Etiqueta: Visto de Fora

  • O campeão voltou

    O campeão voltou


    Embora o PÁGINA UM não seja um desportivo, é dificil fugir ao tema do fim-de-semana na minha habitual crónica de segunda-feira. Desde logo por razões económicas e estruturantes para o país, uma vez que, como é sabido, dizem, em ano de título vermelho, o PIB dispara e o PSI20 atinge máximos históricos.

    Provavelmente, o caro leitor até já recebeu troco em demasia depois da bica matinal. Isso é o “efeito Benfica” a funcionar na vida de quase todos nós. A alienação perfeita que nos deixa, umas boas 48 horas sem pensar no Galamba, no Costa, no Ventura, no Montenegro e até no Cavaco, que, de quando em vez, lá sai do sarcófago para assustar o líder do PSD em funções.

    Votar à esquerda não é a minha única qualidade. Também sou adepto do Benfica e cozinho razoavelmente bem. Um achado, eu sei.

    A primeira análise técnico-táctica que gostava de fazer foi a qualidade da festa. Luz, cor, foguetes e fumarada. Um estrondo que se viu da lua. Parecia um sábado de feira em Beirute no meio de um raide israelita. “Nem os árabes faltaram”, dizia-me um amigo de Barcelos que nos apelida de várias coisas, resultantes do cruzamento das nossas tetravós com os invasores mouros.

    Um pouco racista, bem sei, mas em dia de festa raramente me chateio. E, de facto, é verdade que a sul somos mais mascarrados, morenos e bonitos. Não era por isso que me ia aborrecer com o meu amigo pálido, adepto de um clube mais regional, que pensava que cuscus era marca de creme para as estrias.

    Bom, mas chega de falar dos outros. Voltemos ao aspecto táctico da coisa. Como foi possível a festa ter começado quase em Junho quando, em Março, tínhamos 10 pontos de avanço? Sim, tínhamos. Eu falo do clube como se estivéssemos todos dentro de campo a cruzar para a bancada como o Gilberto. Padeço desse mal, reconheço.

    Dois factores contribuiram para se lançar o primeiro foguete, no Marquês, bem nas barbas do leão às portas de Junho: Roger Schmidt e cascatas de penaltis, entre Abril e Maio, para o nosso mais directo rival.

    Schmidt conseguiu repetir a dose do período pós-mundial (primeira derrota do ano em Braga) com uma agravante: uma semana de férias para os jogadores que não foram às selecções.

    Na altura fiquei a pensar a que propósito parava ele os trabalhos daquela maneira quando, a cada interrupção, a equipa parecia regressar em ritmo de pré-época. A direcção do Benfica também achou boa ideia renovar o contrato do treinador por esta altura. Estava o clube nos quartos da Liga dos Campeões, a 10 pontos dos segundo na Liga; enfim, já cheirava a festa. Menos a mim, que gosto de comemorar depois de ganho, e não percebi, de todo, a paragem ou sequer a renovação. Eu pertenço à geração do Euro 2004, do golo do Kelvin e de várias finais europeias perdidas; portanto, já tive a minha dose de festas que não chegaram a ser.

    Dito e feito, no regresso das selecções, o Benfica perdeu seis pontos com duas exibições miseráveis. A primeira no clássico contra o Porto, onde nem cheirámos sequer a bola. Temia-se o pior, mas, com algum tremor, lá fomos aguentando os quatro pontos restantes até o jogo com o Braga. Foi aí, no sprint de Rafa, que ficámos com a certeza que o campeonato já não fugiria, porque, a partir dessa vitória, o jogo em Alvalade deixava de ser importante.

    Durante este período, Roger Schmidt mostrou que escolhe um 11 base e tem um núcleo reduzido de jogadores. Quando o sistema táctico é contrariado pelos adversários, ou os jogadores entram em subrendimento, ele não tem a capacidade de alterar nada.

    Seja no banco ou na semana de trabalho. João Mário desapareceu depois do jogo com o Porto e não saiu do 11. Musa justificou lá entrar e nem por sombras. Neres passou tempo em demasia no banco para se jogar com um meio-campo de posse e sem capacidade de explodir no um para um. Valeu a inclusão de João Neves, a recuperação de Florentino (cuja saída ninguém percebeu) e Fredrik Aursnes, um autêntico pau para toda a obra, que, caso Vlachodimos continue trapalhão com os pés, não me admirarei de ver com as luvas calçadas no jogo da Supertaça.

    Na parte final da maratona faltou ao Benfica acabar com a discussão. Na Luz, contra o Porto, ou em Alvalade. É aí que se conquista o brilho das vitórias. Estarei certamente isolado nesta opinião, hoje, mas por minha vontade, daria um abraço a Roger Schmidt, agradecia-lhe o trabalho feito e oferecia-lhe uma boleia até à Portela. Depois batia à porta de Ruben Amorim e informava-o que estava na hora de voltar para casa.

    Não vejo no treinador alemão a pessoa certa para inovar ou sequer mudar o que está feito. Dificilmente ganharemos com a mesma receita e os erros deste ano foram óbvios e, ainda por cima, repetidos.

    Mas, enfim, concedo que o tempo é de festa e ninguém quer saber disso. O filho de Roger Schmidt disse, a um jornal qualquer, que o pai queria sair do Benfica com as quatro estrelas conquistadas. Se for assim, meu amigo, retiro tudo o que disse e ainda mordo a língua.

    Não há nenhum jogador que me pareça merecer destaque individual, porque quase todos, do 11 base, e os quatro ou cinco que habitualmente entravam, contribuíram decisivamente em partes diferentes da época. Ainda assim, quero deixar uma nota para o Rafa, que fala pouco e corre muito. É um facto que falha para lá da nossa paciência, mas é ele, há anos, e independentemente de quem vai entrando a cada Agosto, que empurra invariavelmente a equipa para a frente. Época após época.

    Li que Sérgio Conceição afirmou que o Porto tinha sido, e era, a melhor equipa da época. Julgo que ele se esqueceu de completar a frase com um: “e só deixámos o Benfica 30 jornadas em primeiro lugar para os confundir”.

    O treinador do Porto faz, há anos, omeletes sem ovos. Com um ou outro jogador de futebol, uns Zaidus para fazer número e Otávios, que saem do departamento de dança e coreografia para fazer uma perninha. E tem mérito, note-se. Mesmo com a primeira posição no ranking mundial de penaltis, não é qualquer treinador que ganha com os plantéis que são oferecidos a Conceição. Infelizmente, o mérito dele acaba aí e não consegue, por uma vez que seja, perder com educação.

    Já nós, os adeptos do Glorioso, voltámos a mostrar que é possível ganhar por nós e para nós. Festa, cânticos, muito vermelho, certamente vários excessos… e nem uma palavra para os clubes rivais, nem um só coro a chamar nomes a quem não está ali, nem uma só claque a gritar por clubes alheios à festa. Bem sei que Neres, lá para o meio da farra, borrou um pouco a pintura no Instagram, mas é a excepção que confirma a regra. E como foi chatear o Otávio, até acaba por ser serviço público.

    Em conclusão, com ou sem Schmidt, parece-me boa ideia que comecem já a fazer uma equipa que garanta o 39: a mim dá-me jeito e ao PIB português nem se fala.

    Mais um ou dois dias disto e lá para quinta-feira, falamos de coisas sérias.

    Parabéns aos restantes 5.999.999 campeões.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tutti-frutti: hoje ser emigrante não me parece assim tão mau

    Tutti-frutti: hoje ser emigrante não me parece assim tão mau


    Sempre achei boa ideia atribuir nomes italianos a casos de corrupção. Dá logo um ar de máfia à coisa e, sem grande esforço, sabemos ao que vamos antes de ouvir uma palavra que seja.

    Tutti-frutti é, por isso, um excelente nome para a operacão da Polícia Judiciária que envolve alguns autarcas e deputados do PS e PSD. 

    O caso é particularmente interessante porque, de uma assentada, mostra a corrupção instalada no Bloco Central e a lentidão da justiça portuguesa nestes mega-processos.

    man in black zip up jacket wearing white earbuds

    Passam agora seis longos anos desde que se iniciaram as investigações aos arranjos entre PSD e PS nas juntas de freguesia de Lisboa. Medina e o seu número dois na Câmara de Lisboa, Duarte Cordeiro, terão alegadamente ajudado o PSD, através de Sérgio Azevedo (ex-deputado do PSD) a manter as juntas de freguesia onde estes tinham negócios (Estrela, Areeiro e Santo António, por exemplo).

    O esquema era simples e baseava-se numa luta eleitoral falseada: os dois maiores partidos escolhiam e acordavam antecipadamente que juntas queriam e, feita a divisão, cada um apresentava candidatos mais fracos nas freguesias em que o adversário devia ganhar.

    Lisboa era assim dividida de forma perfeitamente anti-democrática e os negócios de construção e exploração, das empresas na órbita do PSD, eram garantidos por mais uma legislatura. Sérgio Azevedo, alegadamente, era o motor da operação que se alargava a vários presidentes de junta de PS e PSD, na capital do país.

    O esquema terá começado em Lisboa, mas foi copiado noutras autarquias. Ou seja, combates eleitorais falseados e eleições combinadas, de forma a garantir empregos, salários e colocações para diversos boys e empresas do Bloco Central.

    Seis anos depois, não há qualquer acusação formal. Medina e Duarte Cordeiro são hoje, respectivamente, ministros das Finanças e do Ambiente, nas juntas de freguesia continuam as negociatas e, de vez em quando, o caso volta à tona, sem que o Ministério Público consiga fazer o mínimo exigido. 

    Este caso é, por isso, um exemplo clássico da corrupção política em Portugal.

    O crime é óbvio, as escutas existem, há documentos com pagamentos feitos por trabalhos repetidos (ou seja, avenças para não fazerem nada) e o Ministério Público, como em todos os mega-processos, em vez de fazer várias pequenas acusações, parece querer deduzir uma que apanhe tudo e todos ao mesmo tempo, como no caso Sócrates – que resultou naquilo que se sabe.

    As escutas que vieram a público são elucidativas. Mostram um total desprezo pelo erário público, pela democracia e por aquilo que deve ser a política. Provam aquilo que já todos sabemos há muito. Um cartão do PS ou PSD é, em Portugal, uma garantia de salário, trabalhando ou não. Mas pior do que isso, mostra, sem margem para discussão, que a política em Portugal não é um momento da vida em que nos dedicamos ao serviço público, mas sim um emprego para a vida.

    É por isso que temos deputados que durante décadas não largam a Assembleia da República, autarcas que passam a vida nas suas câmaras (ou saltam para outras quando as perdem) ou até juntas de freguesia que garantem emprego até à reforma. Ser político em Portugal é um emprego para a vida. Desde a escola até à morte, passam pela vida com um salário garantido numa missão que devia ser curta e rotativa, como complemento da nossa contribuição para a sociedade.

    PS e PSD dividem o país há muito e garantem empregos a quem os apoia. Não é novo, todos sabemos disso. Mas as escutas dão uma cara de realidade ao que antes seriam conversas de café. A luta pelo tacho é óbvia, a falta de respeito por quem trabalha e paga impostos para suportar tudo isto é notória.

    Medina, um dos visados numa investigacão que tenta provar desvios do erário público, é hoje o principal responsável pela gestão desse mesmo erário público…. Isto não se inventa.

    pair of red-and-yellow sneakers

    Mas como é que se pode dar credibilidade a uma investigacão destas? Como pode, um contribuinte comum ouvir aquelas escutas e aceitar que desde 2017 ainda não se tenha produzido nenhuma acusação? Assim de repente, sem querer entrar em grandes teorias da conspiração, parece que o caso tutti-frutti é uma reserva do PS para lançar quando os escândalos apertam. Se Montenegro gritar muito com o Galamba, o PS manda o tutti-frutti avançar e lá se vai a superioridade moral do PSD.

    De repente, volta-se a falar em Passos Coelho como o homem certo para endireitar o país, e Luís Montenegro começa a ver que chegará ao fim do deserto sozinho. O homem que vendia cursos que não existiam na Tecnoforma, que saiu das jotas para o Parlamento e nunca trabalhou um dia na vida, é o homem certo e honesto para limpar o país dos tachos para os boys. Portugal se não existisse há oito séculos teria que ser inventado numa aldeia ao lado da do Astérix.

    Tenho uma secreta mas muito pequena esperança que este caso abra alguns olhos, àqueles que discutem acesamente as diferenças entre PS e PSD. São um disco só com duas canções ligeiramente desafinadas, embora muito parecidas. E dificilmente mudam se os eleitores lhes continuarem a dar a possibilidade de se perpetuarem no poder autárquico e legislativo. Este caso, embora também meta o Ventura nos tempos da Câmara de Loures, será, novamente, campo fértil para o crescimento da extrema-direita no nosso país.

    selective focus photography of black bird standing on tree branch

    Por vezes, tenho vergonha do nosso país, e desejo, honestamente, que este tipo de notícias não tenha grande repercussão internacional. Não entendo mesmo como é que caímos neste buraco de subdesenvolvimento e terceiro-mundismo.

    Que futuro tem um país onde, todos os dias, os políticos nos provam os seus roubos, e nós, anónimos trabalhadores, nos limitamos a encolher os ombros?

    Há dias em que ser emigrante não parece assim tão mau. Hoje é um deles.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A luz ao fundo do túnel é a NATO a pedir mais dinheiro

    A luz ao fundo do túnel é a NATO a pedir mais dinheiro


    A vida de António Costa, por estes dias, é digna de um filme. De manhã ouve as exigências de Jens Stoltenberg, à tarde toma notas enquanto Galamba é apertado na comissão parlamentar de inquérito, e depois, à noite, enquanto o seu ainda ministro faz uma pausa para um xixi, já o alegre Costa está em Coimbra, a cantar a plenos pulmões o Clocks, dos Coldplay.

    Estou a imaginar, obviamente. Não sei se o Costa é forte no falsete nem o Chris Martin me mandou o alinhamento do concerto. E desenganem-se aqueles que agora esperam piadas fáceis com a loucura em volta dos Coldplay.

    Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, e António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Por mim, desde que as pessoas ouçam música, até pode ser uma melodia do Nel Monteiro. Como diria a minha avó, só não se metam na droga.

    No meio desta azáfama de António Costa, ainda deu para Marcelo – o agora atento Marcelo – passear por Belém, responder a umas perguntas de ocasião sobre o Galamba e interromper a marcha para endireitar os buracos da calçada portuguesa.

    Um país onde todos, mesmo todos, temos de dar uma mãozinha e, aqui e ali, tapar um buraco. Marcelo é um de nós – e desenrascou o amigo calceteiro.

    No meio do circo – sim, é isso que há uma semana vejo nos jornais –, fiquei a matutar nas palavras de Jens Stoltenberg.

    Estou a poucos dias de ir ao banco receber as “boas novas” da subida explosiva do meu empréstimo à habitação e, nestas alturas, lembro-me muito dessa malta que repete, a cada pequeno-almoço, “as long as it takes”.

    O amigo Jens, em princípio, não tem casa para pagar, e mesmo não querendo saber do Donbass, também não deve estar interessado em saber o quão pobre deixa a Europa no fim do seu mandato à frente da “aliança defensiva”. O seu patrão não é a Europa, de modo que tanto lhe faz se ficamos a virar mais ou menos caixotes para comer.

    Na conferência de imprensa em São Bento, ao lado de António Costa, Jen Stoltenberg agradeceu o apoio português, mas disse que era preciso mais. E não foi meigo a pedir: fez-me lembrar as listas de Natal do meu filho quando tinha 8 anos. Mais caças (com e sem cedilha), mais treino, mais investimento em defesa. Ou seja, mais dinheiro desviado do Orçamento de Estado para armamento. No fundo, esteve ele a fazer o que qualquer vendedor faria, anunciando os artigos presentes no catálogo do patrão.

    Portugal, nestas coisas, limita-se um pouco a fazer aquela figura do amigo simpático que oferece a casa, recebe bem, diz umas piadas e promete que, para a próxima, o vinho do jantar não é Porta da Ravessa. Temos pouquíssima relevância internacional e os nossos Governos servem, essencialmente, para gerir fundos comunitários e servir cafés a cada passagem dos senhores da guerra.

    Já não seria catastrófico se conseguissem, pelo menos, gerir os fundos comunitários sem os distribuírem pelos bolsos do costume, embora julgo ser também pedir demasiado.

    Portugal, boa praia, óptima gastronomia, períodos longos de céu azul… quem é que está para se chatear com estas coisas de roubos de milhões ao erário público? Temos tempo, depois da praia, se entretanto não se meter o Natal, que parece teimar em surgir, todos os anos, depois do Verão.

    Estranhei que ninguém, um jornalista que fosse, perguntasse a António Costa onde ia buscar mais dinheiro para cumprir a lista para o Pai Natal elaborada por Jens Stoltenberg. Bem sei que o Governo está a nadar em dinheiro com as colectas da inflação, mas tendo em conta que os salários da Função Pública continuam baixíssimos, os impostos elevados, as creches públicas praticamente inexistentes, o SNS ao abandono e a Educação universal ainda por concluir, pergunto-me: a qual prioridade se vai roubar mais dinheiro para enterrar no Donbass?

    Ninguém parece interessado em abrandar perante uma guerra que está a empobrecer o continente europeu. Percebo que os actores externos não o queiram fazer, porque beneficiam com o conflito, mas não entendo esta loucura colectiva dos povos europeus.

    Estamos a empobrecer todos os dias enquanto gritamos pela moral de uma guerra que não nos pertence, e onde aquilo que se discute, já todos percebemos, vai muito para lá da integridade territorial da Ucrânia.

    Depois de meses a ouvir que “Bahkmut está por horas”, a cidade acabou por cair nos últimos dias. Seguem-se outros tantos meses a planear e discutir a contra-ofensiva ucraniana, com pedidos diários de material. Mais um ano de guerra previsto por quem dela vive e a relata diariamente.

    Não há grande luz ao fundo deste túnel que não seja a de continuar a viver com a inflação e o aumento dos custos de produção. Agora, se Costa quiser agradar a Jens, vamos aumentar a percentagem do orçamento para a Defesa e retirar mais dinheiro às famílias.

    Repetem-se as notícias de famílias que já não conseguem pagar as suas casas ou que mal suportam o cabaz de alimentos. A miséria aumenta, enquanto nos entretemos com horas e mais horas de circo mediático em volta da comissão parlamentar sobre a TAP. Lembrem-se: aquilo servia para debater a TAP e a sua gestão; e já se desviou primeiro para as reuniões de preparação da ex-CEO com o PS, daí para as notas que incriminam o Galamba e estamos agora nas cenas de alegada pancadaria em mulheres no Ministério. Tudo num saltinho.

    Com pipocas numa mão e a mini na outra, vamos formando o nosso tribunal popular e dando razão à chefe de gabinete, ao adjunto, ao Galamba ao que depois virá. Tanto faz.

    a large jetliner sitting on top of an airport runway

    Nas pausas para publicidade, entre um cigarrinho do Galamba ou uma canção da Mimicat em Liverpool, o Jens aterra em Lisboa e ordena que o governo português nos deixe, ainda, mais pobres.

    Batem-lhe palmas, come bem e de borla, e vai-se embora sem que ninguém lhe pergunte, a ele ou a António Costa, como e porquê.

    Já nem precisamos das papas e muito menos dos bolos. Basta-nos o circo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Fome e revista à portuguesa

    Fome e revista à portuguesa


    Os jornais da noite descreveram o dia de ontem, na comissão parlamentar de inquérito da TAP, como um guião digno de Hollywood com desenlace rocambolesco. Reconheço a originalidade do que estamos a ver e ouvir em directo (algo que me parece bom para a democracia), mas, aqui entre nós, é mais teatro de revista do que propriamente uma grande produção.

    Perdi algum tempo a ver o triste espectáculo em que se tornou a política portuguesa, e fiquei com várias dúvidas. E apenas uma certeza. Pouca gente naquela comissão estará interessada na verdade. O PS tenta safar João Galamba e queimar o (ex-)adjunto, enquanto a oposição faz o contrário. É relativamente simples ver pelas perguntas, comentários e adjectivações de cada um dos deputados, nos momentos em que fazem as questões, o que por ali andam a fazer.

    João Galamba

    De todos, o mais esperto, Ventura, em permanente campanha eleitoral, assumiu o lugar do outro deputado do Chega e aproveitou as horas em direto para ser o destaque do dia. Foi ele, sem qualquer dúvida, o líder da oposição naquela comissão. A inutilidade do PSD neste particular é algo que não pára de me espantar.

    Frederico Pinheiro, ex-adjunto de Galamba, foi arrasador nas declarações que fez e deixou Galamba ainda em piores lençóis. Não se engasgou, não entrou em contradições e fez acusações graves, nomeadamente a parte em que mete as secretas ao barulho.

    Eugénia Correia Cabaço, jurista de profissão e chefe do gabinete do ministro, também não se engasgou ou se sentiu intimidada pelo ambiente da comissão e não tremeu perante os deputados. Diria que fez o contraditório do discurso de Frederico Pinheiro sem grandes dificuldades. Ou como diria Perry Mason (só para os mais antigos), estabeleceu a razoabilidade da dúvida entre quem a ouvia. Na Assembleia da República e, já agora, em casa.

    Fico obviamente curioso para ver como Galamba se vai defender hoje, mas não entendo, mesmo, como é que o homem continua sequer como ministro. António Costa, depois de ter encostado Marcelo à parede, vai ter alguma dificuldade em fazer novo truque de magia no fim desta comissão de inquérito.

    Frederico Pinheiro, ex-adjunto de João Galamba.

    Interessa-me pouco, para já, discutir as agressões, a legítima defesa e o alegado sequestro. Sem a câmara de videovigilância vamos andar, apenas, a navegar no mar da especulação. Nem sequer percebi, entre socos e agarrões de mochila, como é que o adjunto acabou manietado e sequestrado. É uma daquelas partes do guião em que o escritor tirou uma pausa para café e, quando voltou, passou ao capítulo das secretas na piscina dos filhos.

    Esta parte do filme, o envolvimento dos serviços secretos já me parece bem mais interessante e grave. Desde logo porque o depoimento de Frederico Pinheiro revela uma tentativa de intimidação, ao mesmo tempo que lhe exigiam que devolvesse o computador e as notas tiradas na reunião com a CEO da TAP.

    Eugénia Cabaço não negou o envolvimento das secretas, mas não revelou quem deu a ordem. É aqui que tudo fica mais apimentado. Não chega a guião de Hollywood, mas já cheira a mistério com actores de qualidade B.

    Tal como a ameaça de Galamba ao adjunto (de lhe dar dois socos), que é facilmente comprovável pelo registo das chamadas (qualquer engenheiro de telecomunicações pode explicar isto), o envolvimento do SIS não deve ser muito difícil de comprovar. Ou melhor dizendo, será difícil João Galamba esconder essa realidade se, de facto, tiver acontecido. E se for assim, se o PS andar a usar as secretas para arrumar a casa, o caso muda totalmente de figura. É a prova cabal e final de que este Governo de maioria assume o Estado como o seu quintal e Portugal como a sua coutada. Os verdadeiros donos disto tudo sem pejo nem pudor.

    a large jetliner sitting on top of an airport runway

    O que parece ser consensual e, honestamente, a única verdade até ao momento, mais ou menos confirmada, é que de facto Frederico Pinheiro tomou notas na reunião de preparação com a CEO da TAP. Notas essas que, como se percebe, seriam incriminatórias para João Galamba (noutra prova de que o PS domina os bastidores da política), e acabaram por precipitar todo o enredo que resultou neste final triste e degradante, na comissão de inquérito.

    Tem a palavra Galamba para mais um dia de circo na República e umas boas 5 horas de transmissão televisiva.

    Cá fora, onde a vida real acontece, o cabaz de produtos básicos ficou mais caro, um mês depois do Governo anunciar o IVA zero sobre alguns bens de consumo. É aqui, neste rodapé informativo, que assenta o verdadeiro drama de Hollywood.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A viagem da vida, os momentos irrepetíveis e as dúvidas inexistentes

    A viagem da vida, os momentos irrepetíveis e as dúvidas inexistentes


    De tempos a tempos, dou por mim em debates sobre encruzilhadas da vida que me agradam. Aqueles momentos que, tipicamente, nos recordamos anos mais tarde como decisões que se revelaram acertadas. Alguém de quem gosto muito, há dias perguntou-me o que achava de uma pausa na carreira, de um despedimento repentino, de uma paragem nas rotinas diárias, para ir ver o mundo. Ou, como lhe chamam nos países desenvolvidos, um gap year

    Em Portugal, isto gera discussão e provoca dificuldades. Nos países da Escandinávia, por onde passei metade da vida adulta, é um passo comum na vida. Uma etapa. Há quem o faça trabalhando, há quem o faça no início do percurso académico. Mas não há nada de estranho, em determinado momento da vida, em sair para a estrada e seguir à descoberta.

    black and silver camera on yellow and blue floral textile

    Quem me conhece, como era o caso do meu interlocutor, sabe que é uma pergunta retórica. Sou um péssimo conselheiro nestas ocasiões, porque para mim, depois das relações entre pessoas, não existe nada mais importante do que viajar.

    Soará talvez a algo fútil nos dias que correm e no meio das dificuldades que se conhecem, mas é o que verdadeiramente penso. Poucas coisas na vida são tão importantes como conhecer outros sítios e abrir os olhos para o mundo. Começa aí, a meu ver, o verdadeiro conhecimento da nossa realidade e do papel que temos neste planeta recheado.

    Uma das minhas partes preferidas neste debate é o medo de se perder o emprego perfeito. Era essa a grande dúvida de quem comigo falava. “O que vou fazer depois de perder o emprego perfeito?”. Ou seja, o medo de se perder algo que não existe. Existem pessoas perfeitas, que nos completam e cuja existência dá outro sentido à nossa vida. Existem momentos perfeitos que perduram na nossa memória e que emolduramos na galeria dos sorrisos. Não existem empregos perfeitos. Especialmente para a grande maioria que, como nós, trabalha para garantir o seu sustento ou da família.

    a couple of people that are walking in the dirt

    Existe um contrato, uma troca, um acordo. Força de trabalho por dinheiro, de preferência em quantidade suficiente para aguentar BCEs, Ucrânias e inflações. Não há juras de amor a uma empresa ou lealdade eterna a um empregador. Há profissionalismo e dedicação séria, enquanto o contrato durar. Depois, fecha-se a gaveta e entrega-se essa mesma dedicação e lealdade ao próximo sortudo que connosco fizer um contrato.

    Sim, sortudo. Sorte do empregador que encontra um trabalhador dedicado.

    Sempre que aparece esta conversa, já lhes perdi a conta, por norma com pessoal na casa dos 30 anos (imagino que seja a primera fase da vida em que pensamos “e agora?”), lembro-me de um rapaz que conheci há 15 anos, na Suécia.

    Voltei-o a vê-lo há poucos dias no IKEA, mas só me apercebi quem era uns dias depois. Tínhamos ambos 30 anos e eu ia no meu sexto ou sétimo ano de trabalho. Ele cumpria, naquele dia, o seu primeiro na Engenharia.

    man sitting on gang chair with feet on luggage looking at airplane

    Perguntava-me, em surdina, como é que alguém tinha o seu primeiro emprego aos 30 anos, e como é que o mercado absorvia uma pessoa assim. Tinha chegado há pouco tempo de Portugal, eu, e ainda vinha com a cabeça formatada para as sequências impostas da vida: escola, universidade, trabalhar aos 24, casar, ter filhos, criar uma boa barriga aos 30, ser promovido aos 35 e ficar na mesma função até à reforma.

    Ainda ecoavam na minha cabeça as palavras daquela senhora de uma empresa de telecomunicacões (julgo que se chamava CBE), que na entrevista me disse: “você já tem 23 anos, o que andou a fazer da vida?” 

    Para mim, aquele rapaz, a chegar ao “mercado” aos 30 anos, devia ter um problema qualquer. As palas que eu tinha nos olhos não davam para ver mais longe.

    Um dia, já com alguma confiança entre nós, ele partilhou a história de vida. Disse-me que tinha trabalhado em bombas de gasolina, com vacas, em supermercados, na apanha da fruta. Pelo meio, tnha dado duas voltas ao Mundo e quando percebeu que a sua paixão era Engenharia, foi estudar e trabalhar na área.

    brown wooden boat moving towards the mountain

    Ao contrário de nós, que escolhemos o resto da vida numa idade em que mal sabemos o que se passa para lá do nosso bairro, ele teve a sorte de nascer numa parte do Mundo onde há tempo para viver e para se escolher o caminho certo. Ninguém ali era velho aos 30 anos e senhora alguma dos Recursos Humanos pensou que ele era um calão.

    Ele fez a escolha certa, no tempo apropriado e com a maturidade que lhe permitiu ser um óptimo profissional, pois sabia que aquele era o caminho a seguir. No primeiro dia naquela empresa, o curriculum dele já era bem mais recheado e interessante do que o meu, que andava há sete anos a bater em teclados.

    Bem sei que as oportunidades em Portugal não são as mesmas, e o mercado de emprego, absolutamente miserável, não se emociona com descobertas do planeta. Ainda assim, hoje, aos 46 anos, que pena tenho de só ter percebido esta realidade tão tarde e num momento em que a descoberta do Mundo já só podia ser feita aos bocados, em fatias de semanas e sempre com responsabilidades que não se podem adiar ou pausar.

    low-angle photography of two men playing beside two women

    Nascemos para descobrir e viver outras culturas. Não para trabalhar de sol a sol e pagar contas. É por isso que lutas como a dos franceses pela idade da reforma são importantes. Ou a dos professores por salários dignos. Há uma imensidão para lá da nossa rotina diária que exige tempo e dinheiro para ser descoberta. Pelo menos por quem tem essa curiosidade.

    Uma das coisas que nunca percebi, perdoar-me-ão, é quem passa uma vida inteira a ir de férias para o mesmo sítio. Seja o Algarve ou outra zona qualquer. Nunca percebi e até fico angustiado quando ouço ou leio “vou para sítio X há 30 anos”. Com um Mundo tão grande, não têm curiosidade de ver mais nada?  

    O meu sonho é um gap year. Fico feliz quando alguém de quem gosto pensa nisso e quase que me sinto a viver o momento. Vai, vai e vai, é sempre o meu conselho. Se não tiveres um filho ou alguém que depende de ti, vai. Se tiveres um filho e o puderes levar, vai. Se fores casado e a tua mulher alinhar, vai. Se ela não alinhar, esforça-te para a convenceres. Enquanto as pernas mexerem e o espírito se mantiver curioso, vai. Nada, absolutamente nada de mau chega com uma nova viagem. 

    man taking photo of hot air balloons

    Um dia chegará o meu Gap Year; pelas minhas contas, pouco depois de completar 50 anos, numa altura em que os miúdos serão adultos e estarão fora de casa a completar o último passo do sistema de ensino. Ou então a trabalhar, como me explicou recentemente o meu filho, com planos para atingir o primeiro milhão aos 18 anos. Tipo Trump, mas sem o empréstimo do pai.

    De uma forma ou de outra, com uns bons 25 anos de atraso, esse dia chegará. Provavelmente com os joelhos mais massacrados e as costas menos desejosas de chão irregular. Mas chegará.

    Para ti e para vocês, que estão agora na idade do rapaz que trabalhava nas bombas e apanhava morangos, assim que pensarem nisso pela primeira vez, vão. Não esperem pela dúvida. Aquela história da água que não corre duas vezes debaixo da mesma ponte, era mesmo verdade.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os invasores pela paz

    Os invasores pela paz


    Khader Adnan, um activista palestiniano, preso desde Fevereiro numa prisão israelita, morreu, nessa mesma prisão, no dia 2 de Maio, ao fim de 87 dias em greve de fome.

    Khader protestava pela forma como tinha sido detido e mantido em cativeiro, sem qualquer acusação formal. Ou como as forças de segurança israelitas costumam dizer, uma quarta-feira no escritório.

    A semana que se seguiu à morte do activista palestiniano foi de protesto popular nas ruas da Cisjordânia e, segundo Israel, de ataques vindos da faixa de Gaza (rockets).

    A escalada de violência não tardou e, como é habitual nestas situações, Israel arrasou tudo à sua passagem: matou líderes da resistência palestiniana, civis, mulheres e crianças.

    Entre as tricas do Galamba, a eterna contra-ofensiva ucraniana e a maldita inflação, não vi grande destaque sobre mais este crime perpetrado pelo mais antigo invasor ainda em actividade.

    É, aliás, sintomático dos tempos que correm: discutimos até à exaustão uma guerra que não é nossa e enchemo-nos de moral para defender o David do Golias russo, o invasor que a todo custo queremos impedir de ficar com o Donbass.

    Parece-me um bom princípio, e até dou de barato o verdadeiro despique entre impérios às custas do povo ucraniano, que não tem qualquer peso na decisão do seu próprio destino. Combatem uma guerra enquanto os patrocinadores assim o entenderem. No dia em que não forem úteis, ficarão sozinhos.

    man waving flag

    Mas o princípio é bom. Respeitar a integralidade territorial dos vizinhos é sempre uma boa forma de manter a paz no bairro.

    Nada disso se aplica aos palestinianos há pelo menos sete décadas. A nossa indiferença mantém-se olimpica e historicamente inalterada. Nem para notícia de rodapé estes desgraçados servem.

    Ter dois milhões de pessoas a viverem em 365 quilómetros quadrados (a dimensão da Faixa de Gaza), completamente enclausurados e vigiados pelos carcereiros, é uma situação de normalidade a que o Mundo se habituou. Já nem pensamos sequer no horror que é viver numa prisão a céu aberto. 

    De igual forma, mudamos de canal quando aparecem mães aos gritos com crianças mortas no colo em Rafah. Há quantos anos vemos essas imagens? Isto quando aparecem sequer no jornal da noite… Alguém se lembra de um painel de especialistas militares, comentadores e empregados de mesa da NATO a debaterem o tema em horário nobre, numa qualquer televisão portuguesa?

    people gathering on street during daytime

    Não. Claro que não. É absolutamente normal ouvirmos, ainda que brevemente, relatos de semanas como esta. Semanas em que voam rockets de Gaza para Jerusalém ou Telavive, tranquilamente anulados pelo Iron Dome (sistema de defesa israelita), e respostas da força aérea na Faixa de Gaza, aniquilando tudo à sua passagem. Homens, mulheres, crianças. Velhos, novos, civis ou combatentes. Vai tudo.

    Aqui não existe um David ou sequer um Golias. Existe um povo ocupado, vigiado 24 horas por dia, com regras para entrar e sair de casa e, pior do que isso, bombardeado regularmente num território sem escapatória possível. 

    Quem procura justificar os crimes de Israel, nos colonatos da Cisjordânia ou na faixa de Gaza, está no nível intelectual de quem mete veneno num aquário e se admira por os peixes não conseguirem escapar com vida.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Esta semana, com a cumplicidade do nosso silêncio e desinteresse, foi mais uma de reacções desproporcionadas nesta guerra desigual. Foi mais uma semana que a uma chapada se respondeu com um martelo. Mais uma semana com zero mortes de um lado e dezenas do outro. Mais uma semana com prisões, violência e encarceramentos sem qualquer acusação ou fundamento legal.

    Foi, essencialmente, mais uma semana em que o Estado de Israel disse ao Mundo que faz o que quiser na região e não dá contas a ninguém, que não ao seu aliado americano, com quem votam isoladamente nas Nações Unidas, a cada ano, a continuidade do embargo a Cuba. É uma parceria que garante continuidade do poder e que espeta, nos olhos do Mundo, quem manda e quem deve obedecer.

    Khader Adnan foi mais um que morreu pela causa palestiniana perante a cumplicidade, o desprezo e a aprovação da tão famosa comunidade internacional. Tal como os que se revoltaram com a sua morte e foram bombardeados. Tal como todos os que deram a sua vida, durante décadas, na luta contra um invasor declarado e assumido.

    black and gray bird on gray concrete wall during daytime

    Esta semana de silêncio também explica, pelo menos a mim, por que razão nunca embarquei em moralismos no Donbass ou nos caminhos para a paz. Impérios matam, roubam, violam e alargam território. Por isso são impérios.

    Ou se é totalmente anti-imperialista, venham eles da Sibéria, Alasca ou Hong-Kong, ou então aceitamos a lei do mais forte.

    Não me venham com guerras a “todo o custo” em Bahkmut, enquanto mudaram e mudam de canal a cada morte na Palestina. E isto há 70 anos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Costa passa, Marcelo apara no peito, e chuta…será golo?

    Costa passa, Marcelo apara no peito, e chuta…será golo?


    É tempo de levantarmos os nossos copos e brindarmos a António Costa.

    Pode ele não ser grande coisa a escolher ministros, a ouvir recomendações para combater pandemias ou a decidir o melhor trato para dar ao dinheiro dos nossos impostos – mas é um ás a esgrimir a espada dos bastidores da política.

    Ainda Pedro Nuno Santos afirmava, em direto, onde ficaria o novo aeroporto, e Cabrita acelerava como se não existisse amanhã – e já António Costa bailava pelos pingos da chuva ácida sem nunca se queimar.

    Não lhe aprovaram o Orçamento de Estado – e foi a eleições, novamente, para passar de uma maioria relativa para absoluta. Meteu Rui Rio num bolso e usou o Chega com a mestria de aprisionar a direita. Quando as sondagens lhe deram empate técnico durante uma semana, foi vencendo a retórica dos debates e nunca perdeu o rumo.

    Com a maioria do Parlamento, passou, ao contrário do que se esperava, a gerir escândalos semanais sem sujar as mãos.

    Ventura grita pela queda do Governo a cada problema com um secretário de Estado. Montenegro chama Costa à pedra em cada calinada de ministro.

    Mas Costa não cede. Fala quando quer, como quer e com quem quer. Com o governo a ser devorado pelos escândalos da TAP, António Costa consegue planar sobre os destroços. Ora apresenta um programa para a habitação, ora anuncia mais uma ajuda financeira pontual.

    Não há rumo, não há terra à vista. Navega-se ao sabor do vento. Todas as semanas cai alguém, desconfia-se de alguém, substitui-se alguém.

    Eu deixei de contar os casos há algum tempo, até porque não tenho memória para tanto. O PS tomou conta deste pequeno quintal a que chamamos Portugal e reina – reina é a palavra – a seu bel prazer, fazendo de cada ministério a sala de estar lá de casa.

    Quando se pensava que tínhamos batido no fundo – com ministros, deputados e assessores a ensaiarem respostas com a CEO da TAP, antes do inquérito na comissão parlamentar –, conseguimos, ainda assim, cavar mais fundo. Há agressões num ministério, computadores roubados, um assessor que está pronto a contar as maroscas e um Galamba totalmente em xeque.

    Ninguém, no seu perfeito juízo, pensava que António Costa aguentaria o ministro. A situação estava muito para lá do aceitável, mesmo se pensarmos na Escala Cabrita.

    Mas Costa surpreendeu – bailou. E fez uma jogada de mestre, no que a política diz respeito. Arranjou um conflito com o Presidente da República para defender o jovem turco. Não é que Galamba seja ouro raro, mas, de momento, dá um jeito enorme. O ónus da culpa ficou no assessor, que é arraia-miúda e não deverá fazer grande estrago.

    Marcelo, que defendia a demissão de Galamba, foi desautorizado, e assim capitalizou o foco dos media. De uma assentada, deixámos de falar na greve dos professores, na miséria que a guerra da Ucrânia e as taxas de juro nos estão a trazer, da TAP, dos custos da habitação, do IVA zero, da inflação e dos baixos salários.

    Toda a agenda política e todos os problemas que afectam os portugueses desapareceram do ar. Lembrem-se: o que não aparece na televisão, não existe.

    Costa repetiu o clássico movimento de desviar as atenções. Um pouco como a Argentina em 1982: a braços com uma grave crise financeira e violentos protestos nas ruas, decidiu o Governo invadir uma ilhota, ali ao lado, onde viviam uns cem ingleses. O resultado final foi o que se sabe, porque a Dama-de-Ferro não era de grandes azeites – mas, por uns meses, a pátria uniu-se num desígnio comum.

    Agora, é Costa que aproveita o caótico momento do Governo e usa Galamba para uma jogada de mestre: passa a bola para Marcelo, e o nosso comentador preferido, mal acabe aquele gelado de framboesa e limão, terá várias batatas quentes para descascar. Com as mãos.

    Se Marcelo optar pela queda do Governo, coloca Costa no papel de vítima, da vítima que ficará impossibilitado de executar o Programa de Governo, o PRR e por aí fora. Fica ainda com o peso de poder ter transportado a extrema-direita para o arco da governação.

    Se fingir que não vê nada, Marcelo coloca-se no papel de bibelot de Belém e deixará de ter relevância até ao fim da sua magistratura.

    Aconteça o que acontecer, Costa ganha. E enquanto vai e vem o pau, folgam as Costas – ou seja, abranda a contestação ao Governo.

    E tudo isto pelo preço de um Galamba. Não está mau, não está nada mau.

    Tem, entretanto, a palavra Marcelo, hoje, às 20 horas desse fuso horário de Lisboa.

    Vamos a apostas? Eu digo que não lança a bomba atómica: um gelado é sempre bom conselheiro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sócrates e o nosso sangue latino (fora de prazo)

    Sócrates e o nosso sangue latino (fora de prazo)


    A possibilidade de José Sócrates não ser sequer julgado, por prescrição dos crimes num prazo de 10 e meio anos – que ocorrerá em Maio de 2025), embora expectável, é um embaraço enorme para a República Portuguesa.

    Segundo Rogério Alves, antigo bastonário da Ordem dos Advogados, esta é uma consequência dos chamados mega-processos: quilos e quilos de papel, dezenas de arguidos e testemunhas, crimes todos juntos e amontoados, tornando a gestão da coisa praticamente impossível. Ou, usando as palavras dele, é como andar na estrada com um carro de 50 x 10 metros: simplesmente não dá para estacionar em lado nenhum.

    Não só o trabalho de produzir a acusação se torna uma dor de cabeça, e uma espécie de corrida contra o tempo, como as possibilidades de sucesso multiplicam-se para quem defende e procura empatar o processo.

    Dizem-nos, hoje, que teria sido preferível construir e argumentar com pequenos casos, menos crimes agrupados e ir várias vezes a julgamento. A Justiça não só é lenta na sua execução, mas também, ao que se percebe, na sua própria compreensão.

    Estes mega-processos chocam, julgo, por sabermos que nada neste espectáculo está acessível ao comum dos mortais. A Justiça em Portugal é célere e implacável com os pobres e extraordinariamente lenta e ineficaz com os ricos. Já repetimos este mantra há tanto tempo que parecemos ficar imunes a ele.

    O caso de José Sócrates é ligeiramente mais problemático porque os crimes, ou alegados crimes se preferirem, remontam ao tempo que o senhor era primeiro-ministro. E nessa altura, se bem me recordo, Sócrates era um tipo popular, com uma forte base de apoio e até, digamos, algum estilo fora de portas a que não estávamos habituados.

    brown wooden stand with black background

    Depois do saloio Aníbal, do pacato e sem carisma Guterres, do servente de cafés Barroso, do embaraço Santana, e antes de Passos Coelho, capacho de Angela Merkel, era Sócrates uma figura política que não nos envergonhava. Bem sei que hoje ninguém o assume, mas eu lembro-me do regozijo da imprensa e dos analistas políticos de então.

    Clara Ferreira Alves, hoje uma crítica absoluta do PS, era nessa altura uma grande defensora do “animal feroz” que corria maratonas. Quem não se lembra de Sócrates a fazer o jogging matinal na Praça Vermelha ou a dizer ao ministro das Finanças holandês se “queres que te passe um cheque?”, quando este acusava os portugueses de não pagarem dívidas e gastarem o dinheiro em meninas e vinho verde.

    Sócrates tinha carisma e estudava antes de abrir a boca.  Era bom de paleio. Era português, para o bem e para o mal. Hoje, claro está, todos dirão que “nunca me enganou”. Mas enganou. Enrolou-nos bem, ainda mais do que o Cavaco quando disse que o BES estava seguro.

    As (alegadas) trafulhices são de tal ordem que eu acabo sempre por me desligar dos processos. Quando a quantidade de crimes chega aos dois dígitos e já se gerem por uma tabela Excel, uma pessoa perde o interesse pela fogueira da corrupção. De imediato assumimos que temos filme para anos e, com alguma certeza, poderoso algum chega a Custóias.

    No caso do Sócrates, eu ficava sempre preso em dois aspectos. Primeiro, por que não seguiam as autoridades o percurso do dinheiro? Um homem que passa 10 anos a suportar uma defesa caríssima, a viver entre Paris e Rio de Janeiro e, oficialmente, declara a reforma de antigo primeiro-ministro, é um mistério da Matemática. Salário algum (oficial) de um político em Portugal paga a vida de Sócrates, e, entre histórias do cofre da mãe e empréstimos do amigo, alguém conseguirá ver pagamentos e registos de dinheiro a circular. Os advogados não devem ser pagos com bananas nem todos os primos, que lhe vão emprestando casas, devem ter contas bancárias na Suíça.

    Outro mistério é a razão de todo o conjunto de juízes portugueses se reduzirem a Ivo Rosa, o clemente, ou Carlos Alexandre, a rock star. Não há mais ninguém que consiga fazer o trabalho?

    Mas o extraordinário mesmo são os anos que se levam para preparar uma frágil acusação, desmontada por estagiários apenas nos erros processuais, conseguindo, sessão após sessão, novos adiamentos. A lei portuguesa é tão ultrapassada no que toca a aceitar ou produzir provas que, para um rico, é virtualmente impossível chegar ao dia da condenação.

    red white and blue flag on gray concrete building near body of water during daytime

    Este caso é tão sujo que ninguém, de bom senso, acredita na inocência de nenhum dos lados. O processo de José Sócrates é de índole criminosa, mas dificilmente se excluirá a componente política. Que outro primeiro-ministro, autarca ou deputado, foi preso em direto para as televisões? Como é que as televisões sabiam sequer da investigação da PJ e do momento da prisão?

    Mais ou menos corrupto, mais ou menos perseguido, mais ou menos rico, certo é que hoje, em 2023, é quase certo que José Sócrates nem sequer irá a julgamento. E provavelmente, entre declarações de repúdio e juras de inocência, continuará a viver uma vida de luxo, com empregos alternativos que vão aparecendo em empresas fantasma, sem que alguém perceba de onde lhe chega o financiamento.

    Como se sente o contribuinte que trabalha por conta de outrem que, ao fim dos primeiros 10 dias do mês já não tem salário e, a cada visita ao Pingo Doce, mete mais umas bananas no cesto, depois de pesar um cacho só com três ou quatro delas? Não, não estou a ensinar truques. Vi num estudo.

    Andamos nisto há décadas. A empobrecer enquanto as elites políticas se vão enchendo de dinheiro, roubando todos, construindo vidas pela calada. Sócrates foi apanhado e não pagará. Quantos nunca foram apanhados? Quantos estão a roubar neste momento? Como é que se vive no meio de tanta desonestidade na coisa pública e, principalmente, como é que se normalizou o roubo e o tráfico de influências, perante a indiferença do povo?

    euro banknote collection on wooden surface

    Não é preciso ser um génio para perceber quem é que vai capitalizar mais esta barraca da Justiça. Depois de Lula, Sócrates será a munição de Ventura. Aos gritos na bancada, gritará ele “vergonha” e clamará por mais honestidade na política.

    Para Portugal, chegados ao estado actual, restam duas soluções: morrer da doença ou morrer da cura.

    Que sangue latino, fora de prazo, é este que afinal nos corre nas veias?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dia mais bonito

    O dia mais bonito


    “Somos muitos, muitos mil para continuar Abril” é uma das frases mais repetidas a cada aniversário da Revolução dos Cravos. A frase terá diversas interpretações, admito; a minha é que o 25 de Abril de 1974 ainda não cumpriu todos os seus objectivos.

    Temos democracia, que era o objectivo principal, mas falta-nos justiça social, igualdade, prosperidade, solidariedade e até honestidade nas elites que nos dirigem.

    A prova que Abril ainda não está cumprido é que, também por esta altura, aparecem sempre os desiludidos da democracia que enaltecem os benefícios do Estado Novo. Se há momento da vida em que não podemos meter um “mas” na discussão é quando comparamos um regime democrático com uma ditadura. Por pior e frágil que seja a democracia, nada é pior do que viver em ditadura, sem liberdade e sem opinião.

    Um dos desiludidos da democracia é o meu colega de jornal, Luís Gomes, que escreveu ontem um texto sobre o 25 de Abril que me deixou os olhos a arder para conseguir chegar ao fim. Percebo agora melhor o sofrimento de liberais e simpatizantes da extrema-direita quando me tentam ler.

    O Luís começa a prosa com o seguinte parágrafo: “Na verdade, nunca o quase milenar povo português viveu debaixo de tanta propaganda, mentira e manipulação. Os últimos três anos foram paradigmáticos, nunca como agora a Administração Pública foi tão obscurantista: nada informa, nada partilha, nada publica, apesar da lei e a Constituição da República (CRP) obrigá-la a ser transparente.”

    Isto leva-me a pensar que, se calhar, seria boa ideia começar com uma piada para desanuviar o clima.

    Portanto, nunca o povo português viveu no meio de tanta propaganda, mentira e manipulação como agora, é isso?

    Portanto, tínhamos um povo que foi ensinado que a salvação era uma pessoa e um regime de partido único, que foi enviado para uma guerra a milhares de quilómetros de casa sem saber porquê e a quem diziam o que pensar e o que escrever…

    Nunca se tinha visto tamanha manipulação até aos dias de hoje, é isso?

    No mínimo, temos aqui um conceito bastante elástico sobre o que é a manipulação das massas.

    Sobre a parte em que o Luís afirma que a Administração Pública nada informa nos dias de hoje, eu penso logo no lápis azul de outros tempos.

    A informação chegava, de facto, mas era previamente seleccionada consoante os interesses do regime.

    Com todos os defeitos da democracia, meu caro, ainda assim prefiro os dislates do Correio da Manhã. É um facto que falam em mortes todos os dias, mas, até ver, ainda não arranjaram nenhuma por conta própria.

    Há uma frustração constante na prosa do Luís com a pesada carga fiscal que se abate sobre os portugueses. Aqui estamos de acordo. Também acho que o Otelo não planeou isto para o Costa nos ir ao bolso desta maneira. O meu colega diz até que o Estado Novo foi “de longe e sem qualquer margem de dúvida aquele que mais enriqueceu, em termos relativos, o povo português nos últimos 200 anos”.

    Ao contrário do Luís, eu não sou economista e não domino os termos técnicos do enriquecimento, de modo que resolvi ir ler os mestres da teoria do enriquecimento. E da liberdade, já agora.

    Em 1962, disse António de Oliveira Salazar: “Um país e um povo que tiverem a coragem de ser pobres são invencíveis”. Foi pena aquele incidente desagradável com a cadeira porque, quiçá, Salazar pudesse ter vivido o suficiente para perceber a quantidade de ricos que semeou no povo português. Foi pena.

    O trauma com o Estado Social parece vir de longe. Há pouco mais de três anos, noutro texto desanimado sobre o 25 de Abril, no jornal Eco, escreveu o Luís: “Em 1965, em plena guerra colonial, o estado português tributava cerca de 15% do nosso rendimento. Actualmente [2020], confisca 35%, um máximo histórico, com uma agravante: não parece que a coisa fique por aqui, dada a voracidade por mais receita fiscal e a necessidade de alimentar as clientelas que se alimentam do orçamento de estado”.

    Confesso que ao ler isto fiquei com pena de não ser vivo no glorioso ano de 1965. Imagine-se o regozijo daquela malta com 15% de impostos – curiosamente, o número mítico (flat) defendido pelos liberais – a viver como uns lordes, enquanto davam o salto para fugir da guerra ou tentavam sobreviver nas matas africanas.

    O Luís esqueceu-se de referir os 0% de impostos com que os 10 mil soldados portugueses mortos no Ultramar foram agraciados.

    Portugal foi um dos países europeus que não saiu arrasado da II Guerra Mundial e com dinheiro em caixa. Tal como a Suécia, curiosamente.

    Aqui pelo Norte, eles colocaram o dinheiro em habitação, em escolas e em hospitais – opções de uma democracia.

    Em Portugal, uma ditadura de partido único, enquanto castrava as mais elementares liberdades, empobrecia numa guerra sem sentido, de 13 anos, a milhares de quilómetros de distância. Pelo meio, ainda arrasava uma geração de jovens ou os condenava à emigração.

    O país profundamente atrasado, isolado e pobre, que cobrava menos impostos, prendia e matava pessoas por manifestarem opinião divergente. Tinha, em 1970, depois de 44 anos de ditadura, 25% da população analfabeta. Repara Luís: não eram pessoas com a quarta classe ou com o secundário incompleto. Eram analfabetas.

    Hoje, com todos os defeitos da democracia, este número é inferior a 3%. É verdade que alguns destes, que entretanto aprenderam a ler e fizeram a quarta classe, acabaram a votar no Chega, mas, compreenderás, como dizia Churchill, que de entre todos os sistemas imperfeitos, este – a democracia – é o melhor.

    Não há, por mais queixas que possamos ter do Centrão que nos governa desde sempre, lugar a um “mas” algum. A pior democracia é melhor do que qualquer ditadura. Ponto.

    Podemos votar, podemos mudar, temos alternativas. Tu, desiludido confesso da Revolução dos Cravos, podes fundar um partido ainda mais liberal do que a Iniciativa Liberal, e tentar angariar votos com uma política da selva: nada de impostos, nada de Estado Social, cada um por si. E está tudo bem.

    Se outros pensarem como tu, podem mudar as políticas do Estado. Se fosse na gloriosa década de 60, e não estivesses contente com as políticas do regime, ias arrefecer as ideias para Peniche e se continuasses a reclamar, ias fazer sauna para a “Frigideira” (Tarrafal), em Cabo Verde.

    Eu prefiro pagar mais impostos, ainda assim, e ficar em brasa quando ouço tudo o que vai do PS para a direita, inclusive.

    Repara: uma das vitórias de Abril é, por exemplo, poderes escrever uma crónica destas e seres publicado. A beleza da conquista da liberdade e do direito à opinião, de que hoje beneficias.

    E, curiosamente, uma das razões pela qual Abril está incompleto é exactamente a mesma: 49 anos depois, ainda alguém conseguir encontrar pontos de contacto com o Estado Novo.

    A Revolução dos Cravos foi das poucas coisas em que acertámos enquanto povo. Estamos cá para a continuar. Sempre.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Bem-feito por portugueses, fora de Portugal

    Bem-feito por portugueses, fora de Portugal


    Num espaço de poucos meses, o meu cenário profissional alterou-se. Os prazos esgotaram-me e as equipas de Engenharia, responsáveis pelo desenvolvimento de carros eléctricos, passaram a trabalhar a contra-relógio.

    Há dois problemas base nesta indústria dos popós.

    O primeiro é termos deixado de produzir veículos que nos levam de A para B para passarmos a produzir plataformas de entretenimento em cima de rodas. Ou seja, iPads com motor.

    street time lapse photography

    O segundo, consequência do primeiro, é que as pessoas se aborrecem depressa e, tal como nos iPhones, é preciso andar constantemente com novidades no mercado – ou, como diria Steve Jobs, a vender a mesma coisa com um novo design a um preço mais alto.

    Há 10 anos, um carro desenvolvia-se em quatro anos e durava 10. Agora, cria-se em pouco mais de um ano e ao fim de dois já precisa de uns retoques. Óptimo para a bolsa de emprego, péssimo para os Verões em casa com a família.

    Há, na verdade, ainda um terceiro problema, desde os primórdios, quando se contratou o primeiro profissional de propaganda: por norma, os génios do mercado e artistas do marketing prometem, naquelas galas de apresentação, coisas sem fazerem a mínima ideia daquilo que custa inventá-las.

    Assim, os departamentos de Engenharia descobrem que devem criar um carro com asas, movido a azeite, não poluente, que se desloque sozinho e que venha com cinema e máquina de pipocas – e, de preferência, pronto para o mês que vem.

    man in black jacket standing beside white sedan

    No meio do arranca-rabo que acontece, e das cabeças que vão rolando, ouço gritos. Nunca tinha ouvido gritos, e muito menos este tipo de exigência, na pacata e tranquila Suécia. Não se importa apenas o investimento chinês, mas também, aparentemente, alguns métodos de trabalho. O meu empregador é uma multinacional chinesa do sector automóvel.

    No meio desta confusão e loucura em que se tornaram os sete dias da semana – sim, sete –, aparecem seis portugueses: uma equipa inteira de putos, com poucos meses de experiência, mas que, ao fim de poucos dias no lagar, já estão a produzir azeite de finíssima qualidade.

    Engenheiros roubados a Portugal que chegam aqui sem nunca terem recebido um salário desse lado, e que, em pouco tempo, se adaptam a tudo o que lhes aparece pela frente: ao clima que não ajuda ninguém, ao modo de vida, aos ritmos de trabalho, às tecnologias que nunca viram. Aprendem enquanto vão fazendo, e destacam-se perante colegas muito mais velhos, com anos disto.

    Olho para eles, e pergunto-me de onde virá tanta fome de aprender e, especialmente, tanta garra de colocar no mercado algo que nunca conseguirão comprar. Aqui entre nós, sinto algum orgulho neles. Não são meus filhos e, até há pouco tempo, nem os conhecia, mas a contribuição, entre tantas equipas, eleva, na minha opinião, o nome de Portugal.

    white metal frame on brown wooden table

    Por cada um que chega e apresenta bons desempenhos, há sempre alguém do lado de quem contrata que pergunta: “há mais destes por lá?”.

    E, dessa forma, acabam por ir abrindo caminho para o seguinte. São elogiados. Ouço-os várias vezes a receberem elogios. Imagino que fiquem satisfeitos com o reconhecimento numa fase tão precoce da carreira.

    O que seria do nosso país se conseguisse reter todo este talento, nas diversas áreas, que emigram aos milhares todos os anos?

    As diferenças de formação são também óbvias entre portugueses e outras nacionalidades. Não vou aqui referir quais são essas nacionalidades, mas direi, pelo que vejo em redor, que os tempos de aprendizagem são muito menores para estes miúdos que fogem dos lusos subúrbios e se lançam na selva da emigração sem grandes dúvidas ou receios.

    O ensino público português é bom. Pelo menos, na minha área, posso perfeitamente comprovar que o investimento feito não é desperdiçado. Pode não ir para o PIB português, mas vai, com alguma certeza, para o PIB de um país desenvolvido qualquer.

    brown wooden table and chairs

    E pergunto-me: onde é que errámos? Como é que ficámos tão pobres? De que forma é que fazemos este pessoal regressar e produzir em Portugal? São as três questões que coloco quase diariamente.

    Triste fado de um país que forma, e bem, para benefício de outros.

    Enquanto isto, para o ano, quando virem o novo e pequenino Volvo eléctrico na rua, ou o magnífico Polestar 4, saibam pelo menos que uma fatia do que lá vai dentro foi exclusivamente feito por portugueses.

    E se tiverem um, aproveitem. Se forem como eu, que só trabalho neles, mas nunca os compro, em todo o caso apreciem, com ligeiro orgulho lusitano, quando passarem na faixa da esquerda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.