídas de colheita de órgãos e concluiu que 103 apresentavam “características preocupantes”, entre as quais 28 em que os pacientes possivelmente ainda estariam vivos no momento da tentativa de extracção.

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Foto: D.R.

Em termos clínicos, a morte cerebral — considerada equivalente à morte legal na maioria dos países ocidentais, incluindo os Estados Unidos — é o estado em que todas as funções do encéfalo, incluindo do tronco cerebral, cessaram de forma irreversível. Quando esse diagnóstico é validado por critérios rigorosos e testes confirmatórios, o paciente é declarado legalmente morto, mesmo que o coração ainda possa bater com auxílio de suporte artificial.

A legislação norte-americana, como a Uniform Determination of Death Act (UDDA), reconhece a morte cerebral como critério suficiente e definitivo para declarar a morte de um indivíduo. No entanto, um diagnóstico inadequado ou apressado desse estado — ou a sua substituição por critérios circulatórios menos rigorosos — levanta sérias dúvidas jurídicas e bioéticas, que agora estão a ser colocadas em evidência neste escândalo.

“A investigação revelou que o processo de obtenção de órgãos foi iniciado quando os pacientes ainda apresentavam sinais de vida”, afirmou anteontem Robert F. Kennedy Jr., que classificou o sistema como “horrível” e exigiu reformas estruturais. “Cada potencial dador deve ser tratado com a santidade que merece”, declarou, prometendo responsabilizar as organizações envolvidas.

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Foto: D.R.

O relatório, que serviu de base à denúncia pública do HHS, sublinha que a procura crescente por órgãos está a gerar situações de “tomada de decisão precipitada” e a inverter prioridades éticas fundamentais: em vez de garantir primeiro a protecção do dador, o sistema estaria a favorecer a obtenção célere de órgãos.

Esta tendência está sobretudo associada a um método crescente nos EUA — a doação após morte circulatória — que permite a colheita de órgãos em pacientes que não tenham sido declarados em morte cerebral, mas que se encontrem em estado terminal ou em suporte vital com decisão clínica de suspensão.

E é precisamente neste tipo de casos que surgem os episódios mais chocantes. Segundo uma investigação publicada esta semana pelo New York Times, 55 profissionais de saúde de 19 estados reportaram pelo menos um caso perturbador de tentativa de colheita de órgãos em dadores ainda com actividade neurológica. Alguns denunciaram, inclusive, que medicamentos teriam sido administrados para “acelerar a morte” do potencial dador.

Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. / Foto: D.R.

Actualmente, mais de 103 mil pessoas aguardam um órgão nos EUA. Diariamente, morrem 13 doentes por falta de um dador compatível. Esta tensão constante entre necessidade e disponibilidade alimenta uma corrida desenfreada por órgãos, gerando um terreno fértil para abusos e negligência, sobretudo quando se aplica o critério circulatório.

Ao contrário da doação tradicional — feita após diagnóstico de morte cerebral irreversível —, a “doação após morte circulatória” (DCD, na sigla em inglês) ocorre em pacientes que não estão em morte cerebral, mas cujo prognóstico clínico é terminal. Após decisão médica (e consentimento familiar ou directiva antecipada) de suspender o suporte vital, aguarda-se a paragem cardíaca e, passados dois a cinco minutos, inicia-se a colheita de órgãos.

Este tipo de doação é controverso porque o intervalo entre a cessação dos sinais vitais e o início da extracção é curto, deixando margem para erros de avaliação. O risco é agravado quando há pressa ou pressão institucional, como documentado em vários casos. Na ausência de critérios neurológicos estritos, a fronteira entre vida e morte torna-se mais ambígua — e é aqui que se têm concentrado os abusos agora denunciados.

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Foto: D.R.

Além disso, têm surgido críticas sobre práticas de sedação agressiva ou administração de fármacos com o intuito de facilitar a extracção, sem clara indicação clínica para benefício do paciente, o que levanta sérias questões éticas e legais.

Agora, nos Estados Unidos, a HRSA impôs medidas correctivas às organizações de captação de órgãos, obrigando à revisão de protocolos clínicos, reforço do consentimento informado e melhoria das avaliações neurológicas. O HHS comprometeu-se também a transferir parte da supervisão para um sistema mais centralizado, reduzindo o actual mosaico institucional que inclui também os Centros de Serviços Medicare e Medicaid e ainda dezenas de organizações locais com autonomia operacional.

Em Portugal, o regime da doação de órgãos é regulado sobretudo por legislação dos anos 90, com alterações posteriores. Basicamente, adoptou-se o modelo de consentimento presumido, o que significa, à partida, que todos os cidadãos são potenciais dadores, salvo declaração em contrário registada no RENDA – Registo Nacional de Não Dadores.

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Foto: D.R.

A colheita de órgãos só pode ocorrer após a verificação de morte cerebral, definida segundo critérios clínicos rigorosos e padronizados. O diagnóstico de morte encefálica é feito com base em três exames neurológicos, realizados por dois médicos independentes da equipa de transplantação, com intervalo mínimo entre observações, conforme normas da Direcção-Geral da Saúde.

A doação após paragem cardíaca — do tipo DCD — não é prática corrente em Portugal. Embora legalmente possível em certos contextos, a sua implementação carece de regulamentação própria e protocolos clínicos específicos, além de aceitação ética consolidada. Assim, na prática portuguesa, os transplantes baseiam-se exclusivamente em doação pós-morte cerebral, ou, em alternativa, na doação em vida (casos de rins ou segmentos hepáticos entre familiares).

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Foto: D.R.

Adicionalmente, todo o processo é centralizado pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), que coordena a alocação dos órgãos, valida os critérios clínicos e assegura que os princípios da equidade, transparência e segurança do dador e do receptor são respeitados.

Embora Portugal se destaque no panorama europeu pela elevada taxa de doações per capita, não existem quaisquer sinais de situação anómala do ponto de vista legal e mesmo ético.