‘Beija-mão’ do líder da Marinha no Supremo Tribunal Administrativo causa mal-estar

É um dos princípios mais óbvios, mas sagrados, de uma democracia e do Estado de Direito: a separação de poderes, garantindo que as funções legislativa, executiva e judicial actuem de forma independente. Nos tribunais administrativos, essa equidistância é ainda mais essencial, dada a necessidade de assegurar que todas as partes, desde o mais simples funcionário até ao mais alto dirigente, sejam tratadas em igualdade de condições.

Nesse contexto, um encontro entre o presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Jorge Aragão Seia, e o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Nobre de Sousa, está a causar estupefacção entre os advogados dos militares castigados pelo antigo líder da Marinha, Almirante Gouveia e Melo, cujos processos ainda estão a ser dirimidos na mais alta instância da justiça administrativa, depois da derrota da Marinha no Tribunal Central Administrativo do Sul.

O presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Jorge Aragão Seia, recebeu o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) em audiência para “apresentação de cumprimentos”. Prática similar ao ‘beija-mão’ da Monarquia pode conflituar com a equiistância exigida no Estado de Direito.

Divulgada numa nota oficial do STA, acompanda por uma foto de Aragão Seia e Nobre de Sousa, lado a lado, em pose descontraída e sorridente, o encontro no passado dia 6, terá tido como objectivo a “apresentação de cumprimentos”, sem indicação do tempo e assuntos tratados, mas a situação causa estranheza, especialmente num momento delicado em que este tribunal superior está a analisar processos sensíveis relacionados com decisões da Marinha, incluindo as do anterior CEMA, Almirante Gouveia e Melo. Uma audiência formal para “apresentação de cumprimentos” constitui, nos tempos modernos, o equivalente cerimonial do “beija-mão” das monarquias, onde se prestava vassalagem para receber posteriormente benefícios.

Recorde-se que, em Dezembro passado, o Tribunal Central Administrativo do Sul decidiu anular a decisão da Marinha, confirmada por Gouveia e Melo, de suspender 11 militares do Navio da República Portuguesa (NRP) Mondego. O acórdão, que deixava o putativo candidato a Belém numa posição pouco digna, mostrava assim que havia motivos para os militares terem recusado cumprir, em Março de 2023, por falta de condições, a missão de acompanhamento de um navio russo a norte da ilha de Porto Santo, no arquipélago da Madeira. O caso envolveu quatro sargentos e nove praças.

Além de apontar várias falhas processuais, incluindo não ter sido concedido o direito ao contraditório, o TCAS referiu que um oficial que participara na instrução do processo disciplinar esteve também envolvido na cadeia de eventos do NRP Mondego, algo que não devia ter ocorrido, mas que Gouveia e Melo aceitou. Aliás, o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada mostrou, desde o primeiro momento do incidente, uma vontade inabalável de castigar os militares, tendo mesmo dado uma repreensão pública para as televisões gravarem.

Supremo Tribunal Administrativo vai decidir se castigos de Gouveia e Melo se mantêm, depois do Tribunal Central Administrativo do Sul os ter anulado m Dezembro do ano passado.

O processo subiu agora ao Supremo Tribunal Administrativo – e é por esse motivo que os advogados dos militares se mostram estupefactos com esta audiência, apresentada como se fosse um encontro para um “chá das cinco” ou um “beija-mão” entre um supremo juiz conselheiro e um almirante de quatro estrelas.

“À Justiça não basta ser, tem também de parecer ser!”, salientou ontem o advogado Garcia Pereira na rede social Facebook, acrescentando que “estando pendentes no STA vários recursos em que a Marinha é parte directamente interessada, entre os quais os dos militares do [NRP] Mondego, o respectivo Presidente concede uma audiência ao CEMA, o chefe máximo da Marinha?! Porquê e para quê??!!”

Com efeito, a nota do STA nada mais diz sobre os assuntos nem a duração dessa audiência de apresentação de cumprimentos. Certo é que, não sendo inéditos, estes encontros são bastante raros, pelo menos a atender às frequentes notas de imprensa do STA, onde se destacam os encontros e audiências deste tribunal. Analisando todas as notas de imprensa desde 2017, verifica-se que nunca um presidente do STA recebeu o líder da Marinha em audiência para “apresentação de cumprimentos”. Encontra-se apenas uma audiência similar em Abril de 2023 com o Chefe do Estado-Maior do Exército e outras duas com o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, em Abril de 2023 e em Novembro de 2018.