Quo vadis, Humanidade?

Título

A maldição da noz-moscada – Parábolas para um planeta em crise

Autor

AMITAV GHOSH (tradução: Miguel Romeira)

Editora (Edição)

Elsinore (Junho de 2023)

Cotação

18/20

Recensão

Confesso que estava um pouco reticente em levar este livro na bagagem para preencher a ociosidade dos meus dias de veraneio. As férias pediam leituras mais ligeiras, para não dar muito trabalho ao miolo ou narrativas que fossem bem-dispostas, de preferência na companhia de um branco fresquinho. Como se diz, espalhei-me ao comprido, mas ainda bem.

A partir de um episódio ocorrido em 1621 numa das ilhas Banda, no território das Molucas, na actual Indonésia, o romancista e ensaísta indiano, Amitav Ghosh (n. 1956), tece uma teia de relações entre os factos aí ocorridos, o massacre de toda a população local (provavelmente um dos grandes genocídios esquecidos pela História), e as presentes alterações climáticas que afectam todo o planeta. Uma alucinante viagem por tudo aquilo que o Homem (leia-se o Homem Branco e Ocidental) foi fazendo e provocando em vários lugares do globo, interferindo com a Natureza nas mais variadas maneiras, com consequências devastadoras. 

Naquele tempo vivia-se uma corrida às especiarias, caracterizada pelo autor como “a corrida espacial da época”, em particular a tão demandada noz-moscada (Myristica fragans). Para a colher era preciso atravessar meio mundo. Com isso, “ao viajarem pelo mundo conhecido, a noz-moscada, o macis e outras especiarias fizeram nascer rotas de comércio que atravessavam o oceano Índico e entraram por África e pela Eurásia.” 

A noz-moscada, além do uso culinário, também era procurada devido às suas propriedades medicinais, sendo cobiçada como símbolo de luxo e de estatuto: “No final da Idade Média, a noz-moscada tornou-se tão valiosa na Europa que uma mão-cheia pagava uma casa ou um navio.”

Ao analisar este caso, a eliminação do povo Banda, levada a cabo pelos holandeses a fim de assegurar o monopólio do comércio da noz-moscada, Amitav Ghosh estabelece paralelismos com outros episódios ocorridos em diferentes partes do mundo e em outros tempos, como o caso das tribos indígenas nos Estados Unidos da América ou no Amazonas, e de como, ao destruíram as suas maneiras de viver, acabam por destruir todo um equilíbrio existente, com repercussões, por vezes, difíceis de alcançar. 

O autor desdobra-se em múltiplas e inteligentes abordagens, seguindo um fio condutor, a acção do Homem Branco e Ocidental, tido como o pináculo do mundo civilizacional, contra um outro mundo, inferior, o dos outros, vistos como “bestas”. Abordagens essas que vão desde a biologia ao racismo, da escravidão aos actuais movimentos como o Black Lives Matter.

Este é um livro que exige um certo nível de concentração, não por apresentar um discurso complexo, muito pelo contrário, explana uma narrativa bastante fluída, com diferentes histórias que se vão interligando numa malha mais ampla, quase gigantesca. A concentração é necessária para, com cada uma dessas histórias ou curiosidades (que são mesmo imensas), como se fossem folhas, não só conseguirmos ver a árvore como toda a floresta de conhecimento que o autor nos oferece.

Uma leitura que além de ser um murro no estômago, provoca também um nó na garganta e um aperto no coração: o que andámos nós a fazer para deixar o mundo neste estado?

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