Na terceira sessão do julgamento Anjos vs. Joana Marques, o calor não era apenas atmosférico. O ambiente estava denso, tenso, saturado.
E quando Ricardo Araújo Pereira entrou na sala, sentiu-se uma mudança no ar, quase como se um artista estivesse prestes a subir ao palco. Mas antes disso, o corpo dele falou primeiro.
Sentou-se, alargou o colarinho que já vinha aberto, agarrou a manga do casaco, entrelaçou as mãos. O polegar direito era segurado com a mão esquerda atrás das costas, em visível contenção. Passava a mão pela testa, tocava no sobrolho.
Pequenos gestos. Mas, para quem conhece a leitura não-verbal — e habituado está a “estas andanças forenses” — estes são sinais clássicos de nervosismo. De ansiedade. De quem está prestes a entrar em cena.

Não há vergonha nisso. Muito pelo contrário. Lorde teve de recorrer a terapia assistida para ultrapassar o pânico antes de actuar. Laurence Olivier, Barbra Streisand ou Jimi Hendrix somatizavam o nervosismo com tremores, suores, falhas de memória.
Porque os grandes também sentem. E quem sente, soma.
A expressão facial de RAP era um compósito de controlo e emoção — o zigomático maior, músculo voluntário do sorriso, estava activo.
Mas os orbicularis oculi, os que rodeiam os olhos e provocam os “pés de galinha”, não se manifestaram. Era um sorriso de palco, estudado, elegante, mas sem traços de espontaneidade profunda.
Já na Juíza, durante a audição de RAP, os orbicularis oculi estavam bem activos: riu com os olhos. Não disfarçou. Aquilo foi admiração.
E quando a cortina levantou, Ricardo Araújo Pereira brilhou.
Dissecou com humor e inteligência os limites do humor. Satirizou os limites da acusação. Ironizou a santificação de canções e demonstrou, com a elegância de quem domina o palco, que um humorista não se cala porque se sente desconfortável.
Explicou e defendeu que tirar o vídeo seria admitir uma culpa que não existe. Recordou que os Anjos ignoraram ameaças de morte, mas processaram quem se riu deles.

Foi, sem exagero, um momento alto do julgamento. E a sala, por instantes, percebeu que o humor pode ser argumento. Que a ironia pode ser arma. E que o riso, mesmo contido, é uma forma de resistência.
Mas o brilho de RAP contrastou com a baixeza da equipa de defesa dos Anjos. Tentaram descredibilizá-lo, questionando a sua isenção, o seu prévio conhecimento da contestação apresentada por Joana Marques, criticando o seu propósito ali.
Só lhes faltou, toga nas mãos e dignidade nos calcanhares, virarem-se uma para a outra e sussurrarem: “Ó Ernestina, vamos embora, que isto foi tudo uma grande aldrabice!” — como no concurso da Agulha e do Dedal, em A Canção de Lisboa.
A diferença é que, ali, era comédia. Aqui, em sede de julgamento, foi só triste e deselegante.
E culminaram com a frase mais indigna do dia — já com Ricardo Araújo Pereira ausente da sala, num momento de tensão entre advogados — quando, tentando a Juíza moderar o tom, uma das representantes dos Anjos justificou-se com um seco: “Ele pôs-se a jeito.”
Disse-o não a ele, mas sobre ele. O que não retira baixeza — apenas lhe acrescenta cobardia.
Quando uma advogada se refere a uma testemunha desta forma, o que revela não é estratégia: é ressentimento.
E também ignorância: a mesma equipa que discursava com autoridade de púlpito, quando confrontada pela Juíza com a data de um acórdão que invocava com pompa, não a soube indicar. Do topo da toga… para o vazio das folhas.

Mas houve um momento particularmente infeliz e revelador da pobreza argumentativa da equipa dos Anjos: foi quando tentaram lançar sobre Ricardo Araújo Pereira uma acusação de hipocrisia, por este já ter exigido uma indemnização em tribunal, em 2018, a jornalistas.
A intenção era clara — inverter a narrativa e minar a autoridade moral do humorista para falar de liberdade de expressão.
Só que a resposta de RAP foi clara e frontal: explicou que, na altura, não se tratava de piadas, mas de segurança pessoal — pretendia apenas que deixassem de divulgar o local da sua residência, porque estava a ser alvo de ameaças de grupos de extrema-direita.
Recebeu, de facto, uma indemnização, não porque quisesse silenciar jornalistas, mas porque queria proteger a sua família.
O contraste é gritante: os Anjos ignoraram ameaças de morte, mas investiram em processos cíveis contra quem fez humor — e ainda tentam colocar no mesmo plano o medo real de um cidadão pela sua integridade com a ferida no ego de dois cantores pop.
É esta desproporção que transforma o processo num triste espectáculo.
Seguiu-se Fernando Alvim. Foi chamado como testemunha pela equipa de advogados de Joana Marques.
Quis ser fofinho. Quis ser conciliador. Mas não percebeu que, naquele contexto, o que parecia moderação soou a deserção.
Alvim tirou o vídeo a pedido dos Anjos. Mostrou compreensão — e, no processo, passou uma imagem da Joana como inflexível, fria. A equipa dos Anjos agradeceu.

A defesa da Joana também não esteve isenta de falhas.
Tentou limitar as declarações da ré quando a própria Joana, no início do julgamento — e à frente das câmaras — disse que iria falar de tudo.
Morreu pela boca.
Agora, chegados ao capítulo final, refugiou-se em tecnicalidades jurídicas.
Quem satiriza tudo não se pode esquivar quando lhe pedem respostas. O humor exige coragem, não escapatórias.
Num julgamento onde se discutem os limites do humor, ficou claro que o problema nunca esteve nas piadas. Está na falta de coragem. E essa, hoje, veio toda do lado de Ricardo Araújo Pereira.
Porque o humor, para ter força, precisa de liberdade. Mas, para ter dignidade, precisa de coragem.
Leia a primeira crónica sobre este julgamento: “Os Anjos e a velhaca da Joana Marques“.