Habemus Papam.
Quando o fumo branco começou a sair pela chaminé instalada no telhado da Capela Sistina, toda a gente já sabia: a Sé não estava mais vacante; os cardeais haviam escolhido um novo bispo para Roma. Cumprido o ritual milenar, restava ao cardeal protodiácono, Dominique Mamberti, pronunciar a fórmula estabelecida desde o século XV, após a eleição de Martinho V: “Habemus papam!” Só então o planeta descobriu que o sucessor de Francisco também era oriundo do Novo Mundo: Robert Francis Prevost. Ou, como será doravante conhecido por toda a eternidade, Papa Leão XIV.
Para os céticos e não crentes, as tradições papalinas não se diferenciam muito das demais sucessões monárquicas: “rei morto, rei posto”, é o ditado que vem desde Carlos VI, Rei de França. Para os crentes do universo católico, significa que novamente temos um Vigário de Cristo para dar seguimento à Sua palavra. Para o mundo político brasileiro, contudo, o significado é potencialmente bem outro.

A história política da Igreja Católica no Brasil
Não que a ligação entre política e Igreja Católica seja algo recente na história política brasileira. Pelo contrário. Desde quando aqui aportaram as caravelas de Cabral, Estado e Igreja caminharam lado a lado. Enquanto os portugueses lideravam a dominação territorial, aos padres competia a “salvação das almas” dos povos conquistados. Esse foi o balé dançado a dois desde 1500. Mesmo quando a música era atravessada por episódios tragicómicos, como a “deglutição” do Bispo Sardinha – primeiro prelado do país, canibalizado pelos índios caetés –, o baile seguia, dada a comunhão de interesses entre os pares.
A coisa só começou a desandar no final do século XIX. Pela Constituição de 1824, cabia ao Imperador não só nomear os bispos, como também “conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios, e letras apostólicas, e quaesquer outras constituições ecclesiasticas que se não oppozerem á Constituição” (Art. 102, inc. XV, da Constituição de 1824). Quando Pio IX decretou a Bula Syllabus Errorum, D. Pedro II foi colocado numa sinuca de bico. A diretriz papal condenava “ideologias” incompatíveis com a fé cristã – e a maçonaria era uma delas. Se o imperador brasileiro fizesse cumprir a determinação de Sua Santidade, ofenderia os maçons; se negasse sua aplicação, compraria briga com o Vaticano. Entre a Santa Sé e suas bases, D. Pedro II preferiu ficar com os maçons.

Desse embate resultou a prisão por “insubordinação ao Imperador” dos bispos de Olinda e do Pará, que ameaçaram de excomunhão quem frequentasse templos maçons. Um arranjo posterior permitiu o funcionamento da maçonaria sem a condenação religiosa, em troca da libertação dos bispos. O cristal, contudo, encontrava-se irremediavelmente trincado. Ao lado da questão militar e da questão abolicionista, a questão religiosa foi decisiva para o fim do Império e o consequente golpe que instaurou a República no Brasil.
Ainda que a primeira constituição republicana tenha estabelecido como um de seus princípios fundantes a separação entre Igreja e Estado (Art. 11, n. 2º, da Constituição de 1891), seria ingénuo acreditar que uma cultura arraigada de forma tão profunda no imaginário popular pudesse desfazer-se assim tão rapidamente. Durante todo o século XX, a Igreja Católica foi, juntamente com a sombra do fantasma militar, o maior fator de desequilíbrio eleitoral no cenário político brasileiro. Membro da Ação Integralista no Ceará (os fascistas da época), D. Hélder Câmara – que viria a ser o líder religioso mais influente do país – fez campanha em 1934 para a Liga Eleitoral Católica em seu estado com o slogan: “um voto para a LEC é um voto para o Nosso Senhor Jesus Cristo”. Foi o que bastou para que a oposição fosse varrida nas urnas.

Não surpreenderá a ninguém constatar que, trinta anos depois, o chão tenha começado a ruir sob os pés de João Goulart justamente quando militares e católicos ultraconservadores resolveram unir-se contra o seu governo. Em 19 de Março de 1964, meio milhão de pessoas saíram às ruas em São Paulo naquela que ficou conhecida como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Duas semanas depois (2 de Abril), outras 200 mil saíram às ruas da antiga capital federal, no Rio de Janeiro, para comemorar o golpe militar contra o governo constitucional na chamada “Marcha da Vitória”.
No início da ditadura, militares e a cúpula da Igreja Católica mantiveram-se razoavelmente próximos. D. Hélder Câmara – que batalhara junto ao então Subsecretário de Estado do Vaticano, Giovanni Battista Montini, pela criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e ocupara por treze anos a sua Secretaria-Geral – foi defenestrado meses depois do golpe em favor da ascensão de um prelado inexpressivo, porém alinhado à nova ordem: D. Agnelo Rossi.
Batido, D. Hélder teve de resignar-se com a perda da poderosa arquidiocese do Rio de Janeiro. Tentaram exilá-lo no Maranhão, mas, nomeado para a diocese de São Luís, a “sorte” atravessou-lhe o caminho, matando pouco dias antes da sua efectivação na capital maranhense o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Carlos Coelho. Para os militares e para os católicos ultramontanos, teria sido melhor vê-lo em São Luís, mas mesmo assim o Recife era uma vitrine menos vistosa do que a antiga capital do estado da Guanabara.

A capital pernambucana, contudo, ainda guardava nos anos 1960 muito do espírito revolucionário que levou a outrora gloriosa capitania de Pernambuco a ser palco de oito em cada dez insurreições no período do Império. Estudantes revoltosos e insurretos de todas as idades viam naquela figura magra e pequena o vulto de um líder. Não se podia dizer que D. Hélder quisesse liderar uma revolução que conduzisse ao fim da ditadura, mas era certo que sabia da influência que detinha para distribuir cotoveladas aos militares através de suas palavras.
Como não pudessem prendê-lo – o que seria visto em toda a parte como uma afronta inaceitável –, os militares iam atrás de quem estava no seu entorno. Por mais de uma vez, coroinhas de D. Hélder foram presos e levados incomunicáveis a quartéis do Recife. Quando não prendiam sem razão, metralhavam sua casa ou o Palácio de Manguinhos, residência oficial do arcebispado de Olinda e Recife. Se isso fosse pouco, no dia 27 de Maio de 1969, um cadáver foi descoberto nas cercanias da Cidade Universitária no Recife. Era o corpo do Padre António Henrique Pereira Neto, assistente da arquidiocese para assuntos da Juventude, a quem D. Hélder estimava como um filho. Os restos do Padre António Henrique continham uma corda passada no pescoço, feridas espalhadas por todo o corpo, cortes de facão na garganta e na barriga, além de três tiros na cabeça. No seu enterro, D. Hélder fez questão de indicar os assassinos: “Aqueles que julgam estar salvando a civilização cristã com a eliminação de sacerdotes e líderes estudantis”.
O caldo – sempre fervente – entornara de vez. Pela primeira vez na história do Brasil, um clérigo havia sido assassinado por motivos políticos. D. Hélder – que passara quase cinco anos como voz solitária a pregar no deserto – comprou um bilhete aéreo e foi a Roma ter com o Santo Padre. Seu velho amigo Montini – agora Papa Paulo VI – resolveu tomar partido nessa briga: “Nós lemos a documentação referente à tortura que você nos mandou. Então, tudo o que você havia nos contado era verdade. A Igreja não deverá tolerar mais as atrocidades e torturas cometidas num país que se diz católico”.

Foi a senha para o divórcio definitivo entre a Igreja Católica e a ditadura militar. Alguns meses depois, D. Hélder verbalizou no Palais des Sports, em Paris, o que todo o brasileiro decente já sabia, mas não podia falar: “A tortura é um crime que deve ser abolido. Os culpados de traição ao povo brasileiro não são os que falam, mas sim os que persistem no emprego da tortura. Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria e a tortura a desonra”. Dali em diante, a Igreja Católica passou a ser praticamente a única instituição regular organizada a denunciar os crimes e os desmandos da ditadura brasileira.
A Igreja no pós-redemocratização e um possível cenário para 2026
Quando a ditadura caiu em 1985, a Igreja ainda era, com sobras, a denominação religiosa mais influente do país. 90% da população professava a fé católica. Nas pequenas cidades do interior, as maiores autoridades locais eram – não necessariamente nessa ordem – o prefeito (representante do poder secular), o juiz (representante da lei), o delegado (representante da ordem) e o padre (representante do poder divino).
De lá para cá, entretanto, o panorama mudou bastante. Hoje, não mais do que metade da população brasileira declara-se católica. Os evangélicos, que em 1980 não chegavam sequer a 10% do total, atualmente somam mais de 30%. Embora não seja possível definir a posição política do cidadão a partir da sua fé declarada, é certo que a maior parte dos protestantes rejeita Lula ou qualquer coisa que se pareça com o PT. Aproximadamente 60% deles votaram em Jair Bolsonaro na eleição de 2022. Se Lula conseguiu vencer por estreita margem no pleito passado, isso deveu-se em sua maior parte aos votos católicos, onde o babalorixá petista amealhou mais de 50% do total. Como os católicos (ainda) são maioria no país, essa diferença – somada aos votos dos ateus – resultou nos pouco mais de 2 milhões de votos que deram a vitória a Lula.

E o que o novo Papa tem a ver com isso?
Em que pese a doutrina católica professar a crença fundamental de que o Santo Padre é o representante legítimo de Jesus na Terra, muitos dos sedizentes católicos brasileiros abominavam o Papa Francisco mais do que o próprio demónio. “Comunista”, o argentino Jorge Mario Bergoglio recusara-se a receber o “mito” dessa malta, Jair Bolsonaro. Trata-se de façanha única entre os presidentes brasileiros desde a redemocratização em 1985. Para o eleitorado bolsonarista, Francisco era antes um rival a ser combatido do que um líder espiritual a ser reverenciado. Não causa espanto, portanto, que sua morte tenha sido objeto de comemoração nesses círculos mais sombrios.
Felizmente, essa porção dantesca do catolicismo brasileiro constitui minoria na Igreja brasileira. A imensa maioria ainda reza à vera o credo niceno-constantinopolitano e não acredita na teoria de que a Terra é plana. Para essa porção, a palavra do Bispo de Roma segue tendo peso, e ele está longe de ser irrelevante.

Embora seja tradição o Papa não declarar voto em ninguém, as seguidas demonstrações de “apoio” de Francisco a Lula certamente não passaram despercebidas pelos crentes católicos. Ainda quando o actual presidente estava preso, Jorge Mario Bergoglio escreveu-lhe uma carta. Depois que Lula saiu da prisão, em 2020, recebeu-o no mesmo Vaticano em cujo solo não quis receber Bolsonaro. Quatro dias antes do segundo turno da eleição de 2022, naquele que talvez tenha sido seu movimento mais ousado no tabuleiro político brasileiro, Francisco pediu em oração que “Nossa Senhora Aparecida proteja e cuide do povo brasileiro, livrando-o do ódio, da intolerância e da violência”.
É possível que Francisco não fosse propriamente um fã de Lula. É possível até intuir que o Papa não enxergasse no atual presidente um modelo de cristão. Mesmo assim, como bom jesuíta, Francisco sabia reconhecer que, se Lula não era enviado de Deus, Bolsonaro provavelmente era mandatário da outra figura. O recado, portanto, estava dado. O Papa não queria Bolsonaro – o ódio, a intolerância e a violência encarnadas – como presidente do Brasil.
Prevost não é Bergoglio e não há a menor garantia de que Leão será Francisco. Todavia, o simples facto de o Sacro Colégio Cardinalício ter escolhido um Papa norte-americano que criticou publicamente em redes sociais Donald Trump e seu vice, J.D. Vance, é sinal de que Jair Bolsonaro e sua trupe não encontrarão na Santa Sé um aliado contra o “comunismo”, vocábulo no qual se enquadra qualquer um que não reze pela cartilha da extrema-direita.

O calendário de hoje marca 2025 e, se é cedo para virar a folha para 2026, mais prematuro ainda é tentar profetizar o que se passará nas eleições de outubro do ano que vem. Entretanto, a julgar pelo cenário que se desenha, uma coisa é certa: teremos uma eleição acirrada e a religião terá novamente papel preponderante nela.
Resta, agora, saber que tipo de papel o Papa Leão vai querer desempenhar nela. Vai marcar posição, como fez seu antecessor? Ou preferirá manter a Igreja longe da hélice?
Só Deus – literalmente – sabe.
Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa