Etiqueta: Visto de Fora

  • De Uvalde a Mariupol, sempre a disparar

    De Uvalde a Mariupol, sempre a disparar


    Devo dizer-vos que 10 minutos antes de começar a escrever, não fazia ideia se Uvalde era marca de sumo de uva comercializada em baldes ou, em alternativa, uma aldeia perdida nos Andes.

    Dez minutos volvidos já sei várias coisas. Por exemplo, sei que na página 13, de entre as 192 que compõem o Orçamento Público, disponibilizado online, a pequena cidade rural de Uvalde, que afinal fica no Estado norte-americano do Texas, deposita na sua polícia 40% do seu argent.

    black and silver semi automatic pistol

    Pensando na frequência destas tragédias de mass shooting nos Estados Unidos, o país com mais armamento per capita do Mundo, lembro-me de dois argumentos que ouço recorrentemente. Primeiro, o clássico direito “à defesa pessoal”. Melhor, as tragédias que se evitariam se todos estivéssemos armados – sim, este argumento existe. Depois, e ainda mais elaborado, como mais espingardas podem contribuir para a paz.

    Só por má vontade é que não percebemos, todos, as vantagens de nos armarmos até aos dentes.

    Um amigo, acérrimo defensor da Segunda Emenda, diz-me que pela lógica do pensamento (anti-arma) também devemos proibir os carros porque há acidentes rodoviários. É uma forma simpática de comparar a necessidade de nos deslocarmos com a vontade de vivermos entre saloons e botas de espora. E digo simpática para não ofender ninguém.

    Curiosamente, a tecnologia evolui no sentido de evitar acidentes (no ar, terra e mar), e as leis, essas malvadas, contribuem para retirar da estrada os condutores que não estejam habilitados para tal.

    Mas as armas? Qual é a necessidade de um civil andar armado?

    boy in gray and green crew neck shirt holding white printer paper

    Dizem-me que é uma forma de nos protegermos. Ora… a escola em Uvalde, onde os alunos podiam assistir às aulas com armas de fogo na cintura, não se conseguiu proteger. Nem sequer a cidade, que gasta 40% do seu orçamento na polícia, chegou para prevenir um ataque destes.

    Porquê? Porque malucos existem em todo o lado, certo? Certo. Certíssimo. Mas se o acesso às armas não estiver ao nível do acesso ao lego, em princípio os danos devem ser menores.

    A Constituição americana consagra a violência – é um facto, e por mais mortes choradas, não há poder político que se atravesse no caminho do fortíssimo lobby do armamento. O mesmo que prolifera internamente, e que, em cada década, necessita de um empurrão “em busca da paz” para exportar o seu produto.

    Quem não se lembra do súbito interesse em defender a democracia e a liberdade no Kuwait, nos idos de 90? Democracia num sítio sem eleições é sempre um dos meus jargões preferidos. Ou as intervenções na Sérvia, Síria, Iraque, Afeganistão ou Líbia?

    Uma receita tantas e tantas vezes repetida.

    Começa com um povo sofredor dominado por um tirano. Segue-se o armamento dos rebeldes. Mais tarde, aparece a cavalaria, que parte aquilo tudo. No fim, escolhe-se um novo presidente, e chamam-se os Joes que tomam conta da reconstrução do quintal. É sempre a lucrar, da primeira bala ao último bloco de cimento. Como brinde, há ainda o facto de, normal e curiosamente, os povos sofredores adormecerem à sombra de poços de petróleo.

    No caminho para o Kuwait e Iraque, por exemplo, as tropas fizeram escala na Palestina, mas não encontraram povo algum a precisar de ajuda. Passam despercebidos, de facto. Quem nunca esteve 70 anos sem ver as notícias, que atire a primeira pedra.

    Da escola no Texas para o Donbass, o negócio segue a bom ritmo. A Ucrânia fornece a carne, os Estados Unidos as armas. Os russos oferecem a possibilidade de se procurar um mundo melhor, e a União Europeia, entre material velho de guerra, disponibiliza também um rombo nos seus orçamentos, um aumento do custo de vida para os seus cidadãos e uma factura mais alta com a energia comprada no outro lado do Atlântico.

    Dou voltas e mais voltas à cabeça e não vejo ninguém no continente europeu que beneficie com a continuação da guerra na Ucrânia. Ninguém. Absolutamente ninguém.

    black assault rifle on brown wooden log

    Mas não consigo deixar de pensar que, entre Texas e Kiev, as desgraças humanas trazem lucro uma e outra vez aos mesmos de sempre. 

    E para que não fiquem dúvidas a que me refiro, serei claro com as palavras.

    Putin é o maior responsável do início desta guerra e o primeiro a ter que ir parar a Haia. Não é, contudo, no dia de hoje, o único interessado na sua continuação. Os Estados Unidos já assumiram que pretendem desgastar a Rússia, e, como tal, o seu interesse tornou-se oficial. Por outro lado, não precisam de nos dizer que as exportações aumentaram que, em princípio, conseguimos fazer as contas sozinhos.

    Voltarei, porventura ou má-ventura dos leitores, ao tema em próximo artigo, com os números da nova dupla de marretas: Rogeiro e Milhazes.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O alfacinha Carlitos dos Popós

    O alfacinha Carlitos dos Popós


    Durante o “Vietname benfiquista”, um massacre ocorrido entre 1995 e 2003, perante mais um lastimável espectáculo no velhinho Estádio da luz, um sofredor na fila da frente dizia: “a culpa até nem é do Manel Zé, nem é do Manel Zé!”.

    O Anel, aquele que era Terceiro – e, por vezes, nem nesse lugar se ficou –, nunca falhou, concordava em surdina: que mais poderia fazer o pobre Manel Zé com Akwá, King, Marcelo, Paredão, Tahar e Pringle? De modo que nós escolhemos sofrer, e ele, o Manel Zé, começou a caminhada que o levaria a Faraó, aos ombros dos Shikabalas desta vida.

    brown woven basket on black bicycle

    De Manel Zé a Carlos Moedas vai um saltinho quase imperceptível. Como diria outro poeta da nossa praça, “andarei por aí”, e, como ele, resolvi eu ver o que traria à mais bela cidade portuguesa o nosso Charles Coins.

    Escrevi sobre isso, na altura devida, mas lembro-me, recorrendo à minha péssima memória, que Carlitos Plata tinha dois grandes trunfos eleitorais. Primeiro: informou o Mundo que estava habituado a levantar-se para trabalhar todos os dias e chegar a horas ao escritório, procurando, desta forma, dizer com um vocabulário mais elaborado que “não era político”. Segundo: talvez de forma menos original, mas consideravelmente mais estúpido, propunha voltar a povoar a cidade com carros.

    woman in white long sleeve shirt riding on black bicycle on road during daytime

    Naquilo que foi essencialmente um debate de totós, Medina e Moedas mostraram que era mais o que os unia do que os separava. Contudo, nesta história da “cidade verde”, Medina era consideravelmente mais próximo do século actual.

    Enquanto o novo Ronaldo das Finanças queria mais gente a pedalar, Charles Monnaie tinha ideias mirabolantes sobre como encher Lisboa de parques de estacionamento, na cintura da cidade. Esperava assim que as pessoas se aventurassem no caos dos transportes públicos. Ao mesmo tempo anunciava a abertura de mais avenidas, a custo das ciclovias, reduzindo o espaço para os lisboetas que já se deslocavam de bicicleta, e contribuíam, de facto, para uma redução do trânsito.

    Existem dois tipos de pessoas que acham que uma capital europeia não deve ter bicicletas: aquelas não conhecem nenhuma, e aqueloutros que só conhecem Lisboa.

    Estávamos aos poucos a querer ser uma Berlim do Sul – sem aquela coisa chata dos muros –, mas felizmente o Karl Mint deu ouvidos aos gordos (isto conta como body shaming?), e voltamos ao nosso lugar. De atraso civilizacional, de mais poluição, de mais tempo desperdiçado, de menor qualidade de vida. Mas aquele onde nos sentimos confortáveis, honra nos seja feita.

    Pensar que mais carros em Lisboa ajudam na melhoria das deslocações é um pouco como acreditar que mais sexo oral pode combater o mau hálito.

    Enquanto toda a Europa, de norte a sul, de este a oeste, procura reduzir o trânsito automóvel nos centros urbanos, temos a capital portuguesa a apostar em mais carros como forma de desenvolvimento.

    Eu já nem falo nos habituais países escandinavos, ilhas britânicas ou centro da Europa onde a bicicleta é um meio de transporte de excelência.

    Tweet de Carlos Moedas no passado dia 24 de Maio.

    Digo apenas para irem aqui ao lado, de avião ou de carro, já que comboio também não existe, e vejam o que se faz nas principais cidades espanholas. Como é que é possível gastarmos rios de dinheiro nas autarquias a dar um passo para a frente e, no mandato seguinte, dois para trás?

    Tal como nos idos do Manel Zé, a culpa agora também não é do Carlitos dos Popós. É vossa, que votaram nele, mesmo sabendo que o programa eleitoral consistia em fazer Lisboa voltar aos tempos do betão.

    Aproveitem, pois, a viagem, e não se esqueçam: apertem os cintos. Quando quiserem ver o Primeiro Mundo, esqueçam o Uber, chamem antes a TAP.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O nosso Adolfo na III Guerra Mundial

    O nosso Adolfo na III Guerra Mundial


    Tenho pensado em fazer uma colectânea das melhores frases sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mais não seja para não nos perdermos daqui a uns anos.

    Devia ter feito o mesmo durante o confinamento – e agora podia mostrar, aos que reclamam da carga de impostos, que o “fica em casa, vai ficar tudo bem” tinha um custo, e que o endividamento do país é uma fatura semelhante à disfunção eréctil: cedo ou tarde, chega.

    As duas frases que mais aprecio neste momento são: 1) “como é que em pleno século XXI ainda temos guerras?”; e 2) “não se pode comparar a Ucrânia com a Palestina. No primeiro caso há um invasor, e no segundo existe um conflito onde os dois lados se bombardeiam mutuamente”.

    people gathering on street during nighttime

    A primeira frase não é grave. Reflecte, essencialmente, o nível de conhecimento do Mundo que nos rodeia. Em resumo, se algo não aparece no Jornal da Noite, não existe.

    O mapa que decidi incluir aqui, retirado do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), mostra as zonas do Mundo onde existem conflitos armados. Hoje. Agora. Neste minuto. Enquanto nós discutimos cada opinião do PCP num conflito para o qual não contribuiu, pessoas morrem nas regiões marcadas a azul do globo. Bem sei que estão todos fora da Europa, mas, ainda assim, estão no mesmo planeta – e, acreditem ou não, naqueles territórios também é século XXI.

    A segunda frase é um pouco mais grave, porque foi dita por Adolfo Mesquita Nunes. Para o camarada Adolfo (olha… Adolfo), uma coisa é invadir e anexar; outra, completamente diferente, é invadir e anexar.

    O nosso camarada Adolfo diz que ser invadido e receber armamento da NATO (mais moderno que o do invasor) para se defender é diferente de empurrar dois milhões de pessoas para uma prisão a céu aberto de 60 quilómetros e bombardeá-los dia e noite sem que tenham escapatória ou possibilidade de defesa. Segundo Adolfo, no segundo caso estamos perante um “conflito” equilibrado.

    Quem se refere à ocupação da Palestina como um conflito entre duas partes, renega o invasor e a óbvia desproporção das partes. De um lado, temos o apoio dos Estados Unidos e o silêncio da União Europeia, e ainda todo o dinheiro do Mundo e um dos melhores exércitos; do outro, uma necessidade de sobrevivência que, em último cenário, leva a ataques a carros de combate com pedras.

    Conflitos no Mundo desde o início de 2022. Fonte: Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED)

    Na verdade, o “conflito israelo-árabe” é a “operação especial” que tanto nos tem indignado, mas se tem repetido durante 70 anos.

    O Adolfo faz parte daquele grupo de homens que, perante o conflito na Ucrânia, preferiu ignorar todos os demais a que nunca ligámos, e assumiu uma vertente bélica patente a cada intervenção: uma espécie de “vamos para cima deles” com o couro alheio.

    Para pessoas como o Adolfo, é preciso mais NATO, mais armas, mais bombas, mais tudo e um par de botas, para acalmar o urso russo e metê-lo no seu sítio. É preciso levar tudo até ao limite, ver até quando se mantém aquele botão do nuclear em estado virgem.

    O Adolfo é a Ana Gomes na versão masculina: toca de carregar que a guerra não pode esperar.

    Mas Adolfo, camarada Adolfo, toda essa coragem nos estúdios de televisão, toda essa verve no “combate político”, como alguns inúteis gostam de lhe chamar, aqui e ali conduz mesmo a combates a sério.

    Com os outros meninos e com dói-dói. É que a Ana Gomes, a primeira-ministra da Suécia, Magdalena Andersson, e as demais senhoras que gritam pelo senhor da guerra, não vão lá bater com as costas; já tu, e já agora, eu: vamos.

    person wearing black framed sunglasses

    Portanto, a minha sugestão para ti, se me permites, é simples. Deixa-te de merdas. Queres ser forcado, tudo bem: levanta essa guelra nas festas do ex-CDS, que contigo se juntaram ao sonho liberal. Mas deixa de dizer asneiras e, acima de tudo, de berrar por um quadro nas televisões que, se se cumprisse, nos arrastaria a todos para um conflito mundial.

    Uma invasão é uma invasão. Ponto final, Adolfo. Esta ou outra qualquer. Faz parte da História das nações, infelizmente. E quanto a isso, não sei bem até onde queres levar essa tua coragem dos estúdios de TV, mas, pessoalmente, tenho um filho a quem preciso explicar como se pega numa raquete e uma filha que precisa da minha ajuda na Matemática.

    A ti, e aos belicistas de sofá, desejo ardentemente que vão para a frente, com todas as armas sonhadas, ferir o grande urso e escrever epopeias de glória. Força camarada, não deixes nada por fazer.

    Ah… e já agora, outra coisa. Quando vier esta nova fatura do apoio à Ucrânia, dos 2% para a indústria militar, dos problemas com habitação, da inflação, racionamento de comida, perda no poder de compra e taxas de juros incomportáveis, serás um dos candidatos liberais a dizer que o socialismo não funciona?

    Diz aí: é para um amigo.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Um curdo por um louro

    Um curdo por um louro


    O meu filho está naquela fase em que acha as meninas, todas, muito chatas. Não lhe vou dizer ainda que essa fase só dura mais 90 anos, para não estragar a surpresa, mas não resisti a perguntar quem escolheria num hipotético casamento: uma italiana, uma portuguesa ou uma sueca.

    A “casca de banana” estava nas duas representantes da Europa que sabe comer. Tenho a secreta esperança de que o amor o empurre para sul, e eu possa vê-lo sem andar de avião ou abraçar os netos sem vestir dois casacos.

    Ele foi pragmático: “Quem escolhia? A mais gira pai, qual é a dúvida?”. Nacionalismos completamente descartados, o que é sempre bom, e os meus intentos deixados ao acaso da probabilidade do encanto.

    Resta-me esperar que a mais gira seja morena. Caso a Matemática me engate os planos, e tenha mesmo que usar gorro em cada visita à Maria Johanna e ao Johan Franco, contar-lhes-ei os dias de hoje, antes que os aprendam na escola.

    Os meus netos, nessa escola sueca, aprenderão que ao fim de 200 anos de neutralidade, com apenas 54% de apoio popular, o Governo sueco decidiu aderir à NATO. Ser-lhes-á explicado, em princípio, que a invasão russa da Ucrânia empurrou a Suécia para os braços da NATO. Mas ninguém lhe dirá que as acções da NATO, o alargamento para Leste durante 20 anos e as promessas feitas ao governo de Zelensky, deram toda a narrativa que Putin precisava para formar uma história que justificasse o seu sonho imperial.

    Vão aprender também uma ou outra coisa sobre aquilo a que se chama a realpolitik. A negociata entre Estados com impacto nas vidas reais de quem nada decide.

    Por exemplo, que menos de uma semana depois do secretário-geral da NATO ter dito que suecos e finlandeses seriam recebidos de braços abertos, estes formalizaram uma candidatura, expondo-se ao regime de Putin e esperando esse abraço fraterno.

    Ao invés disso, um dos membros da Aliança (Turquia), contrariou as palavras do seu secretário-geral e votou contra a entrada de Suécia e Finlândia. Segundo o líder turco, Recep Erdogan, estes países escandinavos são paradeiro e abrigo de terroristas – e por isso, há que fechar a porta. Esta é a narrativa oficial.

    Traduzido para linguagem corrente, o que quer verdadeiramente a Turquia? Erdogan quer “via verde” para esmagar os separatistas curdos do PKK, passando pela extradição daqueles que se encontram em solo sueco e finlandês. Um filme já visto.

    O Ocidente prepara-se para deixar os curdos à sua sorte, uma vez mais. Pergunto-me: quem é que ainda não traiu os curdos? Usados sempre como pontas da lança a cada invasão no Médio Oriente em troca de promessas sobre um território que nunca foi reconhecido.

    Observo, com alguma curiosidade, a forma como serão comunicadas ao Mundo as negociações de Ancara. Até onde cederão Suécia e Finlândia? De que forma será desvalorizada, novamente, uma vida fora do espaço europeu?

    Tudo o que vejo em redor é uma escalada na violência, uma corrida ao armamento e uma repetição ad nauseam do argumento “temos que nos proteger”?

    Proteger de quê? Não ouvimos diariamente que a Rússia está a perder esta guerra? Que encontrou na Ucrânia o seu Vietname?

    Se é assim, se isso é verdade, como é que nos protegemos continuando a meter gasolina num fogo cuja extensão não podemos controlar? Há semanas que ninguém se refere a conversações de paz. Começo a acreditar que o Ocidente quer mesmo levar esta guerra até ao último ucraniano.

    Espero que na escola, quando aprenderem este período da história, os meus netos não tenham que ouvir também os relatos sobre a III Grande Guerra que se seguiu.

    Pensando bem, se isso acontecer, talvez os meus netos nem cheguem a nascer aqui.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Rendeiro from the block

    Rendeiro from the block


    Poucas coisas têm o poder revigorante da morte em Portugal. Enfrentamos cada década a acreditar no milagre dos restauradores capilares, nas dietas detox à base de pepino ou nos cremes que nos tiram anos cravados em redor dos olhos. Procuramos em cada esquina de publicidade uma solução para uma versão melhor de nós próprios, quando, afinal, basta falecer.

    Enquanto lia e ouvia os discursos sobre João Rendeiro, iniciados três exactos segundos após a notícia da sua morte, fabriquei na minha mente uma banda sonora para acompanhamento, à base de poesia urbana. Que é como quem diz azeite em garrafas MTV. Reza a nossa Jeninha no seu poema:

    grayscale photo of concrete building

    Don’t be fooled by the rocks that I got

    I’m still, I’m still Jenny from the block

    Used to have a little now I have a lot

    No matter where I go I know where I came from.

    Que é uma forma de dizer: atenção, sou muito, mas mesmo muito rica, possuo um pouco de tudo e valentes diamantes, mas reparem, nem me esqueci que cresci no Bronx. Sou no fundo uma de vós que não viaja em turística. De resto tudo igual. Continuo a mesma menina cheia de sonhos.

    O poema, de riqueza gramatical dúbia, assenta como uma luva no nosso Rendeiro. Vejamos: até há poucos dias, o estimado João era um fugitivo à Justiça portuguesa.

    Era um banqueiro que fizera fortuna lesando (vocabulário de luxo para “roubar”) milhares de pessoas e o Estado.

    Era um magnata que apresentava livros sobre excelência em gestão enquanto o seu banco falia.

    Era um homem que, durante a fuga, se deu ao desplante de aparecer numa entrevista na CNN Portugal para mostrar o quão inimputável era.

    Mais de uma década depois de o Estado ter assumido o calote (portanto, um roubo a todos nós), muitos dos seis mil lesados ainda não receberam o dinheiro. Alguns morreram enquanto esperavam.

    Na minha memória ficou a imagem de uma manifestação à porta do Banco Privado Português (BPP) no auge da derrocada onde, entre os manifestantes, chorava um emigrante português que, ao fim de 40 anos a trabalhar na Venezuela, tinha perdido as economias de uma vida.

    Para quem vive longe de casa, há quase duas décadas, estas histórias tocam um pouco mais, porque se percebe bem o esforço feito e o que ali se perdeu.

    Portanto, Rendeiro era, até há pouco, um criminoso que roubou pessoas e o país, enriquecendo com isso e vivendo uma vida de impunidade até Dezembro de 2021, altura em que foi apanhado na África do Sul.

    Com a sua morte, tudo mudou. Um criminoso decidiu por termo à vida. Ou foi morto por outros numa das prisões mais violentas do mundo. Não se sabe. Partimos do princípio que morreu. E por aí começa a “nossa” simpatia.

    close-up photo of assorted coins

    Agora, João Rendeiro passou a ser o banqueiro que não nasceu rico; que veio de baixo e que, graças à sua genialidade, entrou na alta roda da banca. É, desde há uns dias, não um criminoso, mas alguém que, entre banqueiros, foi afinal o que roubou menos. Um renegado da classe e perseguido, porque, ao contrário de Salgado, não tinha segredos de Estado e partidos políticos no bolso. Devemos respeitar a sua morte, e há até quem condene o Estado Português pela morte numa prisão africana.

    Como?!

    Podem repetir?!

    Foi o Estado Português que meteu o Rendeiro num jato privado para África do Sul? As únicas responsabilidades de Portugal neste caso, quase anedótico, foram a devolução do passaporte que permitiu a fuga e, numa primeira instância, a lentidão da Justiça que aguentou com 10 anos de recursos em tribunal.

    Se isto continua, não tarda nada e chegaremos à conclusão de que Rendeiro era afinal o Robin Hood dos banqueiros, que roubava para dar aos pobres, nomeadamente aos da sua família.

    Leio também, com alguma estupefacção, quem defenda que a família deve ficar fora das dívidas deixadas por João Rendeiro.

    Como é que é?! A família que, durante anos, viveu no meio do luxo roubado aos outros, que beneficiou diretamente com o produto da vigarice, deve agora ser esquecida, fazer o luto e continuar a viver à custa da fortuna roubada? Mas anda tudo a ficar doido neste país?!

    silver and gold round coins in box

    Façam o luto pela morte de um familiar como quiserem, mas cada cêntimo, deixado ou escondido, por João Rendeiro deve ser utilizado para indemnizar as seis mil famílias roubadas, e cujos sonhos foram destruídos pela ganância de um homem. O facto de os lesados do BPP não aparecerem nas capas dos jornais não significa que não existam, que não tenham família ou que não tenham ficado com as vidas de pernas para o ar.

    É-me indiferente saber que Rendeiro seria o menos mau entre os banqueiros facínoras – um eufemismo sugerido pelo editor para evitar invocações a descendentes directos de certas pessoas de “má vida” – que nos roubaram. Desejo a todos igual fim: bens apreendidos até à última mesinha de cabeceira e vendidos para indemnizar lesados e o Estado; privados de liberdade até ao fim dos seus dias; e, se morreram durante a estadia na prisão, espero, como consolação final, que não seja pela cobardia de um suicídio.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O sonho de carregar pedras em Pinhel

    O sonho de carregar pedras em Pinhel


    Dizia a responsável de uma empresa de extracção de granito, em Pinhel, no distrito da Guarda, que as pessoas deviam pensar um pouco mais no interior. Há falta de mão-de-obra, todos fogem para o litoral.

    É um facto, não há muito a dizer sobre isso. Há um êxodo, de décadas, para o litoral do país. Dizem-nos que a principal razão se prende com a concentração do mercado de trabalho nas cinturas de Porto e Lisboa.

    Pessoalmente, acho que a escolha de deixar o interior não acaba nas oportunidades laborais, mas sim na ilusão de estarmos no sítio onde tudo acontece. Em Portugal, isso resume-se a Lisboa e, de quando em vez, ao Porto.

    gray rock formation

    E digo ilusão porque, depois de ter mudado de casa 30 vezes, vivido em subúrbios bons e maus, vilas e cidades, capitais e periferias, passando ainda por uma ilha com apenas cinco mil habitantes, considero hoje que se vive melhor fora dos grandes centros.

    Obras, trânsito, especulação imobiliária. Três coisas que gosto de evitar na minha vida, e que me fazem passar na minha Lisboa natal sempre em rotação para outro sítio qualquer.

    Gosto de estar no centro de tudo…Londres, Paris, Nova Iorque, Lisboa, Berlim, Amsterdão, Tóquio, Istambul ou Rio de Janeiro estão entre os sítios onde me sinto melhor. Mas, no fim, no fim de tudo, gosto de regressar à paz do mar, do silêncio, das caras conhecidas e da ausência de conflitos na estrada. Gosto da guerra urbana por uns dias, não por uma vida.

    O problema, pelo menos em Portugal, é como transformar o interior num sítio apelativo. Na Suécia é relativamente simples. Tanto as fábricas como as empresas ou serviços do Estado estão espalhadas pelo país. Claro que há mais oportunidades nas três principais cidades – Estocolmo, Gotemburgo e Malmö –, mas ninguém tem que sair da sua aldeia se não quiser. Há sempre emprego por perto.

    Em Portugal não será bem assim. Empresas que abrem no interior são notícia. Casos raros. Exemplos de coragem e de quebra de barreiras. Mas poucos querem ir para lá viver. A qualidade de vida difere de análise para análise e, pessoalmente, sempre que tenho esta conversa com conhecidos o que mais ouço é “o que vou eu fazer numa aldeia do Alentejo?”.

    Isto dito por quem vive na Arrentela, famosa pelos seus museus, restaurantes de grelhados, bailados, orquestras sinfónicas e arranha-céus com vista para o Monsanto. Quem nunca viu o Lago dos Cisnes na Torre da Marinha, que atire a primeira pedra.

    Nos grandes centros urbanos, as deslocações tornaram-se um pesadelo – julgo que ouço a conversa da fila na segunda ponte do Feijó desde que nasci – e, com a especulação imparável no centro, a tendência é que os subúrbios não parem de receber gente, futuros clientes do caos no trânsito.

    brown brick house on green grass field under blue sky during daytime

    Ainda assim, quem quer deixar este inferno – para mim, isto é um cenário de Dante –, que hipótese de emprego tem no interior?

    Esqueçamos a oferta cultural, as actividades, a ocupação dos tempos livres, ou tudo aquilo que achamos imperdível numa cidade. Que empregos esperam estas pessoas em Pinhel, por exemplo, nas palavras da senhora que se queixava ao jornalista de serviço?

    Dizia ela que as pessoas normalmente só querem empregos de escritório, como em Lisboa. E que tinham que procurar também outras coisas, porque o interior precisava. Só a referência a um emprego de escritório como algo bom faz-me logo lembrar a bitola da minha avó, quando falava de uma neta ou filha de uma amiga qualquer na sua pequena aldeia do Alentejo: “Olha, ela até conseguiu um emprego muito bom. Num escritório. Não sei o que fazia, mas era num escritório”.

    Eu sorrio sempre com as avaliações à vida feitas pela minha avó. Ela nasceu em 1927. Nas décadas seguintes, os escritórios estariam reservados para umas elites e, portanto, tudo aquilo faz sentido na cabeça dela. Já ouvir esse discurso numa empresária do granito neste século, enfim, ajuda um pouco a perceber a falta de mão-de-obra.

    O problema, em última análise, é o “arame”, como lhe chamava Mário Soares. À pergunta sobre o nível salarial feita pela jornalista, respondeu a empresária, ligeiramente envergonhada: “Bom, isso depende do trabalhador”. Seguiu-se a insistência da entrevistadora, na tentativa de sacar um número: “Mas qual é a base? Está ao nível do salário mínimo?”. Aí a entrevistada já se soltou um pouco mais. “Sim, sim. Começam todos pelo salário mínimo, e depois vão evoluindo por aí fora”.

    brown and white concrete buildings near sea during daytime

    Ui…por aí fora. Eu imagino as reuniões com análises de produtividade, aumentos salariais correspondentes, e acordos com os sindicatos para as evoluções da carreira da extracção da pedra. Por outro lado, se começam todos pelo salário mínimo, lá se vai aquela narrativa do “depende do trabalhador”.

    Portanto, em resumo, oferece-se um salário mínimo para acartar pedra a norte da Guarda. Progressões de carreira “por aí fora” e actividade ao ar livre – boa para evitar as bronquites causadas pelo ar condicionado dos escritórios. Garante-se um frio de rachar penicos durante os meses de Inverno, que só fortalece os ossos, e gasolina mais barata, uma vez que Espanha dista pouco mais de 30 quilómetros.

    Visto assim, também não percebo a dificuldade em arranjar trabalhadores. Ou colaboradores, como se diz agora.

    Eu gosto muito do interior de Portugal, mas infelizmente, tal como no litoral, o tecido empresarial ainda se rege pela exploração da força de trabalho, confundindo essa prática com o que, levianamente, costumam apelidar de “oferta de emprego”.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Amigos, amigos, mártires à parte

    Amigos, amigos, mártires à parte


    O meu dia começa invariavelmente a olhar para um mapa. Diz quem me conhece que só estou bem onde não estou. Todos os dias planeio uma viagem diferente. Todos os dias encontro problemas no destino.

    Ou, na minha meninice, era o Mundo mais simpático, ou era eu que consultava menos mapas.

    Por estes dias, olho bastante para Chisinau e para a região separatista em redor de Tiraspol. Há mais de 10 anos que penso lá ir, desde que vi um documentário narrado pelo Michael Palin, dos Monty Python. Não sei se daqui a uns meses ainda existirá como caso único no mundo, ou se, em alternativa, como novo território nos domínios de Putin.

    Dramas reais à parte, isto lembra-me uma máxima de um antigo marinheiro e colega na Autoeuropa que diz haver “duas coisas que nunca se trocam ou adiam na vida: aumentos salariais e viagens”.

    black chevrolet car on road near green grass field during daytime

    O velho lobo-do-mar sabia que sem um dificilmente aconteceria o outro.

    De Tiraspol, desloco-me 650 quilómetros para leste, com um simples click, e estou em Mariupol, a cidade mártir da invasão russa. Começam aqui algumas das minhas dúvidas sobre este conflito, e a diferença entre aquilo que nos contam e o que, efectivamente, é a realidade.

    Durante várias semanas, ouvi glorificações ao batalhão Azov (ou Combatentes da Liberdade). Desde a direita portuguesa a Inês Pedrosa, passando por dirigentes europeus e, obviamente, Zelensky, que tentou transformar uma milícia nazi numa feroz unidade de combate patriota. Confesso que nunca percebi a razão de tal esforço.

    Escrevi aqui, neste jornal, há umas semanas, que, por mim, se estivesse num teatro de guerra com soldados ao meu lado, tornar-se-ia absolutamente irrelevante saber em quem votariam nas próximas eleições. Interessar-me-ia, isso sim, perceber se tinham boa mira ou se faziam bombas com um elástico, pastilha e um sumo de laranja, tal como o MacGyver. O resto, meus amigos, é política de sofá.

    É por isso mais ou menos óbvio para todos, hoje, que o grupo nazi que entrou em combate com os separatistas em 2014, e que, segundo Rodrigo Moita de Deus, “já venceu os russos duas vezes e por isso é que não gostam deles”, foi normalizado enquanto parte do exército ucraniano. E repito o que disse antes, para não deixar dúvidas: acho normal.

    Só vê aqui algo estranho quem nunca precisou do maior rufia da turma para se safar. Os ucranianos têm nazis nas suas fileiras. Os russos também. O eterno esforço de encontrar aqui meninos de coro, bombas pela paz ou violações razoáveis, é algo que me deixa doente. As regras de bom comportamento são para as salas de aula, ou um jantar em casa da Bobone; não para um teatro de guerra.

    A minha dúvida começa, contudo, hoje, depois de ouvir as declarações dos civis, que foram libertados de Azovstal, e, principalmente, do pedido de ajuda desesperado de um comandante do batalhão Azov.

    Desde já parece que a viagem de António Guterres, apesar do escárnio a que foi sujeito pelos especialistas nacionais em postura vertical nas cadeiras do Kremlin, teve algum efeito positivo e abriu um corredor para a saída de civis.

    white and blue ship on sea during daytime

    Relatos de alguns desses civis indicam que eram ameaçados dentro da fábrica por elementos do batalhão, e que não os deixavam sair. A ser verdade, indica duas coisas. Que, de facto, estavam a ser usados como escudos humanos, e que a narrativa de os invasores não permitirem a saída era falsa. Mas, enfim, o que sabemos nós sobre a verdade num cenário daqueles?

    Porém, são as declarações do comandante do batalhão Azov, e o seu pedido de ajuda, que me deixa mais surpreso. Zelensky anda a dizer há semanas que Mariupol resistirá até ao último homem, sabendo de antemão que esse homem será do glorificado batalhão Azov.

    Contudo, os homens dentro da fábrica, e agora sem civis para trocar, parecem relatar um abandono das autoridades ucranianas. Apelam aos líderes europeus, ao governo ucraniano, às Nações Unidas. Os homens que estavam dispostos a morrer pela pátria, segundo Zelensky, afinal parecem que têm onde estar para a semana, e não estão muito interessados em contribuir com os respectivos corpos para a fertilização do solo agrícola.

    Não os posso condenar. Não sei bem como pensa um nazi, mas quando toca a morrer somos todos muito pouco católicos: ninguém tem pressa para confirmar se o Paraíso tem aquelas cores que nos vendem na Sentinela.

    Alguns analistas defendem que o presidente ucraniano pretende livrar-se de um problema (nazis), transformando-os em mártires de guerra, num combate que sabe estar perdido (Mariupol).

    multicolored cityscape during daytime

    Esta explicação é ligeiramente hedionda. Faz-me lembrar um pouco aquela de que os suecos queriam matar velhinhos com a covid-19 para pouparem nas pensões da Segurança Social. Mas lá que eu gostava de saber quais os planos da Ucrânia para os encurralados de Azovstal, isso gostava. Aliás, é nestas alturas que todos precisamos de um amigo como Rogeiro que fala por interposta pessoa com Zelensky.

    Com o cerco russo e abandonados pelo seu governo, o batalhão Azov parece ter os dias contados. Zelensky fez um vídeo poderoso – muito bem feito, diga-se – para relembrar o dia da vitória aliada. Falou longos minutos sobre a destruição nas cidades ucranianas, o heroísmo do povo ucraniano, a contribuição da Ucrânia na II Guerra Mundial e as vidas que deu para combater as forças de Hitler.

    Disse, entre outras coisas, que o never again tinha que perder o never, já que, hoje, a Ucrânia era novamente vítima do nazismo e das forças de ocupação. Hoje, como antes, disse-nos Zelensky, a Ucrânia voltará a derrotar o totalitarismo.

    Ficou foi por esclarecer se a empreitada começaria por Azovstal.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Em ritmo de tourada

    Em ritmo de tourada


    Portugal entrou numa tourada sem fim à vista. Será uma metáfora simplória, reconheço, mas andamos todos a marrar no vermelho. Não sei se o editor vai deixar passar a palavra “marrar” [N.D.: deixou], mas convenhamos, não há melhor sinónimo para a situação actual. Evitemos discussões sobre o VAR, uma distância de dois centímetros e os 400 penaltis do Taremi, e foquemo-nos no outro vermelho que o país tenta abater.

    Não entendo, na verdade, o destaque dado ao presidente de uma associação ucraniana, residente há 20 anos em Portugal, que disse não perceber como é que um país da União Europeia, como Portugal, ainda tinha um partido comunista.

    people watching bull fight

    Segundo a mesma notícia (SIC), este senhor fez o ensino secundário e universitário em Portugal. A avaliar pela questão deixada aos microfones das televisões, assumo que tenha estudado qualquer coisa ligada às ciências. Malta dos números é sempre mais trapalhona com o conhecimento e percepção da História. Ou então, frequentava muito a zona dos matraquilhos enquanto a professora se esforçava para explicar o que foi o Estado Novo em Portugal e o papel do PCP no combate à ditadura. 

    Ainda assim, sem grandes teorias, a resposta mais simples para esta questão é: Portugal tem um partido comunista por que é uma democracia. É só isso.

    Todas as correntes políticas que não vão contra a Constituição são legais, aceites e debatidas. Não é assim em todos os países, de facto, e talvez daí a confusão do nosso interlocutor. Por exemplo, na sua Ucrânia natal já se passou uma esponja sobre os partidos de esquerda.

    Estas declarações originaram uma série de manifestações xenófobas, que se poderiam resumir ao “vai mandar bocas para a tua terra”.

    man in blue jacket holding red and white plastic cup

    Ora, isso também não é grande coisa, vista do nosso lado, pois não? Julgo que foi Raquel Varela quem melhor resumiu a polémica. O que este senhor disse é um problema, apenas e só, por ser uma declaração profundamente anti-democrática.

    O facto de um ucraniano comentar a vida política portuguesa é absolutamente irrelevante. A democracia acolhe todas as asneiras sem olhar para o passaporte. E assim é que deve ser.

    O PCP não faz grande falta à Ucrânia. E as suas posições contra qualquer guerra, império, aliança, invasor ou governo pouco democrático, são isso mesmo, opiniões. Não afectam o teatro de operações. Já um jovem em idade de combater parece-me ser mais útil em Kiev do que no Terreiro do Paço a sugerir o fim de um partido secular. 

    Não o estou a mandar para a terra dele, que fique claro; só a dar sugestões de como usar melhor o tempo na defesa da causa.

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    Depois de Benfica e PCP, boa parte do país vai marrando também no vermelho do sangue. Querem mais. Ainda não chega. Crescem, florescem e multiplicam-se as opiniões de que a NATO deve entrar (ainda mais) nesta guerra.

    A última voz foi a de Inês Pedrosa que a cada semana vai ficando mais bélica. Já não chega armar, pagar, devemos agora entrar na guerra e ganhá-la. Disse ela: “A NATO deve entrar nesta guerra e ganhá-la”.

    Fico impávido e estarrecido a ver sexagenárias clamando pelo sangue alheio. A teoria é simples. Se a NATO não entrar, depois da Ucrânia, o Putin não parará. Quem sabe que país invadirá a seguir?

    Já se a NATO começar a bombardear Moscovo, relembrando os sucessos de Belgrado ou Tripoli, Putin certamente baterá em retirada para a sua datcha na Sibéria. Em princípio, não usará aqueles mísseis nucleares que tem lá na garrafeira, ao lado das reservas de Dão.

    A leveza com que as pessoas discutem ataques bélicos, é inversamente proporcional à probabilidade de lá irem parar.

    Portugal já envia ajuda para a Ucrânia, dinheiro, equipamento, bens de primeira necessidade. Proponho que os nossos pensantes e opinadores públicos contribuíssem antes para a resolução de problemas mais simples e próximos. Por exemplo, discutir como ajudar os refugiados ucranianos depois das luzes das televisões se desligarem. É que segundo relato dos próprios, ter acesso às ajudas depois de aqui chegarem é um mar de burocracia sem fim, e o relançamento das vidas mostra-se extraordinariamente difícil.

    Português algum desconfia destas palavras. Burocracia é a nossa forma de estar na vida. A dar conferências de imprensa com medidas e acções em PowerPoint, somos uns ases. A fazer cabeçalhos com boas intenções, também. Já a simplificar a vida das pessoas, quando a poeira assenta, nem tanto.

    Começo eu, para não dizerem que é só conversa. Sugiro que pintem a burocracia de vermelho.

    Depois é só esperar que vão marrar no sítio certo.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O novo Chega, versão “o sistema até se borra”

    O novo Chega, versão “o sistema até se borra”


    Não sei se vocês acompanham as sessões no plenário da Assembleia da República, mas por cá, enquanto penso num algoritmo, gosto de ter aquilo em som de fundo. Há sempre qualquer coisa que me alegra o dia. É quase como ir ao Jardim Zoológico dar a moeda ao elefante: magia e depressão no mesmo minuto.

    O debate do Orçamento do Estado foi particularmente interessante – no que a serrar presunto diz respeito, porque, quanto à votação, teremos quatro anos de aborrecida maioria e resultados combinados. Quase como os jogos da Liga Portuguesa, embora sem aquela chatice de nos sentarmos à chuva ou das filas e apalpões da entrada e da saída.

    Há, nesta legislatura, uma enorme novidade no movimento “caixa de ressonância” na bancada do Chega. O movimento “caixa de ressonância”, para quem não sabe, é aquele habitual apoio, registado competentemente em Diário da Assembleia da República, do colega de bancada que, por cima da voz do orador, vai dando umas palmadas no ego. “Muito bem”. “Isso mesmo”. “Dá-lhe”. E ainda outros guiões que também se encontram em filmes porno produzidos numas caves da Damaia.

    O CDS era muito bom neste movimento. PS e PSD também não se saem mal. E agora devo reconhecer que, ao contrário do que eu imaginava, os três ou quatro parlamentares do Chega, que ouvi, conseguem discursar com alguma fluidez. Porém, a receita é a do Ventura, o estilo também, os temas são escolhidos a dedo para polémica. A busca ainda é pelos dois minutos para seguir até ao canal de YouTube da ChegaTV, apresentada como “A Voz dos Portugueses de Bem”.

    Acredito que o Ventura faça uns workshops na sede do partido onde explica como misturar o ar indignado, de combatente contra o poder, com alguma dose de homem do povo.

    Ainda assim, ao fim de poucas semanas, começam a surgir as primeiras calinadas, o que me leva a pensar que nem todos estavam atentos nas aulas. Um dos deputados já empregou um familiar como assessor, algo que, para quem leu as nove páginas do programa, sabe que esbarra logo naquela alínea do “vamos fazer tremer o sistema”.

    Depois, durante o debate, enquanto se falava na distribuição das casas de renda social, disse um dos deputados do Chega que era preciso que estas fossem parar a quem delas precisa, e não aos do costume. E cito, aqueles “que não querem trabalhar, mas têm Mercedes, Porsches e Ferraris à porta de casa”.

    Aqui sou obrigado a deixar uma nota até porque vivi vários anos a 10 metros de um bairro social. Ferraris? Uma pessoa já deu de borla os Mercedes. Depois ainda fizemos aquele esforço de imaginação para visualizar um Porsche Cayenne no Laranjeiro. Mas um Ferrari?

    Quer dizer, ou começamos todos a ir para Nárnia ouvir as palestras do Chega, ou então, neste mundo em que vivemos, temos que pensar que, para as ovelhas do pastor, um bairro social é aquilo que, nós, as pessoas mais simples, chamamos de Quinta da Marinha. 

    Antes, já um outro parlamentar do Chega, Mithá Ribeiro (este consegui decorar o nome), tinha dito que apenas o racismo reinante o impedira de ter sido eleito vice-presidente da Assembleia da República. Curiosamente, o mesmo Mithá, antes da campanha eleitoral, era conhecido por ter decretado o fim do racismo e, tal como o seu partido, afirmar que não existia racismo em Portugal.

    Bem sei que isto ainda agora começou, mas este novo Chega, versão “agora é que o sistema vai tremer”, promete muito. Só pelo trailer já deu para perceber que, no fim, o mordomo acaba com eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O trabalhador, o CEO e a vergonha de se exigir justiça laboral

    O trabalhador, o CEO e a vergonha de se exigir justiça laboral


    O meu filho, com 13 anos feitos há dois meses, tem uma concepção do mundo do trabalho relativamente simples e prática. O plano dele é ir para uma universidade nos Estados Unidos e, em paralelo, trabalhar entre os 20 e os 25 anos, de forma a conseguir ficar milionário. Em seguida, palavras dele, quer aproveitar a vida, porque é mais fácil fazê-lo sendo milionário.

    Pessoalmente encontro várias falhas no plano. Desde logo, onde está o financiamento inicial para se tornar milionário? Na Suécia, onde ele nasceu e cresceu, a universidade é gratuita. Nos Estados Unidos custa um rim – europeu; se for afegão custa uns sete.

    O TikTok mostra-lhe os self made billionaires, como o Elon Musk na Land of Opportunities, sem lhe contar o arranque inicial com a mina de esmeraldas do papá.

    Mas tudo bem, não sou progenitor de estragar os sonhos. Também eu quero muito ir à Polinésia Francesa, e não admito que me digam o contrário.

    A discussão que verdadeiramente me interessa são os porquês.

    Qual a razão de se querer ser milionário e de ter dinheiro que não se consegue gastar em tempo algum de vida? Ou melhor, sabendo que quando o dinheiro se concentra num sítio é porque desapareceu de vários, qual é o desejo de acumular tanto?

    Contei-lhe a história de Mino Raiola, um predador de contratos de jogadores de futebol que gravitava em torno deles, conseguindo comissões absolutamente obscenas e uma fortuna acumulada sem nunca ter dado um pontapé numa bola. Representava tudo o que de errado e ganancioso existia no mundo dos empresários de futebol. Morreu esta semana, milionário, com pouco mais de 50 anos.

    Esta conversa surgiu no Dia do Trabalhador, e desenvolveu-se para a realidade do mundo laboral e dos self made billionaires como Bezos ou Musk. Nós, sociedade em geral, partimos quase sempre do princípio que é legítimo uma empresa acumular os lucros que conseguir e distribuí-los como bem entender.

    Pois eu não acho.

    A razão por que Bezos tem dinheiro de sobra para ir ao espaço, numa nave em forma de falo, é, entre outras, os salários e condições de trabalho que proporciona em muitos dos seus armazéns. O mesmo se passa entre os milionários portugueses, sejam eles donos da Jerónimo Martins ou da Sonae. A acumulação de lucro é feita nas e às costas dos trabalhadores e dos seus baixos salários.

    Há algum problema com o lucro? Não.

    Deve uma empresa ser gerida para a bancarrota? Não, claro que não.

    man in black framed sunglasses holding fan of white and gray striped cards

    Mas torna-se pornográfico quando entre o CEO e o trabalhador de base vão centenas de salários mínimos de diferença.

    Qual é a vergonha de dizer isto? Qual é o problema de exigir uma justa divisão da riqueza gerada?

    Por acaso os produtos do Continente criam-se e vendem-se por ordem divina? Não são resultado do trabalho de milhares de pessoas? Então que sentido faz a CEO ser aumentada em quase meio milhão de euros e a funcionária de caixa receber 700 ou 800 euros?

    No fim da história é, hoje e sempre, uma questão de opção. Em 2008 trabalhei numa empresa onde o chefe de departamento, graças ao trabalho de 160 como eu, recebeu um bónus enorme. Ele, que poderia ter comprado uma casa ou um barco, pegou no bónus e levou-me, com os outros 159, para um fim de semana em Budapeste com tudo pago.

    Teria ficado mais rico com aquele bónus? Certamente. Mas faria isso uma enorme diferença numa vida onde toda a base da pirâmide e das necessidades básicas está mais do que preenchida? Provavelmente não.

    É esta parte que decididamente não compreendo. A facilidade com que aceitamos ser explorados e nos resignamos ao “pouco é melhor do que nada”.

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    Em 2017 disse, ao meu chefe de então, que estava cansado de trabalhar para deixar na empresa mais de metade do lucro produzido. Exigi fatia justa daquilo que era gerado por mim. No meu ramo de actividade tudo isso é facilmente quantificável, porque os nossos serviços são vendidos a um preço por hora [bem, dito assim até parece que o escritório é na recta de Coina; enfim, o pessoal da margem sul entenderá].

    Andei uns bons 10 anos a encher a mala a multinacionais sem que o esforço de estar longe de casa fosse verdadeiramente compensador. Fartei-me e despedi-me. O meu empregador de então ainda me ameaçou com um processo em tribunal por perder o contrato com o cliente da altura (Volvo), uma vez que eu me recusava a continuar a trabalhar para ele.

    Curiosamente, de tudo o que tentou para me manter a trabalhar, entre tribunais e listas negras em empresas de engenharia, nunca pensou em dividir o bolo das receitas. Os custos operacionais, o carro dele, o escritório dele, o cartão de crédito dele, o salário dele, tudo o que mantinha o CEO como CEO era mais importante do que a restante ralé, onde obviamente eu me incluía, já na casa dos 40 anos.

    Quando me vim embora – aliviado, mas um pouco sem saber o que fazer –, acabei por me juntar a uma empresa muito pequena, gerida por um amigo de longa data que escolheu entrar no ramo por conta própria. Optou por um modelo de gestão onde 80% dos lucros gerados vão para os trabalhadores. Não ficou rico, mas saiu do pior bairro de Gotemburgo, onde vivia, e mudou-se para uma zona boa da cidade.

    Todos os que ali trabalham ganharam a liberdade de negociar a venda da sua força de trabalho, e todos, sem excepção, melhoraram as suas condições de vida. Em jeito de brincadeira, digo-lhe sempre que, para quem chegou aqui num C130 a fugir à guerra, não está mau.

    Portanto, sim, é uma opção, a de querer ser milionário à custa do trabalho dos outros – ou a de, sempre que possível, contribuir para o aumento da classe média.

    A ganância da concentração de recursos em meia-dúzia de pessoas é que destrói a sociedade, não é um trabalhador querer viver de forma confortável com o resultado do que produz. Perceber isto é metade do caminho. A outra metade é parar. Parar tudo. Até que se perceba que é o trabalhador que gera lucro, e não o contrário. Pode ser que aí possamos aspirar a essa utopia de uma classe média para todos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.