Etiqueta: Visto de Fora

  • O dia mais bonito

    O dia mais bonito


    “Somos muitos, muitos mil para continuar Abril” é uma das frases mais repetidas a cada aniversário da Revolução dos Cravos. A frase terá diversas interpretações, admito; a minha é que o 25 de Abril de 1974 ainda não cumpriu todos os seus objectivos.

    Temos democracia, que era o objectivo principal, mas falta-nos justiça social, igualdade, prosperidade, solidariedade e até honestidade nas elites que nos dirigem.

    A prova que Abril ainda não está cumprido é que, também por esta altura, aparecem sempre os desiludidos da democracia que enaltecem os benefícios do Estado Novo. Se há momento da vida em que não podemos meter um “mas” na discussão é quando comparamos um regime democrático com uma ditadura. Por pior e frágil que seja a democracia, nada é pior do que viver em ditadura, sem liberdade e sem opinião.

    Um dos desiludidos da democracia é o meu colega de jornal, Luís Gomes, que escreveu ontem um texto sobre o 25 de Abril que me deixou os olhos a arder para conseguir chegar ao fim. Percebo agora melhor o sofrimento de liberais e simpatizantes da extrema-direita quando me tentam ler.

    O Luís começa a prosa com o seguinte parágrafo: “Na verdade, nunca o quase milenar povo português viveu debaixo de tanta propaganda, mentira e manipulação. Os últimos três anos foram paradigmáticos, nunca como agora a Administração Pública foi tão obscurantista: nada informa, nada partilha, nada publica, apesar da lei e a Constituição da República (CRP) obrigá-la a ser transparente.”

    Isto leva-me a pensar que, se calhar, seria boa ideia começar com uma piada para desanuviar o clima.

    Portanto, nunca o povo português viveu no meio de tanta propaganda, mentira e manipulação como agora, é isso?

    Portanto, tínhamos um povo que foi ensinado que a salvação era uma pessoa e um regime de partido único, que foi enviado para uma guerra a milhares de quilómetros de casa sem saber porquê e a quem diziam o que pensar e o que escrever…

    Nunca se tinha visto tamanha manipulação até aos dias de hoje, é isso?

    No mínimo, temos aqui um conceito bastante elástico sobre o que é a manipulação das massas.

    Sobre a parte em que o Luís afirma que a Administração Pública nada informa nos dias de hoje, eu penso logo no lápis azul de outros tempos.

    A informação chegava, de facto, mas era previamente seleccionada consoante os interesses do regime.

    Com todos os defeitos da democracia, meu caro, ainda assim prefiro os dislates do Correio da Manhã. É um facto que falam em mortes todos os dias, mas, até ver, ainda não arranjaram nenhuma por conta própria.

    Há uma frustração constante na prosa do Luís com a pesada carga fiscal que se abate sobre os portugueses. Aqui estamos de acordo. Também acho que o Otelo não planeou isto para o Costa nos ir ao bolso desta maneira. O meu colega diz até que o Estado Novo foi “de longe e sem qualquer margem de dúvida aquele que mais enriqueceu, em termos relativos, o povo português nos últimos 200 anos”.

    Ao contrário do Luís, eu não sou economista e não domino os termos técnicos do enriquecimento, de modo que resolvi ir ler os mestres da teoria do enriquecimento. E da liberdade, já agora.

    Em 1962, disse António de Oliveira Salazar: “Um país e um povo que tiverem a coragem de ser pobres são invencíveis”. Foi pena aquele incidente desagradável com a cadeira porque, quiçá, Salazar pudesse ter vivido o suficiente para perceber a quantidade de ricos que semeou no povo português. Foi pena.

    O trauma com o Estado Social parece vir de longe. Há pouco mais de três anos, noutro texto desanimado sobre o 25 de Abril, no jornal Eco, escreveu o Luís: “Em 1965, em plena guerra colonial, o estado português tributava cerca de 15% do nosso rendimento. Actualmente [2020], confisca 35%, um máximo histórico, com uma agravante: não parece que a coisa fique por aqui, dada a voracidade por mais receita fiscal e a necessidade de alimentar as clientelas que se alimentam do orçamento de estado”.

    Confesso que ao ler isto fiquei com pena de não ser vivo no glorioso ano de 1965. Imagine-se o regozijo daquela malta com 15% de impostos – curiosamente, o número mítico (flat) defendido pelos liberais – a viver como uns lordes, enquanto davam o salto para fugir da guerra ou tentavam sobreviver nas matas africanas.

    O Luís esqueceu-se de referir os 0% de impostos com que os 10 mil soldados portugueses mortos no Ultramar foram agraciados.

    Portugal foi um dos países europeus que não saiu arrasado da II Guerra Mundial e com dinheiro em caixa. Tal como a Suécia, curiosamente.

    Aqui pelo Norte, eles colocaram o dinheiro em habitação, em escolas e em hospitais – opções de uma democracia.

    Em Portugal, uma ditadura de partido único, enquanto castrava as mais elementares liberdades, empobrecia numa guerra sem sentido, de 13 anos, a milhares de quilómetros de distância. Pelo meio, ainda arrasava uma geração de jovens ou os condenava à emigração.

    O país profundamente atrasado, isolado e pobre, que cobrava menos impostos, prendia e matava pessoas por manifestarem opinião divergente. Tinha, em 1970, depois de 44 anos de ditadura, 25% da população analfabeta. Repara Luís: não eram pessoas com a quarta classe ou com o secundário incompleto. Eram analfabetas.

    Hoje, com todos os defeitos da democracia, este número é inferior a 3%. É verdade que alguns destes, que entretanto aprenderam a ler e fizeram a quarta classe, acabaram a votar no Chega, mas, compreenderás, como dizia Churchill, que de entre todos os sistemas imperfeitos, este – a democracia – é o melhor.

    Não há, por mais queixas que possamos ter do Centrão que nos governa desde sempre, lugar a um “mas” algum. A pior democracia é melhor do que qualquer ditadura. Ponto.

    Podemos votar, podemos mudar, temos alternativas. Tu, desiludido confesso da Revolução dos Cravos, podes fundar um partido ainda mais liberal do que a Iniciativa Liberal, e tentar angariar votos com uma política da selva: nada de impostos, nada de Estado Social, cada um por si. E está tudo bem.

    Se outros pensarem como tu, podem mudar as políticas do Estado. Se fosse na gloriosa década de 60, e não estivesses contente com as políticas do regime, ias arrefecer as ideias para Peniche e se continuasses a reclamar, ias fazer sauna para a “Frigideira” (Tarrafal), em Cabo Verde.

    Eu prefiro pagar mais impostos, ainda assim, e ficar em brasa quando ouço tudo o que vai do PS para a direita, inclusive.

    Repara: uma das vitórias de Abril é, por exemplo, poderes escrever uma crónica destas e seres publicado. A beleza da conquista da liberdade e do direito à opinião, de que hoje beneficias.

    E, curiosamente, uma das razões pela qual Abril está incompleto é exactamente a mesma: 49 anos depois, ainda alguém conseguir encontrar pontos de contacto com o Estado Novo.

    A Revolução dos Cravos foi das poucas coisas em que acertámos enquanto povo. Estamos cá para a continuar. Sempre.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Bem-feito por portugueses, fora de Portugal

    Bem-feito por portugueses, fora de Portugal


    Num espaço de poucos meses, o meu cenário profissional alterou-se. Os prazos esgotaram-me e as equipas de Engenharia, responsáveis pelo desenvolvimento de carros eléctricos, passaram a trabalhar a contra-relógio.

    Há dois problemas base nesta indústria dos popós.

    O primeiro é termos deixado de produzir veículos que nos levam de A para B para passarmos a produzir plataformas de entretenimento em cima de rodas. Ou seja, iPads com motor.

    street time lapse photography

    O segundo, consequência do primeiro, é que as pessoas se aborrecem depressa e, tal como nos iPhones, é preciso andar constantemente com novidades no mercado – ou, como diria Steve Jobs, a vender a mesma coisa com um novo design a um preço mais alto.

    Há 10 anos, um carro desenvolvia-se em quatro anos e durava 10. Agora, cria-se em pouco mais de um ano e ao fim de dois já precisa de uns retoques. Óptimo para a bolsa de emprego, péssimo para os Verões em casa com a família.

    Há, na verdade, ainda um terceiro problema, desde os primórdios, quando se contratou o primeiro profissional de propaganda: por norma, os génios do mercado e artistas do marketing prometem, naquelas galas de apresentação, coisas sem fazerem a mínima ideia daquilo que custa inventá-las.

    Assim, os departamentos de Engenharia descobrem que devem criar um carro com asas, movido a azeite, não poluente, que se desloque sozinho e que venha com cinema e máquina de pipocas – e, de preferência, pronto para o mês que vem.

    man in black jacket standing beside white sedan

    No meio do arranca-rabo que acontece, e das cabeças que vão rolando, ouço gritos. Nunca tinha ouvido gritos, e muito menos este tipo de exigência, na pacata e tranquila Suécia. Não se importa apenas o investimento chinês, mas também, aparentemente, alguns métodos de trabalho. O meu empregador é uma multinacional chinesa do sector automóvel.

    No meio desta confusão e loucura em que se tornaram os sete dias da semana – sim, sete –, aparecem seis portugueses: uma equipa inteira de putos, com poucos meses de experiência, mas que, ao fim de poucos dias no lagar, já estão a produzir azeite de finíssima qualidade.

    Engenheiros roubados a Portugal que chegam aqui sem nunca terem recebido um salário desse lado, e que, em pouco tempo, se adaptam a tudo o que lhes aparece pela frente: ao clima que não ajuda ninguém, ao modo de vida, aos ritmos de trabalho, às tecnologias que nunca viram. Aprendem enquanto vão fazendo, e destacam-se perante colegas muito mais velhos, com anos disto.

    Olho para eles, e pergunto-me de onde virá tanta fome de aprender e, especialmente, tanta garra de colocar no mercado algo que nunca conseguirão comprar. Aqui entre nós, sinto algum orgulho neles. Não são meus filhos e, até há pouco tempo, nem os conhecia, mas a contribuição, entre tantas equipas, eleva, na minha opinião, o nome de Portugal.

    white metal frame on brown wooden table

    Por cada um que chega e apresenta bons desempenhos, há sempre alguém do lado de quem contrata que pergunta: “há mais destes por lá?”.

    E, dessa forma, acabam por ir abrindo caminho para o seguinte. São elogiados. Ouço-os várias vezes a receberem elogios. Imagino que fiquem satisfeitos com o reconhecimento numa fase tão precoce da carreira.

    O que seria do nosso país se conseguisse reter todo este talento, nas diversas áreas, que emigram aos milhares todos os anos?

    As diferenças de formação são também óbvias entre portugueses e outras nacionalidades. Não vou aqui referir quais são essas nacionalidades, mas direi, pelo que vejo em redor, que os tempos de aprendizagem são muito menores para estes miúdos que fogem dos lusos subúrbios e se lançam na selva da emigração sem grandes dúvidas ou receios.

    O ensino público português é bom. Pelo menos, na minha área, posso perfeitamente comprovar que o investimento feito não é desperdiçado. Pode não ir para o PIB português, mas vai, com alguma certeza, para o PIB de um país desenvolvido qualquer.

    brown wooden table and chairs

    E pergunto-me: onde é que errámos? Como é que ficámos tão pobres? De que forma é que fazemos este pessoal regressar e produzir em Portugal? São as três questões que coloco quase diariamente.

    Triste fado de um país que forma, e bem, para benefício de outros.

    Enquanto isto, para o ano, quando virem o novo e pequenino Volvo eléctrico na rua, ou o magnífico Polestar 4, saibam pelo menos que uma fatia do que lá vai dentro foi exclusivamente feito por portugueses.

    E se tiverem um, aproveitem. Se forem como eu, que só trabalho neles, mas nunca os compro, em todo o caso apreciem, com ligeiro orgulho lusitano, quando passarem na faixa da esquerda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Montenegro e a chapada em Ventura

    Montenegro e a chapada em Ventura


    Luís Montenegro foi à CNN fazer serviço público. Começo com um elogio para dizer, em seguida, que acho o presidente do PSD um fraquíssimo candidato e uma óptima notícia para António Costa.

    Ainda assim, e finalmente, durante a entrevista a Maria João Avillez, respondeu ele à questão que há meses lhe faziam: “vai com o Chega?”

    Não, não vai. Pela primeira vez desde a era Rui Rio, que, à mesma questão, ele respondia “nim”. Desta vez, Montenegro foi claro na demarcação dos limites da cerca sanitária imposta ao Chega.

    Luís Montenegro

    Não quer coligações com políticos xenófobos, racistas e populistas. Seja no Governo ou no apoio parlamentar como acontece, por exemplo, na solução de governo encontrada na Suécia – onde os nacionalistas viabilizaram o Executivo de direita, a troco de várias medidas impostas no programa de Governo.

    A atitude de Montenegro segue a tendência que, se a memória não me atraiçoa, os Liberais, na altura pela voz de Cotrim Figueiredo, já tinham iniciado nas últimas legislativas: recusa de qualquer coligação com o Chega.

    Esta é uma excelente notícia para quase todos os partidos. Desde logo para o PS e para a esquerda que ganham novo fôlego. Uma coligação com o Chega valeria ao PSD, com as sondagens de hoje, um Governo de direita garantido. Os Liberais também poderão aproveitar a boleia de Montenegro e cativarem alguns votos à direita, de forma a “substituírem” o Chega nessa suposta aliança. Montenegro, como é óbvio, não fechou a porta a outras coligações porque sabe que, sozinho, terá dificuldades em vencer.

    André Ventura reagiu como se esperaria a esta declaração de interesses, ou seja, com mais um disparate: vai avançar com a candidatura para primeiro-ministro sozinho e disputar a vitória com o PS. É esta a estratégia. Pessoalmente, acho bem. E se fosse líder da IL estaria agora a esfregar as mãos de contente, pelo maná que me estaria a cair no colo.

    André Ventura

    Voltemos à entrevista. Maria João Avillez cortou a palavra de cada vez que Montenegro falou no PS e obrigou-o a comprometer-se com a posição do Chega. Essa parte da entrevista foi engraçada, uma vez que ele, tal como Rui Rio, começou por fugir ao tema dizendo que era cedo, que ia lutar por maioria absoluta e que ninguém questionava o PS a propósito das alianças com a “extrema-esquerda” – um conceito muito próprio. Até disse que alguma esquerda portuguesa apoiava a invasão da Ucrânia por um Governo de extrema-direita (Montenegro também está baralhado como outros).

    Avillez, como quem estava a tourear, só descansou quando o deixou de joelhos, e o homem lá disse que racistas e xenófobos não, e que, nesse perfil, nem CDS ou IL encaixavam. Por esta altura do campeonato, se para ver o Chega longe tivermos que aturar o Nuno Melo, até se pode considerar um mal menor.

    Fico agora curioso para ver se Luís Montenegro manterá a palavra quando as sondagens forem mais a sério, e, já agora, para perceber que eleitorado mais conseguirá o Chega convencer.

    Terão atingido o pico nas últimas legislativas?

    António Costa

    Eu acho que não. Até considero que as trapalhadas da maioria socialista estão a fazer, essencialmente, campanha eleitoral a favor de André Ventura. Ainda assim, não acredito que sozinho o Chega tenha capacidade de ameaçar a governação. Criada a cerca sanitária, se não for quebrada por ninguém, talvez seja possível viver e reduzir a quantidades de racistas e xenófobos na Assembleia da República.

    A esperança da esquerda reside agora, e curiosamente, nos Liberais. As voltas que a vida dá.

    Também não é um cenário animador, mas entre as trapalhadas do PS, uma coligação entre PSD/IL e qualquer coisa que meta o Chega, apesar de tudo, o cheiro não é o mesmo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os julgamentos em praça pública

    Os julgamentos em praça pública


    Há coisa de um par de anos, numa das minhas habituais deslocações entre Suécia e Portugal, julgo que no aeroporto de Frankfurt, entrei num avião que me traria a Lisboa.

    Ao meu lado estava um dos arguidos do processo Casa Pia. Por esta altura já ele tinha passado por todo um calvário público. Detido para interrogatório, preso preventivamente vários meses e constituído arguido. Nunca chegou a ir a julgamento, foi ilibado e o Estado Português foi condenando a pagar-lhe uma indeminização. Contudo, o julgamento público estava feito e a sentença dada: aquele homem era um pedófilo.

    flock of birds flying under blue sky during daytime

    Quando me sentei ao lado dele, apesar de saber todos estes detalhes que acima escrevi, interrogava-me, apenas, se de facto o teria feito.

    O julgamento na praça pública fica para a vida.

    Duram dias, semanas, meses.

    Moldam a opinião de todos e, quando anos depois aparece a notícia de que, afinal, estava tudo errado, e o tribunal ilibou o Joaquim ou o Manel, já ninguém lê o rodapé. 

    A credibilidade de uma vida, para quem a tem, destrói-se em dois dias com um par de insinuações sem qualquer prova material.

    Quer isto dizer que as insinuações são sempre falsas e os visados inocentes? Não. Não sei. Não faço ideia. 

    Quer apenas dizer que nós, inconscientemente, traçamos o veredicto na nossa cabeça e descartamos tudo o que o tribunal venha a dizer posteriormente. É humano. Não sei bem se será racional, mas, provavelmente, estará de alguma forma ligada com a nossa pouca fé no sistema de justiça português.

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    Boaventura de Sousa Santos é o mais recente exemplo deste tipo de casos.

    Tenho pouca simpatia pelo dito, e certamente, vindo eu da área de ciências exactas, tenho alguma dificuldade em encontrar o brilho que lhe apontam no pensamento alternativo. Para Boaventura de Sousa Santos, isto do conhecimento científico ser hierarquicamente superior, é uma chatice.

    Há que trazer à tona coisas que se sentem, mas não se comprovam, deixando o detalhe das evidências para outras calendas. Interpretação minha do pensamento dele. Ou senso comum, como ele diria.

    Isto para dizer que me custa escrever o que virá depois, mas que me parece lógico e razoável. Ao contrário do Boaventura, eu aprecio ciências exactas e provas concretas. E acho perigoso e pouco recomendável que, à mínima insinuação, uma pessoa se transforme em culpada. Mesmo que seja.

    De entre as várias acusações que lhe são dirigidas, fiquei curioso com uma em particular: uma aluna, em 2014, alegadamente terá rejeitado uma investida de Boaventura no apartamento deste. Diz ela que as portas se fecharam a partir daí e que o assédio sexual se tornou moral.

    city with high rise buildings under white clouds during daytime

    Tenho sempre a tendência, lá está, vinda do julgamento público, de achar que homens em locais de poder se aproveitam desse poder. Parece-me simples de encaixar essa ideia. Mas não consigo perceber porque vai uma aluna para casa de um professor, com 70 anos de idade, à noite, discutir um trabalho que poderia fazer na universidade e quando, ela própria, já relatava assédio sexual da parte do mesmíssimo professor. É no mínimo esquisito.

    E, no fim de todo este embrulho, com todas as queixas envolvidas, e já cinco anos depois de voltar ao seu país de origem (Brasil), a aluna volta a aceitar um convite de Boaventura de Sousa Santos para se encontrarem na Bahia. Nesta altura uma mulher com 35 anos, ou perto disso.

    Perdoar-me-ão, pelo menos, de me sentir confuso com esta lógica do pensamento.

    Será Boaventura mais um velho licencioso, predador e abusador do poder que a universidade lhe atribuiu? Não faço ideia e aliás, agora que penso nisso, vou colocar um “alegadamente licencioso” para não ser processado como o embaixador Seixas da Costa ao referir o óbvio sobre Sérgio Conceição.

    Acredito que seja um tipo a evitar, mas, mesmo para personagens destas, por mais odioso que seja o papel de advogado do diabo, não chega mandar umas bocas e ir buscar os paus para a fogueira da inquisição. É preciso mais.

    shallow focus photography of padlocks in steel cable

    Um dos professores a quem uma das alunas se queixou terá dito que “Boaventura é brilhante, mas já todos sabemos que é assim”.

    Se, de facto, é esse o caso, deve ser facílimo apanhá-lo com o pé em ramo verde. Sugiro que levem para as reuniões um smartphone com o gravador ligado. É absolutamente impercetível e funciona como o Javisol: deixa tudo claro em poucos minutos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Páscoa com vista para o Vaticano

    Páscoa com vista para o Vaticano


    Como bom ateu que sou, trato as religiões todas por igual. A nenhuma reservo particular importância na minha vida e vejo-as, quase todas, como motivo de divisão e conflito entre as pessoas.

    Entro numa basílica católica, numa catedral ortodoxa, numa mesquita secular ou num templo budista com o mesmo interesse: a arquitectura, os materiais, as decorações, os motivos.

    Gosto de imaginar como é que se construíram monumentos, tão magníficos e imponentes, há 500 ou 600 anos. Ignoro o que representam ou como foram financiados. Concentro-me na obra e aprecio a beleza daquilo que o Homem consegue fazer.

    A Páscoa nunca teve outro significado para mim que não fosse a de, enquanto criança, abrir um ovo de chocolate. Era uma desculpa para doces. Ponto final. Lembro-me de, há uns anos, na Igreja da Natividade (Belém-Palestina), ver alguns visitantes ao suposto sítio onde nascera Jesus a beijar a salva de prata que assinalava o local. Entre choro e comoção, demonstravam a sua fé. Poucas horas depois, via judeus, a alguns quilómetros dali, encostados, entre pedidos, ao Muro das Lamentações (Jerusalém).

    Nada, absolutamente nada, nestes rituais cruza qualquer um dos meus caminhos ou pensamentos. Respeito a fé alheia, ainda que não me consiga rever na devoção. É como sandes de leitão: respeito quem a coma, mas não percebo por que o fazem.

    Dou por mim a cruzar a Praça do Vaticano no fim-de-semana da Páscoa. Não vim para aqui por acaso, mas a altura do ano foi uma mera coincidência. Passaram nove anos desde a última visita à Cidade Eterna, se a memória não me atraiçoa.

    São quase 19 horas, de um sábado, e a interminável fila para ver a esplendorosa Basílica de São Pedro tem agora os seus últimos resistentes. Tal como eles, aperto o passo e penso que vou fazer uma visita nos últimos cinco minutos de abertura diária. 

    Quando lá entro, perco-me a olhar para cima e admiro a imensidão da catedral. Há gente sentada. Muita gente sentada. Guardas por todo o lado e senhores com fato que distribuem velas e livros de canções. Imagino que tenha outro nome técnico, mas é aquele livro que as pessoas na missa usam para fazer o coro no refrão da música. Julgo que me percebem.

    Vou ouvindo uns zunzuns e as portas fecham. Vai haver missa e eu estou lá. Pensava que, na Páscoa, só se fazia aquela missa do Domingo de manhã que passava sempre na TVI e que, por norma, nos levava a mudar de canal. Afinal não, também há qualquer coisa no Sábado.

    Baixam as luzes e pedem silêncio para a entrada do Santo Padre. Francisco vai mesmo contrariar a frase “ir a Roma e não ver o papa” e, ao fim de 20 minutos, aparece no meio de vários cardeais, guardas e um périplo digno de uma entrada em cena dos Queen.

    A missa corre em várias línguas, Português de Vera Cruz incluído. Estão milhares de fiéis dentro da Basílica. Imagino que fossem fiéis, talvez alguns fossem apenas pessoas que pensavam ver as cúpulas da Basílica de São Pedro antes da hora de encerramento.

    O Papa mal consegue falar ou mexer-se. É ajudado para se levantar, para se deslocar, para se sentar. E até para falar. Há um clima de santidade no ar. Há um luxo imenso nas paredes, nas roupas, nos ornamentos. Tudo brilha.

    Saio de lá a pensar, como em todas ocasiões semelhantes, que foi uma experiência interessante. Digo-o sem preconceitos.

    Da mesma forma que gostava de entrar em Meca (o que infelizmente me é vedado), gostei de ver tantos crentes numa cerimónia com o representante de Deus na Terra. Julgo que é assim que os católicos o definem, mas certamente estarei a ofender alguém.

    Fora das paredes do Vaticano, contudo, o brilho do ouro é substituído pela realidade italiana. Dezenas de sem-abrigo dormem nas arcadas, ali a poucos metros da praça onde, no dia seguinte, Francisco apelará à paz na Ucrânia e ao combate à pobreza.

    Todas as noites, quando os turistas se vão embora e só os polícias ficam na Praça de São Pedro, cartões com cobertores descobrem um canto protegido. Tendas de uma pessoa são montadas. Colchões são arrastados.

    A ironia de uma noite passada, ao relento, com vista para um dos mais ricos Estados do Mundo, onde se prega a fé cristã e a ajuda ao próximo.

    Ali, a poucos metros do Banco do Vaticano e de tesouros oferecidos pelas cortes europeias durante séculos, uma riqueza incalculável, insuficiente para dar guarida ou uma sopa quente a quem faz das arcadas do Vaticano, a sua casa. Há lá ironia maior?

    beaded brown rosary

    Em 2021, ao fim do primeiro ano de pandemia, cerca de 5,6 milhões de pessoas, onde se incluíam um terço de todos os emigrantes, vivia em risco de pobreza. Esse período fez com que 22% da população italiana ficasse em risco de não ter acesso a comida.

    Lembremo-nos que Itália foi dos países europeus que mais sofreu com confinamentos. A população empobreceu e teve, nos últimos anos, várias crises de refugiados por causa de intervenções militares desastrosas.

    Líbia e Síria são alguns dos exemplos. Desde 2022, receberam mais uma onda de refugiados da Ucrânia e, como todos os europeus, vão perdendo poder de compra, enquanto são obrigados a pagar a disputa entre russos e americanos, com o patrocínio dos idiotas úteis da União Europeia.

    Nunca vi, em Itália, tantas pessoas na rua a viver em caixotes como desta vez. Maradona, outro génio meio louco, disse em tempos numa afronta à Igreja Católica que, se de facto estivessem preocupados com a fome em África, em vez de rezarem, podiam começar a raspar as paredes do Vaticano. Bem sei que soa a demagogia, mas convenhamos, era de facto mais útil.

    black ceramic bowl with rice and spoon

    Ursula von der Leyen foi à China de braço dado com Macron, ofender um pouco o presidente chinês e complicar ainda mais a nossa vida. Macron, com Paris a ferro e fogo, foi meter-se numa aventura para a qual não tem arcaboiço, como lhe fez entender Xi Jinping.

    Von der Leyen levou o recital do costume e procurou, achava ela, explicar o que os chineses devem fazer. O resultado é uma ofensa que os afastará ainda mais, novas mortes ucranianas e mais empobrecimento europeu. Aquele que tem varrido a Europa no ano pós-pandemia e que é visível de Kiev ao exterior das ricas paredes do Vaticano. 

    Enquanto pensava nisto, voltava a passar nas arcadas do Vaticano, a poucas horas da missa de Domingo. Tudo limpo. Tudo impecavelmente limpo e vigiado pela polícia. Os caixotes foram dobrados, as tendas desmontadas, os sem-abrigo foram para parte incerta.

    person in red sweater wearing silver ring

    Como vos explicarão em Hollywood, importa o que a câmara capta. Tudo o que está fora do enquadramento não existe. Domingo, o Vaticano aparece em todas as televisões do Mundo. Há que brilhar. Há que rezar pelos pobrezinhos sem os ver.

    Segunda-feira tudo volta ao normal. Com os caixotes, a vista do saco de cama para a Basílica, a hipocrisia da fé e o desinteresse de quem nos rege.

    Deve ser por isso que nunca, fé alguma, me seduziu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Kuwait, o que celebrais?

    Kuwait, o que celebrais?


    Sempre que consigo, faço desvios em viagens aéreas para ir a outros sítios que, de outra forma, não me levariam a sair de casa propositadamente. Assim, para quem for à Índia, partindo da Europa, como foi recentemente o meu caso (ver texto anterior sobre o casamento do meu amigo Rohit), os países do Golfo Pérsico são um excelente ponto de paragem e uma forma de conseguir ligações mais baratas.

    Porquê? Acho que lhe podemos chamar o mercado da oferta e da procura. Com milhões de indianos espalhados entre o território que vai do Kuwait ao Dubai, passando pelo Qatar e Bahrain, é normal que exista uma enorme oferta de voos para as principais cidades indianas e a um baixo custo, pois a procura é muita.

    Por isso, acabei por dar por mim no Kuwait, um pequeno país do tamanho do Alentejo, entrincheirado entre o Iraque e a Arábia Saudita. No meu imaginário, o Kuwait era aquela estrada, no meio do deserto, cheia de tanques destruídos com a passagem da Operação Tempestade no Deserto. Gosto de visitar sítios onde a História se fez. Era o meu principal passatempo até ao início dos confinamentos, e tento agora, três anos depois, continuar onde parei.

    Ainda não tinha saído do aeroporto e já estava a ter um daqueles momentos de “o que faço eu neste fim de Mundo?”. Acontece-me muito. Consigo encontrar interesse em absolutamente qualquer recanto deste planeta, mas, não raras vezes, quando lá chego questiono-me por que saí sequer de casa.

    Um polícia no aeroporto começa a virar a minha mochila e encontra Xanax. Pede-me pela receita médica que, obviamente, não tenho – e pergunta-me então se tenho ataques de pânico. Digo-lhe que sim, no ar. Ele diz que aquilo é ilegal no Kuwait e que posso ser mandado parar na rua e ir para a prisão.

    É bom lembrar que estou num país onde drogas e álcool dão pena de prisão e, em alguns casos, sentença de morte. Explico-lhe que se me tirar os comprimidos sobram-me duas hipóteses. Ficar no Kuwait o resto da vida, ou arranjar um autocarro que atravesse o Iraque em direcção à Europa. No avião é que não entro sem aquilo. Ele sorri. É um gordinho de barba, com aspecto de quem está na primeira semana de trabalho e quer mostrar obra feita ao seu superior.

    Eu procuro as saídas do humor, é sempre por aí que vou. Certo dia um militar ucraniano, na fronteira com a Polónia, apontou-me uma metralhadora e pediu dinheiro para me deixar seguir. Eu bati nos bolsos e disse-lhe que não tinha notas, e perguntei-lhe se aceitava cartão.

    Na impossibilidade de disparar a 100 metros da linha da União Europeia, ele lá me deixou ir sem achar piada ao meu material de comédia. O mesmo sucedeu na fronteira do Egipto e Israel, com três egípcios a dizerem-me que sem pagar extra ia ficar muito tempo ali parado, ao que respondi que por mim tudo bem, podia ficar ali com eles e fazer adeus ao israelita que ainda me conseguia ver na barraca a 50 metros dali. O mesmo israelita que me tinha feito 100 perguntas, entre as quais se eu falava árabe.

    Não sei bem por que razão me meto sempre nestas alhadas, mas parece que devo gostar, porque vou sempre lá cair. Ando há meses a ver se convenço alguém a vir comigo a Minsk e, surpreendentemente, ninguém acha a ideia apelativa.

    Por fim, o polícia novato lá me deixou sair do aeroporto, depois de falar com o superior hierárquico, que não se quis chatear por quatro Xanax. Quando cheguei cá fora, pensei que uma cervejinha é que era, para aliviar aquele stress, mas lá está, também é ilegal, pelo que bebi antes um café com caramelo, no Starbucks que estava ali em frente. Ah pois… os americanos não deixaram apenas as mangueiras para sugar petróleo quando estavam a “trazer democracia”.

    Reparei que as ruas estavam cheias de fervor patriótico. As cores da bandeira por todo o lado, monumentos fechados, carros com bandeiras, crianças com camisolas que diziam “Free Kuwait”. Uma semana de feriados para comemorar o Dia Nacional, o Dia da Libertação, e de alguma forma isso tinha um toque de Carnaval, porque as pessoas faziam guerras de balões de água no meio do trânsito. Estava um pouco baralhado com a História e os parcos conhecimentos de inglês dos locais também não me ajudaram muito.

    Dei uma de Relvas… e fui estudar. Os dias 25 e 26 de Fevereiro marcam, respectivamente, o Dia Nacional e o Dia da Libertação do Kuwait. O primeiro comemora a chegada ao trono, em 1950, de um emir com cerca de dezassete nomes, que ficou famoso por ter assinado o tratado que acabou com o protectorado britânico. O segundo, como se perceberá pelo nome, regista o dia em que os americanos “devolveram a democracia” e correram com os iraquianos.

    Impecável do ponto de vista do sincronismo temporal a entrada do exército aliado no Kuwait, permitindo juntar duas datas importantes numa semana e reduzir assim os custos com as festas para as gerações vindouras.

    people walking on street during daytime

    Paradas militares, polícia por todo o lado, barcos a dar espectáculo com canhões de água, aviões de combate a executar manobras nos céus da capital. Uma demonstração de poder bélico algo patética, para quem perdeu o controlo do seu território em apenas dois dias e que, sem os poços de petróleo que normalmente ajudam às “devoluções de democracia”, seriam hoje mais um quintal anexado como aqueles no Terceiro Mundo que ninguém quer saber.

    Mas como tinham petróleo, já se sabe, passam a ser um “parceiro do Mundo Livre e Democrático”.

    Ainda assim compreendo a festa da libertação. Para os locais, mesmo sabendo que 1991 se resumiu a jogos de poder pela conquista de combustíveis fósseis, a consequência é que, de facto, recuperaram a sua independência. Não a liberdade ou democracia, que nunca as tiveram, mas livraram-se de um invasor assumido.

    Já a celebração pela ascensão ao trono do emir dos vários nomes é que não percebo bem.

    O que é que há para comemorar num regime onde a liberdade de expressão é controlada, os direitos (especialmente das mulheres) cada vez mais restringidos e o direito a governar nasce no berço?

    people on beach during daytime

    O que celebra uma sociedade absolutamente desigual, onde uma minoria de 1,5 milhões (os nativos do Kuwait) é controlada por uma família pornograficamente rica, e tudo o que cresce e se desenvolve é providenciado por um exército de três milhões de escravos da era moderna, entre os quais cerca de um milhão de indianos?

    O que comemora uma sociedade tão desigual como esta, tão desequilibrada e tão injusta?

    Os albaneses, em maioria no sul da Sérvia, reclamaram um país e surgiu o Kosovo.

    O Donbass vai pelo mesmo caminho.

    O argumento de maiorias que crescem num território e depois exigem a independência ou a anexação são clássicos da História. Tirando no caso dos curdos e dos palestinianos, normalmente este argumento colhe quando apoiado por algum império. Dei por mim a pensar que todos estes escravos, que já são a maioria nos países do Golfo Pérsico, ainda podem um dia servir de desculpa para a Índia os anexar.

    Era engraçado ver ditaduras a serem anexadas por democracias e os Impérios do Bem e do Mal a pensarem se alinhavam e repartiam o petróleo (ou “liberdade” como George Bush pai lhe chamou) ou se entravam em novas guerras pelo controlo total.

    rock formations

    O mundo seria bem melhor sem petróleo. Sem castas. Sem escravos.

    É nestas alturas que penso no pequeno mas existente elevador social em Portugal. Há hipótese, há alguma esperança, de se evoluir pelo trabalho.

    Ali, no Kuwait, não. Se nascem miseráveis, vão morrer miseráveis, e esgotados de trabalho até ao osso.

    Não sei se é isto a que se chama choque de culturas, mas sei que me ajuda a perceber a sorte que tive por nascer no lado certo do Mundo. Pelo menos isso.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dia em que pensei que a Argélia era a paragem final

    O dia em que pensei que a Argélia era a paragem final


    A minha mãe pergunta-me, com frequência, como é que passo o tempo no ar se tenho pânico de voar. Ao fim de duas décadas dentro de aviões, respondo-lhe quase sempre que, apesar desse medo, ainda maior receio tenho de, por isso, deixar de ver o Mundo.

    Por isso, arranjei uma série de rotinas – e que dariam longas sessões no divã de um psicólogo – para continuar a seguir o meu sonho, o sonho de conhecer o máximo possível do Planeta onde nasci.

    Dei assim por mim, a pensar nisto, com umas companheiras de viagem na pouco visitada Argélia, de onde vos escrevo agora. Tenho pouca paciência para países que dificultam a entrada com vistos aborrecidos ou idas a embaixadas, mas à medida que o Mundo vai encolhendo a esquisitice diminui.

    Por outro lado, tinha uma curiosidade enorme pelo rico património histórico da Argélia. Das cidades coloniais às ruínas romanas, passando pela abertura ao Mediterrâneo e a vastidão do deserto.

    A Argélia é o maior país de África, com uma dimensão que cobriria o território entre França e a Lituânia, de Este a Oeste, e entre a Suécia e Itália, de Norte a Sul. Não é um sítio para visitas rápidas, mas tentei chegar ao Norte, Este e Sul. Tentei. E não consegui.

    Argel, a caótica capital, parece uma cidade perdida no tempo, entre as decrépitas fachadas coloniais e a modernidade que só chegou no culto do divino.

    Nas ruas, vejo homens. Novos e velhos. A trabalhar ou a matar o tempo. Conto pelos dedos as mulheres. Há um conservadorismo que, apesar de tudo, ultrapassa as minhas expectativas iniciais.

    Há uma exaltação à Guerra da Independência contra os franceses, e memórias por todo o lado, com destaque para o horripilante monumento aos soldados caídos nessa luta, que do alto da encosta ensombra a cidade. Polícia no local assegura que ninguém lá passa por baixo, evitando uma ofensa que não compreendi.

    Um simpático dono de um café dizia-nos que o problema da Argélia eram os franceses, por investirem em Marrocos e na Tunísia, sabotando o turismo no país. A estranha incongruência de não querer o colono por perto, mas não se importar de receber uns Ibis.

    De facto, aqui não há grande turismo. Ao fim de quatro dias, não terei visto mais de dez estrangeiros. Nota-se um pouco por toda a parte a falta de hábito de lidar com turistas. Entre os mais velhos ainda se fala francês, já os mais novos parecem fazer a escola em árabe. Inglês é um problema. Andar sozinha, caso sejas uma mulher, também.

    Há lixo por todo o lado, menos na imponente e lindíssima Grande Mesquita. A maior de África e a terceira maior do Mundo, com uma beleza arrebatadora e um brilho cuidado que nos permitiria comer no chão. Fico sempre impressionado com as fortunas que países pobres, sejam eles quais forem, gastam na devoção religiosa. Seja qual for a religião, note-se.

    A Argélia começa a ficar interessante, verdadeiramente única, quando saímos da capital. A cerca de três horas de carro, para Este, está o complexo romano de Djemila. Uma escavação abandonada pelos franceses a meio da guerra colonial, na década de 60 do século passado, ainda com mais de metade das ruínas por descobrir.

    Ainda assim, uma área imensa, com casas, teatros, mercados e templos construídos entre os séculos I e V. Um património classificado pela UNESCO e deixado ao abandono, sem grande protecção para garantir a sua conservação. Casas com mosaicos, ainda intactos do século III são utilizadas como latrinas por visitantes aflitos.

    É ver enquanto não destruírem o que falta – foi esta a sensação com que me vim embora. Vi um turista no local.

    Constantine, um pouco mais a Este já me encheu mais as medidas. Uma das várias que ficou com o nome do imperador romano, pareceu-me menos caótica e mais acolhedora que a capital Argel. Construída entre dois lados de um desfiladeiro, ficou conhecida com a cidade das pontes suspensas.

    Um daqueles sítios onde gostaria de me sentar numa esplanada a contemplar a vista sem ter de beber um sumo cheio de açúcar.

    Esta malta sobrevive a laranjada e Coca-Cola, de manhã à noite. Não se degusta um tinto ou uma cevada líquida, nem que chovam canivetes. E como tem chovido, senhores.

    Saí do Este para apanhar dois aviões a caminho do deserto, numa zona a sul menos aconselhada para turistas, chamada Ghardaia. A polícia no aeroporto disse-me que não mostrasse aquele cartão de embarque até ser necessário. O sul da Argélia tem zonas de conflito com guerrilhas, e não é, ainda, absolutamente seguro para visita.

    No fim do primeiro percurso de avião, um velhíssimo ATR que avistava as montanhas e furava as nuvens como podia, senti-me como uma velha meia colada ao tambor da máquina de lavar. Enquanto ele, o piloto, teimava em não subir mais uns metro, e ia desfazendo nuvens à chapada, eu dizia em voz alta: “sobe esta merda, sobe esta merda!”

    Pensei que fosse desta que não chegaria inteiro para escrever o texto de segunda-feira.

    No fim, despedi-me da Air Algerie sem aquele abraço nostálgico, e deixei-os a chamar pelo meu nome no segundo voo – onde nunca entrei. Lá chegarei, ao deserto mais a sul, de carro, de camelo ou de bicicleta.

    O pânico vence uns rounds, é verdade, mas no fim, e aos pontos, a teimosia vence quase sempre a luta. Importante é seguir caminho. Seja ele qual for, só precisa de ser novo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O circo da estabilidade, por Marcelo Rebelo de Sousa 

    O circo da estabilidade, por Marcelo Rebelo de Sousa 


    Terminei a minha coluna de opinião de quinta-feira passada apostando que Marcelo, na sua comunicação ao país, diria, essencialmente, nada. Bem sei que não é preciso ser um Zandinga de Cacilhas para prever os movimentos do previsível e calculista Presidente da República. Ainda assim, tinha a secreta esperança que o mais famoso comentador do país usasse o segundo mandato para agir mais e olhar menos para barómetros.

    É um dado adquirido que Galamba mentiu e não tem, de qualquer ponto de vista, o mínimo aceitável para se manter em funções. Mas não é só este caso que deveria ter feito Marcelo ganhar alguma coragem. O PS, com uma maioria que anunciava estabilidade, anda a saltar de escândalo em escândalo e a passar à opinião pública (e publicada) que manda e gere o país como um senhor feudal.

    O PS governa sem dar contas, sem se preocupar com quem os elegeu, sem sequer ter alguma vergonha na gestão dos escândalos. É uma espécie de bar aberto, à boleia da TAP, onde o país se senta para discutir membros do Governo e jogos políticos de bastidores, em vez de abordarmos os problemas que nos afectam.

    Há um exército de insatisfeitos que vão prometendo votos na extrema-direita. Há professores em luta pela reposição dos direitos, há meses e meses, sem conseguirem chegar a bom porto nas conversações com o governo.

    Ouvem-se novas promessas de crise no sector imobiliário, e mais famílias a perder a casa. 

    A inflação baixa lentamente, apesar dos cortes a direito do Banco Central Europeu, e ir ao supermercado continua a ser uma aventura.

    10 and 20 banknotes on concrete surface

    A inflação nos produtos alimentares continua nos dois dígitos. Os salários, para quem teve aumentos, não subiram mais dos que 2% ou 3%.

    Continuamos em perda, a empobrecer todos os meses e a viver de subsídios ou ajudas sociais pontuais. 

    Costa gere crises e navega a nau sem grande rumo à vista. Gasta os créditos da estratégia em lutas internas, mas não parece ter um plano para o país.

    Era isto que devíamos estar a discutir e não o membro A ou B do Governo. Não são os jogos políticos que importam ou sequer quem deles sai mais fortalecido no xadrez eleitoral.

    A vida das pessoas não é um braço-de-ferro entre Belém e São Bento. 

    brown deer on green grass field during daytime

    António Costa foi a jogo e pediu a Marcelo que mostrasse as cartas. Marcelo encolheu-se e perdeu. A algazarra deu para comentários nas televisões e homílias sobre o novo estadista descoberto no Largo do Rato.

    Entretanto, chegou segunda-feira e todos os problemas, os reais, continuam por resolver. Marcelo disse que queria ser um garante de estabilidade, mas, como podemos ver, um Governo de maioria não significa necessariamente estabilidade.

    No caso do PS, este Governo de António Costa é apenas um garante de arrogância, quero, posso e mando. 

    Estamos agora a pagar as políticas desastrosas da pandemia, com atrasos na formação dos alunos, salários congelados, empresas encerradas e uma dívida externa que aumentou. Uma carga fiscal recorde e cada vez menos serviços públicos em troca.

    a large circus tent with lights around it

    O país está um pântano, um caos, um atoleiro de empobrecimento. A única estabilidade que Marcelo garantiu foi esta: seguirmos no mesmo lamaçal.

    Quando chegarmos a eleições serão, contudo, os mesmos a conseguir o poder, mas Marcelo não verá o seu nome associado. Pois bem. Era, para além de ir ao Santini, o que verdadeiramente lhe interessava.

    Esperamos agora a ida do adjunto de Galamba à comissão de inquérito para um ajuste de contas e mais umas horas de debate.

    O circo da estabilidade pode continuar. As vidas reais e o sofrimento do quotidiano, que esperem mais um bocadinho, não é?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)

    Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)


    Em Outubro de 2017, à pergunta sobre os baixos salários na Padaria Portuguesa, respondia Nuno Carvalho, um dos donos da empresa, o seguinte:

    Apresentamos um plano de integração e de formação, damos oportunidades de carreira – vários chefes de fábrica entraram como operários a ganhar 580 euros e recebem três vezes mais agora. Também temos uma série de regalias. Fazemos investimento a sério nas pessoas: uma vez por ano juntamos todos os trabalhadores num arraial de verão e fechamos as lojas mais cedo. Mensalmente, reunimos com as equipas de gestão de loja, de forma absolutamente informal, fazemos um piquenique no jardim da Estrela, onde ouvimos inputs sobre o negócio, até mesmo sobre políticas salariais. Cada vez que nasce um bebé, oferecemos um creme e um babygrow e escrevo um postal de aniversário personalizado a cada um dos trabalhadores. Temos estes cuidados. Somos muito informais e tratamos as pessoas como pessoas. Criamos um espírito de equipa que vale muito mais do que a remuneração base.

    people building structure during daytime

    Esta resposta, só por si, explica a miséria laboral em que se tornou Portugal. Quase seis anos depois, nada mudou – e mais, até fez escola. Postais personalizados, espírito de equipa, cremes e piqueniques: tudo menos um salário digno e justo. O sucesso das empresas em Portugal – lembremo-nos que a Padaria Portuguesa era apontada como um caso de sucesso e de inovação – assenta essencialmente em foguetório e em baixos salários. Palavras-chave de motivação (ou keywords cheias de team spirit, como nos diria o amigo Nuno) que levem as pessoas a gostar e vestir uma camisola de quem as explora.

    O primeiro de Maio, Dia do Trabalhador (não do colaborador) é, ainda, um momento de luta que não devemos desperdiçar ou sequer ignorar. É o dia em que nos lembramos de quem perdeu a vida em nome dos direitos que hoje damos como garantidos. E é o dia em que, olhando em redor, percebemos o que falta fazer nas relações laborais. É um dia que deve ser de tomada de consciência colectiva perante o assalto a que a classe trabalhadora tem sido sujeita.

    A Função Pública perde poder de compra há mais de 10 anos e, no sector privado, recém-licenciados trabalham por autênticas esmolas. Há um sector da população que trabalha sem conseguir sair da pobreza, um conceito surreal num país de Primeiro Mundo, e outros que se limitam a produzir a troco de um salário que lhes permite somente pagar as contas.

    Isto não é viver – quando muito é sobreviver, é subsistir, é não desistir. É resignar-se.

    Portugal é hoje, visto de fora, como um sítio de mão de obra qualificada de baixo custo. Aliás, já um ministro dos Negócios Estrangeiros nos publicitou dessa forma, procurando atrair investimento numa visita oficial de Estado a um país rico.

    De cada vez que se fala em aumentar o salário mínimo, lá aparece o presidente da CIP ou os CEOs dos grandes grupos com a habitual lengalenga: “o salário mínimo tem de ser indexado à produtividade”. Este é um mantra que se aplica a quem trabalha, a quem depende de um salário para viver. Não se aplica a gestores de topo ou a accionistas parasitas que recebem dividendos dê por onde der. Lembremo-nos do BES, há mais de uma década a receber dinheiro do Orçamento de Estado, e ainda há pouco tempo nas capas dos jornais pelos prémios fabulosos que repartia pelos seus administradores.

    O primeiro de Maio devia recordar à classe trabalhadora que ela é a maioria – que, sem ela, nada se faz, nada se transforma, nada se produz. Abusos como aqueles que vemos diariamente, com tentativas constantes de validar baixos salários, deveriam ser contestados nas ruas. Sempre que um liberal nos diz que as empresas é que geram emprego, alguém lhe devia gritar, com um megafone aos ouvidos, que os trabalhadores é que criam as empresas. Uma empresa sem trabalhadores chama-se prédio. Normalmente vazio. Produz, quando muito, pó.

    a large room with pillars

    Não é fácil perceber que, em Portugal, praticamente oferecemos a nossa força de trabalho. E isso é particularmente grave para quem tem nela, na força de trabalho, a única moeda de troca e o único garante de sustento. Há muito que ultrapassámos os padrões mínimos de dignidade e, por mais que tentem, não há justificação para tamanha precariedade e pobreza ao fim de 35 anos na União Europeia. Não há. São precisos vários Governos de uma incompetência atroz para que. hoje, trabalhar em Portugal seja um exercício de masoquismo.

    Reconheço não ser fácil perceber esta realidade quando nos comparamos com os nossos amigos, colegas, familiares. Todos na mesma cidade, todos mais ou menos dentro do mesmo sistema capitalista de exploração e lucro à custa dos baixos salários. É preciso sair da zona de conforto, ver outras realidades e perceber que é possível gerar riqueza e distribuí-la por patrões, funcionários e Estado de uma forma mais equilibrada. É possível trabalhar e viver bem. A classe média devia ser o nosso ponto de partida, não o objectivo final.

    A pressão para o aumento do salário mínimo destes últimos anos é uma alavanca essencial para a defesa dos trabalhadores. Se quem investe não percebe que, a longo prazo, o modelo das baixas remunerações tem os dias contados – porque o capital procura sempre um povo ainda mais pobre –, então é o Estado que deve meter essas barreiras. Em vez de aumentar impostos, deve, isso sim, criar as condições para que o salário mínimo permita uma vida digna. Coisa que hoje, apesar do esforço de alguns partidos de esquerda, ainda não existe.

    man in white shorts carrying a child in white shorts

    O trabalho é a nossa contribuição para o Mundo. Seja qual for, onde for, mais ou menos elaborado, todos somos necessários. Não existem profissões menores ou trabalhadores dispensáveis. Aquilo que existe, e muito, é uma falta de consciência da classe trabalhadora. Do seu poder, da sua importância, da sua força.

    Com um mundo em transformação, depois do ataque aos direitos básicos durante a pandemia e, agora, a continuação da perda de direitos laborais e capacidade de poder de compra, nunca a união entre trabalhadores foi tão necessária.

    Tenhamos consciência colectiva e ninguém, absolutamente ninguém, nos poderá vencer nesta guerra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A visita de Luiz Inácio

    A visita de Luiz Inácio


    A visita de Lula da Silva a Portugal tem provocado um autêntico “fuzuê” na vida pública deste pacato cantinho à beira-mar plantado. Tenho visto a novela com o mesmo encanto com que acompanhava as aventuras do Roque Santeiro. Sim, eu sou desse tempo.

    A primeira nota de destaque foi o aproveitamento que os partidos de direita e extrema-direita fizeram. A Iniciativa Liberal veio a terreno criticar as declarações de Lula sobre a Ucrânia e o Chega montou um circo, digno de se ver, com a presença de Lula nas comemorações do 25 de Abril.

    Lula da Silva veio a Portugal tratar de negócios, fechar acordos, parcerias, trocas comerciais. Como qualquer presidente que visita outro país, o objectivo é fechar acordos. Fê-lo na China, nos Estados Unidos e agora, à nossa micro-escala, fá-lo-á em Portugal.

    Hoje, por exemplo, ia de manhã, de avião para o Porto para umas negociatas em Matosinhos. De tarde, regressa no mesmo avião ao aeroporto militar de Figo Maduro, a tempo de entregar o prémio Camões ao Chico que importa. Amanhã, imagino, vai discutir problemas ambientais e como reduzir as emissões de carbono, que não as dele.

    Ao chegar, Lula falou sobre a Ucrânia e disse o óbvio: é preciso sentar e conversar para negociar um plano de paz.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    Compreendo a intenção do presidente brasileiro ao tentar meter o país irmão novamente na agenda internacional, depois do buraco de isolamento onde Bolsonaro o tinha deixado. Mais uma vez, está a tratar da vida e dos interesses económicos, como qualquer presidente faz.

    A novidade, para mim, é ver o coro de virgens ofendidas do lado da Iniciativa Liberal com as declarações de Lula. Segundo eles, quem faz o apelo à paz com cedências territoriais está a premiar o invasor e, como outras vozes já o defenderam, só se podem sentar à mesa quando os russos saírem do país e largarem os territórios ocupados.

    Ora, não querendo ser eu o portador das más notícias, se os russos fizessem isso, já não era preciso ir para a mesa porque não haveria muito para negociar. Não sei se me faço entender.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    E isto é particularmente aborrecido de ouvir dos lados da Iniciativa Liberal porque, habitualmente, definem-se como uns tipos práticos, conhecedores da realidade, dos mercados e do mundo que nos rodeia. Mas depois ficam ali, presos em ideologias que não têm e moral de café, quando o pragmatismo lhes bate à porta.

    Desde logo, esta narrativa da guerra que começou em 2022 já está mais do que desfeita. Já todos sabemos que a Rússia invadiu a Ucrânia depois de oito anos de conflitos e escaramuças com russófonos. Isto não muda o nome do invasor mas, pelo menos, centra o debate onde ele deve estar.

    Depois, chegados aqui, não entendo como é que líderes partidários continuam a falar em soluções impossíveis como se tivessem qualquer aplicação prática.

    yellow and blue umbrella under white sky

    A solução ideal, defendida por Rui Faria, é uma utopia: é os russos arrumarem a trouxa, irem para casa e depois sim, sentarem-se à mesa a ouvir que indemnizações vão pagar.

    Não sei se Rui Faria sabe, mas não existem impérios do bem ou do mal. Existem impérios. E, tal como nas outras invasões de que ninguém quer saber, os russos não vão sair dali com as mãos a abanar. Existem portanto duas opções: 1) sentar a uma mesa a discutir que parte de território a Ucrânia vai perder; 2) invadir a Rússia com o exército da NATO.

    Lula defende a primeira. A Iniciativa Liberal diz que isso é uma vergonha e, como proposta, sugere uma que não existe. No fundo é apenas uma continuação do respectivo programa eleitoral.

    Aquilo que ainda espero, de todos os que querem a continuação da guerra por tempo indeterminado, é como a pensam pagar e, principalmente, que rapaziada é que estão dispostos a perder? 

    O tempo para a conversa do “não premiar o invasor” está esgotada. Até porque, habitualmente, é isso que acontece com invasores mais fortes, habitualmente com o apoio do chamado Ocidente.

    Podem olhar para cinco continentes e encontram povos oprimidos e com terra roubada, sem que a comunidade internacional perca o sono por isso. Esta hipocrisia da realidade alternativa já enjoa.  

    Já o Chega aproveitou a ida de Lula à Assembleia da República para encher autocarros e trazer pessoal para uma manifestação “anti-ladrão”.

    Já tinham feito uns vídeos bem catitas no TikTok a insultar o presidente brasileiro e, como é óbvio, para um partido que defende o Estado Novo e abomina o 25 de Abril, nada melhor do que criar um momento de populismo que renda mais uns votos e visibilidade, numa altura em que se devia celebrar a libertação da ditadura. Ou como eles lhe chamam lá no Chega, os Glory Days.

    É todo um modus operandi que já não apanha ninguém despercebido e promete animar a agenda de Lula.

    Mas há mais. Há directos atrás de directos à porta do hotel Tivoli e largos minutos a encher chouriços na esperança de ver a comitiva a passar cinco segundos no direto a caminho dos Mercedes que ali ficaram estacionados, na rua bloqueada para o efeito.

    Muito bem, a diplomacia brasileira a conseguir estacionar 10 carros na Avenida da Liberdade, todos juntos, de borla e sem que a EMEL os consiga bloquear.

    Mas Portugal não seria Portugal se não levasse a não-notícia ao extremo. Assim, no Domingo de folga, algum assessor disse que Lula iria visitar a Nazaré. Pela-se por ondas gigantes e arroz de marisco, dizem fontes próximas do local. As televisões correm para lá mas Lula não aparece.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    O edil local disse que mandou o número de telefone para a comitiva, caso quisessem ajuda para visitar o farol. Há desilusão porque Lula, afinal, fica a dormir no Tivoli e a rever os episódios do Succession no HBO.

    Mas as TVs não desarmam, há uma peça para encher e material para enviar para as redacções. Entrevistam nazarenas que mostram bancas recheadas de coisas que tinham para vender a Lula. Uma delas diz, com uma voz marota, que tinha um bolo do amor para vender ao septuagenário presidente que o deixaria a fazer amor, toda a noite, como na canção do Toy.

    Lula não sabe o que perdeu. Portugal é, ainda e sempre, uma pequena aldeia sem protocolo diplomático. Valha-nos isso.

    E já agora, sê bem-vindo, Luiz Inácio.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.