Etiqueta: Visto de Fora

  • A história do hospital em Gaza

    A história do hospital em Gaza


    O bombardeamento do hospital em Gaza tem tudo o que precisamos para um bom enredo conspirativo. Adianto-vos que não contribuirei para esse peditório, mas, como tudo nesta vida, as argumentações deixam-me a pensar. A história fez-me lembrar, por momentos, a discussão em torno da explosão do gasoduto “Nord Stream”, atribuído a russos, americanos e agentes europeus da NATO. Já passou um ano e não se chegou a lado nenhum que não fosse um enredo de novelas da conspiração.

    No caso do hospital em Gaza, pessoalmente acredito em qualquer cenário: acidente do Hamas ou falha não assumida de Israel. E são 500 mortos ou 50? Importante mesmo é que mais umas dezenas de inocentes, ainda por cima a receber assistência, foram vitimados por esta guerra. Por vezes, no meio desta passagem de culpas e troca de estatísticas, parece-me que nos esquecemos que a única coisa indiscutível é a morte diária de civis inocentes.

    caution children playing graffiti

    Vou no quarto texto seguido sobre este tema aqui no PÁGINA UM e, ao fim de 10 dias de bombardeamentos, as mortes ascendem a 4.000 entre palestinianos, com cerca de 12.000 feridos. O lado israelita mantém-se estável desde os primeiros dias do conflito, com cerca de 1.200 mortos. É, aliás, curioso que enquanto se discute diariamente o direito de Israel a defender-se, os bombardeamentos e mortes não param de aumentar na Faixa de Gaza. Quem ouve os debates imagina que a invasão terrestre é que trará o “direito à defesa”, mas esse, juntamente com a vingança mais do que assumida, está em curso a cada hora que nos sentamos a ouvir os relatos e as diferentes narrativas.

    Reparem como o ciclo de qualquer guerra se repete e, essencialmente, se ganha não só no terreno mas também na comunicação. Lembrar-se-ão, certamente, dos périplos que Zelensky fazia um pouco por todo o Mundo Ocidental em busca de apoio para a causa ucraniana, referindo sempre um momento histórico marcante do país que o recebia. Ontem, Benjamin Netanyahu, dirigindo-se a Rishi Sunak, o primeiro-ministro inglês, disse-lhe que o “Mundo esteve com Inglaterra na sua hora mais negra [referência aos ataques alemães na II Guerra Mundial] e que, agora, Israel esperava o mesmo do Mundo.

    Importa criar condições para continuar a ocupar um território, aprisionar e matar indiscriminadamente, sem passar a bárbaro e/ou terrorista. Graças ao apoio norte-americano nas Nações Unidas, na vertente bélica e financeira, esse papel por parte de qualquer Governo israelita é não só possível como bem real. Os restantes do chamado Mundo Ocidental, com o Reino Unido à cabeça, limitam-se a seguir as indicações da potência dominante. Eis como funciona o Mundo neste conflito.

    blue and white printer paper

    Ainda assim, e voltando ao início, há coisas que eu não percebo, e como também certamente nunca terei hipótese de perguntar a quem de direito, escrevo aqui. Há meses que a Europa e os Estados Unidos afirmam que esgotaram as suas reservas de armas e munições e, por isso, a Ucrânia teria de esperar. Mas mal rebentou a primeira bomba em Gaza, os Estados Unidos começaram a fornecer armas e munições a Israel, o que resultou na demissão de uma alta patente no Governo de Biden, em forma de protesto por mais este despejar de ‘gasolina’ no Médio Oriente. Provavelmente, algures nos confins do Pentágono, há uma despensa maior para as eventualidades em Gaza.

    Outra dúvida que me assalta é a falta de contraditório à argumentação israelita. A história do rocket falhado pela Jihad Islâmica (nem foi o Hamas) que caiu no parque de estacionamento do hospital já corre Mundo. A Jihad Islâmica negou que tenha lançado qualquer rocket e, um pouco por toda a parte, os israelitas contam uma história afinada sobre um míssil que não era deles.

    No caso português, arranjaram um major que falava espanhol e que foi “entrevistado” pela Helena Ferro de Gouveia para nos contar a versão oficial de Israel. “Entrevistar” é uma força de expressão, porque durante seis minutos o senhor falou sem que lhe fizessem qualquer pergunta. Foi mais um tempo de antena. Entre outras coisas, disse ele que nos radares israelitas não havia qualquer bomba enviada para aquela zona.

    person holding green white and red flag

    Não digo que esteja a mentir, note-se, mas é como aqueles vistos que preenchemos para entrar nos Estados Unidos onde nos perguntam se andamos envolvidos em actividades terroristas.
    Parece-me uma dose de fé excessiva, esperar que um terrorista se identifique como tal. Mais ou menos o mesmo que esperar que um exército que envia uma bomba que acaba num hospital, ir a seguir a correr mostrar imagens de radar com a mesma. É a história da raposa que guarda o galinheiro.

    Disse ele também, o nosso major que falava espanhol, que uma das provas era uma comunicação interceptada entre dois membros do Hamas que discutiam a gaffe com o lançamento do rocket a(de outro grupo que não eles). Uma vez mais, também pode ser verdade. Se eu estivesse no lugar da Helena, ter-lhe-ia perguntado qual era o operador telefónico que garantiu a chamada entre os dois terroristas. Num território onde a luz falha e, de todos os operadores telefónicos, já só sobra um com antenas operacionais e a 60% da sua capacidade, seria curioso fazer um fact check mínimo. Mas não era para isso que a nossa Helena estava lá e também ninguém se vai aborrecer por causa disso. O senhor pode estar a falar a verdade, notem. Mas aparentemente, esta história é aceite sem que uma equipa independente esteja no terreno a averiguar.

    Há ainda outra frase que me anda aqui a beliscar a orelha e que fui ouvindo ao longo da semana – e não é nova nem original, e repete-se a cada conflito em Gaza ou na Cisjordânia: “Se nem os vizinhos os querem é porque não são boa coisa”, assim dito por populares, anónimos e comentadores com alguma responsabilidade, a propósito de Egipto e Jordânia se recusarem a receber refugiados.

    Ora, meus amigos, e por que razão deveriam os vizinhos abrir as portas para mais refugiados? Acharão porventura que já lá terão poucos? Desde que a ocupação israelita começou, cerca de 1,4 milhões de palestinianos mudaram-se para campos de refugiados espalhados entre Síria, Líbano, Jordânia e os próprios territórios ocupados em Gaza ou na Cisjordânia. E dali nunca mais saíram. Portanto, que motivo teriam os vizinhos para continuar a contribuir para o sucesso da invasão israelita? O que se devia discutir não é para onde os palestinianos devem ir, mas sim, porque necessitam de ir seja para onde for?

    Não haverá paz até que se criem os dois Estados e não há dois Estados com apenas uma potência dominante. Aqueles que ficaram felizes com o enfraquecimento da Rússia, escusam de chorar agora pelas milhares de crianças que vão morrendo em Gaza. Repito aquilo que disse em textos passados sobre o conflito no Donbass: não existem impérios bons ou maus, só existem impérios. E pior do que ter duas ou três super-potências, é claramente ter apenas uma a decidir por todos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números

    Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números


    Por estes dias, vou enchendo a paciência para lá do limite do saudável com histórias da carochinha e narrativas de virgens inocentes que já não consigo mesmo suportar. Sabemos já que uma das grandes vantagens de Israel nesta ocupação da Palestina, para lá do suporte financeiro e bélico dos Estados Unidos, é deter um departamento de marketing, infinitamente superior ao dos adversários, que serve para plantar histórias um pouco por todo o globo.

    Por exemplo, a CNN portuguesa entrevistou o embaixador de Israel e, pela mesma altura, um político representante da Palestina. Os discursos não poderiam ser mais diferentes. O primeiro, com um inglês impecável, dirigia-se ao pivot com um: “João, você vive em Portugal, é muito afortunado por isso, está em segurança. Agora imagine que ia ao NOS Alive, e, de repente, entrava por lá um grupo armado que começava a matar toda a gente!”

    man waving flag

    O João (Marinheiro) lá foi digerindo a coisa, e entretanto mete a pergunta fatal: “mas agora o que significa o direito de defesa de Israel?”. Nesta altura, já as mortes palestinianas tinham ultrapassado as baixas israelitas. O embaixador foi rodeando, rodeando, e dizia que não podia revelar os planos, mas que, depois disto, nem o Médio Oriente voltaria a ser o mesmo, nem o Hamas teria nova oportunidade de fazer algo semelhante. Quando o “João” lhe perguntou como é que iriam evitar as mortes civis, ele disse que iam fazer o melhor possível para salvar inocentes, porque, como se sabe, eles já estão lá para escudos humanos de qualquer forma.

    Portanto, com um jargão fantástico e a tranquilidade de quem nos tenta vender uma Bimby, o embaixador israelita foi apresentando o plano para terraplanar Gaza. E muito de vós foram ouvindo aquilo e pensando que, enfim, é natural, afinal, o Hamas matou mulheres e crianças inocentes e jovens num festival. Se agora dois milhões de pessoas, que estão presas desde que nasceram, tiverem de pagar mais um bocadinho, tudo bem, compreende-se. É a clássica lei de talião: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, mas transformada na versão ’olho por vários olhos” et cetera.

    Já o representante da Palestina, munido de um inglês mais rudimentar, dizia algo de puro e simples senso comum: se Israel viesse com uma proposta para os dois Estados e aceitasse negociar, o problema desaparecia. O conflito, o Hamas, o radicalismo, as mortes. E acrescentou, olhando para João Marinheiro: “acha que nós não gostamos de paz? O conflito começou quando eu era criança, e agora, quase a chegar à reforma, ainda não tive um dia de paz.”

    blue and white flag on pole

    O primeiro problema é que não há negociação, não é? Nem agora, nem em momento algum deste século. Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita com mais tempo no cargo (já vai na sexta vez), teve todas as oportunidades de trabalhar na opção que facilitaria a paz, mas o que fez foi incentivar colonatos e aumentar a repressão. Há entrevistas de Netanyahu nos Estados Unidos, no final da década de 70, onde dizia que o senado norte-americano não podia permitir a opção dos dois Estados porque seria injusto para o povo judeu. Nunca este homem quis outra coisa que não fosse expulsar os árabes das suas casas.

    Quando se fala do Hamas como a origem de todos os males, damos um passo maior no índice de estupidez do que aquele já tínhamos dado com a “origem do conflito na Ucrânia em 2022”: a Faixa de Gaza, que era controlada pelos egípcios, começou a ser povoada pelos palestinianos expulsos das suas casas depois da primeira guerra israelo-árabe, em 1948.

    Não sei se estão a perceber o que vem a seguir. Já os palestinianos viviam em campos de refugiados ou em zonas militarmente controladas há quatro décadas quando o Hamas foi fundado, no final da década de 80. Portanto, não é a coisa mais estranha do Mundo ver o surgimento de um movimento radical quando prendemos pessoas durante 40 anos. Bem sei que, pelos relatos do Antigo Testamento, não são tantos como os 400 anos dos judeus sob o jugo dos egípcios, e que só terminou de forma nada pacífica lembremo-nos, com o Êxodo de Moisés – mas sempre são 40 anos, não é?

    E já agora, apesar de não ser estranho, convém lembrar sempre que Israel achou uma óptima ideia o aparecimento do Hamas e até ajudou, porque lhes dava jeito que fizessem uma perninha na luta com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Bem sei que já falei disto, mas parece-me algo inacreditável que se repitam horas e horas a fio em horário nobre, sem explicar por um minuto que seja que esta gente não nasceu nas árvores, e que os sentimentos de ódio a Israel também não apareceram durante aquele concerto. Sem enquadrar as acções no contexto, estamos só a ter uma discussão de surdos sem qualquer interesse e puramente assente em ideologias.

    Entre 2008 e 2020, nos diferentes conflitos entre Israel e palestinianos, estimam-se 5.600 mortes e 115.000 feridos para o lado árabe, e do outro lado, 250 mortes e 5.600 feridos.

    Entendam-me, não quero com isto dizer que 250 vidas valem menos do que 5.600. Digo é que, quando se mata 22 vezes mais, é normal que, aqui e ali, vão aparecendo movimentos radicais assentes em ódio. Se pelo menos percebermos esta parte, já conseguimos discutir o conflito para lá dos inocentes num festival que foram atacados por bárbaros. É verdade, mas não é toda a verdade.

    Só nesta guerra, a tal onde Israel teve mais mortos do que nos 20 anos anteriores, ao fim de nove dias de bombardeamentos em Gaza já morreram quase 3.000 palestinianos e há 10.000 feridos e quase um milhão de deslocados do norte de Gaza.

    PALESTINE

    Segundo as Nações Unidas, estima-se que mais de 1.000 pessoas ainda estejam presas (mortas provavelmente) nos escombros. A resposta, o tal direito de defesa que os Estados Unidos apregoam no seu périplo pelos países vizinhos, é assim, há 40 ou 50 anos, ir ao pátio da prisão onde permitem que os palestinianos sobrevivam, e despejar bombas em cima de pessoas que não têm para onde fugir. Como não odiar quem faz isto?

    Que poderá acontecer quando a invasão terrestre começar? Espera-se que os vizinhos fiquem a assistir? A Europa pede que a força não seja excessiva (o tal matar mas com cuidado), os Estados Unidos voltam para a sua guerra preferida (a Ucrânia tem de esperar um bocadinho), e nós, que andamos a apoiar o enfraquecimento de uma super-potência, voltamos a viver o problema de um Mundo controlado por apenas um país sem qualquer contra-poder.

    Depois da covid-19, da Ucrânia e dos juros da Lagarde, o que precisávamos mesmo era de mais um massacre em Gaza e eleições norte-americanas. E pensava eu que 2020 tinha sido um ano de merda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Netanyahu, James Netanyahu… licença para matar

    Netanyahu, James Netanyahu… licença para matar


    Desde segunda-feira, dia em que escrevi o primeiro texto sobre o mais recente episódio do conflito israelo-árabe, que tenho tentado acompanhar a situação através de meios de comunicação portugueses e estrangeiros. É extraordinariamente difícil perceber o que se passa no terreno porque sobram ideologias onde se espera informação. Não há a mais pequena dúvida sobre como este conflito é descrito pelo Ocidente. Com raras excepções, estamos perante terroristas que atacaram uma democracia. Ponto final. Toda a análise que se pode ou deve fazer a partir daí passa para segundo plano.

    Eu não consigo, por mais que tente, ver um conflito de um dos lados e muito menos no caso da Palestina. Não se trata de ideologia, trata-se de um simples conhecimento da história e, já agora, de ver e conhecer as condições de vida daquele povo nos territórios ocupados.

    Man in Blue and White T-shirt Holding Black Dslr Camera

    Há uns meses um leitor dizia-me, a propósito de um texto onde defendi as negociações em vez da escalada de violência na Ucrânia, que não se pode negociar enquanto o adversário está numa posição vantajosa, de força. Ou seja, há que o enfraquecer (com balas), e depois negociar. Esta é uma posição mais ou menos consensual em relação à invasão russa do Donbass. Primeiro é preciso “cortar-lhes um pouco as pernas” e depois sentar à mesa. Notem que o mesmíssimo raciocínio desaparece quando se fala de Gaza ou da Cisjordânia. Aqui já não se pode enfraquecer o invasor porque passa a barbárie.

    Também já ouvi, em horário nobre, que é normal que a nossa simpatia seja maior com o povo ucraniano por estes serem mais “parecidos connosco”. Louros, brancos e de olhos azuis. Para quê aprender história quando os conflitos do mundo se podem resolver com uma boa dose de racismo? Como sou mais parecido com um árabe do que com um norueguês, achei por bem tentar perceber o que por ali se passava e andei a vaguear, no terreno, atravessando os muros entre territórios ocupados e as zonas (teoricamente) controladas pelos palestinianos. É relativamente importante ver para compreender o que se discute.

    Dou-vos um exemplo. Ontem, Benjamin Netanyahu, disse que tinha ordenado um cerco à Faixa de Gaza, corte de água e luz, até que os reféns fossem libertados. Ao mesmo tempo, o exército israelita acampou às portas do território, esperando pela luz verde para entrar a atirar para tudo o que mexe.

    People Gathering in a Concert during Night Time

    A ironia aqui está na ordem para “cercar Gaza”. Deixem-me falar-vos sobre Gaza, uma pequena faixa de terreno com 60 quilómetros, cercada pelo mar, pelo Egipto numa pequena porção de terreno (zona de Rafah) e por um gigantesco muro, com os mesmos 60 quilómetros, que separa 2 milhões de pessoas dos territórios ocupados por Israel. Um muro com torres de guardas a cada 150 metros, armas automáticas ligadas a sensores, arame farpado, placas de betão subterrâneas para evitar túneis e todo o tipo de video-vigilância que possa detectar qualquer movimento perto da zona de fronteira. Portanto… o primeiro-ministro de Israel mandou cercar o quê? Quando é que Gaza não esteve cercada nos últimos 30 anos? O muro começou a ser construído em 1994 e ainda estamos a discutir, em 2023, como se os habitantes de Gaza fossem livres de decidir os seus movimentos?

    Se percebermos que eles vivem numa prisão desde que nascem, talvez seja mais fácil analisar o ódio pelos seus carcereiros. E é essa honestidade que devemos ter quando discutimos este conflito. É que dou por mim a ver gente, que é vista por uns quantos milhares na televisão, a falar no ataque do Hamas como se tivessem partido de um jardim de flores e iniciado uma guerra nova. Israel colhe os frutos das suas ocupações e criações, a começar pelo próprio Hamas.

    Outra coisa que me está a fazer alguma confusão é o relato apaixonado e dramatizado dos sequestros. Há conferências de imprensa com famílias que pedem a devolução dos seus entes queridos por estes não terem qualquer relevância para o conflito.

    green tree on brown sand during daytime

    A primeira coisa que gostaria de dizer é que não imagino o sofrimento de ver um familiar raptado e escondido algures por guerrilheiros. Não consigo perceber sequer, felizmente, o que estão aquelas famílias a sentir. Mas não é verdade que não tenham relevância. Isto não é particularmente simpático de se dizer agora mas, quando alguém aceita mudar-se para uma zona que estava habitada por um povo, entretanto aprisionado a poucos quilómetros dali, devia saber que está a correr riscos e que a sua liberdade significa, literalmente, a prisão de outro ser humano.

    Um habitante do Kibutz de Be’eri dizia à CNN internacional que aquela comunidade era pacífica, próspera e que nada fazia prever o que aconteceu. O calmo e pacífico Kibutz de Be’eri está a pouco mais de 7 quilómetros dos muros de Gaza, a maior prisão do mundo onde 2 milhões de pessoas estão encurraladas, para que nas suas antigas moradas floresçam Kibutzs cheios de harmonia. Lamento mas não consigo pactuar com esta hipocrisia. Uma vida é uma vida e pouco me importa a sua origem, raça ou credo.

    Os pedidos para que os reféns sejam devolvidos e as imagens das famílias em desespero, sempre com visibilidade em horário nobre nas televisões, também me faz pensar na forma como choramos por uns e desprezamos outros. Desde que Israel ocupou a Cisjordânia, Jerusalém e a Faixa De Gaza, em 1967, já prendeu cerca de um milhão de palestinianos (dados das Nações Unidas). Em detalhe, um em cada cinco palestinianos já foi preso com base em cerca de 1500 ordens militares que foram criadas para controlar o que podem e o que não podem eles fazer.

    blue and white flag on pole

    Ou seja, Israel decide as regras de comportamento com que brinda os invadidos e, sempre que estes não as cumprem, desaparecem. Por uns tempos ou para sempre. Não me lembro de ver, ao longo destas décadas, famílias em Londres, Nova Iorque ou Berlim, em directo à hora de jantar, a ter tempo de antena e comoção, para pedir o regresso dos seus entes queridos. Certamente que, entre um milhão de presos, algum deve ter uns familiares no estrangeiro que sintam a sua falta e consigam falar inglês para as câmaras.

    Bem sei que este discurso será confundido com “apoio ao Hamas” quando, o que pretendo, é que mortes e crimes sejam encarados como tal. Venham de onde vieram. Para mim, a fuga da prisão do Hamas (e demais grupos, convém lembrar também que não estão sós na luta armada pela Palestina) não tem qualquer problema, não sou hipócrita. É uma prisão. Já o assassinato de pessoas que estão num concerto, é simplesmente um crime hediondo. O problema é que esse crime é tratado como tal se for feito por árabes e como “direito a resposta” se vier do lado de Israel.

    Há aliás um conceito altamente interessante neste conflito, bem patente nas palavras do secretário de estado americano, Antony Blinken, quando disse “we have Israel’s back“. Traduzido para português corrente, significa que Israel pode arrasar com Gaza e país nenhum árabe pode ajudar aquela gente ou os Estados Unidos entrarão no conflito. E quando se fala em arrasar com famílias inteiras na Faixa de Gaza, já não há o problema ocidental das famílias de inocentes ou dos menores de idade.

    Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel.

    Ouvi alguns analistas portugueses que defendem que Israel deve aplicar o “olho por olho”, matar em quantidade suficiente para “trazer a paz de volta” (o famoso conceito das bombas do bem) mas não ultrapassar os limites para não ser bárbaro como o inimigo. Ora, esta é uma conta difícil de fazer. Quantos civis pode Israel matar em Gaza para meter o Hamas na ordem e, ao mesmo tempo, aparecer aos olhos do mundo como não-invasor e país civilizado? Eu respondo: tanto faz. Podem matar o que quiserem. Os Estados Unidos estão convosco, logo, a NATO está, a União Europeia também, e até algumas ditaduras árabes do bem (que nos dão uns barris), até são capazes de ficar do mesmo lado.

    Já os russos, com um regime pouco recomendável, disseram ontem que no fim deste conflito tinham que finalmente criar os dois estados. Zelensky, por sua vez, vendo que a agenda noticiosa mudou de Kiev para Gaza, acusou Putin de apoiar o Hamas e o terrorismo em geral. E até por ter instigado a covid num morcego chinês qualquer.

    Com os poderes todos alinhados e os lados escolhidos, agora resta aos habitantes de Gaza fazer o que fazem melhor. Morrer. E em silêncio.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Há uma invasão que é aceite pelas Nações Unidas

    Há uma invasão que é aceite pelas Nações Unidas


    Ouvi o embaixador Seixas da Costa a definir o Hamas como uma organização terrorista porque, e cito de cabeça, as Nações Unidas assim o dizem e a organização palestiniana faz ataques a civis no seu combate a partir da Faixa de Gaza. Este é um tema que daria para escrever um livro e, honestamente, nem sei bem por onde começar mas vou por aqui: o Hamas não é propriamente um grupo recomendável e até acho que prejudica mais a causa palestiniana do que para ela recolhe apoios, mas meus amigos, quem é que ajuda a luta da Palestina?

    A definição das Nações Unidas sobre o Hamas é absolutamente irrelevante. Neste ou em qualquer assunto. Uma organização que aceita, durante 50 anos, um bloqueio a Cuba assente em dois votos favoráveis (Estados Unidos e Israel) contra 180 de nações que o rejeitam consecutivamente, não tem para mim qualquer legitimidade. As Nações Unidas servem para condenar (veemente, por norma) os ataques que o Governo de Washington mandar condenar. De resto, são como um garfo num prato de sopa.

    man waving flag

    Seixas da Costa dizia, nessa análise (de Domingo, julgo) que tinha toda a simpatia pela causa da Palestina mas que existiam limites para a barbárie. Outra analista, agora não me lembro qual, dizia que a solução dos dois Estados para o conflito israelo-árabe ficava agora mais distante. Não vou agora escrever que palavras me saíram quando ouvi estas análises, mas julgo, para o leitor, não serão difíceis de adivinhar, sabendo que ficam mal numa mesa de jantar com os avós.

    Claro que existem limites para a barbárie, claro que atacar civis é condenável e claro que, mesmo uma guerra, tem regras. Mas porque é que toda essa solidariedade e compreensão só acontece, na comunidade internacional, para o lado de Israel? A Faixa de Gaza é bombardeada constantemente e o que vemos na comunidade internacional? Algumas palavras de ocasião, as habituais justificações de que se trata de uma resposta a um rocket que não matou ninguém.

    Andamos há anos a ver uma luta entre David e Golias onde guerrilheiros de scooter desafiam um dos mais poderosos exércitos do mundo. Por cada morto no lado israelita há dezenas do lado da Palestina. Militantes do Hamas, civis, mulheres, crianças. O que estiver à frente, importa pouco. Quando morre um israelita estamos perante uma barbárie, quando morrem 10 palestinianos em Gaza foi porque o Hamas os usou como escudo. Andamos há décadas com estes dois pesos e duas medidas.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Quando nos dizem que AGORA a solução dos dois estados fica mais difícil, eu pergunto, quando é que estiveram mais próximas? Os 70 anos anteriores ainda não foram tempo suficiente para se chegar a uma
    solução? Quem é que acredita que algum dia existirá uma solução quando as decisões e imposições israelitas são secundadas e protegidas pelo maior exército do mundo (o americano).

    Eu acho até um pouco revoltante esta condenação generalizada pela luta armada de um povo invadido há décadas. Ou neste caso já não se aplica o direito a defender a integridade territorial? Não sei se alguma vez visitaram os territórios ocupados da Palestina e viram, por exemplo, a humilhação diária por que passam os habitantes da Cisjordânia para irem trabalhar do outro lado do muro.

    Perceber que os milhões de palestinianos na Cisjordânia e, especialmente, em Gaza, vivem numa prisão a céu aberto com os passos controlados pelas forças de segurança israelita,  é meio caminho andado para se discutir o conflito com alguma inteligência. Não são dois países independentes a disputar uma fronteira. É um povo invadido que tenta fugir de uma prisão há décadas, com o Ocidente todo contra eles. E não vale a pena dizer que “sou a favor da causa da Palestina mas isto de raptar pessoas não pode ser”.

    blue and white flag on pole

    Meu amigos, há décadas, não são meses, são décadas, aquele povo espera alguma ajuda enquanto é cercado e bombardeado repetidamente. Ninguém, que não sejam eles, percebe aquilo por que passam e a luta que travam sozinhos contra as potências do Mundo. Ninguém quer saber daquela gente, ninguém. Não suporto ouvir dirigentes a afirmar, o politicamente correto, apoio à Palestina. Se apoiam, condenam a invasão de Israel e fazem o que podem para libertar um povo que vive em condições desumanas. É uma invasão. Também ali se trata de uma invasão mas com regras de apoio bem diferentes das concedidas à Ucrânia.

    Desta vez levaram a guerra para território inimigo e surpreenderam toda a gente. É daí que vem a condenação geral. Morreram israelitas, muitos. Normalmente não chegam aos dedos de uma mão. A espectacularidade militar da accão foi tal que, de imediato, os Estados Unidos destacaram um porta-avião para a zona de forma a refrear os ânimos de intervir por parte do Hezbollah.

    Reparem nas diferenças para a situação Ucraniana. Ali a Europa e os Estados Unidos aliam-se para fornecer armas e dinheiro, de forma a combater o invasor. Em Gaza, ninguém vê problema algum de 2 milhões de pessoas viverem entre muros numa faixa de 60 km. E também ninguém se aborrece se de vez em quando lá deixarem cair umas bombas. Quase 70 anos disto e continuamos a fingir que é normal. A cada tentativa de sair da prisão, a cada rocket que atinge um prédio (maior parte deles ficam no Iron Dome), lá vai o exército israelita matar 10 vezes mais. E a comunidade internacional segue impávida e serena a pactuar com um erro histórico do pós-guerra mundial.

    a close up of a wall with graffiti on it

    Mas no dia em que guerrilheiros palestinianos pisam solo israelita, as Nações Unidas cortam o financiamento aos projectos humanitários na zona, o exército israelita ganha ordem para matar indiscriminadamente e os Estados Unidos entram em menos de 24 horas no conflito.

    Há claramente invasores do bem e invasores do mal. Do lado dos dirigentes judeus, devem por estes dias andar a amaldiçoar aquele momento, no século passado, em que ajudaram a formar o Hamas, para combater a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat. Mesmo assim, que jeito deu a Netanyahu este conflito para desviar as atenções das reformas judiciais tão contestadas pelos povo israelita.

    Acredito na repressão brutal do exército israelita e, enquanto escrevo, ouço os bombardeamentos a Gaza. Não acredito no envolvimento de outros países árabes e imagino que no fim, tenhamos novamente um número desproporcionado de mortos de um lado e a comunidade internacional a venerar o invasor. A solução dos dois estados não ficou mais longe porque não estava sequer perto. A única coisa real era, e é, a humilhação diária de um povo mártir e aprisionado na sua própria casa.

    aerial view of city buildings during daytime

    O resto é a pura hipocrisia do chamado Ocidente, que tanto declara solidariedade com a invasão israelita ou trata como democracia a sanguinária ditadura saudita. Que se choca porque um milionário morre a caminho do Titanic, mas dispensa apenas um rodapé de notícia para milhares de africanos que se afundam no Mediterrâneo. Já não tenho paciência ou estômago para tanta hipocrisia ou indiferença pela vida humana, consoante a cor da pele, credo ou tipo de negócio que nos proporciona. A nós, os tais civilizados do mundo bom.

    Acabo como comecei: não acho que o Hamas traga uma grande vantagem à causa palestiniana. Mas não tenho qualquer dúvida que, com Hamas ou sem Hamas, eles, o povo da Palestina, já esperaram e em condições miseráveis, por alguém que lhes desse a mão. Ninguém os tirou daquela prisão. Ninguém. E não se pode dizer que tenham esperado pouco.

    Aos ucranianos bastaram dois meses para terem o Mundo a combater os invasores. Na Palestina, não tarda, chegamos a um século sem uma solução que lhes traga, pelo menos, um cartão para sair da prisão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Greta de Xabregas

    A Greta de Xabregas


    Tenho, por norma, o hábito de apreciar (quase) todas as manifestações de ideias, convicções e ideais no espaço público. As excepções à regra serão, obviamente, manifestações anti-democráticas, fascistas e outras que tal.

    Entendo o grupo de jovens que agora aparece, quase todos os dias, em acções de luta contra as alteracões climáticas mas parece-me que precisam rapidamente de um estratega naquele meio-campo. 

    Close-Up Photo of Assorted Color of Push Pins on Map

    A primeira coisa a perceber é quem devem chatear. Em princípio não vão conseguir grande coisa com três almas sentadas numa rua de Lisboa ou uma dúzia a atrapalhar o trânsito na Segunda Circular. E porquê? Porque aqueles desgraçados que andam na Segunda Circular já têm problemas que cheguem na vida, a começar pela própria Segunda Circular, e não podem fazer absolutamente nada pela causa ambiental. Bom… não é bem assim, dizes tu jovem votante do PAN; eles podiam todos largar o carro e ir nos transportes públicos. O que é verdade, mas, para isso, a rede pública de transportes tinha de ser uma verdadeira alternativa, o que nos traz, novamente, para a minha primeira afirmação: os automobilistas da Segunda Circular não decidem nada. 

    Neste caso não se aplica aquela máxima das greves: “greve boa é aquela que incomoda”. Vejam o caso da CP, por exemplo: não há forma de reivindicar sem atrapalhar a vida de milhares, mas nesse caso faz sentido porque é uma forma directa de pressionar os decisores. Não é o que acontece aqui.

    As únicas pessoas que os manifestantes incomodaram, como se percebeu, foram aqueles condutores que os tiraram da estrada como quem puxa um fardo de palha. Apareceram nos noticiários, de facto, mas a discussão sobre o tema foi inexistente, e o incómodo a quem tem que decidir foi nulo. Quanto muito conseguiram virar a opinião pública contra eles.

    Não é fácil discutir este tema num país pequeno como Portugal, que se limita a seguir as políticas da União Europeia e a gerir fundos comunitários. Reconheço esse esforço aos activistas. Mas estar a chatear pessoas que andam na luta diária para conseguir pagar taxas de juro e a inflação no supermercado, não os levará a bom porto. Fazem-me lembrar um jornalista que andava a lamber maçanetas de porta, durante os confinamentos, para dizer que a vida continuava apesar da covid-19.

    person holding black and brown globe ball while standing on grass land golden hour photography

    De facto, continuava e continuou mas para isso bastava, por exemplo, fazer o que os suecos faziam nessa altura: uma vida relativamente normal com algum distanciamento e regras básicas de higiene. No fundo aquilo que se deveria fazer sempre. Ninguém lambia maçanetas de portas antes de se ouvir falar na covid-19, portanto, começar essa nobre actividade era só estúpido e não trouxe nada do que se pretendia para a discussão. Hoje, que pagamos a factura dos confinamentos e vivemos na mesma com infecções por covid-19, o tema já não se discute com o fanatismo de então. E ainda bem. Mas as discussões entre dois pólos de radicalismo raramente ajudam seja que causa for.

    Portugal tem na pirâmide das necessidades um mundo de prioridades antes de se focar nas alteracões climáticas. Não é que não sejam importantes, entenda-se, mas normalmente quem não sabe se garante o jantar, não está assim tão preocupado com o aquecimento do planeta. 

    Eu diria para estes activistas, que querem ter o assunto na agenda, se concentrarem em arranjar números e alvos. Números, desde logo, porque três pessoas subnutridas não incomodam ninguém. Alvos porque se querem discutir ideias, têm de ir ao encontro de quem as pode legislar. Vão furar pneus aos ministros, fazer greves de fome em frente à Assembleia da República, mandem um mail à Greta para acções conjuntas, marchem com outros jovens europeus sobre Bruxelas. Mas não vão aborrecer os lisboetas que já andam com a cabeça em papa por aquilo que a realidade lhes traz diariamente e, muito importante, não podem fazer absolutamente nada pelas alterações climáticas.

    aerial photography of city buildings

    Como em todos os grandes temas da actualidade, Portugal seguirá o que outros disserem. Não somos líderes e muito menos temos peso político para impôr agendas na União Europeia. Este é um assunto global, que será decidido por políticas comuns, quando e como as potências assim quiserem. Quando os interesses se alinharem, as guerras acalmarem (acabar, nunca) e as trocas comerciais entre produtores e consumidores não estiverem em risco.

    Notem, por exemplo, que toda a indústria automóvel, dos países desenvolvidos da Europa, nos vende uma revolução verde com a transicão dos motores a combustão para motores eléctricos. Como se o lítio nascesse nas árvores e o seu ciclo de vida não tivesse um enorme impacto ambiental e na saúde das populações que vivem perto das zonas de extração. Revolução verde, ou lá o que lhe quiserem chamar, é tirar 50 pessoas de 50 carros e colocá-las num autocarro. Todo o resto que se discute são apenas alterações de modelo de negócio para diferentes multinacionais. 

    Portugal, como todos sabemos, está longíssimo de ter no clima a sua principal preocupacão e, como qualquer país pobre, tratará de sobreviver primeiro aos juros e depois logo verá o que fazer com a subida das águas. Se, entretanto, quem de facto dá as ordens indicar outra direcção qualquer, pois trataremos de a seguir com algumas bazucas pelo meio.

    man near building

    Até lá, recomendo aos activistas, que certamente não quererão deixar o tema arrefecer, que se manifestem junto dos agentes políticos e procurem granjear simpatia e apoiantes para a discussão que, repito, é importante. E pela vossa saúde, arranjem um porta-voz que tenha apanhado sol nos últimos três anos e não coma só rebentos de soja. 

    Uma pessoa tem mais vontade de ouvir se o interlocutor não for um rapaz que declarou guerra a todo o tipo de vitaminas.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Viver na estrada: o sonho transformado em pesadelo

    Viver na estrada: o sonho transformado em pesadelo


    Durante muitos anos, tive como ideal de vida uma solução que me permitisse trabalhar e, ao mesmo tempo, ir vendo o Mundo em permanência. Imaginava-me a viver num veículo qualquer, a trabalhar de forma remota e, noite após noite, ir avançando na direção desejada.

    O melhor que consegui foi fazer isso por períodos curtos de algumas semanas. Nunca descobri a solução mágica de coordenar esta opção com as responsabilidades de manter um ambiente estável e mais convencional para a minha família. Portanto, ser pai e marido ganhou sempre a ser nómada digital sobre rodas. O que também não me aborrece, devo dizer. Voltarei à estrada, ou ao mar, quando as crias estiverem prontas para voarem sozinhas.

    green and white van

    Pensava nisto enquanto via uma reportagem sobre o aumento nas vendas de auto-caravanas, procuradas hoje em dia como uma alternativa às crescentes dificuldades com a  habitação, em Portugal. Já não achei a solução tão idílica e aventureira como nos meus sonhos originais.

    Sabia que algumas famílias se tinham mudado permanentemente para casas pré-fabricadas em parques de campismo, para casas de familiares, para habitações divididas com outras famílias e, nos casos mais graves, para a rua. Mas ainda não tinha visto esta opção de pagar um crédito automóvel para viver nele.

    Na reportagem em questão aparecia uma senhora que trabalhava na câmara de Cascais e que ia rodando vários parques de estacionamento, para contornar a proibição das 48 horas para este tipo de veículos. Mostrou-nos o seu dia-a-dia e explicou que parava naquela zona para ficar perto das imediações da escola do filho. O miúdo, como é lógico, não apareceu em frente às câmaras. Ninguém quer que na escola se saiba que a morada real é um parque de estacionamento.

    Mas o que me impressionou mesmo foi a família em questão. Tudo normal, tudo dentro do que se imagina ser a contribuição normal para a sociedade. A mãe tem um emprego permanente, um salário e o filho vai para a escola. Nada de estranho aqui. Mas com o fruto do trabalho não conseguem pagar um aluguer ou contrair um empréstimo para compra.

    silver sedan parked beside white van

    Não estamos a falar de alguém que desistiu, que já nem tenta, que deixou a vida seguir por caminhos mais duvidosos ou que se excluiu da sociedade enquanto membro contributivo. É apenas alguém que vai trabalhar e não consegue pagar uma casa. Não é aqui que percebemos que falhamos enquanto sociedade?

    Normalmente, quando vemos um desgraçado a dormir num cartão nas arcadas da Almirante Reis, somos rápidos a julgar. “Foi a droga”, “perdeu tudo no vício”, “não quer trabalhar”. Raramente temos o discernimento de perceber o mundo de razões que atira alguém para o meio da rua. Apontamos o dedo. Logo. É uma forma de dormirmos bem com a nossa consciência. Não há nada a fazer por aquele desgraçado.

    Mas…e agora? O que fazer quando os juros das prestações bancárias duplicam ou triplicam? Como é que se aponta o dedo a milhares de famílias que ficam aflitas e sem salários que combatam estes aumentos que ninguém percebe? Foi algo que fizemos? Pagámos poucos impostos? Trabalhámos menos do que devíamos? Qual foi a nossa falha, enquanto sociedade que trabalha 40 horas por semana, para de repente estarmos a viver em caravanas, parques de campismo ou quartos com casa de banho partilhada? Qual é a diferença entre isto e os famosos bairros de “trailers” nos Estados Unidos, para onde vão aqueles a quem a falta de segurança social não permite segurar uma habitação convencional?

    white and red building under white clouds during daytime

    Como é que nós, num continente onde o apoio na doença e no desemprego sempre foi o cartão de visita, onde os impostos sempre serviram para garantir o suporte social, de repente estamos a caminhar na mesma direção dos que toda a vida viveram na selva do liberalismo e do individualismo? Como? Não é da liberdade, não se iludam, é do individualismo e da roleta do salve-se quem puder.

    Vejo no Instituto Nacional de Estatística que Portugal tem cerca de seis milhões de apartamentos e que 10% da população vive sozinha. O ritmo de construção não é enorme (110.000 edifícios na última década) mas, somando o que existe, ao que se vai erguendo e à quantidade de agregados familiares, é mais ou menos simples de perceber que, em teoria, há tectos para todos. Onde estão as casas, pergunta-se?

    Não deixa de ser extraordinário que, em todas as ações do Estado para combater os problemas na habitação, ainda ninguém lhes tenha exigido (a começar pela oposição) que entreguem um estudo com todos os imóveis públicos disponíveis para reabilitação ou ocupação, por parte destas famílias que simplesmente já não conseguem pagar as prestações.

    crystal chandelier

    Se pensarmos um pouco nisto, não é assim tão complicado chegar a uma solução. Ou a várias. Até porque o problema é perceptível para todos. Uma hipótese é os governos obrigarem a banca a ignorar a
    Lagarde e a arcar com o prejuízo, deixando as prestações como estavam. Outra é, eles próprios, usarem o dinheiro dos impostos para pagar os aumentos (como ao que parece o Governo de António Costa se propõe a fazer até 2024). Não deixa de ser uma opção política.

    Se acharam uma boa ideia desviar o erário público para manter pessoas saudáveis em casa, certamente não se importarão de o fazer agora para lhes assegurar a dita casa. Até porque, com as notícias que já se vão ouvindo dos vendedores de máscaras, não tarda estão a pedir novos confinamentos. Não dá para confinar sem casa, não é? Pensem lá nisso.

    Há ainda aquela hipótese mais rebuscada de se tentar o aumento de salários, a comelar pelo mínimo. É que isto de ver a inflação como indexante e justificação de todos os aumentos, menos dos salários, deixa quem trabalha numa situação de prisão e desespero permanente. No fim de tudo isto, também não seria mal pensado, enquanto se ataca a vertente financeira da coisa, que o Estado começasse a abrir as portas dos seus imóveis, tomando as dores de uma Remax dos pobres.

    aerial photography houses

    Das várias soluções possíveis, entre as leis da economia e as puras opções políticas, o que eu vejo são os trabalhadores a serem largados à sua sorte enquanto empobrecem a cada mês. Uma pessoa que trabalhe
    não deve ser pobre. Ponto final. Este é um princípio basilar de um país que se julga desenvolvido.

    Em Portugal já se perdem a conta aos que, trabalhando, já nem pobres conseguem ser. Perder o direito à habitação e ver que o Estado Social, para o qual todos contribuímos, pura e simplesmente não existe, é um desespero total, um atestado de terceiro-mundismo e, pior, terreno fértil para as demagogias da
    extrema-direita que se aproveita destes problemas para vender um mundo onde a solidariedade social não existe. Podem agradecer aos sucessivos governos do centrão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Liberais que não me compreendem

    Liberais que não me compreendem


    Não tinha pensado voltar a este tema tão depressa, mas o Luís Gomes, meu colega aqui no Página Um, fez aquele truque habitual dos liberais quando procuram arranjar argumentos para uma discussão perdida à partida. Leu metade do que eu aqui escrevi na semana passada e deduziu a outra metade, acrescentando intenções que não eram as minhas. Pior do que isso, não percebeu que em parte até defendiamos a mesma protecção da propriedade privada. Mas também não sou eu que lhe vou dizer…

    Quando o programa “Mais Habitação” foi anunciado, num daqueles PowerPoints que o Costa nos mostra, aqui e ali, para parecer que faz coisas, eu critiquei de imediato o arrendamento forçado. Disse até que, com a enormidade de propriedades que o Estado tem (nem as conseguiu ainda contar), não fazia sentido obrigar os privados a terem o papel social que competia ao Estado.

    aerial view of city buildings during daytime

    A única excepção, na minha opinião, e também o escrevi, eram as propriedades devolutas. Se ao fim de uma década, ou algo do género, os donos continuam a deixar as paredes no chão, então a propriedade deve passar para o Estado para que a possa recuperar  e evitar o desastre arquitectónico. Bastaria ao Luís dar uma volta pelas freguesias adjacentes da minha para ver casas abandonadas por emigrantes para perceber o que quero dizer.   

    Reduz o meu raciocínio, o estimado colega, ao bondoso emigrante que contraiu empréstimo e que aluga a casa, reflectindo as subidas na renda do inquilino e ao malvado residente local, que também contraiu empréstimo mas que já é um especulador que procura lucro fácil. 

    Percebo a necessidade de criar um paralelo entre bonecos para encaixar a narrativa que se segue, mas, amigo Luís, não foi isso que eu escrevi. É só ler com mais atenção.

    Eu dei dois exemplos: um emigrante com crédito à habitação e um senhorio que recebeu uma herança. Não falei em residentes que vão contrair empréstimos e depois alugam nem em pessoas que investiram poupanças no imobiliário. Misturar isto tudo e dar a entender que era esse o meu argumento é logo partir com uma perna meio coxa para esta corrida.

    aerial photography houses

    Mas eu vou dar uma ajuda ao Luís. Só porque ainda estou com pena do que aconteceu na Madeira, e não quero liberais confusos. O Luís agora está a escrever que não é liberal porque a versão portuguesa é suave demais e, apesar de tudo, ainda não defende o “Estado Zero” em que ele se parece rever. Há que dar tempo ao Rui Rocha para ele acertar duas frases. O resto vem por acréscimo…

    Se um residente contrair um empréstimo e comprar uma casa que acaba por alugar, a situação é idêntica à do emigrante, não é? A questão aqui não é onde vive o senhorio, mas sim os custos que tem com a casa. Se tem um empréstimo e sofre com as taxas de juro, é normal que não queira estar a pagar para que vivam na sua casa. Ou seja, é natural que as alucinações da Lagarde acabem na renda dos inquilinos. Viva o senhorio em Copenhaga, Maputo ou na Madragoa. Não há para mim qualquer conotação de especulação ou ganância num senhorio que tem que cobrir um empréstimo com o aluguer da casa.

    Podíamos discutir se deveria ser permitido ou não viver do aluguer de casas, como escrevi também, na “liberal Suécia”, essa situação não é permitida em cooperativas de apartamentos. Já sei, a Suécia só é liberal às terças e quintas. Nestas coisas mais socialistas fingimos que não vemos. Contudo, não sendo essa uma questão em Portugal, não tenho qualquer problema ideológico em se contrair empréstimos para compra de casas e consequente aluguer de forma a cobrir as despesas. E já agora, para que fique ainda mais claro, também não percebo a absurda quantidade de impostos sobre a habitação. Se bem que o meu problema com os governos portugueses não é tanto o que cobram mas sim como o gastam.

    10 and 20 Euro Bill

    Como costuma dizer um colega meu quando não o percebem à primeira, espero ter-me feito entender agora quanto às situações de crédito bancário.

    Já a conversa do investidor que compra coisas com as poupanças, enfim, estamos a falar de quem, Luís? Quem é que compra casas com poupanças em Portugal em 2023? Ou vá, nos últimos cinco anos? Qual dos contribuintes que pertence aos 75% que vive com menos de 900 euros líquidos por mês é que poupa para comprar casas de investimento? Já tem sorte ele se o banco lhe fizer um crédito para não ter de depender da vontade de um senhorio.

    Qual das famílias nos 90% que vivem com menos de 2.000 euros, por agregado, é que anda a meter algum de lado para um T0 na Lapa? Essas poupanças chegam de algum lado, não é? Uma herança aqui, uma oferta ali… aí já percebo. Mas nesse caso, lamento, estamos no ponto de partida. Não, não entendo que um senhorio nestas condições venha pedir aumentos de renda iguais à inflação e muito menos com argumentos como os usados pelo Luís de que, “agora as poupanças do investidor valem menos”.

    Ora, meu caro… mas não é esse o efeito perverso do famigerado mercado?

    people sitting on bench near brown concrete building during daytime

    Claro que as poupanças valem menos. Mas os salários também valem menos porque os aumentos são inferiores à inflação, logo, há uma perda real, tal como nas poupanças. Os senhorios sofrem um bocadinho, os inquilinos também, e pena, mesmo muita pena, é que os bancos não sofram também. Era aí que o impacto se deveria fazer sentir e não nos orçamentos das famílias que, em Portugal, são cada vez mais pobres.

    Quando se repete a conversa de “os mais prósperos protegem a propriedade privada” não é simplesmente verdade. A carga fiscal na Suécia é elevadíssima, em particular para o lucro. E não é sequer possível viver alugando apartamentos. Espero que a Suécia ainda conte como país próspero. 

    Muito antes da crise que agora vivemos, da inflação, da guerra e do aumento do custo de vida com a desculpa da Ucrânia,  já algumas cidades portuguesas praticavam preços proibitivos na habitação, desde quartos de estudantes até a casas familiares. Foram tempos de pura especulação e ganância. Proteger isso, que foi exactamente o que se fez, a tal liberdade, deixou-nos em parte neste beco sem saída.

    Foi assim com a habitação, com a grande distribuição e com a banca. Compensaram-se as perdas com dinheiro público e, em altura de jackpot, como este que agora se vive com a inflação, a factura fica do lado do costume, dos contribuintes. Nunca o impacto económico fica do lado dos privados. Se o negócio cai, o Estado paga layoffs ou injecta dinheiro; se a inflação cria lucros fabulosos e inesperados, o Estado não pode falar em tectos porque lá vem a conversa da liberdade e da Venezuela.

    white painted buildings

    Liberdade não é permitir que o lucro se sobreponha a condições de vida com dignidade. E certamente não é ter uma maioria, neste caso de 5, 5 milhões de trabalhadores, a viverem para pagar contas encherem os bolsos de uma minoria. Seja esta minoria um banco, um supermercado, uma PPP de uma estrada, a Lagarde, a quota dos 2% da NATO ou o senhorio que poupou a herança que a avó lhe deixou.

    Liberdade, meu caro, é sair de casa para ir trabalhar, e poder ir jantar um bife com a família, sem fazer contas ao que sobra para a renda.  É preciso levantar a cabeça, deixar de focar na árvore e perceber que estamos, sim, numa floresta.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Então ‘amlá ver’ as eleições da Madeira…

    Então ‘amlá ver’ as eleições da Madeira…


    Imagino que vos tenha escapado, ontem que ali, entre o primeiro remate certeiro de Bah e a confirmação final de David Neres em Portimão, aconteceram, em simultâneo, eleições regionais na Madeira. Ou, como disse Maria João Avillez, o caso de estudo da democracia portuguesa.

    As eleições para a Assembleia Regional da Madeira são, de longe, o momento mais soporífero da jovem democracia portuguesa, e resumem-se, desde que me lembro de existir e saber ligar uma televisão, a discutir o tamanho da vitória do PSD. Nos tempos de Alberto João íamos de maioria absoluta em maioria absoluta. Hoje, já nem tanto, mas a região continua um bastião da direita, em particular do PSD.

    person standing near table

    Alberto João Jardim deixou um legado difícil de seguir nos dias que correm, é um facto. Era um homem que às segundas, às quartas e às sextas gritava “independência” da República Portuguesa em frente aos jornalistas, e que nos restantes dias da semana, em conversas privadas, lá tentava que o primeiro-ministro em funções fosse perdoando a dívida da Madeira.

    Dizia-me um madeirense, saudoso do seu Alberto, aqui há uns dois anos em Câmara de Lobos, enquanto bebericava uma poncha: “O hospital aqui está uma vergonha. Temos  todos de ir para o Funchal para não morrer. Se o Alberto João ainda lá estivesse, faziam um hospital novo e depois logo se via quem pagava! Agora este Miguel Albuquerque, não sabe como enrolar os cubanos…”

    Portanto, não tem tarefa fácil o amigo Miguel. E muito menos a piada do seu antecessor. Era essa, aliás, a única razão pela qual se acompanhavam as eleições na Madeira. Perceber que bordoada diria Alberto João desta vez, por norma, depois do jantar.

    Ainda assim, Miguel Albuquerque fez o possível para trazer algum “salero” para esta contenda e disse, em alto e bom som, que se não tivesse maioria absoluta, então não entraria em negociações e trataria de se fazer à estrada.

    Pois o bom do Miguel ficou a um deputado da maioria absoluta e, muito bem, adivinharam, não se fez à estrada. Confesso que até ficaria ofendido se um político resolvesse honrar a palavra dada, poder-se-ia abrir um precedente perigoso. Escusado será dizer que Luís Montenegro, o líder nacional do PSD, fez destas eleições um momento de triunfo tal que chegou a ser deprimente. Não só apareceu mais do que o próprio líder regional como ainda tentou, naquele erro clássico das eleições insulares, transpor aquela situação muito particular para a realidade nacional.

    É também perceptível, diria. Montenegro luta pela vida, enquanto Passos se vai aproximando e tenta mostrar que serve para algo mais do que guiar um autocarro desgovernado pelo meio do deserto. O PSD da Madeira, em coligação com o CDS, conseguirá uma maioria absoluta se se juntar à Iniciativa Liberal, o que, a fazer fé nas palavras do deputado eleito pela IL, já deve estar mais ou menos arranjado. Montenegro deverá estar a tomar notas de como é que é possível fazer uma coligação de Governo sem o Chega, embora, a nível nacional, todos saibamos que isso não é possível.

    A entrada do Chega no Parlamento regional da Madeira também é uma notícia que merece destaque. Os 12.000 votos e quatro deputados eleitos mostram que o problema do abandono escolar não se resume ao território continental. O partido continua a crescer e esse é um dado inegável e preocupante. Boa parte do eleitorado português não está contente com os problemas que a democracia já tem e vai optando por um partido que, simplesmente, não gosta da democracia na sua base. Elucidativo.

    a black and white photo of a trash can

    A esquerda teve, como é hábito, um mau resultado por aquelas paragens e António Costa nem deu sinal de vida. O líder regional, que ninguém conhecia, pouco mais do que exigir a demissão de Miguel Albuquerque fez, e em Lisboa, a reação ficou a cargo de um senhor chamado João Torres, que possui o cargo de secretário-geral adjunto no PS. Cargo que, até ontem, eu não sabia que existia e hoje percebo que serve, essencialmente, para aparecer quando o secretário-geral tem coisas importantes para fazer. Visto de fora, parece que o PS aceitou de bom grado oferecer a Madeira, e as restantes forças (BE e PCP) pouco mais conseguem do que manter ou recuperar o seu deputado.

    A terceira força mais votada foi o “Juntos Pelo Povo” (JPP), um movimento que não se define por ser de esquerda ou direita. Portanto, uma espécie de PAN sem animais ou de IL sem “flat rate”.

    O meu momento favorito da noite aconteceu quando o deputado eleito pela IL começou a gritar “liberdade”, num assomo tardio da Revolução dos Cravos. Aos poucos, eles vão percebendo o que aconteceu, o que é bom.

    No contorcionismo lamentável de Miguel Albuquerque, a propósito da sua demissão, garantiu-nos que teria maioria sem o Chega e esse seria o ponto de honra que lhe lavaria a cara. Achei essa parte interessante porque mostra, no fundo, o que significa a politiquice de bastidores. E também os líderes que vamos escolhendo ao longo das décadas.

    Ninguém lhe pediu que se demitisse ou não fizesse coligações. Foi ele que adoptou essa estratégia de dar um tiro no pé. Ontem, como se a moral para nada contasse, lá veio dizer que bastaria arranjar uma maioria para governar (contrariando o que o próprio tinha dito) e traçando, ali, um novo compromisso: “atenção que com o Chega nem pensar!”

    Ora… isso acontece porque, como percebemos, precisava apenas o PSD de mais um deputado para a maioria absoluta e a IL servia para esse propósito. Caso contrário, teriam feito o mesmo que Bolieiro fez nos Açores: durante a campanha “Chega, nunca!”; depois dos votos contados, “o Chega até já sabe comer de garfo e faca”.

    Conta o poder, a forma de o conseguir e manter. O resto, nomeadamente a palavra dada ou as expectativas criadas nos eleitores, são duas mãos cheias de nada. E já nem falo na simples e contundente honestidade, porque essa já ninguém a exige ou cobra a político algum.

     A IL terá três ou quatro PPPs na mão para negociar a troco da maioria e, neste caso, não é nada que seja estranho ao PSD Madeira. Tirar ao público para entregar a diversos privados é quase um modus operandi por aqueles lados. A IL vai descobrir uma nova meca.

     Daqui a 4 anos voltamos a falar. Se nos lembrarmos das eleições, claro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • AR TV: a melhor plataforma para nosso divertimento… ou não

    AR TV: a melhor plataforma para nosso divertimento… ou não


    Quanto maior é a oferta de canais televisivos, menos televisão eu vejo. Não é por qualquer embirração em particular, apenas constato o facto. Uma das razões que me afasta da “caixa mágica” é a mediocridade reinante. Provavelmente, não temos pessoas em quantidade suficiente para encher tantos canais e tantas horas de emissão. Entre reality shows com debates vazios, programas da manhã com entrevistas inenarráveis ou as intermináveis horas de discussão futebolística, com participantes que não conseguem articular duas frases, dou por mim a fugir para outras plataformas, essencialmente pela vergonha alheia das doses cavalares de lixo que nos entram em casa todos os dias.

    Há no entanto um canal, que também tem alguns tesourinhos deprimentes, é verdade, mas que gosto de acompanhar para sentir o rumo que leva o país. A AR TV, pois claro, onde se assiste aos debates parlamentares ou às tão famosas comissões de inquérito. 

    Ontem, houve por lá um belo debate sobre política fiscal, que recomendo. É um exemplo clássico de como o nosso Parlamento serve para pouco mais do que preparar eleições, e conseguir, agora na era das redes sociais, 30 segundos de frases fortes para o resumo do jornal da noite ou das televisões/ páginas dos partidos no Facebook.

    O PSD agendou esta sessão, onde se discutiria a baixa de impostos, sabendo que faltam 15 dias para se iniciar as conversas em torno do próximo Orçamento do Estado, onde esse tema já seria central. É a hipótese do PSD aparecer numa notícia com o título: “PSD propõe baixa de IRS e apoio às famílias”.

    Não sei que séries vocês seguem no Netflix ou HBO, mas certamente poucas vos oferecem este nível de entretenimento que a AR TV proporciona. O argumento é fraquinho, admito, faz lembrar aqueles filmes da Jennifer Aniston que começam e acabam sempre da mesma maneira, mas pelo menos uma pessoa pode sair a meio, fazer um xixi ou até perder um episódio, sem deixar de perceber a história.

    O PSD fez de bonzinho e preocupado no episódio de ontem. É o herói que vive isolado na cabana em ruínas, numa floresta distante do Alasca, desde que perdeu a última eleição. Não fala com ninguém, não tem telefone, tudo o que recebe no correio são postais de um amigo distante de Boliqueime. Até que, certo dia, um antigo colega aparece, a meio de uma pescaria, para lhes pedir ajuda e, uma vez mais, salvarem o Mundo. Eles dizem que não, que desistiram da sociedade, mas depois percebem que há mais uma hora de filme para encher – e lá vão.

    Tiram o casaco de pele de urso, fazem a barba e apresentam-se na Assembleia da República com a proposta de baixar os impostos. Ora, aqui percebemos que o filme está na categoria de ficção. O PSD nunca baixou impostos quando governou e, mesmo na oposição, vota contra tudo o que são propostas de lei para alívio fiscal dos trabalhadores.   

    Mas como ninguém presta atenção ao que por ali se passou nos episódios anteriores, dá sempre para fazer três ou quatro telejornais a “lutar pelos portugueses”.

    Uma das minhas partes favoritas é quando os amigos do herói se chateiam e seguem caminhos diferentes. Parecem os Avengers. O Thor gosta de resolver tudo à martelada, o Iron Man prefere a tecnologia de ponta. O Hulk acha que o Thor bate pouco e tenta bater ainda mais.

    O Chega faz de Hulk. Não quer saber de pactos de regime ou das propostas em debate. Basta-lhes partir tudo e gritar alguns segundos para o destaque do José Rodrigues dos Santos. É aliás curioso reparar que na altura das intervenções, subiu ao palanque um daqueles rapazes do Chega que ninguém conhece, que discursou longa e penosamente, para mal dos meus ouvidos. Bom… confesso que meti aquela parte para a frente mas isso agora não importa. Pelo discurso usado, parecia estar no intervalo das corridas de táxi que lhe ocupavam o resto do dia. Contudo, na hora do telejornal, lá aparecem os 10 segundos de gritos do Ventura, o homem que aproveita cada episódio para “lutar contra o sistema”.

    Aparece o Tony Stark, interpretado pela Iniciativa Liberal (IL). Mais lavadinhos e engomados que os do Chega, com vocabulário mais cuidado, piadas topo de gama e escolaridade mínima obrigatória concluída. Ah, e mocassins. Gozam com todos e dizem: “bem-vindos à discussão da baixa de impostos que nós andamos a vender há três anos”. Verdade, verdade. Flat rate e dinheiro público transferido para hospitais e escolas privadas. O fim do Estado Social mesmo que não encontrem um país socialmente justo com flat rate, mas, enfim, quem é que se vai perder com detalhes? A IL achava que, mesmo para ficção, a tentativa do PSD pecava por escassa. O corte fiscal devia ser maior e davam exemplos de como os salários de 1.400 euros iriam ser pouco beneficiados. A tal parte da sociedade que eles defendem e os salários que 75% dos portugueses não têm.

    Mas é por isto que os episódios da AR TV são bons. Há alguma emoção, sim, mas as surpresas são mais contidas. Já se sabe o que esperar de cada personagem e isso cria aquela identificação com eles. Os Simpsons não estão no ar há 30 anos só por causa da música inicial, já todos sabemos quem arrota, quem estuda e quem faz asneiras.

    Reparem que chegámos ao fim do debate sem que a direita no Parlamento se tenha sequer conseguido coordenar no ataque à maioria socialista. E aqui vou escrever socialista com “”, isto é, com aspas.  Para quem viu aquilo, a mensagem é clara: o Governo é tenebroso, mas a oposição não existe. São um grupo de rapazes que, antes de mais, procuram garantir o seu emprego na política. Depois, procuram agradar os lobbies que os patrocinam. E, por fim, tentam marcar algumas diferenças no hemiciclo, dizendo um conjunto de banalidades, promessas vazias que, uma vez alcançado o poder, simplesmente não cumprem.

    O PSD teve maiorias numa altura em que o dinheiro caía do céu. O que fez o senhor Aníbal de Boliqueime? Creches? Desenvolvimento industrial ou tecnológico? Ensino universal? Aumentos do salário mínimo? Não. Andou a fazer negócios com a banca privada, a torrar fundos europeus em estradas e parcerias com os abutres que ainda hoje gravitam em torno do erário público. Criou mais impostos e, enquanto Espanha se ia desenvolvendo, nós íamos fazendo investimento público em construtoras.

    Luís Montenegro era o líder parlamentar do PSD aquando do Governo de Passos Coelho, que aumentou, novamente, os impostos sobre o trabalho. Hoje aparece aos gritos a pedir aquilo que nunca fez, na esperança de não desaparecer depois da travessia no deserto. O PSD é Governo numa região autónoma desde que me lembro, e se quer combater as injustiças fiscais, então pode começar por acabar com as offshores da Madeira. Não precisam de pedir a ninguém, é só usar a maioria e votar pelo fim da bandalheira.

    white rice on red tray

    António Costa, que também vai anunciado medidas consoante os gritos populares (agora é o apoio para o crédito à habitação, que espero dê em algo palpável), deve olhar para aquela pobreza franciscana do Parlamento com um enorme sorriso e um balde de pipocas digno de se ver.

    Pobres de nós, povo e contribuintes, quando não querendo o Costa, achamos que a solução pode vir de Ventura, Rocha ou Montenegro. É que não servem, sequer, para figurantes, daqueles que fazem coro lá atrás e mexem a cabeça, quando alguém fala aos jornalistas. Quanto mais para decidir a vida de 10 milhões de pessoas.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O layoff e o mito da Autoeuropa

    O layoff e o mito da Autoeuropa


    Um destes dias, podíamos começar a descascar a pele de “empresa-modelo” que a Autoeuropa anda a vestir há 30 anos. A conversa em torno do layoff fez-me lembrar a primeira vez que ouvi falar em “down days” como forma de compensar as baixas de produção e os reduzidos aumentos salariais. Aqueles plenários de trabalhadores realizados na cantina que tinha o melhor arroz-doce industrial alguma vez fabricado. Sim, a qualidade do arroz-doce é muito importante na negociação dos meus contratos de trabalho.

    Lembro-me de não ter ficado desagradado com a situação. Era temporário, mais dias de férias não soavam mal, e com vinte e poucos anos ainda havia o sonho de um dia o salário chegar a qualquer coisa que se visse. Era o meu primeiro emprego, não conhecia outra realidade.

    water dew on silver Volkswagen car emblem

    Hoje, quando leio as notícias sobre a Autoeuropa, reparo que os “down days” temporários ainda por lá andam duas décadas depois. O crescimento salarial ainda é uma miragem e, como boa parte das empresas portuguesas, a Autoeuropa baseia o seu lucro em mão-de-obra qualificada e mal paga. Ou como se dizia por lá: “se não fosse para explorar, todas as fábricas do grupo seriam na Alemanha”. 

    É assim que funciona o estilo de vida a que chamamos capitalismo. Produz-se em zonas onde a mão de obra é barata para se vender no Mundo pela maior margem de lucro possível.    

    Este ciclo deixa de funcionar se o país produtor evoluir e a mão-de-obra deixar de ser barata. No final do século passado, a cadeia de produção concentrava-se no leste europeu e na Península Ibérica, por serem essas as zonas mais pobres. Com o crescimento dos salários um pouco por toda a Europa, vimos no século XXI a grande deslocação das fábricas para a Ásia, nomeadamente para a China. Mas também Vietname, Camboja e Laos, entre outros.

    stop signage

    Portugal é, ou devia ser, um caso de estudo neste campo, porque, enquanto boa parte da Europa deixou de ser atrativa para o capital, Portugal conseguiu manter-se ao longo de décadas como um país de mão-de-obra qualificada e baixos salários. O único exemplo que a “empresa-modelo” da Autoeuropa nos dá é o de mostrar como, continuamente, consegue manter os salários baixos e os lucros altos. Isto enquanto vai recebendo apoios fenomenais dos governos portugueses para nos fazerem o favor de continuar por cá. De facto, são um exemplo, mas nem por isso bom.

    Por estes dias discute-se de que forma os trabalhadores e os impostos de todos devem uma vez mais ir em auxílio da Autoeuropa.

    A história é relativamente simples de perceber. Um fornecedor de uma peça do motor, situado na Eslovénia, viu a sua produção e respectivo fornecimento à Autoeuropa serem interrompidos depois das graves cheias que afectaram o país. A Autoeuropa foi obrigada a parar a linha de montagem e mandar os trabalhadores para casa. É aqui que começa o busílis. Como de costume num sistema capitalista, os lucros são divididos por accionistas e as migalhas ficam para os trabalhadores. Mas no momento de dividir o prejuízo, a fatia já deve ser dividida por quem vende a mão de obra e, sempre que possível, pelos governos locais. 

    white and blue stop sign

    Para compensar as perdas originadas pela paragem da linha de montagem, a Autoeuropa usou a ferramenta legal do layoff, ou seja, um apoio público para comparticipar os salários dos seus trabalhadores. Ao mesmo tempo, despediu alguns temporários provando a razão pela qual as empresas gostam deste tipo de contratação. Em momentos de aperto não há direitos sociais que segurem estes trabalhadores. São despedidos com pouquíssimo tempo de aviso e passam a ser um problema da Segurança Social. Portanto, são precários durante anos com o luxo de poderem planear a vida ao sabor do mercado. Ou de catástrofes naturais no centro da Europa. 

    O layoff tem dois problemas logo à partida. Usam dinheiro público para cobrir prejuízos privados e não comparticipam os salários a 100%. Se bem se lembram, durante o regabofe dos confinamentos, várias empresas recorreram a este expediente, receberam as ajudas do Estado e depois despediram os trabalhadores na mesma. 

    Mariana Mortágua disse que o Governo devia comparticipar o layoff a 100% para não prejudicar ainda mais estes trabalhadores. Ora… é aqui que o problema reside, na minha opinião.

    O layoff, como está desenhado, não faz sequer sentido. Os trabalhadores não podem perder salário, isso parece-me óbvio. Especialmente, quando já estão a perder poder de compra por causa da inflação, mas não pode também ser o erário público a cobrir os erros de gestão privados.

    O grupo Volkswagen, a que pertence a Autoeuropa, foi em 2022 o terceiro mais rentável do Mundo. No primeiro trimestre do presente ano apresentou um lucro de 33 mil milhões de euros. Precisa uma empresa destas de usar a Segurança Social portuguesa para acomodar erros próprios de gestão? É culpa do contribuinte português que usem um sistema de logística com stocks pequenos para reduzir custos? Deve o operador de linha, que ganha pouco mais de 1000 euros, doar parte do seu salário para cobrir os prejuízos deste trimestre?

    Não. É exactamente nestas alturas que o tão apregoado mercado deve funcionar. A empresa deve assumir sozinha os riscos da sua gestão e cobrir as despesas. Não pode ser o contribuinte português a pagar e muito menos os trabalhadores da própria Autoeuropa, que já se sacrificam há anos para contribuir para os lucros fabulosos a troco de baixos salários.

    Os accionistas que ficam com a maior fatia do lucro, que dividam entre eles o prejuízo. Não é isso que defendem os amantes da modalidade? O Estado longe dos negócios, é o que nos dizem. Pelo menos até que chegue o momento de pagar os prejuízos.

    Outra coisa que esta crise nos explica é o perigo da contratação de temporários em alternativa aos efectivos, protegidos pelo contracto colectivo de trabalho. Num país com pouco emprego e baixíssimos salários, a contratação de precários é um cancro que não permite estabilidade ou sequer desenvolvimento profissional dos trabalhadores. São descartáveis a cada falha nos lucros, como se percebe.

    lego, toy, construction worker

    Uma coisa é trabalhar nesse regime em países desenvolvidos e com uma oferta de emprego, que permite que um temporário seja, na prática, um efectivo que vai mudando de empregador. É um regime laboral que conheço bem e que tem lógica em zonas de elevada produção e crescimento económico.

    Em Portugal, um país com escassez de emprego e cada vez menos produção, ser temporário é viver o dia-a-dia sem poder planear seja o que for. É como fazer uma pausa no desenvolvimento normal de um adulto e do que se imagina ser uma vida profissional e familiar, enquanto se reza ao São Pedro por chuvas fracas na Eslovénia. É no fundo, sobreviver, em vez de poder viver.

    Não há como uma boa crise para nos explicar que as empresas dependem dos seus trabalhadores e não o contrário. E é escusado repetirem a conversa do “vão-se embora como a Opel da Azambuja”. Se em todos os países pobres lhes disserem o mesmo, eventualmente chegará o dia em que a retribuição justa do trabalho acontecerá, à custa das margens de lucro e não do esforço de quem trabalha.

    A Autoeuropa é um mito. Não é exemplo, muito menos que se recomende, para ninguém.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.