Etiqueta: Visto de Fora

  • Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)

    Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)


    Começo esta crónica a citar o cabeçalho de uma reportagem publicada no Expresso: “Portugal tem a taxa de emigração mais alta da Europa e uma das maiores do mundo. A vaga contínua de saídas ao longo das últimas décadas engrossou o número de portugueses no estrangeiro, acelerando a perda de população jovem. De acordo com uma estimativa do Observatório da Emigração, 30% dos nascidos em Portugal com idades entre os 15 e os 39 anos deixaram o país em algum momento e vivem atualmente no exterior. São mais de 850 mil.”

    Escrevi, numa destas crónicas do PÁGINA UM, aquilo que considerava ser o flagelo da emigração jovem, tendo como base a equipa com a qual trabalho no norte da Europa. Uma infeliz coincidência que, ainda assim, ilustra perfeitamente os tais 30% que desapareceram.

    the wing of an airplane flying over a city

    Somos sete (daqui a 15 dias seremos oito) engenheiros formados em Portugal que tomaram a decisão de emigrar ainda na casa dos 20 anos. Eu, o mais velho, ainda cheguei a trabalhar em Portugal cinco anos, mas já os restantes, muito mais espertos do que eu, começaram logo num sítio onde a força de trabalho é recompensada com salários decentes.

    Estamos a falar de gente que adquire os seus conhecimentos na Escola Pública, financiados pelos impostos, e que, em muitos casos, vão utilizar esses conhecimentos adquiridos em Portugal para o desenvolvimento económico de outro país qualquer.

    E já agora – e este é um detalhe importante, pelo que vou observando na minha área: são profissionais com uma formação de excelência que, uma vez fora de Portugal, com as portas que conseguem abrir à custa dessa mesma formação, ficam com o caminho de regresso praticamente vedado. As hipóteses de carreira que nos são oferecidas nos países desenvolvidos, desculpem-me a honestidade, envergonham aquilo que é expectável em Portugal.

    No nosso país chegamos a um ponto em que tudo está errado. A cultura de trabalho, a necessidade de marcar hierarquias, a limitação da criatividade, a burocracia em lugar da produtividade, os salários miseráveis.

    empty chairs in theater

    Quando saí de Portugal, ainda Pedro Passos Coelho não nos tinha sugerido emigrar. As diferenças para a Europa civilizada eram mais fáceis de disfarçar. Lembro-me de ter pensado em emigrar porque queria ver qualquer coisa diferente. Acho que, no fundo, queria viajar. Estava convencido que dois ou três anos depois estaria de volta a Lisboa para vestir um daqueles fatos que nos exigiam para estar a trabalhar atrás de um computador. Ao fim desses mesmos três anos, já o meu filho tinha nascido fora de Portugal e o regresso passou a ter mais impedimentos.

    Já não eram só as condições de trabalho, mas também as regalias da paternidade. Também aí estamos a um mundo de distância. Os dois ou três anos passaram a 18 e, durante esse tempo, nada mudou de relevante em Portugal. Quer dizer, fizeram-se mais estradas, aquilo que os sucessivos Governos continuam a vender como “progresso e desenvolvimento”. Alguém continua a vender-nos a ideia de que, num país com 650 por 200 quilómetros, o crescimento económico aparece antes de termos 40 auto-estradas, Scuts e IPs espalhadas por todo o lado com portagens infindáveis. Ninguém ainda se deu ao trabalho de verificar que os países mais desenvolvidos no Norte da Europa não têm propriamente uma grande rede de auto-estradas, excepção feita à Alemanha por ser zona de passagem para todas as rotas do comércio.

    Por isto tudo, hoje… o que pensará um miúdo que sai de uma Universidade e percebe que os salários disponíveis não chegam sequer para ser independente e autónomo? A dúvida é sempre entre ficar perto de família e amigos a contar trocos para sobreviver ou, em alternativa, fazer o sacrifício de emigrar e deixar de ter preocupações com contas. Sim, sacrifício.

    turned of yellow road lights

    Emigrar acaba sempre por ser um sacrifício. Ou na altura da partida ou quando percebemos que o regresso é impossível. Foi isso que os restantes sete que trabalham comigo fizeram. Ganharam independência e autonomia antes de completarem 23 anos. Não precisam de viver com os pais, não dependem da formação de um casal para dividirem as contas de uma casa e são integrados num ambiente de trabalho onde todo o crescimento depende apenas da competência e da dedicação. Podem de facto chegar a algum lado pela via do trabalho se assim quiserem. Não é esse o cenário mais comum em Portugal.

    Diz o Expresso que 30% das pessoas entre os 15 e os 39 anos estão fora do país. Isto significa que não só o mercado de trabalho é afectado como a natalidade do país se ressente (ainda mais). O acaso de termos uma das populações mais envelhecidas da Europa e a taxa mais alta de emigração, como compreenderão, não é mera coincidência.

    Há 20 anos que me deito a pensar o que seria o nosso país se, em vez dos desastrosos investimentos na rodovia e nas construtoras do regime ou no resgate da banca, se tivessem construído creches públicas, tornado o ensino verdadeiramente universal e aumentado os salários para níveis de Primeiro Mundo?

    Li esta semana que o salário mínimo passou, aqui ao lado em Espanha, para 1.100 euros. Mas o que me espantou verdadeiramente foi perceber que apenas 5% dos espanhóis recebem esse salário. Em Portugal quase 75% das pessoas trazem para casa 900 euros ou menos – ou seja, não estamos longe de ter quase o país todo a receber o salário mínimo. O mais incrível é que partimos nesta corrida dentro da União Europeia ao mesmo nível de Espanha. Hoje somos, na melhor das hipóteses, o envergonhado parente pobre.

    desk globe on table

    Portanto, não há três soluções para estancar a saída de jovens do país. Ou se aumentam os salários para cobrir o absurdo custo de vida ou se reduz drasticamente, pelo menos, o custo da habitação e da Educação.

    Não se pode esperar que um casal fique num país onde o salário médio são 1.100 euros e uma creche, uma prestação de um carro, a renda de uma casa, energia e alimentação não deixam nada no bolso para viver. Limitamo-nos a trabalhar para pagar contas. Por mais que se goste do sol, do céu azul e da sardinha a pingar, ninguém quer passar 17 anos a estudar para andar os 40 anos seguintes a ver se chega ao fim do mês. A vida é e tem de ser algo mais do que isso.

    Voltamos sempre ao ponto crucial desta história toda que são as opções políticas. Portugal passou décadas a desviar subsídios europeus para uma clientela (para não lhe chamar corrupção) sem ter preocupações de verdadeiro desenvolvimento. Somos o caso de estudo na União Europeia para o que falhou. Há 30 anos que os nossos Governos se limitam a gerir fundos sem com isso contribuir verdadeiramente para o crescimento do país. São opções. No fim do caminho estão sempre as nossas escolhas. O Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) trilharam este caminho.

    a view of a bridge over a body of water

    Hoje, ontem, e provavelmente amanhã, Portugal escolhe fazer estradas e embelezar hotéis para receber turistas. Entretanto, aqueles que por cá nasceram, vão-se afogando em impostos, salários vergonhosos e custos de vida absolutamente incomportáveis. E vão-se embora.

    Quem é que os pode criticar? Eu não, certamente.

    Chegará o dia em que seremos oficialmente a Republica Dominicana do continente europeu – e estaremos divididos entre aqueles que ficam cá a servir à mesa e aqueloutros que voltarão, a cada Agosto, para matar saudades.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • A mediocridade garantida até 10 de Março

    A mediocridade garantida até 10 de Março


    Quando Marcelo Rebelo de Sousa anunciou a data das eleições legislativas para 10 de Março, lembro-me de ter pensado que seria um martírio termos quatro meses de campanha eleitoral. Mas estava longe de imaginar esta a pobreza franciscana, desde que António Costa anunciou o seu despedimento.

    Nestes tempos, há uma luta quase deprimente, entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), para fazerem prova da sua honestidade. Andamos há um mês a fazer a “revisão da matéria dada” e a contar os “tutti-fruttis” que cada um destes partidos traz para a mesa das negociações.

    pair of pink boxing gloves

    Hoje, enquanto escrevo, discute-se a compra de acções dos CTT por parte do Governo PS e a renovação da casa de Montenegro, que, na realidade, foi uma construção de um prédio novo. Amanhã, deve começar a aparecer a participação de Pedro Nuno Santos na empresa da família, e lá para a semana que vem deve voltar a privatização da TAP e o frete feito ao Neeleman.

    Os dois partidos que tomam todas, mesmo todas, as decisões, que foram moldando a realidade portuguesa desde 1976, e que desperdiçaram rios de fundos europeus em estradas, corrupção e clientelismo, chegam a 2024 sem nada para dizer excepto apontar os roubos do vizinho.

    Mas faz sentido… E sabem porquê? Porque no essencial, cada um destes partidos do ‘centrão’, serve para criar carreiras aos seus quadros, garantir um emprego para a vida em redor de altos cargos públicos e, já agora, enriquecer alguns dos seus membros. É preciso gritar muito e apontar o dedo, dando a ilusão que se tenta marcar a diferença quando, em rigor, PS e PSD são faces parecidíssimas da mesma moeda.

    Vejam como as principais caras do PS são as mesmas, década após década. Gente que não passou um dia  a trabalhar noutra coisa que não fosse um cargo público arranjado pelo partido. Pessoas que se sentam a opinar e legislar a vida de milhões de portugueses sem nunca terem contacto com as dificuldades do mercado de trabalho, de um empréstimo bancário, da luta por uma casa.

    Há casos de filhos de antigos ministros ou altos quadros do PS que, mal saíram das universidades, já estavam em lugares elegíveis nas listas de deputados. Regionais, nacionais, não importa. São carreiras garantidas, zero idas a entrevistas de emprego, a mediocridade garantida e perpetuada nas costas dos ‘papás’ e do cartão do partido. Gente sem um dia de vida passado na realidade, e que nos tenta convencer que conhece as nossas dificuldades e até sabe quais são as soluções para os nossos problemas.

    Como é que alguém que nunca foi a uma entrevista de trabalho, que teve uma casa oferecida pelos pais, que teve passagem facilitada na universidade e que foi colocado numa assembleia, a legislar sobre temas que desconhece, me pode entender e/ou ajudar? Como é que medíocres destes se perpetuam décadas na função pública em cargos de decisão, entre PS e PSD? Como?

    Enquanto o PS “faz a renovação” com os filhos dos que por lá andam desde 1980, o PSD cria alianças em reuniões onde estão, e tomem nota, Nuno Melo, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Estão a um Freitas do Amaral, versão original, de fazer bingo do século XX.

    Enquanto se digladiam com a ilusão da honestidade e nos dão a ideia de um combate político, vão, isso sim, tratando da vida e evitando qualquer compromisso. Casos como o do tutti-frutti são importantes porque nos explicam aquilo que é a divisão do poder, ao longo de décadas, entre dois partidos. Os pactos de não agressão, a divisão da riqueza, a garantia que todos conseguem roubar do mesmo pote. Essa é a realidade da ascensão ao poder em Portugal e é isso, em resumo, que explica o atraso do país. Isso, e tratar da vida dos membros dos partidos, das suas carreiras, da garantia de emprego e prosperidade. E sem qualquer compromisso real com os eleitores. Já nem se dão ao trabalho de disfarçar com uma ou outra proposta. É um vazio de ideias; uma mediocridade que se arrastará penosamente até Março.

    Não é fácil sair disto, porque não há renovação na cena política. Não há espaço para quem vem de fora e não depende de aparelhos partidários. Não há como sair disto, mas é relativamente fácil perceber como aqui chegámos. Basta pensarem que partimos ao lado de Espanha nesta corrida, há quase 40 anos, e hoje eles são uma potência e nós um dos países mais atrasados da Europa. Os fundos correram em toda a Ibéria. Mas enquanto Espanha desenvolvia o tecido produtivo, nós financiávamos a indústria do betão, as parcerias público-privadas (PPP) das estradas e jovens agricultores que queriam comprar jipes e renovar os montes.

    No meio deste marasmo de ideias, aparece o Chega e a Iniciativa Liberal (IL), outro deserto de propostas, mas absolutamente essenciais na formação de uma coligação de poder com o PSD. A única diferença entre estes partidos e o actual poder, é que tanto IL como Chega ainda não tiveram hipótese de chegar ao pote. Quando lá estiverem, farão o mesmo ou pior. Com a agravante de tanto IL como Chega terem, na sua génese, a missão de desviar o máximo de dinheiro possível dos serviços públicos para os privados. No fundo, fazerem aquilo que o PS já começou a fazer com este Orçamento do Estado e aplicarem a machadada final no SNS e na Escola Pública.

    brown and white round hole on white sand

    Restam Livre, Partido Comunista Português (PCP) e Bloco de Esquerda, que parecem ainda ter algum compromisso com os trabalhadores e as condições de vida, sendo que duas destas forças já se manifestaram positivas quanto a futuras coligações de esquerda. Contudo, a avaliar pelas sondagens, as suas votações serão bastante baixas.

    Vivemos a realidade da mediocridade na política portuguesa e, segundo percebo, boa parte dos portugueses acha que a solução para os problemas da democracia virá de um partido anti-democrático que nem quadros consegue arranjar (o Chega), ou outro que, ao fim de alguns anos, ainda nem conseguiu concordar com uma visão política ou uma ideia que aguente mais do que 15 dias (a IL).

    Estamos de facto a entrar no restaurante que serve mau vinho e a achar, convictamente, que a água da sanita é o acompanhamento alternativo perfeito para o bacalhau do almoço.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O cheiro a fim da era no jornalismo português

    O cheiro a fim da era no jornalismo português


    Cheira a fim de uma era no jornalismo português. O despedimento colectivo anunciado pelo Grupo Global Media (dono do Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF e Dinheiro Vivo) será, talvez, o capítulo mais recente, mas não deverá ser o último.

    Não é de facto fácil entender como é que os jornais sobrevivem. Comecemos pelo princípio elementar: quem é que lê?

    No terceiro trimestre de 2023, o Correio da Manhã, habitual ‘escorredor de sangue’, era o jornal mais comprado em banca com uma média diária de 40.391 exemplares. Há cinco anos, no mesmo período, vendia por dia 83.898 exemplares em banca. São dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) e mostra a evolução do jornal português com mais leitores diários. Ou seja, actualmente, o diário mais lido pelos portugueses, em papel, é comprado por 0,4% da população!

    man sitting on bench reading newspaper

    Outros países com títulos de referência começaram a abandonar a versão de papel e a adaptar-se às novas plataformas. Novos conteúdos, espaço para o multimédia, o papel a dar lugar a smartphones, Ipads, ecrãs em carros, aviões, zonas públicas.

    Temos informação mais dinâmica e necessidade de novos conteúdos 24 horas por dia. É o progresso, dizem.

    Agora, aparentemente, já não é necessário ter jornalistas na rua à descoberta da notícia e, muito menos, alguém que as escreva correctamente. A Inteligência Artificial faz uma parte e os estagiários dão as marteladas finais. Deixamos de ter notícias e passamos a repetir histórias contadas por alguém. Com ou sem confirmação de fontes. Pouco importa, dali a 20 minutos já é velha.

    Em Portugal, temos dois ou três grandes grupos de media a controlar toda a informação e, por isso mesmo, nunca conseguimos garantir a independência de tudo aquilo que nos é transmitido. Há sempre temas abafados, há sempre assuntos proibidos, há sempre investigações que conduzem a despedimento. Convém também dizer que os jornalistas, alguns pelo menos, tiveram a sua quota parte no que agora está a acontecer.

    Alguns dos títulos que hoje despedem pessoas, e tentam mudar de vida, foram, em tempos, dos mais prestigiados em Portugal. Mas também foram os sítios onde alguns dos seus trabalhadores aceitaram ‘encomendas de notícias’ e passagem de informações falsas com o intuito de prejudicar pessoas ou instituições, levando, aos poucos, ao descrédito da própria publicação.

    letter wood stamp lot

    É comum ouvir-se, um pouco por todo o lado, que não devemos acreditar em tudo o que vemos na televisão ou lemos no jornal. Ora, quando eu era criança, ouvia exactamente o contrário: se o senhor X escreveu no jornal, então era verdade. Havia crédito na imprensa escrita.

    Hoje, num mundo controlado por idiotas como o Elon Musk, deixamos de ter a capacidade de suportar o luxo do jornalismo independente e da busca da notícia pelo que a notícia tem para dar, em vez de quem esta poderá atingir.

    Curiosamente, no cenário que se vai desenhando em Portugal, projectos como o do PÁGINA UM tornam-se absolutamente essenciais para a qualidade da democracia. Admito que seja um modelo difícil de manter porque, num país pobre, ter um jornal totalmente livre a ser financiado exclusivamente pelos leitores é uma autêntica epopeia.

    Seria interessante, nos tempos cada vez mais controlados que se avizinham, que o PÁGINA UM continuasse a ter liberdade de investigar e informar. Infelizmente, isso não está neste momento garantido, porque o jornal, ainda por cima, tem todos os seus conteúdos abertos, para que os leitores possam também financiar o acesso daqueles que não tenham posses para contribuir.

    Nunca saberei, nunca saberemos, até quando a ‘novidade’ de um projecto arrojado pode cair no esquecimento dos leitores. Apenas sei que só o apoio contínuo dos leitores pode contribuir para que 2024 demonstre que o jornalismo independente ainda é valorizado em Portugal Por mim, agradeço a todos os que estiveram, desse lado, durante já dois anos, a lerem-me no PÁGINA UM, mesmo se não concordassem comigo. A democracia é exactamente que se espraia neste jornal.

    Um abraço e bom ano.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • O condutor português é incrivelmente estúpido

    O condutor português é incrivelmente estúpido


    Acho alguma piada às operações de Natal da PSP e de GNR, com os directos do tabuleiro da Ponte 25 de Abril ou da VCI, onde um capitão qualquer, oriundo de Viseu, nos explica o sucesso da operação pelo número de condutores apanhados nas mais diferentes infracções.

    Sei que há uma coluna no Orçamento do Estado para as multas, e boa parte deve ser preenchido nesta quadra.

    Mas o que realmente se mostra hilariante, em todo o aparato, é como tudo aquilo mais não faz do que nos passar um atestado de estupidez. A polícia tenta, num período festivo, controlar aquilo que o mais comum dos portugueses faz o ano todo: conduzir depressa, ou bêbedo, ou sem documentos ou sem respeitar as mais elementares regras do Código da Estrada. E, por vezes, todas as situações em simultâneo.

    closeup photo of black analog speedometer

    Mesmo assim, com todos os avisos e intermináveis directos de manhã à noite em todos os canais informativos, milhares de condutores são apanhados em flagrante. E temos ainda 1.500 que conseguem ter acidentes. E ainda há, em média redonda, 20 desgraçados que morrem sem chegar ao jantar de família. Ou depois dele.

    Na verdade, o período de Natal não é diferente do resto do ano. Simplesmente os acidentes passam a ser notícia. Mas estupidez do condutor português, essa, é exactamente a mesma de Janeiro a Dezembro.

    Não sei se alguma vez consultaram as estatísticas de mortalidade nas estradas da União Europeia. Portugal está em destaque juntamente com países como a Bulgária, Roménia, Letónia, Hungria, Polónia e Croácia. Nenhum tem uma rede rodoviária como a portuguesa. Aliás, arrisco-me a dizer que não existe outro país no Mundo com o tamanho de Portugal (continental) e com igual quantidade de autoestradas, IPs, SCUTs e todo um conjunto de vias rápidas que deveriam facilitar a circulação em segurança.

    Mas isso de pouco serve se ao volante estiver um mentecapto que arrisca em cada curva e que conduz a três metros do carro da frente, não é?

    man driving car during golden hour

    Se eu atravessasse a Europa sem ver uma única placa, saberia, ainda assim, quando me estivesse a aproximar de Portugal. Bastaria ver o momento em que os carros ultrapassam, de uma forma geral, todos os limites de velocidade impostos na ânsia de chegar uns minutos mais cedo.

    Nesta semana que passou, enquanto conduzia entre a Suécia e Portugal, e com a quantidade de emigrantes que se deslocaram de países como Bélgica, Luxemburgo, França, Suíça ou Alemanha, conseguia quase sempre perceber, pelo tipo de condução, se eram portugueses ou não.

    Uma vez na estrada, fico com a sensação que estamos sempre dentro de um circuito do NASCAR e aflitos para chegar a algum lado, mesmo sabendo que aquilo é um percurso oval, sem saída possível.

    E tanto faz se estamos numa auto-estrada, no Marquês do Pombal ou no centro da vila. As regras são para os outros, os limites de velocidade uma chatice e a cordialidade no trânsito um acto de fraqueza.

    cars on road in sunset

    Quem não levou já uma buzinadela do ‘amigo’ de trás por dar passagem a um condutor ao lado? Todo o metro conta, a luta é constante, só os mais espertos se safam.

    Ninguém sabe que a uma velocidade constante não há filas porque não existem travagens bruscas nem efeitos de onda. Ninguém consegue ver para lá de 10 metros do próprio motor.

    Uma das coisas que me habituei a pensar, quando comecei a atravessar a Europa de carro, e já lá vão 20 anos, é que há sempre alguém que não chega ao destino. Há sempre alguém que fez planos com a família que não vai cumprir. E há sempre alguém que aguarda um abraço mas que não vai receber.

    Em Portugal, torna-se difícil explicar a quantidade de mortes na estrada sem fazer uso da nossa própria estupidez.  Não é a qualidade das estradas, porque são óptimas. Não é a sinalização. Muito menos o clima. Vou repetir as palavras, porque não encontro outras melhores: o condutor português é incrivelmente estúpido.

    time-lapse photography of highway road at night

    Na mesma estatística que acima mencionei, aparecem Dinamarca e Suécia com as estradas mais seguras da Europa. Notem: são países com estradas que não chegam aos ‘calcanhares’ das portuguesas. A Suécia, com 2.500 quilómetros de comprimento, tem uma mão cheia de auto-estradas. Portugal, só entre Lisboa e Porto, tem três. Ainda assim, os suecos têm pouquíssimas mortes na estrada porque cumprem duas regras básicas: respeitam os limites de velocidade e não conduzem bêbedos.

    E se o fizerem, só fazem uma vez, porque a polícia não brinca às “Operações Natal”. Aqui há uns anos, um amigo meu foi apanhado a conduzir sob efeito de álcool e acabou obrigado a pagar 5.000 euros ali, no momento, ficou sem carta e durante um ano teve visitas semanais obrigatórias à esquadra para mostrar análises ao sangue.

    Ou a população percebe, sozinha, que não pode meter a vida dos outros em risco, ou então deve isso ser-lhe explicado pelas autoridades. Mas não é com operações de Natal, Páscoa ou Ano Novo.

    selective-photography of stop signage

    É com multas a doer e com consequências que não deixem vontade de arriscar. Na Finlândia, as multas de velocidade são proporcionais ao valor declarado do IRS. Um milionário foi apanhado e encheu os cofres da polícia com uns milhares, numa simples multa por excesso de velocidade.

    Sugiro o mesmo para o caso português. Multas que afectem o bolso de cada um consoante as suas possibilidades. Ao fim de duas, começava-se a dispersar a estupidez e a sobressair o bom senso. Ou civismo, se preferirem.

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  • 500 mil cordeiros precisam-se

    500 mil cordeiros precisam-se


    Escrevo este texto na estrada; mais precisamente, nas Montanhas do País Basco. Espero ainda encontrar a repórter da TVI (ou da CMTV) na fronteira de Vilar Formoso para discutirmos receitas de bacalhau e todas aquelas perguntas interessantes em véspera de Natal.

    Um dos meus passatempos na estrada é descobrir a origem das matrículas e somar as parcelas que as constituem. De há dois anos para cá, vejo com muito maior frequência, na parte ocidental da Europa, veículos com registo ucraniano. Por princípio, parece-me boa ideia fugir do frio de Leste para a harmonia que só a Ibéria nos pode proporcionar. Se essa fuga acontecer no início de uma guerra, ainda acho a ideia melhor. Com os 60 mil milhões de dólares bloqueados no Senado norte-americano, e sem que a União Europeia consiga garantir igual financiamento ou armamento, Zelensky vê-se num aperto mais do que previsível. Tudo parece começar a faltar, inclusivamente homens no terreno. A Ucrânia decidiu, por isso, chamar mais 500.000 homens entre os 25 e os 60 anos para a frente da batalha.

    black and white chess piece

    Não sei se ainda se lembram do que foi escrito sobre o Putin, quando este andava pelo Daguestão a roubar jovens às famílias pobres para os mandar para Donbass. Zelensky e toda a ‘entourage’ ocidental diziam que a Rússia estava a mandar homens mal treinados para a sua própria morte.

    O que assistimos agora é exactamente o mesmo, mas feito do lado ucraniano. Homens que fugiram do país, sem qualquer treino militar, e até já perto da idade da reforma, são agora obrigados a regressar sob pena de sanções para enfrentarem a sua própria morte. Sem dinheiro, sem armamento, sem aviação, resta à Ucrânia utilizar a estratégia que os russos patentearam desde a Segunda Guerra Mundial: ter mais gente no campo de batalha do que o adversário.

    Esta atitude desesperada mostra os sucessivos falhanços da aliança que apoia a Ucrânia e dá razão a quem defende, há quase dois anos, que a solução do conflito nunca estaria no terreno, mas sim na diplomacia. As sanções à Rússia falharam redondamente. Somos nós, os Europeus, da Alemanha a Portugal, que pagamos a fatura da energia mais cara. Aquilo que a Rússia deixou de vender do lado europeu, passou a exportar para o lado asiático e, de igual forma, a suportar a economia de guerra.

    brown wooden bridge over river

    Terão alguma possibilidade estes 500.000 homens, ou aqueles que não conseguirem fugir, perante uma máquina de guerra que produz e tem todos os apoios necessários para prolongar esta situação o tempo que for necessário? Terá alguma hipótese a Ucrânia, mesmo que meta toda a população na frente sem financiamento externo ou exércitos de outros países? Não. Já todos percebemos que não. Então, quem é que pode condenar estes homens que saíram do país e que não estão dispostos a morrer por guerras decididas por outros?

    Do lado americano, continuamos a ouvir palavras de apoio incondicional, mas já sem o dinheiro. Ou seja, aquela situação clássica que todas as administrações americanas fazem na diplomacia externa. Financiam o conflito enquanto isso servir os seus interesses, até que começam a ensaiar a saída deixando os inocentes expostos à sua sorte. Bastaria conhecer a história dos curdos para entender que destino teriam os Ucranianos.

    photo of person reach out above the water

    Fico agora curioso para perceber como é que a União Europeia, que defende valores democráticos e já acenou com a bandeira da entrada no clube por parte da Ucrânia, vai agora pactuar com este recrutamento forçado de mais 500.000 cordeiros.

    Chegará o dia em que a Ucrânia gritará “traição”, por aquilo que vier dos Estados Unidos e da União Europeia. Provavelmente, muitos destes 500 mil homens não o verão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O futuro primeiro-ministro e o (nosso) segundo aniversário

    O futuro primeiro-ministro e o (nosso) segundo aniversário


    1.

    Pedro Nuno Santos (PNS) venceu, sem surpresa, a corrida a secretário-geral do Partido Socialista. Esta é uma boa notícia para o PSD e para a esquerda em geral. José Luís Carneiro representa a versão Montenegro do PS. É o chamado “não chove, nem molha”, para não utilizar uma metáfora à Bocage.

    Noto, desde já, alguma crítica fácil por parte dos analistas de direita residentes na televisão portuguesa. Impetuosidade é a primeira fraqueza apontada a PNS. Falam, criticam o gasto público, enquanto ministro das Infraestruturas, na CP e na TAP. Referem, vezes sem conta, a gaffe da localização do aeroporto de Lisboa. Dizem ainda que tem um discurso infantil e pouco preparado, como por exemplo, aquele do calote aos banqueiros alemães.

    Ora, meus amigos, isto para mim são qualidades. Alguém que compreende que a ferrovia e o transporte aéreo são essenciais para o país, está a um passo à frente dos habituais ministros do betão que vivem para o lobby das construtoras.

    Pensemos, em contraponto, no comportamento de Montenegro em relação ao novo aeroporto de Lisboa. Se bem se lembram, António Costa exigiu o compromisso do PSD antes de avançar com a comissão técnica que colocaria um ponto final na discussão sobre a localização do aeroporto. Montenegro aceitou. Ao fim de mais um ano de estudos e análises, a dita comissão deliberou que o Montijo seria a melhor solução para um problema que se arrasta há 50 anos. Montenegro, como seria de esperar em qualquer fantoche do capital, ignorou a palavra dada e disse que criaria um novo grupo de trabalho com o intuito de validar o estudo da comissão técnica. Nesse grupo de trabalho estão, como se sabe, apoiantes da solução “Alcochete”.

    Por outro lado, a Vinci já se manifestou contra a solução Alcochete, embora Montijo não tenha capacidade para receber voos de longo curso. Visto assim, parece que Montenegro, para além de ter muita dificuldade em honrar a palavra dada, tem ainda mais dificuldade em fugir aos interesses instalados que controlam o Centrão. O interesse nacional e o fim de uma vergonhosa novela com cinco décadas parecem ser detalhes na agenda dos donos do PSD.

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    Como compreenderão, eu prefiro alguém que tome decisões, como foi o caso de PNS, mesmo durante uma gaffe, do que ter um governante como Montenegro que se limita a proteger os grandes grupos económicos.

    Apesar de tudo, a vitória de PNS é uma boa notícia para o PSD porque permitirá a Montenegro ter alguma hipótese nas eleições. Há uma diferença de estilo, de discurso e até de propostas. As diferenças entre os candidatos permitirão ao PSD recolher alguns votos ao centro, por parte daqueles eleitores que acharão o jovem turco um pouco mais radical. Já se o candidato fosse José Luís Carneiro, a escolha seria entre uma versão má e outra menos má de Montenegro.

    Os partidos de esquerda mais clássicos como PCP, Bloco e até o Livre, poderão beneficiar desta conjuntura e voltar a entrar no arco de governação e/ou acordo parlamentar. PNS continua a referir-se ao período da Geringonça como uma época de estabilidade no país. E tem razão. Não há nada que venha de bom de uma maioria parlamentar do PS ou do PSD, mas há importantes conquistas sociais que só serão possíveis com PCP e Bloco de Esquerda na negociação do programa do próximo governo.

    O meu voto não vai na direção do PS, mas admito alguma esperança quando vejo um secretário-geral socialista com tiques de esquerda. Algo me diz que ainda recordaremos Costa com saudade, mas a sucessão, convenhamos, poderia ter sido pior.

    2.

    O PÁGINA UM faz esta quinta-feira dois anos. Confesso que quando começámos não imaginei que nos aguentássemos mais do que três meses “no ar”. Não é fácil manter um jornal totalmente independente, de opinião livre, sem amarras ou encomendas próprias de quem depende de acordos de publicidade. Pessoalmente, tem sido um prazer e um orgulho contribuir para este projecto onde, desde o primeiro dia, me foi pedido apenas para escrever o que pensava. Há um número considerável de pessoas, a quem devo agradecer, ao fim de dois anos por ainda aqui estarmos. Refiro-me obviamente aos leitores que, concordando ou não com o que aqui vou escrevendo, não deixam de apoiar o nosso jornal. Enquanto for essa a vossa vontade, da minha parte por cá continuarei. Muitos Parabéns PÁGINA UM!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mas, afinal, qual é o problema da ‘cunha’? 

    Mas, afinal, qual é o problema da ‘cunha’? 


    Em tempos que já lá vão, apaixonei-me por uma gémea. Percebi logo que ia ter problemas porque nunca sabia se estava a falar com a pessoa certa. Aos 7 anos ainda não estamos despertos para os detalhes e aquelas duas irmãs pareciam, ao longe e ao perto, a mesma pessoa.

    Cheguei a escrever uma carta de amor, que não sei a quem entreguei. Só descobri 30 anos mais tarde, quando a minha avó me disse que a tinha guardado para ela. Faz algum sentido. Por um lado, era ela o meu grande amor da altura e, como é óbvio, já sabia que nada de bom chegaria com aquelas gémeas.

    Ora… Marcelo não tem uma avó como a minha e não lhe cheirou a perigo quando a versão portuguesa do The Shining lhe bateu à porta. Já poucas dúvidas restam sobre a ‘cunha’ e agora a discussão ascende a novos patamares de surrealidade. A ‘cunha’ é do Marcelo ou do Dr. Nuno Filho? Ou é do secretário de Estado que não se lembra que marcou a consulta? Ou é do médico que escreveu a nota que a consulta tinha sido a pedido? 

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. (Foto: Presidência da República)

    Ouvi ‘n’ discursos durante a semana tentando, sem grande sucesso, normalizar a ‘cunha’ como uma instituição portuguesa. Um deles dizia que a ‘cunha’ é tão normal e até aceitável que não devemos discutir se o Marcelo fez um jeito ao filho e se um filho fez um jeito aos pacientes. O que importa é saber, dizia este analista, se alguma criança tinha ficado para trás na lista de espera. Isto porque, sendo uma doença tão rara, até era provável não haver lista de espera.  

    Não é bem assim. Apesar de tudo, há ‘cunhas’ e ‘cunhas’. 

    Nos meus tempos de emigrante pela Escandinávia habituei-me a ouvir a seguinte frase em ambiente laboral: “vens da parte de quem?”. É normal quem contrata aceitar como boa a palavra de um amigo sobre um novo trabalhador. A ‘cunha’ é oficial. Tão oficial que empregadores futuros telefonam a empregadores anteriores para terem uma ‘prova dos nove’ sobre o trabalhador que estão a contratar. 

    Sempre achei piada a isso. Infelizmente, nunca me tocou porque fui lá parar sem conhecer ninguém, o que dá muito mais trabalho, mas ao fim de alguns anos também juntei umas ‘palavrinhas’ por pessoas que conhecia. Sempre emigrantes, sempre malta que, de facto, precisava de ajuda. Nunca ‘calões’ ou incompetentes. 

    No fundo, se um trabalhador for aprovado nas suas funções, ganha estatuto para recomendar outros. É uma ‘cunha’, de facto. Mas não prejudica ou deixa alguém para trás. Quanto muito, poupa tempo às partes interessadas. E se correr mal… pois, segue-se o despedimento e não há custos para outros que não os envolvidos.

    O mesmo com o ‘camarada’ que pede licença a 50 pessoas para passar à frente na fila do Raio-X para não perder o avião. Ou o mecânico que arranja a correia de distribuição do carro ao amigo, mas cobra como se fossem umas pastilhas de travões. O dono do restaurante que deixa o primo comer de borla ou até o rapaz das Finanças que faz um ‘jeitinho’ à vizinha do 3º esquerdo. Todos esses “desenrasca aí” do quotidiano não me chocam numa sociedade que está sempre ‘entalada’ com qualquer coisa.

    Não é bem o caso, aqui. A história das gémeas é o Visa Gold das ‘cunhas’: alguém que adquire a nacionalidade portuguesa em tempo recorde e é despachado do serviço de saúde privado – que, obviamente, não paga a factura – e aparece no Serviço Nacional de Saúde (SNS), sem qualquer espera, para receber um tratamento de 2 milhões de euros do erário público. Este caso está, um pouco, num mundo à parte.

    doctor holding red stethoscope

    Não quero saber se existiam mais pessoas na lista ou sequer se existia lista. Quero saber é se qualquer português, um daqueles que espera até morrer por uma consulta, pode ligar para a ‘Linha 24 Marcelo’ e pedir um ‘jeitinho’ para ser atendido por um médico.

    As ‘cunhas’ de 4 milhões de euros e os passaportes em 15 dias estão disponíveis para todos ou é preciso ser amigo do “Dr. Nuno, meu filho”? 

    Com o escândalo cuspido em frente aos nossos olhos, chegou o inquérito que foi nada mais do que um balão de oxigénio para Marcelo e demais envolvidos. Como sabeis, estando em investigação, eles não se podem pronunciar em público e, portanto, a coisa vai caindo no esquecimento. O mesmíssimo esquecimento que todos alegam a cada nova questão. Marcelo não se lembra do e-mail do filho, o secretário de Estado não se lembra de marcar a consulta e, por esta altura, imagino, o Dr. Nuno nem se deve lembrar quem é o pai.

    Depois, também gostava que me explicassem, de preferência vindo daqueles que defendem a “liberdade de escolha” na saúde, como é que se resolvem casos destes num mundo onde o atendimento depende da qualidade do seguro. Digam lá, ó defensores de um mundo só com saúde privada, quem é que pagaria uma factura destas? Eu digo-vos: os pais das miúdas enquanto as viam morrer. Era esse o resultado num mundo sem SNS. Mesmo para gente com ‘cunhas’ destas, agora imaginem para aqueles que não chegam ao Dr. Nuno.

    clear medical hose

    Bem podem, pois, tentar credibilizar uma ‘cunha’ escandalosa que não conseguirão. Marcelo não vai cair e até já começa a tentar lavar as mãos do caso mas, por mais que tente, levará este lastro com ele.

    Por fim, uma nota para quem defende que os mercados tudo regulam sem intervenção dos Estados. Como é que um medicamento pode custar 2 milhões de euros? Como é que governos deixam farmacêuticas vender, seja o que for, por um preço destes? Isto não é o mercado, meus amigos. É um assalto organizado e validado pelos lobbies dos mais ricos. É, na minha modesta opinião, um convite a bater à porta das farmacêuticas com o exército e entregar-lhes o novo caderno de encargos.

    Há um limite para a obtenção de capital à custa da doença e, num mundo decente, esse limite aparece vários zeros antes dos milhões.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • PISA, covid e incompetência para dar e vender 

    PISA, covid e incompetência para dar e vender 


    Talvez seja impressão minha, mas vejo pouca discussão sobre os resultados dos testes do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) na comunicação social portuguesa. Bem sei que não temos o hábito de discutir a Educação em horário nobre, mas este tema, parecendo que não, é um pouco mais importante do que os penalties que se debatem em todos os canais informativos, três ou quatro horas por dia.

    Os testes do PISA são a medida utilizada para comparar os diferentes sistemas de educação nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) e alguns convidados, num total de 81 participantes. 

    Alunos de 15 anos são avaliados em temas como leitura e compreensão, Matemática e Ciência.  

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    O recente relatório publicado, referente aos resultados de 2022, é particularmente preocupante porque mostra um tombo enorme em quase todos os países. No caso de Portugal, há uma queda de mais de 20 pontos na Matemática, uma pequena hecatombe.

    Uma das conclusões do relatório é que a pandemia e o encerramento das escolas contribuíram para piorar os resultados. É uma consequência lógica, diria. Alunos em casa, escolas fechadas, países confinados, programas que ficaram por dar ou que foram despejados por aulas remotas. No fim, as notas mostram que há um equilíbrio nos conhecimentos entre os estudantes de 15 anos, em 2022, e os de 14, em 2018. Ou seja, em termos práticos, perderam um ano do seu percurso escolar.

    Esta é uma parte da factura da criminosa política que maior parte dos países europeus adoptaram durante a pandemia. A outra, como percebem em cada mês, é a quantidade absurda de impostos que pagam para compensar o endividamento que foi necessário para pagar salários enquanto se parava parte do sector produtivo. Ou até a destruição do SNS (Serviço Nacional de Saúde) enquanto se desviaram milhões para farmacêuticas que nunca abriram as patentes das vacinas e para laboratórios que cobravam fortunas por testes obrigatórios, ao abrigo de leis idiotas que nos condicionaram os movimentos.

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    Não sei se já estaremos no momento certo de analisar o que foram os anos da pandemia. Não sei se já podemos discutir o escândalo que foi o desvio de dinheiro dos impostos para vacinas. Não discuto a sua necessidade, discuto o financiamento a farmacêuticas pelos Estados para criar uma vacina e perceber que, durante o processo, estas nunca foram obrigadas a abrir mão das patentes. Foi nesse momento que ficou claro que a questão não era salvar vidas, mas sim rentabilizar um negócio.

    E isso foi válido para os hospitais privados que cobravam um preço absurdo por cada doente, deixando o SNS a rebentar pelas costuras.  Vimos leis que nos proibiam o mais básico dos movimentos e que geraram fortunas para laboratórios, a troco de um teste para sair de casa.

    Uma amiga, que trabalhava na indústria farmacêutica, num fabricante de álcool-gel, dizia-me que foram anos de jackpot e loucura total. Escorria dinheiro pelas paredes com a obrigatoriedade de usarmos aquela “baba” em cada sítio público onde entrávamos. No fim da pandemia e das obrigatoriedades, despediram pessoas e guardaram os lucros nos bolsos dos accionistas. Se há algo que nunca perde rumo em pandemias, guerras ou catástrofes, é o capital e os capitalistas.

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    No meio desta loucura toda, andámos a bater palmas aos enfermeiros enquanto ficávamos em casa sem pensar como é que chegava aquele salário. Ninguém quis saber do endividamento do país para ir mantendo as contas. Diziam “o que é preciso é salvar vidas, logo se vê quem paga”.

    Ora, não só não era necessário estar em casa para “salvar vidas”, isso hoje está mais do que provado (a não ser que julguem que a covid-19 foi erradicada como a lepra), como, de facto, não havia condições para pagar por isso depois. Batemos palmas ao que seria o nosso próprio empobrecimento e, hoje, é essa a realidade. Somos, de facto, mais pobres.

    Perdemos empregos, perdemos casas, perdemos poder de compra. E pior do que aquilo que fizemos aos adultos, ainda conseguimos prejudicar gravemente o percurso escolar das nossas crianças. 

    Será alguma vez julgada esta elite política absolutamente incompetente que governou a Europa nestes últimos anos?

    O primeiro-ministro, António Costa, e Ursula von der Leyen. A presidente da Comissão Europeia tem estado sob suspeita devido ao alegado desaparecimento das mensagens trocadas via telemóvel com o presidente da Pfizer, Albert Bourla, no âmbito do mega-negócio de compra das vacinas. A polémica envolve ainda o secretismo em torno dos contratos assinados com as farmacêuticas na pandemia.

    Contudo, a pandemia não justifica tudo. Há conclusões do relatório para o caso português que, não sendo novidade, deviam ser tema de debate e reflexão.

    Em Portugal, segundo os resultados do PISA, a escola ainda não atenua as diferenças entre pobres e ricos.  É mais provável que uma criança de classe média tenha melhores notas do que uma que venha de um estrato social mais pobre. 

    A isto podemos juntar um sistema de ensino onde os melhores e mais ricos são escolhidos pelas escolas privadas, deixando no regime público quem não tem outra hipótese. Acrescentem à receita alguns professores que se reformaram sem serem substituídos e uma classe – inteira, assumo – desmotivada por 10 anos de congelamento das carreiras e salários miseráveis.

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    Significa, pois, que Portugal já vinha, há anos, a desmantelar a escola pública. Tal como o Serviço Nacional de Saúde. A pandemia deu apenas a estocada final num processo que já era óbvio e perceptível há muitos anos.

    E a prova de que nada aprendemos com o caminho que nos levou ao trambolhão nos resultados do PISA está no Orçamento apresentado pelo PS, um Orçamento que alguns ainda insistem ser de esquerda. Por lá podem ver a maior transferência de sempre de dinheiro público para privados na saúde e a Educação com um dos menores aumentos, quando comparado com o Orçamento de 2023.

    Portanto, não há aqui coincidências, azares ou pandemias. Há decisões, normalmente erradas, antes, durante e depois da pandemia.

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    Por outro lado, o que é que importa, para Portugal, os resultados do PISA, a falta de conhecimento adquirido pelos nossos alunos ou até a assustadora degradação da escola pública? Grave seria se esses cérebros, no fim do seu percurso, ficassem a trabalhar em Portugal. Agora, como cortiça, vinho, azeite e miúdos com formação universitária, são produtos para despachar para o primeiro mundo, eles que resolvam o problema caso apareçam por lá dois ou três com deficiências na tabuada.

    Com tantas ofertas de mão de obra que fazemos aos países ricos, ninguém leva a mal se a produção tiver um soluço ou outro. É evitar o modelo de 2020 e esperar pela fornada seguinte. Com PISA ou sem PISA, continuaremos a educar para todos vós, enquanto esperamos a vossa visita com um moscatel e um pastel de bacalhau recheado com queijo da serra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ucrânia: o final anunciado

    Ucrânia: o final anunciado


    Um dos enormes problemas de ouvir especialistas cegamente é o risco de desligarmos o cérebro e deixarmos que outros pensem por nós. Alguns desses especialistas dizem-nos, há dois anos, que o conflito na Ucrânia se resolveria dentro do campo de batalha, assim os Estados Unidos e a Europa não cessassem com as remessas de dinheiro e armas.

    A minoria que defendia o contrário, que a diplomacia era a única solução, foi apelidada de “putinista”. Não sei se se lembram, eram os “negacionistas” deste tempo.

    Não era importante olhar para a História dos últimos 100 anos e dos conflitos onde a Rússia participou. Não era importante compreender a capacidade militar da Rússia e a sua produção própria. O que realmente interessava era vender uma narrativa que, com o apoio certo, os ucranianos conseguiriam vencer esta guerra.

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    Membro das forças especiais ucranianas. (Foto: D.R.)

    Lembram-se dos “game changers“? Eram os leopard, as armas de longo alcance, os F16, as antiaéreas. E mais dinheiro. Rios de dinheiro que fossem aguentando os serviços e mantendo a economia de guerra a funcionar.

    Depois, apareceram as sanções, a Rússia isolada, o mundo do lado da Ucrânia. Ao fim de algum tempo percebemos que a Índia comprava o petróleo que a Europa não queria, o Irão fornecia armas, a China escolheu o parceiro de sempre. Por África ninguém queria saber da Ucrânia e, mesmo no seio da União Europeia o apoio nunca foi unânime. Mas diziam-nos que os russos estavam sós.

    Depois, foi a história da indisciplina no exército russo. Criaram-se heróis ucranianos que abatiam pelotões inteiros, pilotos que arrasavam os adversários. Os russos tombavam como patos, de mal preparados e equipados que estavam. Numa das chamadas russas de novos soldados, Zelensky disse: “podem vir para a vossa morte certa”.

    Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia

    No terreno, contudo, a realidade mostrava outra coisa. Os russos não arredavam pé nem perdiam posições. A carnificina era grande, de um lado e de outro, mas quilómetro para a frente, metro para trás, a situação ficou num impasse.

    As vozes dos falcões da guerra disseram-nos que a contraofensiva do Verão é que ia resolver tudo. Veio mais uma injecção de dinheiro, mais armas e esperaram que o terreno ficasse seco, para os carros de combate passarem a lama.

    Começou a contraofensiva e, aos poucos… nada aconteceu. Mais uns milhares de mortes, que já ninguém conta, e, no essencial, os russos acabaram a recuperar terreno. Portanto, tal como no início, ninguém os tirou do Donbass ou da Crimeia. Aquilo que os “putinistas” dizem há dois anos para justificar a necessidade de negociar. Já não sei quanto textos escrevi sobre este tema aqui, no PÁGINA UM.

    peace, ukraine, peace sign

    Hoje, perante o fracasso óbvio das investidas ucranianas, as vozes vão-se reduzindo. Uns desviam o foco para Gaza e trocam a pele de defensores dos invadidos para passarem a defender o invasor. Enquanto outros, como Isidro Pereira, Helena Ferro Gouveia e José Milhazes, vão gritando que ninguém se pode esquecer da Ucrânia e, já agora, dos empregos que isso lhes garante há dois anos.

    O problema é que o dinheiro acabou. E as armas também. Nos Estados Unidos, 60.000 milhões de euros foram barrados pelos republicanos no Senado americano e, na União Europeia, vários Estados-membros recusam-se a enviar mais armas. Ou seja, a cortina está a fechar e não vai haver “encore“.

    Entre 50% e 60% da opinião pública norte-americana não concorda com apoio a guerras (Taiwan, Israel e Ucrânia), portanto, a política interna ganha sempre às promessas externas. Há umas eleições para ganhar.

    Dice with Letters on a Map

    Assim sendo, 250.000 mortes depois, com um país arrasado e o mesmo território ocupado, os ucranianos começam a ficar por sua conta. O papel de desgaste das forças russas, que lhes fora confiado pelos aliados, está cumprido e agora, enfim, que comecem as negociações quando quiserem porque, tal como todos já sabíamos desde 2022, os russos por norma não regressam de um cenário de guerra com as mãos a abanar. Julgo que também escrevi isto aqui há mais de um ano.

    Esta é uma história em que todo o Ocidente escreveu o final poucos minutos depois de ter começado. Todos sabíamos. Todos não, os ucranianos acreditaram mesmo que alguém quis saber da sua integridade territorial.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O pai do Doutor Nuno

    O pai do Doutor Nuno


    Não sei se vocês ainda param para ouvir declarações de políticos à hora do telejornal. Para mim tornou-se um relato noticioso de assunto corriqueiro, quase um rodapé daqueles que hoje se reserva para o Donbass e, daqui a poucos meses, para Gaza. 

    Dito isto, aqueles trinta minutos em que ontem Marcelo tentou transformar uma cunha num momento de Provedor dos Doentes foi ligeiramente deprimente.

    Marcelo, o prodígio que lia 20 livros por semana para os apresentar ao domingo na TVI, que nunca dormia, que nadava no Tejo, que aparecia em qualquer cenário de crise antes de lá chegar a CMTV, que escrevia com as duas mãos, passou ontem a ser um velhinho frágil, confuso, sem memória.

    Quem é que se lembra de um e-mail, entre milhares, de há quatro anos a esta parte? Ninguém. A não ser que seja um pedido de cunha de um filho para um tratamento de milhões. Nesse caso, não só uma pessoa se lembra como até mete o e-mail naquela pasta do “não esquecer de limpar o rasto”.

    Há momentos desta jovem democracia portuguesa em que não percebo como estes actores políticos, com muita tarimba (até porque são sempre os mesmo década após década) e mais rodagem, se submetem ao ridículo das explicações públicas e imaginando que, simplesmente com isso, limpam a imagem.

    Havia algumas dúvidas no caso das gémeas; julgo que todos concordaremos nisto. Mas, depois de Marcelo abrir a boca ontem, ficámos todos mais ou menos esclarecidos que, afinal, presidente ou não presidente, ele é um português comum e, obviamente, não foge a umas cunhas de quando em vez.

    Que atire a primeira pedra o pai que nunca tentou desenrascar um filho.

    Nada contra a demonstração de pureza lusa do nosso Marcelo na execução do habitual “jeitinho”. Está-nos nos sangue.

    Mas tentar depois fazer-me de parvo é que já me aborrece.

    Recebeu ele um e-mail do Doutor Nuno, “filho” para os mais próximos, que direccionou para quem de direito e fez perguntas, do género: “o que é que se faz num caso destes?”. Em seguida leu as respostas marteladas onde lhe explicavam, como se tivesse aterrado em Portugal naquele dia, que as pessoas devem procurar assistência médica no países onde pagam impostos.

    Na visão de Marcelo, ele limitou-se a dar conhecimento a outras entidades de um e-mail que lhe tinha chegado, com um pedido para usar uma pequena fortuna do erário público. Faria o mesmo se fosse do doutor filho ou de outro doutor qualquer. Explicou-nos até que ele, o Presidente, deve comportar-se como um Provedor do Povo, tentando ajudar sempre que possível.

    Não sei se estão a ver o cenário, mas eu posso tentar ajudar. Uma pessoa que apareceu ao lado do Marcelo, a chorar numa fotografia que correu o país, depois de ver a sua casa consumida pelo fogo, morreu sem voltar a ter um tecto seu, mas ajudou Marcelo a criar a aura do Presidente dos Afectos. Já o filho de Marcelo, com um simples e-mail, conseguiu aceder a uma fatia gigantesca de dinheiro público. Isto de ser Provedor do Povo prova-se, empiricamente, que é um campo onde há filhos e enteados. E doutores. 

    Espero que por esta altura seja claro que o meu problema não é com o tratamento e com a assistência prestada às meninas. O meu problema é quando percebo que a diferença entre a vida e a morte, casa ou rua, desemprego ou emprego, se prendem com a nossa agenda de contactos.

    Marcelo tentou passar-nos um atestado de estupidez e embrulhou-se todo em explicações absolutamente dúbias, contraditórias e pouco credíveis. Vem numa linhagem, já longa, de políticos que recebem ou dão benefícios pela sua posição de poder e, quando chamados à pedra, invocam uma seriedade que simplesmente não lhes assiste para se manterem na vida pública.

    Foi assim com Relvas e o curso feito com quatro disciplinas. Foi assim com Cavaco e os lucros no BPN, enquanto os comuns portugueses sofriam o calote generalizado. Foi com José Sócrates e o dinheiro da mãe. Foi com Passos Coelho e a Tecnoforma. Foi com Portas e os submarinos. Foi com o Galamba e o lítio. Foi com Isaltino e o primo da Suíça mais as contas. Foi com autarcas do PS e PSD nas intermináveis histórias de tutti-frutti. Enfim, todo um rol de artistas que vão passando pela vida pública, e usando o dinheiro dos impostos a seu belo prazer, mantendo, incrivelmente, as suas posições e a cabeça erguida na rua.

    Notem a cara de surpresa de Marcelo quando lhe perguntaram se era razão para se despedir. Ele nem a cunha assumiu, quanto mais ver ali um motivo para se despedir. E compreendo-o, devo dizer. Com a quantidade escabrosa de roubos que os políticos nos fazem semanalmente, a começar em ajudas de custo com moradas falsas, passando na distribuição de negócios públicos para empresas amigas e acabando no resgate da banca (esse sim, um roubo colectivo), como é que uma simples cunha daria direito a queda do presidente?

    Esta malta não está boa da cabeça, Marcelo. Era só o que faltava. Já um pai não pode ajudar um filho, ainda por cima doutor? 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.