É o caráter, estúpido


Em 29 de maio, Gouveia e Melo (GM) anunciou que é candidato a Presidente da República (PR). A apresentação da candidatura teve o modelo de “alocução às tropas em parada”: o tom e o semblante severos, o conteúdo do discurso, a aprovação dos aplausos, a audiência sob a direção do mestre de cerimónias, tudo sustentou a imagem de (mais) um D. Sebastião. E as “tropas”, “em parada” ou através dos media, arrebatadas, aclamaram o “Messias”. No fim, a encenação com jovens não dissipou o tom grisalho, e varonil, da audiência, nem a vanguarda de despeitados dos partidos e perdedores militantes (confirmada no dia seguinte).

Ninguém se surpreendeu com o anúncio. A ideia foi lançada em 2021 numa TV, e os media, sobretudo o Diário de Notícias e as TVs (com muitas “sondagens”), alimentaram-na, dando-lhe palco mediático semanalmente ou mais. Os media garantiram-lhe a notoriedade nestes 4 anos, sem a qual o seu protagonismo na crise pandémica se teria diluído nas mentes das massas.

A Procura

A observação e a análise dos apoiantes de GM, nas redes sociais e por aí, tem valor sociológico e político: diz-me com quem andas e digo-te quem és, diz o povo com razão. Há procura pelo “diferente” (de quê?) e há uma elite de apoiantes, os elogiantes, que a corporiza. GM disse na alocução que foram os apoiantes que o convenceram – então não foi a vitória de Trump? Logo, não é independente deles, é a sua figura de proa, o que merece escrutínio. Disse que não depende de partidos; mas isso só é um trunfo se GM não se endividar face a particulares – quem paga os €2 milhões? As dívidas a partidos são mais transparentes.

Pouco une os apoiantes de GM, mesmo entre os elogiantes. Há até quem diga votará em Pedro Passos Coelho (PPC), se este for candidato – ninguém explicou o que aproxima GM de PPC, exceto na vaga perceção que os coloca à direita… De resto, pouco mais dizem do que “Força Almirante!” ou “O Almirante vai ganhar!”. Mas destaco 3 pontos observados nos apoiantes:

  • cidadãs menos jovens que dizem que o acham bonito, e que dizem que votam nele;
  • “pôs em ordem” a vacinação contra o SARS-COV-2, logo vai ser um bom PR, porque só ele pode “pôr o país na ordem”, obrigando os partidos a fazer o que ele manda;
  • e, por ser militar, vai ser como Ramalho Eanes, uma referência de sisudez, de integridade e de autoridade, para ser diferente do atual PR.

Registo, sem mais, a superficialidade da avaliação de algumas cidadãs.

A ideia de que “pôs em ordem” a vacinação cai ante os factos. Primeiro, foi o próprio GM que, quando tomou posse (2021), afirmou que “Neste momento, em cada mil vacinas que foram administradas, há uma vacina que ainda não foi clarificado como é que decorreu”; isto é, a alegada “rebaldaria” seria inferior a 0,1%; e só terá atrasado por poucos dias o momento da injeção, pois havia doses para todos, e várias vezes (Portugal encomendou mais de 60 milhões de doses). Mas a taxa de desperdício até 2022 foi superior a 11% (Auditoria 13/2023 do Tribunal de Contas). Afinal, o desperdício ocorreu depois de Francisco Ramos deixar o cargo.

Poucos sabem destes factos, porque a maioria dos editores e dos jornalistas escolheu não os escrutinar e noticiar e, muito menos, “martelar”. E muitos apoiantes de GM nem querem saber.

Além disso, “fogem como o diabo foge da cruz” a explicar como é que GM, notado por uma função executiva e sem bagagem política, vai ser bom numa função não-executiva e na função mais política do regime. Só emitem juízos conclusivos à volta da “ordem”; e ataques ad hominem ao mensageiro, como se fosse este o candidato. (Devo notar que não sou candidato; não vou ser; e decido em quem votar quando estiver formado o boletim de voto.)

Poucos elogiantes caem no ridículo de dizer que GM pode ser o “novo” Eanes. Os que imaginam que todos os militares são iguais acham que, por ser militar, GM tem as virtudes e a sisudez de Eanes. Ignoram a diversidade dos militares, que incluem António de Spínola, Vasco Lourenço, Santos Costa, Rosa Coutinho, Américo Tomás, Costa Gomes, Pereira Crespo, Vasco Gonçalves, Alpoim Calvão, Otelo Saraiva de Carvalho, Galvão de Melo, Mário Tomé, Kaúlza de Arriaga, Melo Antunes, e tantos outros.

A fé em que GM imporá “a ordem” será abordada abaixo; parece ser decisiva para os apoiantes e aponta para o essencial: o caráter de GM.

Realço a superficialidade – sim, a superficialidade – com que tantos cidadãos parecem escolher os políticos em que votam. E é inquietante: até pessoas diferenciadas, por vezes académicos respeitados, expressam posições superficiais, mesmo que não as publiquem.

A ordem, o belicismo e o autoritarismo

A imagem que as pessoas em geral têm de GM é consistente: autoritário. GM e os elogiantes tentam disfarçar, só por propaganda; mas sabem que esse é o maior trunfo para as massas de apoiantes, que têm fé de que GM vai “pôr o país na ordem”. GM alimenta essa imagem, às claras quando é espontâneo, e subtilmente quando está comprometido com o teleponto.

Mas se GM assumir sem equívocos a narrativa da “ordem”, que os seus apoiantes desejam e na qual apostam, aliena os eleitores moderados do centrão e fica só com alguns “chateados” à direita. Por isso, dizem-lhe para “vestir pele de cordeiro”, e dizer coisas bem-sonantes como “serei um presidente que respeitará os partidos políticos […] assim como a separação de poderes, tendo sempre em mente que o PR não governa.” A sério? Como acreditar nisto?

Para não alienar a sua base natural, tem de invocar a “ordem”. Este trecho (muito aplaudido) serve esse fim: “um presidente estável, confiável e atento, acima de disputas partidárias, longe das pressões e fiel ao povo que o elegeu”. São de realçar a palavra “acima” e a expressão “o povo que o elegeu”.

Todos os PR estiveram acima de disputas partidárias; mas as palavras “acima” e, mais adiante, “árbitro” inspiram e animam quem busca a “ordem”. É nesta ideia de “ordem”, de mandar e dar ordens aos demais atores sociais e políticos (sobretudo, aos partidos), que a larga maioria de apoiantes se revê, e que se revela a personalidade autoritária de GM neste domínio.

Neste contexto, é de destacar a sua afirmação belicista sobre distribuir injeções contra o SARS-COV-2: “Para mim isto é uma guerra.” GM concretizou esta ideia com o uso de uniforme militar camuflado durante aqueles 8 meses de 2021. (Que os órgãos de soberania tivessem aceite essa prática de um funcionário público numa função civil, é uma das bizarrias então vividas.)

A ideia de “ordem”, tão apreciada pelos seus apoiantes, já tinha sido expressa numa entrevista em 2021, quando afirmou: “Este país eram anos para endireitar”.

O colapso do processo disciplinar sobre militares do NRP Mondego, por decisão do Supremo Tribunal Administrativo, por violações graves da Constituição e da lei (2025), é mais uma prova de que GM se acha acima, também, das normas do Estado de Direito.

Acresce a acusação pelo Tribunal de Contas de excesso de ajustes diretos (2024, referida a factos de 2017) a qual prova que se acha, e há muito, acima da lei.

A sua ideia de o PR ser um árbitro – uma autoridade para mandar em todos os demais – não é compatível com a Constituição, que o PR jura e que está vinculado a cumprir e a defender.

Estas posições negam a afirmação de GM na sua alocução, “Defendi a liberdade, a Constituição e os interesses de todos os portugueses.” Se defendesse a Constituição, não teria sido anulado aquele processo, justamente por violar a Constituição e a lei; nem acusado pelo Tribunal de Contas, por violar a lei; nem acusado por crime praticado em serviço em 2018 (GM retratou-se para evitar o julgamento, tão convencido estava de ser inocente…).

Numa cerimónia do Dia de Portugal (2025), GM disse a um cidadão “Cale-se!”. Contra o autor, e para o “calar”, já promoveu três processos judiciais – com a ineficácia que se vê, e que deixa os apoiantes desconsolados. Se foi assim até agora, será mais suave com os poderes de PR?

A vaidade e o narcisismo

Curiosamente, nunca vi um/a apoiante de GM negar a sua vaidade e o seu narcisismo. O que é bizarro, já que estes apoiantes apontam esses defeitos a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), e é um dos motivos que invocam para quererem um PR “diferente”.

Ainda em 2021, GM disse que “Nós somos silence service, porque gostamos de prestar serviço de forma silenciosa. Não é pôr-mo-nos em bicos de pés que vai ajudar os portugueses”. Depois andou esse ano, e os seguintes, a exibir-se nas TVs, que o esperavam onde ele ia.

Apostando na fraca memória das massas, GM disse em 2024 sobre a distribuição das injeções que “não era qualquer militar que fazia aquilo”. E em 2025 disse: “coordenei… quando Portugal mais precisava de organização, confiança e liderança”. Em 2021, GM sugeriu humildade; mas a sua vaidade prevaleceu. Objetivamente, é falso que tenha colocado ordem numa “rebaldaria”; pelo menos, o desperdício superou 11% em dois anos.

Já algo parecido tinha ocorrido com a tragédia de Pedrógão/Castanheira/Figueiró (2017), em que no Relatório da Comissão Técnica Independente se diz sobre GM: “O aparecimento do Comandante Naval na área de operações, por exemplo, pode ter dado algum tipo de dividendos à Marinha Portuguesa do ponto de vista político mas é negativo para as Forças Armadas e para o CEMGFA.” Os elogios que António Costa fez a GM, e os cargos que ele e MRS lhe deram revelam bem quem usufruiu dos tais dividendos.

A vaidade de GM vence sempre que não há teleponto, como estes dois exemplos confirmam:

– “Os chefes militares eram mais do tipo Português Suave” (2024): reflete o desprezo que nutre pelo papel e pela discrição dos chefes militares no Estado de Direito Democrático;

– e, numa clara alusão a MRS na sua alocução, “precisamos de um presidente diferente. Um presidente capaz de unir-nos, de motivar, de dar sentido à esperança, capaz de ser consciência e exemplo […] um presidente estável, confiável e atento,”. A deselegância só surpreende quem ignora como “atropelou” o seu antecessor no comando da Armada. Mas diferente é: nenhum PR chegou ao cargo acusado por vários tribunais.

Unir os portugueses

Nada no seu passado, nada mesmo, fundamenta a ideia de que vai unir os portugueses. Até no seu curso de oficiais da Escola Naval, por se meter em questões pessoais a que era alheio, GM criou divisões entre camaradas, com consequências muito nefastas.

Sem qualquer legitimidade, ou saber para tal, GM demonizou quem levantava dúvidas legítimas durante a crise pandémica, por exemplo, com esta afirmação: “Todos os malucos que acham que o vírus não faz mal” são também “inimigos””. E noutra ocasião afirmou, “Faço o que tiver de fazer e sou impiedoso com os malandros” – e é ele que decide quem são os “malandros”…

Pior: em 2021, pressionou a imposição da inoculação das crianças contra o SARS-COV-2, sem que tivesse qualquer competência técnica na matéria que o habilitasse a opinar, e menos a pressionar, quando já se sabia que as crianças pouco ou nada eram afetadas pelo vírus.

A expressão “um presidente […] fiel ao povo que o elegeu” merece ser analisada: nem sequer ambiciona ser o PR de todos os portugueses, mas só de quem votar nele. Quiçá não queriam que tivesse dito isto; mas foi isto que disse.

Claro que “o povo” tinha de vir na alocução, pois é uma enzima emocional crucial nas narrativas populistas – de quem exige aos partidos que apresentem “propostas, sem demagogias”…

O caráter de GM

Um traço de personalidade que muitos apreciamos, pelo valor moral que tem, é a consistência, e mais quando os custos superam os benefícios. Neste âmbito, importa rever algumas posições e declarações de GM ao longo de 3 anos:

– “Não sinto necessidade de dar [o meu contributo] enquanto político, primeiro porque não estou preparado para isso, acho que daria um péssimo político e também acho que devemos separar o que é militar do que é político, porque são campos de actuação completamente diferentes”;

– “Os militares devem fazer o que sabem fazer, que é ser militar e os políticos fazem o que sabem fazer, que é ser políticos (…) nós vivemos numa democracia estável, não devemos confundir as coisas”;

– “Não gosto que me imiscuam na área política. Sou militar e não tenho intenção no futuro de me candidatar a nada. Isto é um não. Quando eu digo não é não“;

“Se isso acontecer, dêem-me uma corda para me enforcar”;

“Quando eu digo não é não.”

Há mais: em 2024, num dia defendeu a conscrição; na semana seguinte, recuou.

GM também disse na alocução que o PR não governa. Mas há 3 meses indicou um programa de Governo, vago e bem-sonante, do estilo “Miss Universo”; e na alocução repetiu sons no mesmo estilo, embora com as palavras “acima” e “árbitro” pelo meio: “Precisamos de uma economia centrada nas pessoas, mais forte, mais competitiva, mais produtiva”; “Também precisamos de reformar a Administração Pública e a Justiça. […]  De olhar para as ilhas, para o interior e para a diáspora. Importa garantir saúde a todos, em tempo e qualidade”; e “Encontrar soluções para a habitação”. Nunca disse que ia ajudar o Governo a conduzir a política geral do país, nem a concretizar as políticas públicas – mas é isso que cabe nas competências do PR.

Muito notadas foram ainda as declarações contraditórias, com intervalo de dias:

– em 12 de Março, uma fonte próxima e não desmentida por GM afirmou que o “almirante Gouveia e Melo apresentará a candidatura logo após as legislativas”, e que “não quer interferir nem perturbar as eleições legislativas”;

– em 14 de Maio, 4 dias antes das eleições, afirmou que “A minha decisão é avançar”;

– em 15 de Maio, foi noticiado: “Gouveia e Melo arrependido de anúncio de candidatura”.

Muitos apoiantes de GM criticam os políticos, por estes dizerem uma coisa e fazerem outra. Por isso, também, querem um PR “diferente”. Todavia, os mesmos toleram, justificam e alguns até aplaudem as contradições de GM. Talvez saibam que para chegar ao poder tem de dizer coisas para agradar ao centrão; já no poder pode fazer outra, como mandar nos partidos e agradar ao “povo que o elegeu”. Vale tudo para alcançar o poder? Em que atos e factos mostrou GM ser diferente dos maus políticos?

Com estes factos da sua conduta no passado, como saber se GM vai cumprir amanhã o que diz hoje? Como confiar em GM, se ele muda de posição ao sabor do “vento”? Como pode GM unir algum grupo, sem ser pela imposição, senão mesmo pela coação?

Usualmente, o caráter é um critério de avaliação para qualquer cargo. E é crucial para avaliar um candidato a um órgão unipessoal, político e não-executivo, com uma apreciável margem de apreciação dos factos, a qual depende diretamente do caráter e da experiência de vida.

Por isso, é preocupante o receio evidente de editores e jornalistas em escrutinarem o passado de GM, e em analisarem a sua conduta e o seu caráter. Só querem saber do que GM diz agora; quiçá para apagar a vaidade e a espontaneidade que prevalecem sem teleponto, e que diferem da versão oficial.

De facto, a imagem generalizada entre os portugueses, de pessoa autoritária e vaidosa, assenta justamente em avaliações de caráter, baseadas na observação da conduta de GM. Os apoiantes desejam o autoritarismo de GM. Até por isso, o caráter de GM é um elemento nuclear da sua candidatura, e é bizarro que jornalistas e editores, sempre tão ágeis a esmiuçar o passado de tantos outros, fujam a observar e a escrutinar todo o passado e o caráter de GM.

Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


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