No Brasil e fora dele, costuma-se gracejar sobre alguma excentricidade pátria, referindo-se a ela como “jabuticaba”. Apesar de existir noutros países, corre a lenda de que a árvore que produz este fruto seria exclusividade nacional. A fruta pequena, semelhante à uva, de sabor doce e levemente ácido, incorporou-se de tal forma ao vocabulário nacional que é difícil encontrar alguém que não identifique a ironia quando se qualifica algo como sendo fruto da jabuticabeira. Atualmente, porém, nenhuma jabuticaba é maior e mais reluzente do que a taxa de juros praticada pelo Banco Central brasileiro.
De acordo com o ranking mais recente, a taxa real de juros do Brasil – isto é, a taxa de juros em vigor, descontada a inflação projetada para os próximos doze meses – situa-se em 9% ao ano. Este patamar é superior, por exemplo, ao da Rússia (8,5% anuais), que se encontra em guerra, e quase o dobro do México (5%), a economia latino-americana mais semelhante à brasileira em dimensão.
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Na última reunião do Comité de Política Monetária (Copom), a taxa Selic – referência para transacionar títulos públicos – subiu para inacreditáveis 13,25% anuais. Como se isso não bastasse, o próprio Copom já prometeu aumentar mais 1 ponto percentual na próxima reunião, em março. Trata-se do mesmo patamar que a Selic atingiu em 2015, no auge da crise económica do governo Dilma Rousseff.
Quais as diferenças de lá para cá, porém?
Em 2015, a inflação terminou o ano em 10,67%, 4,17% acima do teto da meta de então (6,5%). Hoje, a inflação de 2024 fechou nos 4,83%, meros 0,33% acima do teto da meta em vigor (4,5%). Ou seja: aplica-se a mesma dose do remédio (juros de 14,25% anuais) para uma inflação que é, na métrica de desvio, doze vezes menor do que naquela época (4,17% vs. 0,33%). Para uma unha encravada, portanto, o Banco Central brasileiro receita quimioterapia.
As razões invocadas para justificar a alta da Selic são de uma insensatez sem precedentes. Argumenta-se, por exemplo, que o “risco fiscal” brasileiro – isto é, o facto de o governo gastar mais do que arrecada – é elevado. Falta, contudo, explicar por que nos Estados Unidos, que exibem um défice orçamental superior à soma de todos os outros défices dos grandes países do mundo civilizado, o Banco Central (FED) está a reduzir a taxa de juros, em vez de a subir. Além disso, tal como no ano passado, o governo federal cumpriu a meta de défice prevista para 2024 (0,09%), apesar das previsões do mercado.
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Pior que isso, só o argumento de que a taxa de juros sobe para conter as “expectativas de inflação”. Como são aferidas essas “expectativas”? Através de um compilado a que o BC decidiu chamar “Boletim Focus”. E quem são os responsáveis pelas “previsões” compiladas neste boletim? As mesmas instituições financeiras que lucram absurdamente com a taxa de juros obscena que o BC impõe ao país. Numa espécie de profecia autorrealizada, se o Boletim Focus supõe que a inflação vai subir – ainda que não exista base factual para isso –, a taxa de juros tem de aumentar também, para produzir o que, no jargão financeiro, se chama “ancoragem das expectativas”.
Se esta lógica circular não bastasse, o Boletim Focus – embora reverenciado como um oráculo pelo Banco Central – erra em demasia, e erra muito. Aliás, só erra. Uma reportagem recente do portal UOL apurou que, de 2021 até agora, as previsões do Boletim Focus estiveram erradas em “apenas” 95% das vezes. Ou seja: o BC brasileiro usa como parâmetro para fixar a taxa de juros um instrumento de medição que só acerta em 5% das ocasiões.
A ineficácia da Selic na economia real
Mesmo que puséssemos tudo isto de lado, o aumento da Selic ainda assim não seria justificável. Como qualquer pessoa pode compreender, a utilização da taxa de juros para combater a inflação pressupõe uma transmissão mecânica entre oferta e procura de dinheiro. Se a taxa de juros – ou “o preço do dinheiro” – sobe, mais capital é poupado e menos é gasto em consumo. Se o consumo cai, a procura por produtos também diminui. E, se a procura cai, aumenta consequentemente a oferta, resultando na redução dos preços.
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Ocorre, todavia, que esta lógica deixou há muito de fazer sentido no Brasil. Aqui, quando um cidadão vai ao banco pedir um empréstimo, não é a taxa Selic que lhe vão cobrar. É a taxa do crédito pessoal da loja ou a do cartão de crédito do banco. Em média, estas taxas variam entre 200% e 400% ao ano – percentuais superiores aos dos usurários, que trabalham à margem da lei.
De que forma um aumento de 5% na Selic influencia este tipo de crédito? Em nada. Para o bem e para o mal, o brasileiro não é conhecido por fazer contas ao comprar. A única conta que faz – quando faz – é para saber se a prestação do produto cabe no seu orçamento. Pouco importa se, no final, terá pagado duas ou quatro vezes o valor do bem.
Além disso, aumentar de forma acrítica a taxa básica de juros revela-se absolutamente ineficaz para enfrentar choques externos. Por exemplo: se o preço do petróleo disparar, os preços da gasolina e do gasóleo sobem. Por consequência, sobem também os custos de transporte e dos produtos nos supermercados. Mas que efeito terá o aumento da Selic sobre isto? Nenhum. Sendo o petróleo uma commodity internacional, de nada adiantará subir juros para enfrentar um choque de oferta externo. O mesmo vale para quebras de safra, como está a acontecer com o café atualmente.
Alternativas esquecidas
Por isso mesmo, a melhor forma de combater a inflação no Brasil não é aumentar até ao infinito a taxa básica de juros, mas estabelecer medidas macroprudenciais, como o compulsório imposto aos bancos ou a limitação do parcelamento de empréstimos. É através destas medidas que se reduz efetivamente a liquidez do sistema e, consequentemente, se arrefece a atividade económica.
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Curiosamente, o mesmo mercado que clama contra o “risco fiscal” mantém um silêncio obsequioso quanto ao efeito deletério dos juros na dinâmica da dívida pública. Por achar pouco um corte de R$ 70 mil milhões (cerca de 12 mil milhões de euros) nos orçamentos de 2025 e 2026, o mercado passou a cobrar 3% a mais na Selic. Pelo nível atual da dívida, isso implica algo como R$ 150 mil milhões (cerca de EU$ 25 mil milhões) por ano. Hoje, o défice orçamental do governo federal ronda R$ 1 bilião por ano (170 mil milhões de euros), sendo 99% deste valor composto apenas pelo pagamento de juros da dívida. Para ficarmos em um exemplo muskiano: este montante daria para comprar o Twitter por três vezes, com direito a troco. Trata-se da maior transferência de riqueza do setor produtivo para a ciranda financeira de que há registo na história do país.
Como os únicos economistas sensatos que aqui desembarcaram foram comidos pelos caetés, ficámos reféns de uma banca alheia ao país e de um Banco Central incapaz de quebrar este círculo vicioso. Em vez de conduzir expectativas, é conduzido por elas. Triste sina deste pobre Brasil.