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  • O raspanete

    O raspanete

    Passaram umas horas depois do incidente que toda a gente viu, e Volodymyr Zelensky continua abatido. Entra no SUV ainda com o fantasma bem presente da impressionante conversa que tivera, horas antes, com Trump e J. D. Vance, com o mundo todo a assistir.

    Está apenas com o seu chaffeur na viatura.

    Passado uns minutos de silêncio, e depois de se aperceber da postura melancólica e cansada do político-actor, diz-lhe o chauffeur:

    — Não leve a mal, senhor presidente, mas numa coisa concordei com o que vi.

    Bem… Tu também?

    Se me permite senhor presidente…

    O que é que foi? — pergunta sem convicção o ucraniano, pusilânime e com alguma condescendência, consequência do cansaço acumulado. — Já não me bastou ter de levar com aqueles dois atrasados…

    Zel comendo um Chupa-Chups.

    — Sim, mas… — pigarreia para aclarar a voz.  — Senhor presidente, eu, se mandasse num país, e graças a Deus que não… — pigarreia novamente. — Não me vestia assim para uma cimeira, ou lá o que é que foi aquilo.

    Zelensky abana a cabeça e, com um olhar vago, fita a paisagem sem se fixar nela.

    O chaffeur continua:

    — Nisso a minha mãe tem razão: devemos ir sempre bem vestidos para os encontros importantes. Desculpe a arrogância.

    Mas tu achas que eu gosto de andar assim vestido? — responde Zelensky com uma nova e súbita energia. — Achas que eu ando assim porque quero?

    — Bem…

    — Achas que já não tenho problemas suficientes lá na Ucrânia para ainda ter de estar aqui a levar contigo?

    Eu não qu… — o motorista tenta interromper sem sucesso enquanto Zelensky continua no mesmo tom:

    — Achas que isto tudo é escolha minha? Já viste o que é que eu tenho de ouvir? Já percebeste que levei o maior raspanete da História da televisão? Achas que estou para isto? Também tenho honra, ou não?

    Zel ouvindo ‘Karma Police’ dos Radiohead.

    — Bem, senhor Zelensky, eu não queria estar na sua posição. Isso é verdade. Uma vez na escola levei cá um raspanete na aula, à frente de toda a gente, que ainda hoje me lembro. Foi cá uma vergonhaça!

    Zelensky recompõe-se.

    Agora multiplica essa aula por triliões. — diz, novamente, o politico, mas já com a voz normalizada.

    — Fogo! Eu nunca mais dormia. —responde o motorista, levantando os olhos.

    — Estás a falar das minhas roupas… Mas nem sequer sabes de que marca são!

    Isso é verdade. Lacoste não são, senão tinham aí o lagartinho. —diz o chaffeur, enquanto faz uma cara ameaçadora para um outro condutor que o acabou de ultrapassar.

    Zelensky continua:

    — Esta t-shirt custa para aí uns 500 dólares. Devias estar calado e guiar com atenção. E não penses que o Trump e o barbichas country vestem assim tão bem. A gravata do Trump estava suja de gordura.

    — Bem, senhor presidente… Desejo-lhe sorte agora, quando tiver de dormir sem comprimidos. A alma até dói depois de um raspanete destes. E o senhor já não é propriamente um adolescente.

    O motorista está ainda fixado naquele seu pequeno trauma.

    — Eu, só com aquele raspanete que levei na escola, demorei anos a conseguir dormir bem outra vez. E eram só uns 20 na sala. Mas foi cá uma vergonha. — reforça o homem.

    Zelensky, no entanto, aproveita a boleia da conversa para não pensar no seu assunto e diz:

    O que é que tinhas feito?

    — Tinha posto pimenta nas hóstias na capela do colégio, senhor Zelensky.

    O ucraniano por segundos esquece-se de Trump e ri-se.

    — E depois ?

    — Depois, durante a missa, as velhas, sobretudo, tossiram e espirraram muito e foi de morrer a rir vê-las.

    Zelensky tem um novo assomo de energia e parece divertir-se com a historieta do motorista.

    — Mas depois, lá no colégio interno, descobriram que fui eu. Fui delatado por um puto que me odiava. Olhe, presidente, imagine que era o Putin, tá a ver?

    — Sim, mas não é preciso fazer comparações.

    — Desculpe.

    Faz-se um silêncio e depois, de repente, o chaffeur atira:

    — Isto era mais fácil quando o Zelensky era actor, não?

    — Estás a brincar? Prefiro, ainda assim, ser presidente na vida real.

    — Mas lá não levava raspanetes destes…

    — Não, que não levava… Do realizador da série, era quase todos os dias. Eu sempre levei raspanetes na vida. Não como o de hoje, claro. Isto não foi um raspanete. Isto foi um ataque de um porta-aviões. 

    — Não foi um; foram dois.

    — Isso. Ainda pior.

    — Mas, se me permite, Zel… posso tratá-lo por Zel?

    Sim, estás à vontade. Até prefiro. Mete-me no meu verdadeiro lugar. 

    Zel chora.

    — Bom… O Zel também foi para lá com duas pedras na mão. — arrisca o homem. E continua:

    — É preciso muita coragem para chegar à Casa Branca e dizer o que o Zel disse. Ainda por cima àqueles dois. Bolas, eu não tinha essa coragem. No outro dia, na reunião do condomínio, quis também ter assim um pouco a sua postura, mas não tive coragem. E depois não sei se estava preparado para o raspanete certo da minha mulher.

    — Pois. Percebo isso.

    — Ainda tentei armar-me em duro, mas…

    Faz-se de novo um silêncio e Zelensky suspira como uma criança.

    O motorista olha pelo retrovisor e atira com ar amistoso de quem está a falar com alguém nitidamente fragilizado:

    — Se calhar, agora, o melhor era o Zel ir para o hotel descansar, porque nestes dias de raspanetes há sempre tendência de tudo piorar a seguir.

    — Sim, eu conheço a sensação.

    — Mas, bolas, eu nem quero acreditar que estou no mesmo carro com o homem que levou o maior raspanete da História dos raspanetes, em directo.

    — Já chega, está bem!

    — Sim mas mesmo assim, e se me permite Zel, você até teve muita coragem.

    — Obrigado.

    — O J. D. Vance fez-me mesmo lembrar o contínuo chefe da minha escola numa das muitas rabecadas que levei, em que percebeu que o director lhe estava a dar espaço e acabou por, através de mim que não tinha culpa nenhuma, mostrar o seu poder. Nessas situações estamos sempre lixados, sobretudo quando são dois ou mais a darem-nos cabo da cabeça. Mesmo que tenhamos razão. Tendemos sempre a fazer como o Zel fez, assim com os ombros em posição defensiva — imita —, e com a cabeça para a frente.

    — Olha para a estrada!

    Revi-me muito em si. — voltando a olhar para a frente — Provavelmente, eu e muitos milhões de injustiçados do mundo vitimas de reprimendas das antigas. É muito humilhante.

    — Já chega. Tudo o que estás a dizer é verdade. Mas se queres saber, já levei muito piores. Olha para a minha cara. Não se vê logo que tenho ar de quem levou muitas na vida?

    — Sim, por acaso, agora que penso nisso, tem sim. Mas ainda assim chegou a presidente.

    — Isso é outra historia que não interessa para aqui e é melhor não quereres saber.

    — Sim… BlackRock e não sei quê… A União Europeia a parecer uma equipa de natação sincronizado no que respeita à guerra é esquisito… Sim, sim. Percebo.

    — Então… Olha lá a confiança. Não vás por aí.

    Zel, já agora, queria dizer-lhe uma coisa… chata. — interrompe o motorista.

    — O que é que foi agora?

    — O Zel, quando se filma a si próprio e aparece na televisão…

    -Sim. E então?..

    O motorista pigarreia novamente para aclarar a voz.

    — … Bem… Não é muito bom a filmar-se. Não me leve a mal. Mas primeiro, não devia filmar-se na vertical, e depois devia de ter maior distância entre si e a lente. Não me leve a mal novamente, mas fica sempre com o nariz muito grande. Não é nada contra si. Mas eu estudei cinema.

    — Quando um homem está em baixo, toda a gente lhe dá pontapés. Tens razão. Vou pedir ao Spielberg para andar sempre comigo nessas situações. Deve levar barato.

    Não queria ofender. — responde o chaffeur.

    E Zelensky, visivelmente chateado insiste:

    Se calhar, também não gostas da minha maneira de falar!

    — Por acaso, não. Mas não me leve a mal. São gostos. O seu inglês é esquisito.

    Zelensky vai para responder, mas o seu telefone toca. Olha para o nome e atende. É Olena, a sua mulher.

    — Sim…

    — É só isso que tens para dizer? Sim. Sim o quê?..

    — O que é é que eu fiz agora?

    Com Olena quase aos gritos, a conversa torna-se perceptível para o motorista.

    — Tu nunca fazes nada! —ataca Olena. 

    — Estiveste a ver? —pergunta Zelensky, a medo.

    — Eu e mais três biliões de pessoas. Não tens vergonha? Olha para mim agora. Vai ser tudo a gozar comigo. 

    — Mas o que é que eu fiz? Estás mais preocupada contigo do que comigo?

    — Olha Linskinho, a tua sorte é eu estar aqui. Devias agradecer eu ainda estar aqui a falar contigo e não te virar as costas.

    — Mas eu não fiz nada de mal!

    — Vocês nunca fazem nada de mal!

    — Está bem. Entrei um bocado à bruta…

    — À bruta? Então tu vais para a Sala Oval armado em Stallone!

    — Não exageres.

    — Eles têm alguma razão. Sobretudo o barbichas country. Devias era estar agradecido por estares lá com eles. Já viste que, a esta hora, podias estar na televisão a fazer sketches estúpidos e a apresentar programas de merda tipo Big Brother?

    — Mas…

    — Não há aqui mas, nem meio mas… É mesmo assim. O que há é o que é.

    Zel faz balão com pastilha elástica.

    — O que é que isso quer dizer?

    — Não é o que isso quer dizer. Não fujas da conversa.

    — Mas eu não estou a fugir.

    — Já viste a sorte que tens de ainda estar aqui a falar comigo e eu estar a dar-te bola?

    — Olena, não sejas assim…

    — E, já agora… Anteontem deixaste a roupa toda no chão e saíste do quarto sem arrumar.

    — Desculpa mas isso não fui eu. Foi a Olga. Tu sabes bem.

    — Ai não? Ok. Sim…

    — Precis…

    — Não foste tu, mas podias ter sido. Vocês são sempre a mesma coisa.

    — Mas vocês quem? Estás a falar comigo.

    — Vocês todos. Tu não tinhas necessidade disto…

    O motorista interrompe com uma voz nervosa, no momento em que o ucraniano vai a responder:

    — Não leve a mal, senhor presidente, mas, se calhar, devíamos sair do carro.

    — O que é que foi? — pergunta o presidente, meio atordoado.

    — Já fiz asneira. O motor parece estar a arder, mas a culpa não foi minha. —diz o motorista, saindo apressadamente do SUV.

    — Foda-se!!! —grita Zelensky, enquanto tosse e bate com a cabeça no vidro.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva

  • Um fim de um mundo

    Um fim de um mundo

    Seria a identidade e toda a sua doença contemporânea associada, uma questão de branding, fruto de uma necessidade quase patológica de pertença?

    Nessa época conturbada que já vinha de há muito (talvez mesmo desde a Origem dos Tempos ou mesmo do Tempo só), muitas pessoas não sabiam bem quem eram, tendo a necessidade de comprar a sua identidade, ao invés de terem simplesmente uma…

    Porque sim.

    Ela podia estar num iPhone, numas Levi’s 501 de ganga, nas músicas de uma banda do momento, mas que rapidamente passará de moda, na pertença a um grupo de runners conhecidos na rede que vestem verde-luz para fazer-se à estrada e que gostam de correr das 23 horas em diante, ou ainda podia mesmo residir no cartão de sócio de um clube de futebol cotado em bolsa mas cuja direcção nem um rosto corrupto visível tem para uma hipotética selfie com o presidente.  

    Podia estar também numa mota, num skate, num blusão de cabedal como no filme de David Lynch Wild at Heart, ou estar ainda plasmada nuns ténis ou meias do Lidl, e mesmo numa vacina da Pfizer ou da Moderna, para lembrar um passado recente.

    Enfim, aquilo que dava sentido de pertença às pessoas podia ser tudo isto e muito mais, mas raramente seria possuir um pensamento claro, genuíno ou mesmo arrojado.

    Ter uma identidade não custava muito, as redes sociais encarregavam-se de ser a caderneta para a colecção dos cromos identitários que por aí pululavam e quanto mais barata custasse a identidade, melhor seria.

    Depois também havia as identidades espirituais e religiosas, como o eco-espiritualismo, a ioga, o sexo tântrico, budismo, hinduísmo, neo-paganismo, meditação no zoom e muitas outras.

    Se se pertencesse ao ramo das artes, então nesse caso seria crucial ter uma à séria, mas mais sofisticada.

    Ser-se humanista era muito valorizado neste ramo da sociedade, mas não um humanismo à século XX pela via do Socialismo ou da Social Democracia, esse já tinha os pés para a cova. Hoje era exigida uma alavanca mais cultural. E era bom dizer-se e escrever-se de vez em quando “alavancagem” ou “igualdade”, o que por si só não seria nenhum problema.

    Já ser pelos “trabalhadores” era considerado démodé e seria marca e identidade do Partido Comunista ainda que estivesse a perder de ano para ano cada vez mais votos.

    Falar na pobreza já não assegurava deputados, mesmo que a sociedade estivesse mais pobre.

    Os velhotes andavam a morrer em barda e parecia que já ninguém queria saber deles.

    Mesmo os mais desfavorecidos não acreditavam que algum partido político fizesse alguma coisa pela sua situação, alguns acreditavam mesmo mais na Cristina Ferreira e na TVI, ou ainda pior, no Cláudio Ramos e na sua incrível “honestidade intelectual” como se ela fosse salvívica.

    O esquema desse tempo era outro e o futuro não parecia contar muito com os mais pobres.

    Eram abstratos de mais e não trabalhavam, atrapalhavam até.

    A sociedade do Bem (mal) Estar estava a ficar desumana, sem duvida.

    Aos olhos dos menos pobres, os mais pobres não queriam trabalhar, não se percebendo muito bem de onde vinham essas ideias.

    O novo paradigma era cultural e climático.

    Muitas vezes bastava ser-se cisgénero ou do género binário e querer acabar com o carbono e queimar todos os carros à face da terra, ou mesmo ter novamente o hino nacional e o ódio à emigração muçulmana a viver no Tik Tok para se ter uma identidade, consoante a pseudo-geografia por onde se esteja a ver, que isso certamente já seria música para os ouvidos das redes (anti) sociais, que cada vez mais tinham as orelhas maiores, tipo lobo-mau.

    O novo bilhete de identidade já não era carimbado pelo Governo, mas por um canal de You Tube ou por uma conta de Instagram. O carimbo era um like.

    Que mundo!..

    Não se podia era não se ser nada.

    Se se fosse artista mas se se identificasse com a direita mais clássica, corria-se o risco de acabar nas galerias do Casino Estoril a pintar casas de férias com paisagens naïves que desencantam sempre riachos e moinhos vindos não se sabe de onde, sobretudo as pessoas mais velhas que ainda acreditavam em valores clássicos e tradicionais.

    Mesmo assim, isso era ter uma identidade. Os cromos de Cascais fechados no seu gueto de camurça anacrónico também tinham o direito à vida e muitas vezes o objecto ou o gadget que dava o passaporte identitário encontrava-se em saldos.

    Já não havia assim tantos ricos para que prescindissem dos saldos.

    E desta forma chegamos ao Ricardo Campos de Almeida, o pequeno herói desta historia que achava também que era hora de nos alimentarmos de livros em vez de informações digitais. Era hora de lembrarmos o humano em vez de imaginarmos o transumano. Sabia muito bem que conquistar um direito podia demorar um século mas perdê-lo, podia ser numa hora.

    Para ele estava na altura de valorizar a inteligência natural novamente em prol da inteligência artificial e de pensar. Portanto… De existir, para transformar.

    Este rapaz era um clássico, mas para a frentex, achava ele.

    Fosse o que fosse, pensasse o que pensasse, disparatasse o que disparatasse, não se identificava na totalidade com grupo algum.

    Em qualquer era das trevas, foi sempre a centelha da razão que fez a humanidade renascer para reconstruir o presente e imaginar o futuro. Parecia que nesse tempo o acto mais revolucionário era pensar diferente.

    O Ricardo Campos de Almeida pensava diferente. Achava que perder-se na maré da ideologia ou no oceano da ignorância nada mais era do que o conforto de ter destinado a função de pensar para os outros, e ter apenas o impulso de agir. Age, não penses, era a frase lapidar da New (brand) Age.

    O mundo que se avizinhava era impensável de certa forma, em que as grandes empresas de investimento e multinacionais estariam aparentemente ainda mais com as minorias, com os pobres, e com os injustiçados em geral.

    Tipo Black Rock e Vanguard que davam cada vez mais cartas no jogo absurdo da economia política. Uma estética que podia ter os dias contados.

    Interessante, desafiador, cómico, e claro… Mentiroso. 

    Portanto, o Ricardo Campos de Almeida compenetrava-se de que simplesmente pensava e contrariava as tendências que não só povoavam o subconsciente global mas também o próprio consciente colectivo, se assim se poderia dizer.

    E isso era satisfatório. Era o autor e o publico ao mesmo tempo, mas era incapaz de motivar fosse quem fosse com as suas ideias.

    Havia dias em que nem ele próprio acreditava minimamente naquilo que tinha pensado no dia anterior, denominando-se facilmente essas pessoas, de indivíduos com transtorno bipolar aos olhos do directório de saude mental americano (DSM). O directório europeu ainda não sucumbira totalmente às novas sensibilidades psiquiátricas.

    Pensar e sentir coisas opostas podia ser sinónimo de um transtorno bipolar, sobretudo se ao sujeito-vítima-de-si-próprio que sofra desse mal, a coisa o esfrangalhasse sem contemplações e passasse os limites do sofrimento, e essa pessoa podia não ser apenas vítima de uma conjuntura.

    Mas embora o Ricardo Campos de Almeida o soubesse, não se considerava assim.  

    Era apenas inseguro e sabia não ser uma pessoa extrovertida ao ponto de recuperar facilmente das agruras do dia anterior só porque falava do assunto. As coisas eram substancialmente mais complexa, mas ele dava-se bem com isso, achando ser natural. Pelo menos até ter sido observado por um médico especializado-em-nada, que o contrariou.

    O Ricardo Campos de Almeida era controlador aéreo e isso obrigava-o a estas acções de controle médico de rotina.

    Mas desta vez o especialista parecia ser diferente do anterior, sendo novo na empresa já que o antigo que o observara durante anos, bastante mais velho, tinha-se retirado devido a uma crise nervosa aguda.

    Mas esse era pouco exigente e estava lá mais para conversar sobre cinema, o que normalmente agradava ao controlador aéreo já que ambos eram admiradores de Eric Rohmer e dos seus filmes palavrosos.

    O novo e dinâmico especialista em saúde mental contratado pela empresa, era de outra estirpe mais perigosa e incisiva, tinha a escola toda e fora certamente bom aluno. Era um bom cão-de-fila das novas sensibilidades médicas e psiquiátricas seguindo protocolos atrás de protocolos sem pô-los minimamente em causa.

    Apesar de tudo, o Ricardo Campos de Almeida era uma pessoa bem-disposta, ria-se bastante em geral e tentava não andar triste, embora fosse titubeante para fazer raccord com um mundo cada vez mais inseguro, tendo até confessado essa sua característica ao médico que disparando de rajada, assegurou que essa consideração fosse anómala.

    Para o especialista, a boa disposição poderia estar a esconder uma depressão profunda, ainda que o Ricardo Campos de Almeida o negasse, confessando também que lia bastante e que isso tinha um efeito positivo nele quando estava mais triste.

    O especialista afirmou que isso também não era normal, parecia saber bem o que era a normalidade.

    O tipo de literatura que o controlador aéreo lia não podia pôr uma pessoa bem-disposta, já que se tratava de uma literatura intelectual e difícil, à base de filosofia com clássicos tipo Dostoyevsky no cardápio literário.

    Aconselhou-o a ler uns livros mais leves, literatura light, essa sim fá-lo-ia esquecer a dura realidade e torná-lo-ia mais ligeiro, menos problemático e mais apto.  

    Mas o especialista achou estranho o especialista anterior não ter anotado essa anormalidade na sua ficha clínica.

    Para o Dr. Paulo Souto e Silva o que o Ricardo Campos de Almeida precisava era de uma boa dose de ligeireza.

    E, se tomasse o que lhe receitava, poderia trabalhar sem problema.

    Saiu da consulta de rotina medicado com o patrocínio da Bial.

    Foi para casa, agora sim melancólico e meio deprimido e ainda passou pela farmácia para aviar as estranhas receitas, mas jamais pela livraria, não iria tão longe.

    Assim poderia continuar a agradar à entidade empregadora que o contratara e que andando em restruturações já se tornavam visíveis as mudanças.

    Recentemente a empresa tinha posto a bandeira colorida do Arco-íris na sua entrada e garantia publicamente estar a fazer guerra ao carbono embora estivesse ligada aos transportes aéreos.

    Rumou até casa a pé e achou estranho a cidade estar tão calma, como se estivesse a meditar sobre si própria. Tinha estado a chover, mas uns raios de sol típicos de Abril, penetravam por entre o cimento dos prédios e o plástico dos automóveis, convertendo-se num cenário fílmico e até poético. Foi uma caminhada sem tempo definido tal o turbilhão de pensamentos em que a cabeça do homem se encontrava.

    Chegou a casa, mas ao invés do comprimido receitado, tomou um duche rápido e depois ligou a televisão enquanto preparava umas almôndegas.

    E mal ligou o aparelho ficou atónito com o que viu. Ainda mais que àquela hora de almoço do dia 11 de setembro de 2001 quando foi comer a casa da mãe no intervalo das aulas.

    A SIC Notícias estava em directo de Washington, porque uma bomba explodira na Casa Branca. 41 mortos já contabilizados.

    Nada disto podia estar a acontecer. Pensou que podia ser uma brincadeira já que era dia 1 de Abril, o dia das mentiras.

    Mudou de canal e foi parar à TVI 24, que fazia um directo também, mas a partir de Bruxelas. Por envenenamento várias pessoas que trabalhavam no Parlamento Europeu, sucumbiram, entre elas o próprio presidente da Comissão Europeia.

    Não podia ser.

    Alguma coisa estava errada. Mas com isto das fake news todos os dias eram dia 1 de Abril. Tentou pesquisar na Internet mas estava extremamente lenta ao ponto de voltar aos canais convencionais.

    Passou para a RTP3, e em rodapé por baixo de um jornalista que vociferava uns disparates imperceptíveis, informava que a sede da Google havia sido bombardeada com uns drones verdes e estranhíssimos que deram cabo do edifício num ápice, vitimando pelo menos 88 pessoas. Mesmo sendo dos poucos que ouvira falar do projecto Blue Beam e do Cyber poligon, não estava a acreditar na ocorrência.

    Noticiavam também que o novo Zuckerberg que tinha passado a ser pela liberdade de expressão estava em paradeiro incerto, tendo o seu avião particular sido encontrado no meio de uns penhascos californianos, sem ninguém lá dentro.

    Mas pareciam tudo suposições embora lembrasse uma alucinação colectiva.

    Ainda em grandes parangonas lia-se que a casa do presidente Orban da Hungria tinha explodido com o próprio lá dentro, o que afastava a possibilidade de ser um atentado da extrema-direita, segundo a RTP.

    Tentou os canais internacionais. Nada de mais, pareciam as mesmas notícias copiadas mas nos contextos desses países. Mal por mal antes Portugal e voltou à SIC, mas desta vez aparecia chuva no seu plasma. Uma chuva analógica e a fazer lembrar outro tempo televisivo.

    Experimentou a CMTV e diziam com um directo mal-amanhado, que os estúdios da SIC haviam sofrido uma espécie de atentado, mas a jornalista estava atónita e mal conseguia falar.

    Deslocava-se para lá, mas parecia estar drogada. Não enchia chouriços, enchia malas de viagem com estupefacientes.

    O mundo enlouquecera e ele é que tinha de tomar comprimidos? Baixou até ao silêncio o volume da televisão, fitou os medicamentos que ainda não tinham saído das embalagens correspondentes, e pensou no especialista que lhe receitara aquilo. Estaria ele também a seguir a novela da terceira guerra mundial em directo, enquanto bebericava um gin tónico? Da terceira não! Para aí da quarta ou da quinta, já lhe perdera a conta.

    Divertiu-se com a imagem e decidiu não tomar os medicamentos.

    Foi até à janela ainda com a toalha de banho pela cintura e com o cabelo húmido, viu o entardecer quase a abraçar a noite que ao invés daquilo que as televisões mostravam, era belo e sumptuoso, contrariando totalmente a adrenalina vigarista espelhada no som estridente do seu plasma.

    Para ele o pior era o som. As imagens por si eram inofensivas sem o áudio. Até podiam ser cores em movimento. O som era o inferno.

    A ultima voz que ouviu foi a de um comentador de geopolítica que estava a chorar em directo e a jurar que tinha avisado desta catástrofe humana mas que nunca ninguém o ouvia, nem a mulher. O pivot muito conhecido aproveitava para pedir desculpas ao público pelos seus últimos trinta anos de teatro, assumindo-se como um mau actor. Pedia de joelhos à audiência para que não o deixassem acabar como Gaddafi, arrastado pelo chão de Tripoli. Parecia mesmo o fim do mundo.

    Abriu a janela e o silêncio mostrava-se de uma beleza comovedora. Ao longe via-se a linha do horizonte que dividia o azul do rio com o azul alaranjado do céu. Parecia uma pintura digital. A paisagem e a sua beleza sempre foram a sua aspirina e foi atingido por uma lufada de ar que trazia o aroma primaveril de terra fresca.

    O rio, lá em baixo, estendia-se preguiçoso, numa dança silenciosa com os prédios envolventes.

    Não havia pressa no cair da noite – era um entardecer sem a mínima intenção de chegar a lado algum.

    O Ricardo Campos de Almeida enquanto desfrutava do silêncio envolvente, acendeu um cigarro e percebeu que voltava a estar bem disposto.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Swimming Pool Project

  • A fonte

    A fonte

    Aquele número que ali estava diante de si, no seu smartphone, era inteiramente novo para a Cátia que odiava ter de atender números desconhecidos que não lhe diziam nada. Tinha medo.

    Mas o aparelho até parecia que estava mais nervoso que o habitual e mesmo o som aparentava estar mais estridente e intenso.

    E a proveniência podia muito bem vir do seu ex-namorado, o que seria um problema, pensou ela. Já em tempos o fizera, ligando de uma velha cabine perdida no tempo, achava ela.

    Não queria falar com ele por nada deste mundo, e suspeitava que o rapaz pudesse estar muito bem a ligar de outro telemóvel, embora ele soubesse de antemão, que Cátia raramente atendia quando os números eram de origem desconhecida.

    Desligou o som.

    Para ela, ele era um stalker, mas, para ele, ela também era uma stalker.

    Mas isso é outra história.

    Ficou a olhar para o telemóvel a vibrar enquanto se decidia.

    Já tinha tido problemas por não atender chamadas, sobretudo quando se tratava do campo laboral, tinha noção disso, e pagou um preço bem caro da ultima vez por ter investido nessa opção arriscada do não atendimento, mas era a pior coisa que lhe podiam fazer, e jamais queria ter de voltar a ouvir a voz do Marco, o seu stalker, isso é que não. A acontecer só no tribunal caso chegassem a esse ponto. 

    Tinham namorado dois anos e a relação acabara em violência doméstica segundo os dois e teriam mesmo acabado em tribunal, não fosse o aparecimento da pandemia mediática. Mas hoje ela pondera fazer queixa  novamente. E ele também. São, até prova do contrário, ambos vitimas de “stalkerismo ”.

    Estranho mundo o nosso.

    Na altura ele fez queixa dela, alegando que levara um tareão à antiga, invocando que ela era cinturão castanho em Full Contact e até era mais alta que ele.

    Mas ela sempre o negou. Ele era apenas cinturão verde em Judo.

    Naquela altura atípica e singular da pandemia e de confinamentos loucos e radicais, cujas regras mudavam dia sim dia não, os advogados chegaram a acordo para não levarem o caso a tribunal. Nenhum dos quatro se via de máscara nas audiências. Áí estavam todos de acordo.

    Mas isso é também outra história.

    E agora que tudo aparentemente passou, o Direito e a verdade eram de novo uma hipótese de voltar à carga para ambos.

    Mas talvez seja tarde. Os tempos mudaram.

    Cátia era uma reincidente em não atender números anónimos, mas com algum desconforto, e depois de pensar bem, atendeu a chamada.

    Era da Agência Funerária que estava a tratar da lápide do pai que já morrera há um ano, e só agora a família tinha decidido fazer uma, com uma inscrição a recordar o bom homem que o Sr. Américo Santos tinha sido, uma enorme mentira, uma vez que nenhum dos quatro filhos tivera entretanto qualquer tipo de saudades do pai, nem mesmo a mulher, que rejuvesnecera dez anos após a morte do marido.

     O Sr. Américo tinha sido uma má pessoa e até um pai ausente, fazia tudo à sua maneira, não ouvia ninguém, era malcriado, gordo, corrupto e mil coisas mais bastante negativas por sinal, no entanto tinha sido em vida católico e a família estava a ser forçada pela outra parte da família para que essa lápide ganhasse vida.

    No que resta do mundo católico, é assim.

    Cátia ficou aliviada quando percebeu a origem da chamada.

    O processo já tinha avançado, já estava até a maquete feita, e era por isso mesmo que esta ligação se estava a efectuar.

    A senhora da Agência disse:

    – Estou a falar com o Sr. Timóteo?

    – Não! Sou a Cátia. O Timóteo é o meu irmão.

    – Olá, eu sou a Dulce da funerária Anjos. Pode ser consigo também. Já trocámos uns e-mails.

    A Cátia estava descansada naquele momento, não era nenhum desconhecido, nenhum stalker, nenhum ET, nenhum vampiro. E de forma calma respondeu:

    – Sim, sim.

    – Olhe, é porque a fonte de letra que me está a pedir nós efectivamente não temos.

    – Não tem a Helvética?

    – Não. Sabe, essa não tem muita saída. Nós trabalhamos com a Comic Sans. Normalmente os clientes ficam satisfeitos com essa. Não leve a mal, mas para mim também é a mais gira de todas. Eu uso-a para quase tudo… E aconselho.

    – Sim. Mas eu trabalho na área do Design.

    Interrompeu a Cátia, irritada.

    – E não quero essa letra. Não tem nenhuma Garamond?

    – Gara… quê?

    – …Mond. Garamond. É um tipo de letra. Não conhece?

    – Pois. É o que lhe digo. Nós aqui não trabalhamos com a Garamond. Pois… Se a senhora trabalha nessa área, deve ser mais exigente. É como eu com a Fórmula 1. Vej…

    – Então trabalham com quais?

    Interrompeu.

    – Não lhe sei assim dizer. É que é a primeira vez que alguém se queixa da fonte.

    – Sim, mas eu queria saber com que fontes trabalham, se não se importa. Até porque essa aí não tem nada a ver com a situação. Estamos a falar de uma pessoa morta não é!

    – Pois. Estou a perceber. Queria assim uma coisa… Como dizer?.. Mais, vá… Pesada!.. Vá!

    – Não é pesada. É ajustada.

    – Pois. A Comic é assim mais leve e simpática. Mas percebo. Quer assim uma coisa…

    – Mas diga-me, com quem é que posso falar aí da Agência que saiba do assunto?

    Interrompeu a Cátia novamente, ainda mais irritada.

    – Com o Sr. Alves mas está com covid em casa. Pelo menos ele acha que é. Está sem olfato e está muito irritado. Está isolado, sabe!.. Eu já lhe disse que não era preciso o isolamento mas é teimoso o raio do homem. E não quer falar com ninguém. Ainda há pouco tentei comunicar com ele e quase me ofendeu. Tente mandar um e-mail para o Sr.Alves.

    – Dê-me o e-mail então.

    Simultaneamente a Cátia recebe entretanto uma chamada na outra linha e o número é outra vez desconhecido, até diz sem ID, o que faz com que fique ainda mais nervosa.

    – Espere, estou aqui à procura. Mas olhe, entretanto vi aqui qualquer coisa no nosso catálogo sobre isso das letras, quer que lhe diga?

    – Sim.

     Entretanto a chamada anónima caiu.

    – Arial. Gosta?

    – Não.

    – Verdana?

    – Também não. É horrível.

    – Também acho.

    – Bold.

    – Isso não é fonte. Isso é quando se quer a letra mais marcada. Mais escura.

    – Ai sim? Que engraçado. Mas fica muito gira, assim mais escurinha.

    – Diga mais.

    – Vicking.

    – Não acredito que têm essa. Para que é que a usam?

    – Pois, não sei. Tem de perguntar ao Sr. Alves. Deve ser para cartões. Aqui em Arouca usa-se muito. É assim… Dinâmica!

    – Isso é absurdo.

    – Só temos aqui mais uma, que é… Deixe ver… Ah!.. Times New Roman.

    – Tem essa?

    – Aqui diz que sim. Não é do meu departamento, repito. Isto é mais com o Sr. Alves. Mas pelo menos é o que diz aqui. Mas eu se quer que lhe diga, gosto muito da outra dos Comic Sans. É muito gira, mesmo para lápides. Torna assim a coisa mais leve sabe?.. Quando eu morrer q…

    – Mas isto não é para ser giro.

    Interrompeu a miúda novamente, e desta vez ainda de forma mais abrupta. Continuou:

    – O meu pai está morto. Estamos a falar de uma lápide.

    Aparece novamente a inscrição sem ID no telemóvel. A rapariga começa a ficar muito ansiosa.

    – Olhe eu vou pensar melhor e mando um e-mail para vocês a dizer a nossa opção. Vou reunir com os meus irmãos e com a minha mãe. Mas por favor reencaminhe para o Sr. Alves a nossa opção.

    – Já agora. Podia avaliar a minha prestação?

    Sugeriu a empregada.

    – Como?

    – A seguir vai receber um inquerit…

    – Agora não. Obrigada.

    – É o meu irmão que vai ligar. É uma voz verdadeira. Nã…

    Desligou e ficou a olhar para o telemóvel que entretanto já estava com o som do toque activo, cada vez mais estridente. Cada vez mais agudo. Até lhe pareceu que era a primeira vez que ouvia aquele toque.

    E num ápice atendeu.

    – Sim. Com quem falo?

    Perguntou.

    E o telefone ao fim de uns segundos desligou-se mas ainda se ouviu uma voz ao longe, meio cavernosa e imperceptível, embora com um tom bem marcado mas dúbio.

    Estranho.

    A Cátia ficou branca. Não queria acreditar no que achava que acabava de ouvir.

    Foi à cozinha beber um copo de água. Sentiu um ligeiro frio interior que normalmente anunciava quebra de tensão e sentou-se numa cadeira da cozinha.

    Ía jurar que era a voz do pai a pedir a Comic Sans.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • Um parque humano

    Um parque humano

    Estava calmamente sentado debaixo de uma árvore, sozinho, num parque que já faz parte de mim – ao ponto de por vezes achar que é meu –, e nem mesmo os costumeiros mendigos e consumidores de droga que fazem parte do habitat por lá deambulavam.

    O termómetro não marcaria mais de 20 graus e pairavam algumas nuvens indistintas no céu.

    Junto a mim, passavam os patos e os cisnes habituais naquele parque extremamente verde e com um certo glamour ecológico, até parecendo que já me conheciam.

    Seriam os patos de Pequim assim tão simpáticos?

    Ouviam-se também pássaros a cantarolar e a assobiar. A atmosfera primaveril era perfeita para estar a escrever nas notas do meu telemóvel uma mensagem elaborada para uma amiga, quando vejo um polícia com ar cansado ao longe. Percebi de imediato que se dirigia a mim.

    Tinha uns 45 anos e estava de máscara. Fazia um esforço grande para se deslocar, uma vez que o solo estava ligeiramente inclinado não podendo, no entanto, considerar-se uma subida.

    Parecia que o agente acabara de correr a maratona de Nova Iorque. E como estava, efectivamente, a vir ter comigo, tirei a minha máscara do bolso, mas quando a ia colocar na boca, ele disse ainda ofegante:

    Faz questão de estar a pelo menos dois metros de mim?

    Respondi que sim. E ele continuou:

    Então o senhor não tem de meter a máscara. Boa tarde, era só para lhe dizer que tem de circular!

    Como?

    Sim, tem de circular. Pode estar no parque, mas tem de circular. É uma directiva do Governo.

    Sabe que estamos em confinamento e que foi declarada uma pandemia?

    Respirou fundo, parecia estar mesmo cansado.

    Quer dizer, não posso estar aqui mas posso andar por aí?

    Sim senhor!  Faça o que lhe disse e boa tarde.

    Enquanto se preparava para ir embora, ainda o inquiri:

    Gostava de fazer uma pergunta…

    Claro! Se souber responder…

    Sorriu envergonhadamente.

    Eu sou realizador de cinema e vídeo, e fotógrafo, estou aqui a trabalhar. A rua é o meu local de trabalho…

    Já somos dois!

    Interrompeu. Confirmei que estava com uma respiração anormal e sugeri que tirasse a máscara. Disse-lhe também que não era bom estar a inspirar o seu dióxido de carbono.

    Então se não se importa, acho que vou tirar a máscara por uns segundos. Estou a dois metros de si, não tenha medo.

    Claro que não tenho medo. Fui eu que sugeri.

    Respondi, chateado.

    Nitidamente o homem começou a ficar em poucos segundos com outra cara. Uma ligeira cor rosa apoderava-se paulatinamente do seu rosto bastante comum. Era um homem encorpado mas nitidamente parecia andar em baixo, senti também que gostava de ser polícia.

    Pode fazer então a pergunta.

    Lembrou-me.

    Como dizia, sou artista, pronto… e uso o meu telemóvel para trabalhar… então se quiser filmar ou fotografar aquela árvore por exemplo, ou aquele cisne, posso parar para o fazer? A fotografia, caso contrário corre o risco de ficar desfocada ou tremida…

    Mas é profissional?

    Sim.

    Nesse caso, sim.

    Notei que estávamos parados há pelo menos dois minutos.  

    Já agora, qual é esse critério que vocês usam? Os vírus apanham-se menos a andar?

    Pigarreou nervosamente.

    …Sim!

    Por exemplo, vão ali cinco rapazes juntos, mas em andamento…

    Apontei.

    Estou a ver…

    E é pior eu estar aqui sentado sozinho?

    Parece que sim.

    Pigarreou novamente sem convicção.  

    Ai é?

    Reforcei.

    Diz que sim…

    Mas diz que sim… Quem?

    Você não vê os telejornais?

    Mudou até de tom, tornando-se ligeiramente mais agressivo.

    Vejo. Mas eu não quero que você use a lei dos telejornais. Sentia-me mais seguro se vocês tivessem recomendações próprias… de epidemiologistas por exemplo. Estava mais seguro se o Ministério da Administração Interna contactasse directamente com a DGS, por exemplo. Não me parece que seja o caso. Até parece que quem manda são as televisões através dos telejornais.

    Não queria mais nada. Isto é uma excepção, uma emergência. Pensa que está na Noruega?

    Se é para estarem a seguir o que os telejornais dizem, não era preciso a polícia.

    Atirei só para chatear.

    Não bata mais no ceguinho. Calma!  Também não fique assim. Só mandei circular. Já não se pode dizer nada que ficam logo nervosos os artistas. Ai coitadinho!.. É muito sensível.

    Até achei piada à rápida mudança. E respondi com uma pergunta:

    Então, mas nós estamos aqui parados a falar ao tempo e agora? 

    Tem razão sim senhor.

    Mudou de atitude.

    Se calhar ficámos infectados…

    Arrisquei. O homem pôs automaticamente a máscara e disse:

    Tem razão. Vamos circular.

    Fez uma pausa e quando ía para despedir-me e agradecer-lhe pelo facto de me deixar estar parado a fotografar, o polícia ainda com cara de chateado, perguntou intrigado:

    Que género de filmes faz?

    Policiais.

    Menti.

    Policiais?  Percebe a situação?

    Deu uma gargalhada.

    Está a falar com um polícia e tem uma câmara na mão, um telemóvel, vá. Tem piada. Também gosto muito de policiais. Gosto muito do Millers Crossing.

    Esse não é policial. É de gansters.

    É a mesma coisa. Então e nos seus filmes somos bons ou maus?

    Faço policiais mas com detectives com carros descapotáveis, não é com polícias normais como o senhor agente.

    Menti novamente, lembrei-me do Miami Vice old school que via quando era puto.

    Então e os seus policias também têm crocodilos de estimação a viver em barcos?…

    Deu uma gargalhada forte novamente e tirou automaticamente a máscara como acto reflexo. Entretanto falávamos enquanto andávamos, mas íamos parando quando surgia uma palavra ou uma ideia mais interessante, hábito muito português do pára-arranca. Percebi que o bófia que já tinha uma tonalidade que se visse na cara, também tinha visto a série dos anos oitenta, em que até os mendigos vestiam blazers com chumaços.

    Não. Não faço remakes do Miami Vice.

    Disse a certa altura quando a série veio à baila novamente, fingindo estar chateado, ou estava mesmo, já não sei bem. Não era a primeira vez que PSPs me abordavam na rua nessa altura de confinamento, ou porque não tinha máscara, ou porque não eram horas para estar na rua, ou mesmo só para chatearem.

    Oh amigo, não leve a mal, mas eu gostava muito dessa série. Até chorei no dia em que o Tubbs levou um tiro. Se calhar até foi isso que me fez vir para a polícia. Para vingar o Tubbs. Às vezes penso que, se não fosse polícia tinha-me metido nisso dos filmes. Nós aqui não ganhamos nada. Você deve ser milionário não?

    Não. Mas em que realidade é que você vive? Perdemos dinheiro até.  

    Olhe mas temos outra coisa em comum. Ambos temos de comprar as armas.

    E deu outra gargalhada bem sonora. Até eu me ri desta vez.

    Bem, quem o viu há uns minutos e quem o vê agora…

    Disse eu, notando a transformação evidente.

    Sabe, é que conversar faz bem.

    Naquele momento já estávamos junto da minha mota fora do parque. Ele olhou para ela.

    Não quero acreditar. É sua? Sabe que uma das minhas outras paixões são Vespas. É uma PK 50?

    Não. É 125.

    É linda. Tenho duas Sprint dos anos 70. Tem de lá ir ver à minha garagem em Sesimbra. Se ficarmos amigos… Uma delas é amarela também.

    Não lhe consegui dizer que estas já não eram da Piaggio mas da LML, uma marca indiana que comprou a italiana. Dizem que em caso de avaria da cambota não terá arranjo e irá para o galheiro.

    Sei muito bem quais são.

    Mudei de cara. Também adoro Vespas e gosto sempre de conhecer pessoas que pertençam ao mesmo clube. O polícia, naquele momento, era mesmo outro. Ia dando umas biqueiradas no pneu da frente como os portugueses de uma certa geração fazem, nunca se percebendo bem porquê, enquanto enaltecia aspectos da mota. Uma vez também dei uns pontapés na furgoneta de um vizinho só por dar enquanto falava do tempo, só porque via os outros fazerem. Depois arrependi-me.

    Isto pega sempre não é?

    Mentira! Se havia coisa que as Vespas tinham, era não pegar muitas vezes pelo menos à primeira. Mas respondi que sim, sabendo que ele sabia que não.

    Curioso como ainda há vinte minutos éramos dois desconhecidos mediados por uma autoridade meio ficcional e agora éramos como irmãos. Estranho como a paixão por motas e cinema pode mudar circunstâncias, ainda que sem qualquer espécie de profundidade. Somos latinos, não há nada a fazer. Ele olhou para mim muito amigavelmente e disse:

    Olhe, estou agora a acabar o meu turno. Não quer ir ali beber um café ou qualquer coisa? Eu ofereço com todo o prazer.

    Mas está tudo fechado.

    Fiz notar. Naquela época as cidades pareciam aldeias.

    Sim, mas para nós eles vendem, não se preocupe. Vamos ali ao Morais. Ele até nos deixa entrar lá para dentro para a cave. Acha o quê? Que eu ia agora para casa deprimir-me e ver comédias do canal Hollywood? Ainda dava um tiro na cabeça… Ou na televisão!

    Rimos os dois.

    Está bem.

    Assim vai poder falar dos seus filmes. A vida é fantástica quando somos reconhecidos e temos afinidades. Não acha?

    E deu-me uma palmada amigável nas costas.

    Sim, acho!

    Realmente o mundo anda estúpido.

    Concluiu o agente ainda parado e em silêncio enquanto fitava a minha mota que muitas alegrias me deu enquanto andou.

    Ao fundo ouvia-se ainda o belo canto dos pássaros que vinha do jardim onde nos conhecemos e ainda que indistintamente e de forma abstracta, os pássaros pareciam confirmar a conclusão do polícia.

    Pelo menos para mim e para a minha Vespa, isso era óbvio.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • O youtuber mexicano

    O youtuber mexicano

    A Mónica Filipa apaixonou-se por um youtuber que difundia vídeos em que achava que provava que a terra era plana.

    Para ela, a terra não era plana, as mentiras e conspirações governamentais não podiam ter chegado tão longe. Se a terra fosse plana, tínhamos sido todo o tempo redondamente enganados e isso era impossível. Se a terra não fosse um berlinde então tudo o resto que nos contaram e ensinaram do mundo podia ser mentira.

    Mas o seu coração palpitava sempre que via o youtuber mexicano. Conseguiu até entrar no seu chat e agendar uma conversa supostamente romântica através de vídeochamada.

    A Mónica Filipa falava bem espanhol, tinha passado uns anos em Maiorca a trabalhar em discotecas e era, desde aí, louca pelas dobragens de filmes em espanhol, tendo aprendido a língua com facilidade. Mas a característica que melhor a identificava era a sua paixão pela cultura mexicana e por homens latinos, sobretudo mexicanos. Tinha até um poster do Marlon Brando, a fazer de Zapata, na sua casa de banho e o seu cão chamava-se Cancún.

    O dia da videochamada chegou. Estava nervosa e vestiu o seu top preferido.

    Eis a conversa que tiveram, traduzida para português.

    Olá! Estava ansioso para falar contigo.

    Disse o terraplanista mexicano.

    – Olá. Eu também.

    Respondeu ela meio nervosa e pouco segura.

    – Não conheço Portugal, mas dizem que é um país muito bonito.

    – E eu não conheço o México.

    Acredito. Mas sabes que nem o México nem Portugal são o que dizem.

    Atacou o youtuber sem contemplações. Era mais forte que ele.

    Como assim?

    – Sabes bem que a geometria do mundo como nos contam é uma falácia. Nesse sentido nem o México nem o teu país são como nos dizem. Por isso é normal não conheceres o México nem eu Portugal na sua integridade.

    – Quer dizer…

    A Mónica Filipa não esperava o tiro à queima-roupa tão cedo, embora soubesse que ele mais tarde ou mais cedo ía aparecer. 

    O youtuber continuou:

    Já expliquei e provei isso nos meus vídeos sobretudo nas lives.

    – Então porque é que aí agora é noite e aqui é dia?

    Arriscou a miúda.

    – Vê o vídeo em que entrevisto o Gutierrez e percebes logo.

    O Boliviano?

    – Sim. Ele explica tudo melhor que eu, tenho de admitir. E prova-o sem muita dificuldade se estiveres atenta e fores livre de preconceitos. É um génio do terraplanismo boliviano e mesmo mundial. Ganhou credibilidade no último encontro terraplanista de Barcelona.

    – Eu vi-o já a conselho teu. Mas dou mais atenção a ti. Aos teus gestos, gosto da tua maneira de falar, do teu sorriso. Muitas vezes não estou a ouvir exactamente o que dizes. A mim pouco me importa que a terra tenha a forma que tiver. Um algoritmo levou-me até ao teu mundo e eu gostei de ti.

    – Isso é lindo. Mas a terra é plana. Prefiro que saibas com toda a certeza que a terra é plana a que me aches o máximo.

    Preferia ser o Frankenstein e a terra ser plana, que o Brad Pitt e a terra ser redonda. Percebes?

    Jamais daria um beijo a alguém que achasse que a terra é uma bola de basket. Vomitava logo.

    E a ligação caiu.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • Bill, o Profeta

    Bill, o Profeta

    O homem acordou, mas aquilo não era bem um despertar.

    Pôs os óculos e levantou-se, mas o seu corpo não respondia como de costume.

    Bill sentiu-se assustado. Não estava habituado a esse tipo de sensação. Mas do que é que poderia ter medo? Se nem da própria morte tinha. Esse assunto fora resolvido há muito, tendo mesmo superado essa vertigem ainda adolescente, adquirindo o conhecimento tanto metafísico como esotérico com a ajuda do seu pai, para que pudesse andar descansado, minimizando-a, tornando mesmo a sua morte num não assunto.

    Até aí tratava-se de uma vitória sem dúvida.

    Mas por que razão então acordara tão assustado o filantropo mais filantropo do mundo? Andaria com medo de si mesmo?

    Andaria com medo da filantropia?

    Era culto e perspicaz o suficiente para saber que muitas vezes somos nós mesmos os nossos maiores inimigos, mas não era esse o caso.

    Ilustração: Bruno Rama

    Mesmo ainda criança, o seu pai tinha-lhe passado o conhecimento suficiente para abortar de imediato mal viesse a ser invadido por más sensações que se apresentassem sem consentimento e licença para massacrar-lhe o espírito, ou a carne ou mesmo os ossos.

    Aprendeu que seria preciso ter sempre um “bisturi” à mão e nunca haver contemplações para com os invasores, cortando o mal pela raiz. Bill cresceu com um pai não-ausente, um tutor, um criador de morte.

    Tinha passado ao longo da vida por momentos muito mais conturbados e esse sentimento nunca o havia atingido, pondo em prática esses sábios ensinamentos. Não seria agora que iria ter medo fosse do que fosse. Estava aparentemente bastante treinado e era importante e valioso demais para ser invadido por essa vulgaridade mórbida chamada dor. Ou não se chamasse Bill Gates e fosse o grande profeta do nosso tempo.

    Quantas pessoas eram ouvidas e tidas em conta acerca do curso do mundo?

    Sabia também da artificialidade em que o estado actual do estranho planeta se encontrava, e da importância que isso tinha para os seus “negócios”.

    Seria essa a razão da sua angústia?

    Em principio nada lhe escapava. Estava sempre a par de todas as novidades. Haveria afinal mais marés que marinheiros? Por norma controlava tanto uns como outros. 

    Estariam lá por cima a esconder-lhe alguma coisa? Sabia que alguma casta o achava um totó, embora nunca ninguém tenha tido a frontalidade de o dizer, muito menos o desprezível Elon Musk.

    Mal pensou nisso, foi imediatamente invadido por um suor, ainda mais frio que a sua casa. Não estava a conseguir aplicar a filosofia habitual para contrariar a aproximação da dor.

    Mas a verdade é que alguma coisa se estava a apoderar cada vez mais de si, começando até a ofegar. Chegou mesmo a questionar-se se teria oxigénio suficiente para mais um dia de árduo trabalho que se avizinhava na Fundação.

    Qual fundação? Seria a própria fundação mais um holograma, uma mentira, uma historieta

    montada para iludir o terceiro mundo? Gracejou para com os seus botões de pijama. Estaria a perder o tino?

    Demasiadas dúvidas estavam a deixá-lo deveras angustiado.

    Ilustração: Ruy Otero

    Levantou-se e foi beber da sua água, uma água a que muito pouca gente tinha acesso no mundo, era cristalina o suficiente para que, só de olhar, acalmasse qualquer um, como que por magia. Era uma água que não vinha de uma nascente qualquer. Nem ele mesmo conhecia a sua proveniência.  

    Mas não, a água mágica não teve o efeito desejado. Nem pelo olhar, nem pela ingestão.

    Chamou por Melinda, embora soubesse que ela não estava. Já não estava há muito tempo. Talvez nunca tenha estado mesmo.

    Estaria Bill sozinho no mundo e não o sabia?

    Lembrou-se do enorme Charles Dickens e da necessidade da moral e sentido nas histórias. Estaria isto tudo a querer dizer alguma coisa? Demasiadas perguntas sem resposta estavam a deixá-lo cada vez mais fora de si.

    Pensou em telefonar ao Doutor Johnson, médico amigo de uma vida e que sabia de muitas coisas que Bill também sabia, mas ultimamente achava que o Doutor Johnson também andava esquisito, mas de uma forma esquisita.

    Ainda mais esquisita.

    Na última vez que estiveram juntos falou de Saturno desnecessariamente, facto a que ninguém ficou alheio na última reunião secreta.

    O Doutor Johnson estava a ficar velho e não percebia os novos contextos, a nova inteligência, as novas atmosferas que estavam a ser desenhadas, tinha qualquer coisa de bafiento, não entendia esta recente filantropia, embora fosse ou tivesse sido um grande médico, sem dúvida, mas Bill não confiava em quase ninguém.

    Estaria a ficar velho, e como acontecia a toda a gente, isso começava a perturbar-lhe o sistema nervoso de certa maneira?

    Mas Bill não era toda a gente.

    De morte percebia ele, isso estava bem estudado, agora quanto à morte de células já tinha mais dúvidas, sabia por intuição que as células muitas vezes desenvolviam comportamentos poéticos. Tomava os químicos certos para contornar esse problema ou essa vicissitude. Nunca duvidara disso, pelo menos até àquele dia.

    Bill tinha medo da poética.

    Era o seu maior medo.

    Não gostava de não ter controle sobre si, sobre o que fosse. Nascera para mandar.

    Andaria Bill porventura enganado?

    Apenas por estar a questionar-se desta forma, já se sentia doente. Era como se coabitassem dois Gates num mesmo Bill, ao ponto de começar a sentir tonturas e náuseas.

    Ilustração: Ruy Otero

    Sabia que tinha uma casa inteligente, mas não assim tanto, ainda havia muito para evoluir e não seria certamente a sua casa com as suas casas-de-banho hiper inteligentes e sustentáveis das quais se orgulhava muito, que lhe resolveriam o problema das tonturas. De que serviria uma casa daquelas se o espírito baqueasse…

    Lembrou-se do Steve que também foi desta para melhor fora de tempo, sim desse Steve que ele tanto odiara e invejara ao longo da vida, desse Steve que tinha melhor gosto que ele, que era adorado como se fosse uma rock star e que não tinha medo de calçar Asics Tiger de corrida hiper coloridas, contrastando com o minimalismo Calvin Klein. O mesmo Steve que o tinha ofendido directa ou indirectamente vezes sem conta, ao ponto de o fazer chorar nalgumas situações.

    Não estava a perceber bem porquê, mas devido à fraqueza momentânea daquele despertar violento e anormal, lembrava-se agora do Steve que muito trabalho lhe havia dado. O que é que aprendera com Jobs que lhe valesse agora? 

    Nada, concluiu e isso até lhe trouxe algum conforto momentâneo.

    De que lhe serviria o cinismo astuto que aprendera com o homem da maçã num momento tão fora de controle como aquele?

    De nada.

    Teve de sentar-se no sofá para não sucumbir ao desmaio eminente. Estava sozinho e não encontrava a porta do quarto devido às tonturas que apareciam como se fossem o prato principal do dia. 

    Uma semana antes tinha dado várias entrevistas a umas cadeias de televisão que estavam “ingenuamente” loucas para saber o que o filantropo mais filantropo do mundo achava da terceira guerra mundial que o mesmo previra, da nova pandemia que o mesmo anunciara e quais os seus prognósticos que imaginavam grande prejuízos para as consequências das alterações climáticas que já por aí andavam e que o próprio também previra, tendo no entanto sempre uma solução.

    E agora estava ali na cama, como que abandonado a si próprio, entregue à sorte.

    Algo não estava a encaixar no guião.

    Seria culpa dos guionistas? Seria ele apenas o produtor, sabendo que qualquer Goldwyn Mayer tinha o seu fim como toda a gente. O pai não lhe ensinara isso.

    Questionou-se.

    Ora, um profeta não pode ter dúvidas nem tonturas…. Pensou.

    Estava o mundo a sofrer com as suas sábias previsões, portanto, não seria possível estar assim de rastos. Um profeta não hesita. Mas então que fazer?

    Ilustração: Ruy Otero

    Seria Bill um profeta a sério? Teria o mundo a possibilidade real de ter profetas, ou estaria o planeta a ficar refém da estupidez generalizada?

    Estaria a bola-mundo às voltas sem rumo, assim como o seu estômago? A Inteligência Artificial estava a fazer raccord com a estupidez natural?

    Encontrou finalmente a porta certa e Bill voltou para a cama. Ao fim de uns terríveis minutos sem segundos voltou a adormecer, cheio de dúvidas.

    Sonhou com flamingos a saltitar com graça e em harmonia sobre verdes pradarias em croma, invadidas pela luz suave do amanhecer californiano. 

    Quando acordou novamente, percebeu que alguma coisa continuava errada.

    Já não se sentia tonto, nem agoniado, mas sentia-se anormalmente leve.

    Leve demais, como se não tivesse peso.

    Talvez tivesse o peso de uma conspiração.

    Talvez o mundo fosse só e unicamente uma grande conspiração contra o próprio mundo. Uma auto-conspiração. Parecia que alguma coisa estava a chegar ao fim mas desta vez, Bill não tinha solução para o que aí vinha. Até parecia que já não estava cá.

    Era esquisito mesmo, (os americanos dizem weird. Toda a gente diz weird).

    Já na casa de banho percebeu que o espelho desaparecera do sítio, mas da janela continuava a ver-se uma imensa pradaria cheia de pássaros e árvores ainda sem denominação, de uma beleza refrescante e acolhedora, embora não tivessem uma forma comum e reconhecível pela biologia.

    Bill Gates imaginou-se a voar, mas depois voltou a si e conseguiu encontrar a espuma da barba.

    E depois desmaiou novamente.

    Não se percebia bem. Tudo começava a ter a forma de um pesadelo.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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