Bastaram 27 opiniões para colocar Amadora como uma das cidades mais inseguras da Europa

“Vamos limpar a Amadora” – este é o mote do deputado Rui Paulo Sousa, que se candidata à autarquia local pelo Chega e tem colocado a alegada criminalidade deste subúrbio de Lisboa na agenda política. Ainda na semana passada, um dos braços direitos de André Ventura perguntava em tom retórico: “Até quando queres viver no Gueto de Lisboa?… Vamos limpar a Amadora da Bandidagem, vamos devolver a Cidade aos Amadorenses de bem.”

Para sustentar esta tese, Rui Paulo Sousa apresentou um ranking surpreendente, da plataforma Numbeo, que colocava a cidade da Amadora no “17.º lugar no ranking das cidades mais perigosas da Europa… à frente de Odessa na Ucrânia!!!”, escreveu o candidato. Aliás, descontando o facto de a Amadora surgir ex-aequo com a cidade ucraniana, confirma-se o lugar no ranking do primeiro semestre de 2025 desta plataforma colaborativa.

Contudo, aquilo que mais surpreende é que a Amadora, cidade com cerca de 180 mil habitantes, nem sequer aparece na lista de 132 cidades europeias analisadas em 2024, onde apenas surgiam Lisboa (na posição 95) e Porto (na posição 87), ambas classificadas como cidades com baixo índice de criminalidade. No ranking de 2025, Lisboa ocupa a posição 76 e o Porto o lugar 110, embora ambas com percepção de risco baixo. A entrada de rompante no ranking causa estranheza, desde logo.

Porém, mais surpreendente ainda é constatar que a Amadora, mesmo figurando no 17.º lugar deste ranking europeu, ocupa apenas a posição 104 a nível mundial, numa lista liderada por duas cidades da África do Sul (Pietermaritzburg e Pretória), país que conta com cinco cidades no top 10.

Entre as 25 cidades consideradas menos seguras do mundo, segundo o ranking do Numbeo, seis são brasileiras (Salvador, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo) e quatro são norte-americanas (Memphis, Detroit, Baltimore e Albuquerque). A cidade europeia considerada menos segura, Bradford (Reino Unido), surge na 33.ª posição.

Embora a Amadora surja com frequência na narrativa mediática como cidade com problemas de segurança, os dados estatísticos não confirmam essa percepção. Pelo contrário.

De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o concelho da Amadora ocupa apenas a 131.ª posição entre os 308 municípios portugueses em termos de criminalidade total em 2024, com 28,9 crimes por mil habitantes — ligeiramente abaixo da média nacional, fixada em 30,0. O topo da lista é ocupado por Albufeira (78,2), Avis (74,5), Mourão (64,6), Loulé (61,4) e Porto (60,6). Já Lisboa regista 53,6 crimes por mil habitantes — quase o dobro da Amadora em termos relativos.

No caso dos roubos por esticão e na via pública — tipologias particularmente traumáticas —, a taxa de criminalidade em Lisboa é quase cinco vezes superior à da Amadora (3,2 contra 0,7 por mil habitantes). E nos crimes contra o património, os mais numerosos, a Amadora também está longe do topo nacional — quanto mais do europeu. Com 13,9 crimes por mil habitantes em 2024 nesta categoria, está abaixo da média nacional (17,3), enquanto Lisboa e Porto apresentam rácios quase três vezes superiores: 34,6 e 39,9, respectivamente.

Intrigado com os dados, o PÁGINA UM questionou o CEO do Numbeo, Mladen Adamovic, sobre a posição concreta da Amadora, que confirmou a que, em 2025, esta cidade portuguesa registou um número anormalmente elevado de avaliações por usuários em comparação com anos anteriores. Mas mesmo assim, o total é absurdamente pequeno: apenas 27 entradas válidas relativas à Amadora em 2025, contra apenas 9 em 2024 e 11 em 2023. O aumento das submissões começou, segundo Adamovic, “em Julho”, admitindo que “se deveu a uma maior atenção mediática”.

Embora o Numbeo admita ser frequentemente alvo de spam, Adamovic assegura que existem algoritmos de detecção de padrões suspeitos, incluindo cruzamento de endereços IP e outros dados de utilizador, que permitem eliminar participações manipuladas. No caso da Amadora, garante que “não foi detectado um número elevado de actividades suspeitas que pudessem ser manualmente classificadas como spam”, embora fique agora patente que bastam 27 contribuidores para colocar qualquer cidade europeia numa posição relativamente negativa.

Apesar destas garantias, saliente-se que o modelo do Numbeo assenta exclusivamente em percepções subjectivas — como medo de ser assaltado, presença de vandalismo ou consumo de drogas — recolhidas por meio de questionários voluntários, não havendo validação por dados criminais oficiais. Isso torna o índice vulnerável a flutuações motivadas por fenómenos mediáticos ou campanhas organizadas. A própria ascensão abrupta da Amadora, sem justificação demográfica ou criminal, poderá ter sido amplificada pelo uso político em vésperas de eleições autárquicas.

Mladen Adamovic, CEO da Numbeo revelou ao PÁGINA UM que em 2025 houve apenas 27 avaliações sobre a cidade da Amadora.

O Numbeo não divulga os perfis dos utilizadores, nem os critérios detalhados do seu sistema de ponderação, o que dificulta a verificação externa da robustez estatística dos seus rankings. Ainda assim, os dados são amplamente divulgados e frequentemente tomados como factualidade. Percepções, ainda que subjectivas, tornam-se instrumentos de disputa eleitoral.

O Numbeo é uma base de dados colaborativa, disponível online desde 2009, que recolhe e divulga indicadores sobre qualidade de vida em cidades e países de todo o mundo. A plataforma tornou-se particularmente conhecida pelos seus rankings de custo de vida, segurança, poluição, sistema de saúde e criminalidade.

Ao contrário de organismos oficiais — como o Eurostat ou os institutos nacionais de estatística —, o Numbeo não trabalha com dados administrativos ou criminais oficiais, baseando-se unicamente em inquéritos voluntários anónimos, preenchidos por utilizadores registados de forma contínua. A recolha dos dados depende, portanto, das percepções subjectivas dos respondentes, sem qualquer validação externa ou auditoria metodológica independente.

O índice mais citado — e também o mais polémico — é o chamado Crime Index, que pretende expressar a percepção do nível de criminalidade numa cidade, numa escala de 0 a 100. Um valor mais elevado traduz maior sensação de insegurança. O índice resulta de perguntas como: “Tem medo de ser assaltado?”, “Acha que há muitos casos de vandalismo?”, “É seguro andar sozinho à noite?”, “Há consumo e tráfico de drogas?” ou “Considera a sua cidade corrupta?”.

As respostas, todas subjectivas, são agregadas com maior peso para as mais recentes, embora não se saiba quantos inquéritos são considerados por cidade nem qual a sua representatividade. Complementarmente, o Safety Index representa o inverso: é calculado como 100 menos o Crime Index.