Etiqueta: Visto de Fora

  • ERC?! Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Para que serve isso?

    ERC?! Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Para que serve isso?


    O problema de ler um acórdão é que, quando se dá por ela, estamos a ler outro, ou uma coisa parecida. Desta vez mais simples e com linguagem que se percebe à primeira: uma deliberação, embora o senhor que é responsável seja um juiz, e logo juiz conselheiro.

    Falo da ERC – que é, como quem diz, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social –, que divulgou na quinta-feira a tal deliberação que se foca numa queixa feita pelo Partido Comunista Português (PCP) contra a SIC, a propósito de uma peça transmitida na edição de 6 de Março do “Jornal da Noite” sobre o comício dos 100 anos realizado no Campo Pequeno.

    Comício do PCP no Campo Pequeno, em Lisboa, no passado dia 6 de Março.

    Antes de ir à deliberação, deveria dizer-vos em que jornal li sobre isto, para não pensarem que passo o dia a fazer refresh no site da ERC. Confesso: li em nenhum jornal.

    Então?! Vi num rodapé da CNN? Também não.

    Terá sido numa discussão de jornalistas indignados no Facebook? Epá!… também não.

    Foi mesmo a “vastíssima” equipa do PÁGINA UM que me alertou. Fora isso, ninguém, absolutamente ninguém referiu o assunto.

    Enfim, sabemos que há um sentimento mais ou menos generalizado sobre o PCP e o espaço mediático. São dos que mais pancada apanham e, até ver, a sua presença na antena dos comentadores ou mesmo no espaço informativo é muito reduzida.

    Senão vejamos. A Marktest publica mensalmente uma tabela com as 10 personalidades com mais tempo de antena nos telejornais dos canais públicos e generalistas privados. Fui, por curiosidade, ver essas tabelas no período desde que começou a invasão da Ucrânia, ou seja, desde Fevereiro de 2022.

    Num espaço de cinco meses – repito, cinco meses –, o PCP teve pouco mais de um hora de intervenção nas televisões portuguesas. Aparece neste ranking apenas no mês de Fevereiro e em nono lugar.

    Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, durante o comício no Campo Pequeno.

    Para se ter uma noção das proporções, no mesmo período André Ventura tem mais de oito horas de antena, Sérgio Conceição cerca de 3,5 horas, Augusto Santos Silva um pouco mais de seis horas, Inês Sousa Real, do PAN, mais de quatro horas, tal como Catarina Martins do Bloco de Esquerda. Por sua vez, Rui Tavares tem 2,5 horas e até Fernando Santos, o treinador dos cinco trincos, tem mais de duas horas.

    O espaço reservado para membros do PS ou PSD ultrapassa sempre as 10 horas mensais.

    Portanto, não é preciso um estudo exaustivo para provar o óbvio: o PCP é o partido mais atacado pela comunicação social e, em simultâneo, aquele a quem é dado o menor tempo de antena para que se defenda.

    Não é assim de estranhar que a deliberação da ERC passe absolutamente despercebida. É que, para além de dar razão à queixa feita pelo PCP, arrasa a SIC na sua tentativa de misturar informação com opinião, neste caso, pejorativa.

    Eis os pontos que interessam reter:

     – A referência aos 101 anos do Partido «como idade suficiente para dizer sempre a mesma coisa», assim como a referência à «cartilha» assentam numa avaliação pessoal e preconcebida do jornalista sobre as posições do PCP. 

     – Estando em causa uma notícia, não deve ficar patente a visão subjetiva do seu autor, nos moldes ocorridos no caso em apreço. O registo opinativo não deve constar de peças jornalísticas, devendo ser relegado para os espaços de comentário, devidamente identificados.

     (aqui, acrescento eu, a SIC não se contenta com a dúzia de comentadores que já tem a desancar o PCP, precisa que os jornalistas façam as reportagens e induzam os espectadores à sua opinião sobre os factos relatados)

     – Refira-se, por último, que a SIC apenas aparentemente está a dar voz às posições do PCP e a garantir o pluralismo político-partidário, uma vez que os elementos opinativos presentes na peça jornalística conferem um sentido negativo à informação noticiada. 

    –  Assim, a peça jornalística não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela integração de elementos opinativos no discurso do jornalista, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista

    Conclui a ERC, dizendo:

     a)  Considerar que a peça jornalística, ao ter um registo opinativo, que desvaloriza e ridiculariza a posição do PCP, não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela não demarcação entre informação e opinião, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista;

    b) Instar a SIC a assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e a isenção, nos termos previstos no artigo 34.º, n.º 2, alínea b), da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido.

    Ora, trocado para miúdos, o que significa isto? Significa que a SIC fez uma peça jornalística onde tentava influenciar a opinião dos espectadores de forma negativa sobre o PCP e, como consequência desse jornalismo encapotado, vai ter que… NADA.

    Vai ter que ler esta deliberação aqui, cheia de tau-taus e consequências zero. 

    Peça da SIC, não identificada mas com locução do jornalista Pedro Coelho, de 6 de Março passado.

    Isto é o equivalente daquelas passagens de infância pelo Pingo Doce para roubar Toblerones onde, depois de apanhados pelo segurança, se ouvia um raspanete e depois só nos deixavam levar os Twix sem pagar… Quer dizer, alegadamente; ouvi dizer. 

    Portanto, a primeira questão que coloco é para que serve uma entidade reguladora que não regula?

    Depois, se cada grupo editorial tiver a sua linha de acção bem definida e “informar” sem rigor e a favor de uma agenda, que estímulo terão para parar?

    Para além do brio profissional (ou código deontológico) que, espero eu, norteie os jornalistas, quem é que mete algumas regras nesta selva da informação e da manipulação de factos?

    É que convenhamos, hoje (e ontem, vá), o alvo do ataque é o PCP. Quem é de direita não se incomoda, quem é de extrema-direita vibra.

    Mas se a agenda mudar e o fogo cerrado cair noutras cores, certamente os desagradados serão outros.

    É, na verdade, o princípio que está errado. Não há pluralidade no comentário com a opinião representada; basta pensar que Portugal é governado à esquerda há muitos anos e o espaço de comentário é largamente dominado, em todas as televisões, por pessoas de direita. E se a isso juntarmos notícias com agendas ideológicas, bom, sobra-nos pouco espaço para recolher informação e acreditar nas notícias.

    O perigo é sempre o mesmo. Uma sociedade mal informada, é uma sociedade que não pensa e dificilmente reage. Em suma, uma sociedade mais dócil para quem comanda. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O teatro das operações: um espectáculo!

    O teatro das operações: um espectáculo!


    Sentado perto da minha janela, vejo o pior verão da História: frio, vento, chuva e, julgo, três horas de praia em três semanas. É assim que, a apenas duas horas de Lisboa, numa ilha dos Açores, de casaco vestido, acompanho o inferno que assola o território continental português.

    Como é mais ou menos óbvio para quem me vai lendo, e ao contrário da maioria dos portugueses, eu não percebo nada de árvores. De floresta, muito menos. Nem sei o que arde melhor, o que deveria ser plantado ou se o eucalipto é que dá cabo disto tudo. Não sei se o fogo é posto por malucos, e nem sei sequer se posso usar o termo “malucos”. Estou certo de que existirá uma expressão associada a uma doença qualquer que eu deveria aplicar nesta frase. Mas fica mesmo assim. O PÁGINA UM não é o Facebook…

    stage light front of audience

    Também não entendo bem a lógica do fogo posto para vender depois a área ardida, ou a eterna conversa dos matos por limpar. Sei apenas que não me lembro do último ano em que o Verão não fosse significado de intermináveis directos do “teatro de operacões”, e fico sempre espantado como é que, num país tão pequeno e com tantos hectares ardidos, há sempre material para o ano seguinte. E sempre, mas sempre, todos parecem apanhados de surpresa.

    Ou são os meios aéreos que não estavam preparados e vão a correr alugar Canadairs a Espanha e Marrocos, ou são as matas que envolvem as aldeias que não foram limpas, novamente, na Primavera.

    Até os bombeiros, cujo estatuto de voluntário não se percebe na realidade portuguesa, repetem a cada Verão as péssimas condições de trabalho sem que algo verdadeiramente mude para o ano seguinte. Parece que apreciamos este filme, repetido, entre festivais de Verão, a cada Julho ou Agosto.

    Assim, as minhas dúvidas, também repetidas, resumem-se a três questões:

     Por que não têm os bombeiros o estatuto de profissionais dada a sua importância para a segurança das populações?

     Por que razão não se legisla de forma a punir severamente o fogo posto? (ou a proibir a venda de área ardida)

     Por que razão não se vigia a limpeza das matas, sejam elas públicas ou privadas?

    silhouette of trees during sunset

    Compreendo que não seja fácil controlar a manta verde do país, mas tenho a impressão de que nada é feito no lado da prevenção. E se temos cheias no Inverno com as sarjetas entupidas como não ter fogos no Verão com as florestas sujas. E como se pode ser sempre apanhado de surpresa por isto?

    Sobre a razão do eucaliptal como matéria de lucro e fogo rápido, deixo a discussão, que vai ardente, para quem a saberá fazer melhor. Uma vez mais, tal como no tema dos aeroportos, acho que menos diretos inúteis e mais debate sobre este tema, ajudariam a esclarecer a população.

    Também entendo que, nos dias que correm, quanto mais sangue se transmitir maior a possibilidade de aguentar o espectador preso do outro lado, embalado no drama relatado pelo jornalista. Mas, ainda assim, parece-me que a concorrência é tal que estamos a atingir um ponto de puro espectáculo e venda de angústias em directo.

    Há pouca informação relevante e muito corre-corre ofegante.

    Se no início da guerra da Ucrânia tínhamos jornalistas em Kiev, com o capacete posto, a falarem sobre mísseis disparados a 1.000 quilómetros – que, tal como nós, tinham visto na televisão –, agora temos jornalistas que se metem a inalar fumo para tossirem em directo.

    Ontem, na SIC, algures no Centro do país, a jornalista descrevia o horror com as chamas ali ao lado. Pelo meio, achou boa ideia ir entrevistar um bombeiro que, aflito, corria para apagar o fogo. Ele, meio ofegante, ainda lhe disse de forma educada que tinham que tirar a carrinha da frente porque estavam a estorvar, ao que ela, sempre com a magia do momento no pensamento respondeu, “claro, tiraremos logo que possível, assim que acabarmos o directo”.

    two firefighters walking on burned trees covered with smoke

    Acho bem. Que o Senhor nos livre de perdermos um minuto do avanço das chamas. Aliás, quanto mais se atrasar a passagem do camião dos bombeiros, mais se garante material para novos directos. Absolutamente brilhante.

    Já ali perto de Aveiro, numa auto-estrada em chamas, um jornalista da TSF achou boa ideia ir a conduzir e a filmar com o telemóvel. De repente, sem que estivesse à espera, foi apanhado por uma zona de intenso fumo onde as chamas cobriam toda a auto-estrada.

    O que fez ele num sítio sem qualquer visibilidade? Continuou a filmar. Aquilo que era apenas uma acção ilegal, passou a ser uma acção ilegal e incrivelmente estúpida. Tão estúpida e inconsciente que, obviamente, se tornou viral depois de reproduzida por diversos jornais. E porquê? Porque a aflição do momento e a angústia do perigo vendem mesmo que contenham 0% de informação. Provavelmente até venderão mais sem informação, porque esta, ainda assim, dá algum trabalho a compreender.

    O país já sabia que a zona de Aveiro estava em chamas e que a auto-estrada estava prestes a ser fechada. Assim, pergunto: que ganhámos ao ver um condutor a filmar esse mesmo incêndio visto de dentro? É como meter a cabeça na boca de um leão para provar que ele não tem cáries.

    Os festivais de música já mudam de sítio, nos Olivais, em Lisboa, encerram os parques infantis, sítios que, como todos e todas sabem, são altamente propícios a fogos, não é? Passeios em bosques nem pensar, porque os sapatos podem fazer faísca entre as pedras, e churrascadas dão logo direito a multa. Mas se quiserem conduzir às escuras por dentro de um incêndio e filmar, já está tudo bem.

    purple and orange galaxy photo

    Estamos agora sempre em modo histeria, repetindo tudo o que se fez nos últimos anos. Seja covid-19, seja Ucrânia, seja aeroportos, tudo neste país se discute aos berros, em directo, com muita alma, espectáculo e “Últimas Horas”. Um desgastante e interminável rolo compressor de imagens repetidas, notícias requentadas e dramas vendidos à peça. Uma e outra vez, sem qualquer atenção ao que realmente importa: informar.

    Chego a desligar tudo e a ficar completamente imune às histórias reais que passam despercebidas no meio do espectáculo e da batalha pelos clicks. Gostava, por exemplo, que num Setembro qualquer, depois dos bombeiros conseguirem ter uma semana de descanso, que alguém se sentasse a discutir o estatuto de carreira desta gente.

    E gostava de ver notícias sobre isso.

    Até compreendo a lógica de, por exemplo, os bombeiros serem voluntários na Gronelândia. Devem ter um fogo para apagar de três em três anos. Agora, e em Portugal? Um país que arde todo a cada Agosto e renasce em Dezembro, precisa mais de bombeiros profissionais do que de… deixe-me ver… submarinos. Lembrei-me agora desta.

    Mas venham de lá os clicks que logo se pensa no resto.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional

    Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional


    Não sei se já leram um acórdão de um tribunal: é coisa mais chata do que ouvir um discurso do 10 de Junho sem os desmaios do Cavaco – que, parecendo que não, sempre dão outra animação à coisa.

    Faço, por isso, tudo o que posso para não ver nada decidido por um tribunal, porque, em geral, os juízes dão duas dezenas de voltas à semântica para dizerem que sim ou que não. Uma pessoa precisa de ler a mesma estucha cinco vezes até perceber se lhe deram razão ou não.

    Dito isto, enfim, fui ler o douto Acórdão nº 464/2022 do Tribunal Constitucional.

    E por que razão me interessou em particular? Porque alguém me disse que o dito declarava inconstitucionais os confinamentos fora dos Estados de Emergência.

    Como fiquei na dúvida, depois de o ler só quatro vezes, fui então ver a imprensa nacional sobre o tema. E vi que já fazia notícia de capa, nomeadamente no Diário de Notícias, a inconstitucionalidade da coisa. Assim sendo, partindo do princípio que estamos todos no mesmo barco da compreensão, resta a pergunta que conta: e agora?

    Bem sei que já ninguém quer saber da covid-19. E ainda bem, acrescento. O Froes ainda aparece de quando em vez a falar na 38ª vaga e a tentar vender umas vacinas e uns antivirais, mas está com pouca saída. A malta prefere o Zelensky, os aeroportos e o rapaz que carregou a ovelha em Leiria. Mesmo assim eu gostava de trazer o assunto à mesa, mesmo por apenas uns minutos. Depois esquecemos esta conversa e vamos refrescar na praia. Vocês. Eu continuo no inverno açoriano.

    Primeiro, convém recordar que quem se revoltou contra os confinamentos de gente saudável foi, carinhosamente, apelidada de negacionista.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Isto porque, em teoria, devíamos abdicar da liberdade individual a troco de nos protegermos uns aos outros. Lembram-se?

    Quem não se fechava em casa de livre vontade estava a infectar o vizinho. Isto mesmo se o vizinho fosse todos os dias para o trabalho no comboio a abarrotar da linha de Sintra. Aquilo que não podia acontecer era cruzarmo-nos num restaurante ou até, quiçá, sentarmo-nos no mesmo banco de jardim. Ou até fazer tudo isto sozinho.

    De igual forma, todos achavam normal mandar uma turma inteira para casa, porque um aluno estava infectado. Quem não concordasse era, logicamente, um assassino. Isto apesar da taxa de mortalidade nas crianças ter andado – deixa-me cá ver os papéis – nos 0%.

    As deslocações de e para Portugal passaram a ser um inferno. Quarentena obrigatória e coisas do género. Quem não obedecesse à restrição dos movimentos injustificados era multado. E tachado de negacionista, também.

    Eis agora, portanto, que aparece o Tribunal Constitucional, essa entidade negacionista também, presumo, a declarar a inconstitucionalidade de tais imposições fora do Estado de Emergência. De modo que, voltando à questão, e agora?

    Quem é que se responsabiliza pelo tempo de aulas perdido?

    woman sitting on land

    A quem é que se vão pedir as indeminizações pelos dias em confinamento sem possibilidade de trabalhar ou de ter um salário?

    Com quem é que falamos sobre o tempo que perdemos com ente-queridos ou até as despedidas que não fizemos e que já não poderemos fazer?

    O tempo que passámos enfiados em casa, saudáveis – que agora se traduziram numa factura gigante e, para alguns, no fim de um emprego –, cairão sobre as costas de quem?

    As exigências para voar – que, na prática, impediam a vinda a Portugal dos emigrantes por períodos curtos – ficam em que gaveta de reclamações?

    No fundo, quem é que vai indemnizar os “negacionistas” que repetiram, até à exaustão, que o confinamento, além de ilegal, não resolvia absolutamente nada? E não resolvia nada, porque a maior parte da população – o tal sector produtivo e dos serviços essenciais – continuava activo e a deslocar-se nos transportes públicos, e a cruzar-se uns com os outros e a regressar a casa para o seio familiar.

    Imagino que ninguém. Ninguém. Chegámos ao ponto de ter de concluir que, durante um período da nossa História, andou-se a restringir a liberdade de movimentos à população só porque sim. E insultámos quem não concordou. 

    white arrow painted on brick wall

    Quem achava que o confinamento era uma obrigação moral e que, sem isso, não “ficaríamos todos bem”, deve questionar-se agora como é que as vagas de covid-19 não terminaram – e, pior, como é que o Tribunal Constitucional reverteu os “doutos conselhos” dos Froes, dos Antunes e dos Coronas desta vida.

    Agora, enfim, fica mesmo assim: fechamos este capítulo e quem gritava “assassinos” aos contestatários dos confinamentos, reza por uns rodapés discretos deste acórdão. Tudo muito discreto, nada que levante demasiadas ondas, nada que os faça compreender onde estava o lado certo da História.

    Partamos, sim, calma e ordeiramente para o abuso seguinte. Esqueçamos já que a histeria raramente é boa conselheira da Ciência… e da Política.     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Há quanto tempo não muda de cuecas?

    Há quanto tempo não muda de cuecas?


    A frase “hoje foram cancelados X voos” entrou nas redacções, em força, para substituir a outra, já mais gasta por esta altura: “o número de infectados por covid-19 subiu para Y”.

    Entendo que os canais informativos, especialmente os que precisam de 24 horas diárias de assunto, vão atrás de qualquer gota de sangue. Ainda assim, existem temas que se esgotam rapidamente. Aos habituais directos dos “teatros de operações”, que saem sempre muito bem nesta época do ano, juntou-se a azáfama dos aeroportos e das filas intermináveis.

    Nunca percebi o valor informativo de um directo para observar um regimento de bombeiros em acção, e ainda tenho mais dificuldade em perceber o que ganhamos nós, espectadores, com aquele simulacro informativo, diário, em directo da Portela.

    Interessa a 99,9% da população saber o número de voos cancelados hoje? Por acaso iam voar?  Quão deprimente é ver uma jornalista a chatear passageiros, que desesperam em filas de quatro horas, com perguntas do género: “acha que se vai resolver?”

    Se nem os funcionários do balcão de cada companhia aérea sabem para onde a coisa vai, quanto mais os desgraçados que andam a contar os dias de férias que sobram depois desta empreitada.

    Hoje ouvi uma jornalista, julgo que da CNN, a perguntar a uma passageira se tinha sido informada do estado das coisas. É mais ou menos o mesmo que perguntar a um urso polar se já viu gelo. Há alguém neste planeta, mesmo o monge tibetano mais recolhido, que não saiba de cor e salteado quantos aviões não saíram da Portela? Haverá algum pastor numa aldeia dos Himalaias que não saiba por esta hora que, no hub da TAP, a maior parte dos voos cancelados são, curiosamente, dessa mesma TAP?

    orange and grey passenger seats

    Normalmente, quando fazem esta contagem de voos e nos dizem quantos são da TAP, esquecem-se de dizer que no Charles de Gaulle a companhia com mais cancelamentos é a Air France, em Barajas a Iberia, em Heathrow a British Airways, em Frankfurt a Lufthansa e em Arlanda a SAS. É uma informação que, a meu ver, fazia falta para se completar o ramalhete de 10 minutos televisivos a explicar que a água molha. O interesse disto seria zero, ainda assim, mas pelo menos os espectadores percebiam que Lisboa sofre do mesmíssimo problema de qualquer aeroporto europeu (ou mundial) com muito tráfego neste período pós-pandemia. E sempre se enchiam mais uns chouriços.

    Depois de percebermos que o caos no mundo da aviação se generalizou é que poderíamos começar uma discussão interessante e, até quem sabe, responder à pergunta do “acha que isto se vai resolver?”

    Por exemplo, em vez de directos razoavelmente deprimentes, ou perguntas para analfabetos, dirigidas a passageiros que já têm problemas maiores para resolver, poderiam as televisões abrir espaços de debate para debate sobre o problema. Bem sei que ninguém me perguntou nada, mas este mau tempo não me deixa ir para a praia. Um homem tem que ocupar o tempo.

    Se convidassem membros do Governo, especialistas da aviação (companhias aéreas, gestores dos aeroportos, etc.) e alguns economistas, só para termos momentos de filosofia, todos bem sentadinhos num painel de debate, talvez nos conseguissem explicar como é que chegámos aqui.

    white airliner on runway

    Por exemplo, se me deixassem fazer uma pergunta nesse painel, seria esta: “como é que a Segurança Social pagou às empresas para não despedirem os trabalhadores e, mesmo assim, chegamos ao período pós-pandémico com uma imensa falta de trabalhadores?”

    Dados do Governo português, em Maio de 2020, confirmavam o apoio a cerca de 40 mil empresas, num total de 600 mil trabalhadores. Imagino que o número tenha aumentado no ano que se seguiu.

    Porque, como diria o nosso António, vam’lá a ver, esta seria a teoria. Os governos decretaram que nada mexia, aviões incluídos, porque o Mundo estava perto do apocalipse e, em princípio íamos todos morrer. Mesmo ao fim de um ano e números semelhantes aos da pneumonia (mortes), os governos europeus não abrandaram. Tudo quieto, todos em casa e os aviões no chão. Pelo esforço de todos, fomos batendo palmas e, aqui e ali, saltava um arco-íris com a promessa que tudo iria ficar bem.

    Uma das formas encontrada para ficar tudo bem foi, no caso português, aumentar a dívida pública e financiar as empresas para que mantivessem os seus trabalhadores sem produção. No caso da aviação, essa realidade era mais do que óbvia, porque, todos percebemos, as ligações estavam praticamente congeladas. Eu confesso que achei boa ideia na altura e o raciocínio também era simples: se por decisão dos Governos não podíamos trabalhar, seria sua obrigação social (dos Governos) garantir o sustento de cada família, fosse como fosse. Com ou sem engenharia financeira.

    Claro que todos percebíamos que o endividamento viria como factura algures no tempo, mas, em princípio, os postos de trabalho estariam assegurados.

    Depois de dois anos com os movimentos condicionados, os europeus quiseram sair de casa e voltar a viajar. E bem. Porém, agora, de Norte a Sul, Este a Oeste, vão chegando relatos de aeroportos absolutamente entupidos e voos cancelados. Em todos a mesma justificação: falta de pessoal.

    E é aqui que começa a minha curiosidade. Falta de pessoal, porquê? Os empregos não deveriam estar garantidos pelo erário público para que “tudo ficasse bem” depois da pandemia? [Nunca sei se devo dizer “depois da pandemia”. Certamente estarei a ofender algum Antunes que me possa ler]

    Vejo duas hipóteses para o caos actual. A primeira: as empresas usaram o dinheiro para garantir lucros e, pelo caminho, aproveitaram para fazer os despedimentos à mesma – ou restruturações, como lhes chamam os gestores premiados. A segunda, menos rebuscada: o pessoal do sector foi para outras áreas profissionais que não tenham sido tão afectadas. Ou ainda, no caso do pessoal mais especializado (manutenção, pilotos, etc.), aproveitaram para mudar de empregador e fugiram para as Arábias (Emirates), Inglaterra (EasyJet) ou qualquer outro destino onde não lhes cortem os salários em 45%.

    Provavelmente, a junção das duas resultou nisto. Neste caos, nesta falta de pessoal um pouco por todo o lado. A isto juntam-se as greves dos trabalhadores que sobraram. Com a pressão existente sobre as empresas e os atrasos que prometem comprometer o Verão, é natural que os trabalhadores façam valer os seus direitos e tentem recuperar o que perderam durante o confinamento. É a lei do mercado a funcionar a favor de quem trabalha. Não pode servir só para benefício do patronato e dos especuladores, portanto, há que aguentar.

    Em todo o caso, se pouco se pode fazer se um trabalhador mudar de empregador, já sobre uma empresa despedir quando todos lhe pagamos para que não o faca, há mais qualquer coisa a fazer. Nomeadamente, perguntas.

    Há alguém que ande a perguntar ao pessoal da aviação que recebeu as ajudas do lay-off, para onde foram os trabalhadores? Eu tenho alguma curiosidade em saber. Com 10% do tempo diário gasto em directos inúteis no aeroporto de Lisboa, organizava-se um debate para esclarecimento.

    Enfim, quanto a vocês não sei, mas, pessoalmente, não estou muito interessado em saber há quantos dias o senhor que vai para o Recife não muda de cuecas. Já descobrir para onde foram os funcionários da aviação, especialmente aqueles que estavam protegidos pela Seguranca Social, dava-me algum jeito. A mim e à senhora da CNN que pergunta todos os dias se achamos que a coisa se vai resolver.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Emigração: um estudo sobre água molhada

    Emigração: um estudo sobre água molhada


    Segundo um inquérito/estudo feito pela SEDES a 300 emigrantes – será uma amostra representativa? –, 70% queriam regressar a Portugal. Este era o título da notícia que me chamou a atenção em vários jornais. Isto significa que 210 portugueses, entre as três centenas que foram ouvidos, queriam voltar ao país de origem. E se tivessem perguntado a 301, e eu fosse um deles, então seriam 211.

    Depois do cabeçalho, fui ler o corpo da notícia para perceber como é que a matemática funcionava para aqueles meus 210 conterrâneos. É que, como perceberão, a maior parte dos emigrantes gostaria de não o ser. Bem sei que há quem vire costas para não mais voltar, mas julgo que, arriscarei pouco, se disser que a maior parte desejaria o sol português com o salário do estrangeiro.

    desk globe on table

    O mistério esfumou-se em poucos segundos de leitura. Querem voltar, sim, mas na reforma ou daqui a um par de anos. Ou seja, a matemática do emigrante ainda é aquela prova dos nove que nos afasta de casa.

    Este é um dos fados absolutamente insuportáveis da condição de emigrante português.

    Quem se habitua a viver fora de Portugal, compensa as amarguras dessa condição com a melhoria das condições de vida. E acaba por ficar prisioneiro delas. Todos, ou quase, acabamos em mesas redondas de balanços de vida. É agora que voltamos? Há condições? Conseguimos pagar as contas? Os familiares estão a ficar mais velhos? Temos que estar mais presentes? Os amigos ainda se lembram de nós? Dá para aguentar mais três anos?

    Para mim é fatal como o destino que, a cada fim de Verão, me candidate a vagas em empresas portuguesas, ou a recrutar em Portugal. É uma espécie do renovar da esperança de que algo tenha mudado desde a última conversa. Entenda-se, desde o último Setembro.

    Sempre, ou quase sempre, interrompo as entrevistas para colocar um fim ao processo de selecção. E faço-o sem grandes justificações ou sequer sem mostrar metade da frustração que sinto. A culpa não é, nunca foi, de quem do outro lado da linha fala comigo e apresenta propostas de trabalho relativamente semelhantes às que ouvia em 2006, antes de ter decidido emigrar.

    brown cupcakes on silver tray

    A culpa é de um tecido empresarial que ainda procura o lucro através de baixos salários, de um regime fiscal pesadíssimo – quase sem retorno para quem o paga – e do constante atraso nas políticas salariais que tornam o país atractivo para os tubarões multinacionais, que recebem força de trabalho altamente especializada, a troco de amendoins.

    De modo que, a cada Setembro, me interrogo se consigo pagar um apartamento em Lisboa com 25% do salário actual. Não, não consigo.

    E no Miratejo? Aí já consigo. Então é melhor ficar quieto.

    Quando me dizem que dinheiro não é tudo na vida, eu sou o primeiro a concordar.

    Normalmente quem o diz não tem casa para pagar, mas isso, são detalhes. Os baixos salários portugueses não seriam problema se as rendas, os empréstimos, o imobiliário e os restantes custos do quotidiano se adequassem. Se uma casa em Lisboa custasse 50 euros por mês, um salário de 700 euros seria óptimo. O problema é que a despesa cresce como na Europa civilizada, mas a receita, de cada um de nós, cresce ao ritmo do Congo. Alegadamente e sem ofender os nossos camaradas congoleses.

    No fundo, a dúvida é se devemos continuar a sofrer longe ou se queremos passar a sofrer mais perto. Normalmente vence a casa aquecida e a facilidade de não andar a fazer contas a meio do mês. Depois, em cima disto, ainda aparecem as vantagens de sistemas políticos mais justos, menos corrupção, sociedades que funcionam de forma simples e pouco burocrática, saúde gratuita, educação universal.

    Aposta-se em mais um ano e pensamos, à Sporting: “para o ano é que é!”.

    E assim acabamos a engrossar a lista de quase três milhões de emigrantes espalhados pelo Mundo, números oficiais, embora se estimem muitos mais. E a contribuir para a famosa lista das remessas que, dizia Clara Ferreira Alves um dia destes, já não são significativas.

    euro banknote collection on wooden surface

    Segundo dados do Observatório da Emigração, em 2020 foram enviados cerca de 3 mil milhões de euros para Portugal pelos emigrantes, quase 2% do PIB do país – ou seja, uma Autoeuropa. Adorava ler o dicionário da Clara Ferreira Alves e perceber o que é significativo.

    Quando discuto este tema, até com outros emigrantes, observo as reacções de desprezo a um possível regresso. A vida em sociedades mais evoluídas – perdoem-me o termo, mas a comparação e todas estatísticas europeias o provam – dá-nos outra visão do nosso próprio país.

    Eu compreendo as queixas e até o facto de alguns não quererem voltar para o nosso cantinho, mas não é a minha. Não conseguir regressar, deixa-me frustrado, não me faz sentir melhor por estar num país rico ou até num sistema político mais limpo. Nós somos o que somos, para o bem e para o mal. Se a vida dos meus filhos não sofresse com essa mudança, eu preferia encerrar o período de emigração e abdicar das facilidades sociais proporcionadas longe daqui, e até de um conforto que em Portugal nunca tive.

    Aquilo que não consigo aceitar é que, por causa de décadas de escolhas erradas do ponto de vista político, de fundos europeus mal gastos ou da gigantesca corrupção que tudo leva, eu tenha que me sujeitar, ao fim de 20 anos de trabalho, a receber um salário miserável e a viver num subúrbio qualquer, porque, entretanto, a cidade onde nasci me ficou vedada.

    red green and yellow flag

    Depois de 35 anos na União Europeia, com uma dependência enorme dos subsídios, Portugal tem a melhor rede de estradas da Europa e as Parcerias Público-Privadas (PPP) mais absurdas. Mas não tem uma rede de creches públicas em condições, ensino universal e totalmente gratuito, cuidados para cidadãos em fim de vida (despejar velhos em lares ilegais é de Terceiro Mundo) e até o SNS, antiga jóia da Coroa, já teve melhores dias. As casas boas e centrais são para estrangeiros, aos portugueses de classe média resta o subúrbio e um encolher de ombros perante a voracidade da especulação descontrolada.

    Chegamos ao ponto de formar engenheiros para lhes pagar 800 euros ou implorar por trabalhadores para o turismo a troco do salário mínimo. Caminhamos para sermos uma República Dominicana europeia onde o investimento público na Educação se converte em mão-de-obra para outros parceiros europeus. É obra. Da estupidez, é certo, mas ainda assim obra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O círculo perfeito da opinião pública

    O círculo perfeito da opinião pública


    Ouvi uma análise que me pareceu realista sobre o actual momento da guerra na Ucrânia. Referia o cansaço da opinião pública sobre o tema e a prova dos nove na solidariedade com o povo ucraniano, agora que a vida dos europeus começa a ficar caótica por causa da subida das taxas de juro e o aumento galopante da inflação.

    Uma coisa é estarmos sentados no sofá a pedir mais sanções contra os russos; outra, bem diferente, é quando nos dizem que, afinal, nos vão levar o sofá. É mais ou menos nesse ponto que estamos.

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    Um presidente de uma confederação de sindicatos alemães avisou, ontem, que a quebra de fornecimento de matérias-primas russas estava a colocar toda a indústria germânica em risco. O colapso pode estar iminente e uns milhões de empregos também. A Alemanha é o motor da Europa: se espirram os outros constipam-se.

    Aquele sentimento de empatia que os europeus dispensaram a um povo que sofre, aqui ao lado, começa a ficar para segundo plano quando, por causa dessa guerra, o nosso próprio modo de vida está ameaçado. No fundo, assim que a solidariedade nos custou mais do que simples bandeiras no Facebook, resolvemos tratar da vidinha.

    Começa, pois, a fase mais “palestiniana” para os invadidos no Donbass: a malta sente a vossa dor e temos pena que tenham ficado sem casa, mas a Lagarde disse-nos que também quer ficar com a nossa. De modo que é altura de fazer contas à vida.

    Isto leva-nos a duas conclusões simples.

    A primeira é que a solidariedade com os povos é bonita, mas apenas quando não nos sai da pele.

    A segunda é que, agora, a mesma guerra que nos levou a “defender” os invadidos nas redes sociais, serve como desculpa para os deixar de mãos a abanar.

    No nosso dia-a-dia, a cada subida de preços de serviços, não há quem não use esta guerra como justificação.

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    Já perdi a conta aos aumentos estapafúrdios com base na invasão russa. Pedreiros que aumentam o preço hora; jardineiros que dobram o seu custo; empresas familiares (ou não), com os mesmíssimos salários e custos, sobem 50% o preço do seu trabalho por causa da gasolina mais cara. A própria gasolina que “NÃO VEM DA RÚSSIA” atinge preços incríveis com a desculpa da Ucrânia. Empresas de software que cobram mais sem que se perceba porquê. Onde é que uma licença de software sofre por causa de uma guerra?

    Ou seja, o cenário está criado e as empresas aproveitam para aumentarem os lucros, muito para lá da compensação exigida pela inflação. No topo de tudo isto, aparecem os bancos com carta branca para fazerem o que bem lhes apetecer. No caso nacional, ainda com a particularidade de serem instituições privadas quando escolhem o lucro, mas públicas na altura de serem salvas. De facto, só mangas e jacas não crescem no meu país, de resto tudo se dá.

    O engraçado desta história é o círculo perfeito da opinião pública e publicada. Quando os governos europeus decidiram as sanções à Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia, a maioria concordou. Poucos, pouquíssimos, nos jornais e televisões disseram que a paz não se alcança com mais armas.

    Lembro-me de, na altura, ter pensado (e escrito) para onde queriam os nossos governantes ir? Derrotar a Rússia? Envolver a NATO? Combater até ao último ucraniano? Nunca entendi que fim esperavam os países da União Europeia com esse apoio. Dos Estados Unidos percebi, aliás, eles explicaram: desgastar a Rússia. Tudo bem. Para eles.

    blue and yellow striped country flag

    Agora nós, europeus, que saída tínhamos de não empobrecer com isto sem que chegássemos a uma mesa de negociações? Nenhuma. E quanto mais tarde lá chegássemos, pior.

    Inicialmente, eram só os combustíveis. Um clássico da extorsão, a malta ainda aguenta. Depois foi a inflação, os salários, as greves, a perda do poder de compra e a machadada final dada pelo Banco Comercial Europeu (BCE), as taxas de juro. Julho chegou e os aumentos nas prestações estão aí. Num país pobre, como o nosso, é isto uma sentença de morte e uma bomba-relógio social.

    Enfim, começou a arrefecer a solidariedade e a chegar o nervoso miudinho. Como é que vamos pagar a casa com juros a 4%? Nas televisões já falam no ponto de viragem e da onda de choque trazida pela guerra que, quatro meses depois, chega finalmente ao nosso quotidiano com força destruidora.

    Nos jornais já nos perguntam o que fazer com todo o arsenal que ficará na Ucrânia depois da guerra. Os comentadores já se dividem entre o “continuar a enviar armas” e o “dificilmente não teremos negociações e cedência de território”.

    Ninguém o quer dizer alto porque pensa “e se fôssemos nós?”, mas depois recebem o aviso do banco com a nova prestação situada 300 euros acima “por causa da guerra”, e já só querem que os ucranianos desistam do Donbass. E isto mesmo que o Donbass seja apenas a desculpa que o banco utilizou para nos sacar mais dinheiro. O mercado, o eterno mercado que ninguém percebe e que mesmo assim segue.

    E fecha-se o círculo: de exaltados apoiantes de sofá a envergonhados ausentes… carregados de dívidas.

    Pobres ucranianos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!

    Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!


    Há uns anos, numa daquelas conversas de elevador, dizia-me um colega brasileiro que estava a adorar a experiência europeia. Segundo ele, como as distâncias eram tão pequenas, em cada fim-de-semana ia ver um país diferente.

    Achei a prosa um pouco exagerada, mas percebi com o comentário que se seguiu: “é que no tempo da universidade fazia 1.000 quilómetros de autocarro para ir a casa (que ficava noutro Estado) a cada fim-de-semana”.

    Portanto, para este camarada, um Copenhaga-Berlim era já ali; e um Gotemburgo-Londres dava para um cochilo rápido.

    saida-exit signage

    A noção de distância depende, obviamente, dos sítios que percorremos. Na minha ilha, por exemplo, a maior distância por estrada são 22 quilómetros. Uma pessoa que vá levar o filho aos treinos de futebol fica a engonhar duas horas para não andar “para baixo e para cima”, percorrendo a totalidade dos 10 quilómetros. Porquê perder 20 minutos quando podemos perder duas horas? Fazer os cinco quilómetros duas vezes é que não.

    Em Portugal, de uma forma geral, consequência de um país pequeníssimo, embrulhamo-nos em discussões eternas sobre voos ou concertos que existem em Lisboa, e não no Porto; ou estradas que estão no litoral e não no interior.

    Sempre que aqui chego vejo uma auto-estrada nova, mas admiro-me que ainda não exista uma na porta de cada português. Lá chegaremos.

    Até já ouvi reclamações só porque determinado artista/comediante faz um espectáculo em Lisboa ou em Almada, mas não vai a Setúbal. Portugal atravessa-se num dia; porém, nós queremos que o mundo comece e acabe no nosso bairro.

    silhouette of man sitting on bench

    Isto para dizer que esta história do aeroporto de Lisboa é, de momento, pouco mais do que uma paródia.

    A quantidade de estudos, milhões de euros públicos gastos e decisões inócuas, num país de Primeiro Mundo, dariam prisão. Por cá já anunciaram agora três aeroportos: OTA, Portela + 1 e Alcochete. Todos bem estudados, e com as consultoras que gravitam na órbita do Estado, devidamente engordadas. Contar 50 anos de estudos para definir, em definitivo, o local para um aeroporto é uma daquelas coisas que temos vergonha de dizer fora de portas.

    Mas é real. De facto, continuamos sem decidir onde será o novo aeroporto de Lisboa, mesmo sabendo que o actual recebe milhões de pessoas todos os anos, apenas com uma pista de aterragem a funcionar.

    Somos os mestres do desenrascanço. Bastou um avião privado ter um azar – um rebentamento de dois pneus na aterragem – e a Portela voltou para a Idade da Pedra: voos desviados, aeroporto encerrado, partidas canceladas e filas intermináveis de espera com passageiros que desesperavam para chegar a casa. Porquê? Porque a alternativa à pista existente são os autocarros da Barraqueiro. Ou o UBER.

    A cidade engoliu o aeroporto. Lisboa cresceu até tocar na pista de aterragem, e será hoje, julgo, uma das poucas capitais europeias com o aeroporto na sua zona central. Chegámos aqui porque os sucessivos Governos se limitam a estudar e estudar, chutando para mais tarde qualquer decisão.

    Pedro Nuno Santos tentou despachar o assunto e foi arrasado. Juro que li “atitude precipitada”. Importam-se de repetir? Imprudente? Apressado? Depois de 50 anos? Era necessário um pacto de regime com o PSD? Como os restantes que nos trouxeram aqui? Este país ainda adora as comissões de Salazar. Discute-se para dar a impressão de que há movimento apenas para que tudo fique na mesma.

    white passenger plane flying over snow covered mountain during daytime

    Confesso que não percebo o que pode ser tão complicado na decisão de uma obra pública como um aeroporto. Quantas décadas e estudos são necessários mais? A discussão deve ficar ao rubro entre especuladores imobiliários e municípios interessados, compreendo isso.

    Imagino, aliás, os lobbies e a quantidade de boys apertados nestes anos para influenciarem a decisão aqui ou ali. Mas por favor… estamos em Portugal, já sabemos que a obra encherá os bolsos a uns quantos e, portanto, andem lá com isso e facilitem a vida aos viajantes. O dinheiro gasto já dava um terminal internacional. Daqueles onde pensamos que o gin é mais barato, mas depois percebemos que fica mais em conta no Pingo Doce.

    De entre as várias discussões que este tema acarreta, a minha preferida é a da distância. E aqui lembro a conversa inicial do meu amigo brasileiro para quem a conversa de “longe” começa nos 1.000 quilómetros. Li dezenas de indignados que, de uma forma geral, davam a entender que tudo o que não fosse uma pista no Rossio, parecia ser a visão do Apocalipse.

    Montijo e Alcochete são longe de Lisboa. Ota é longíssimo. Beja é noutro planeta.

    São as mesmíssimas pessoas que adoram voar com a Ryanair, e que elogiam a experiência de aterrar no Aeroporto de Frankfurt-Hahn quando compraram um bilhete para Frankfurt, não se importando que fique a 125 quilómetros daquela cidade alemã. Que aterram em Bérgamo quando no site dizia Milão, distando afinal 45 quilómetros. Que chegam a Skavsta, a 100 quilómetros a sul de Estocolmo, quando querem chegar à capital sueca. E que dizer de Charleroi, quando o destino é Bruxelas? Ou Stansted, e afinal vão para Londres?

    people walking on sidewalk near yellow tram during daytime

    Ora, mas uma coisa é passar uma hora num comboio ou autocarro, num destino qualquer europeu, a caminho do centro depois de aterrar a mais de uma centena de quilómetros de distância; outra é fazer isso dentro de portas. Era o que faltava!

    Aterrar do outro lado da ponte? Ou num aeroporto que já está feito (Beja), e que num comboio de alta velocidade nos pode deixar em Lisboa em menos de uma hora? Please: isso não é para nós! Além do mais Beja já está pronto, como é que se pagavam os favores? Não! Vamos com calma procurar um sítio perto, sem flamingos ou pontes.

    E, já agora, eu sugiro uma alternativa: desloque-se antes Lisboa. O aeroporto da Portela fica. Às tantas, em despesas de construção e em pagamento de mordomias, o saldo aumentaria mais; e, portanto, compensaria.

    Estude-se!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Balanços no mercado terrorista

    Balanços no mercado terrorista


    Não sei se já tentaram acompanhar as movimentações no “mercado de terroristas”. É um hobby algo estranho, concedo, mas um excelente exercício às capacidades interpretativas e até de memória.

    Antigamente, acompanhava as movimentações no mundo do futebol, tentava perceber qual dos 30 nomes anunciados diariamente para o Benfica vinha, de facto, embora este divertimento acabou por me aborrecer. No fim chegava sempre apenas um refugo qualquer do Atlético de Madrid, e a coisa perdeu a piada.

    Já no “mercado de terroristas” a complexidade é outra e as movimentações difusas. É como jogar xadrez contra um robot que muda as regras a cada cinco minutos. Pensas que estás a perceber e, de repente, zás, começas do princípio.

    O caso mais famoso no mundo terrorista será o dos afegãos, o clássico dos Mujahideen: um povo bravo classificado como “combatentes da liberdade” no final do século XX e que, no início do século XXI, passou a terrorista.

    À partida pode ser estranha esta mudança com o virar do milénio, mas não: até é simples de perceber. Na década de 80 do século passado, os afegãos combatiam a invasão russa, logo, eram classificados pelos americanos como freedom fighters. Já em 2001, foram os próprios americanos a invadir o Afeganistão e, obviamente, a classificar os invadidos como terroristas.

    girl in brown jacket holding flag

    Nada mais simples e lógico. Depois da derrota dos talibãs – lembrem-se, terroristas afegãos –, seguiram-se 20 anos de presença americana na região e dois presidentes escolhidos a dedo. Em 2021 os talibãs, agora novamente fora da lista de terroristas, negociaram a retirada americana e assumiram as rédeas do país. E quem quiser que feche a porta.

    O cartão de membro dos Talibãs já deve permitir, por esta altura, a resposta “é complicado” no menu das actividades terroristas.

    A polémica mais recente do mercado adensou-se ontem, em Madrid, na cimeira da NATO. A Turquia de Erdogan exigia que a Suécia e a Finlândia deportassem membros do PKK (Kurdistan Workers Party) e que deixassem de dar asilo, ou qualquer tipo de apoio a esta (e outras organizações) curdas.

    No fundo, o que Erdogan queria era carta branca para perseguir os curdos até onde bem lhe apetecesse dentro do espaço europeu.

    O PKK é a parte visível de um conflito com mais de 40 anos entre curdos e turcos pela separação (ou autonomia) de um território no sudeste da Turquia, junto à fronteira com a Síria e Iraque, onde se concentra a maioria curda.

    Logicamente, o conflito já tem algumas chacinas, de parte a parte, e o PKK surge classificado como uma organização terrorista pela Turquia, Estados Unidos, Reino Unido e maior parte dos países da União Europeia. Ou seja, por todos os membros da NATO.

    Note-se aqui a suprema ironia nesta classificação pelas potências ocidentais: os curdos são terroristas quando querem criar fronteiras onde, de facto, vivem. Os kosovares tinham direito a um país porque eram a maioria no sul da Sérvia. Os russófonos do Donbass são nazis e, por isso, não podem pedir autonomia. Os chechenos tinham direito à sua terra, no início do presente século, porque estavam lá há 200 anos – hoje, porém, em princípio já não, porque combatem ao lado dos russos na Ucrânia.

    Como disse ali em cima, é um mercado muito volátil e a interpretação mostra-se difícil. Quero sempre torcer pelos bons, mas, neste caso, fico baralhado no meio das histórias. Viram mais que um argumento do Hitchcock. Mas recomendo para as férias, é mais entusiasmante do que o sudoku.

    Quando os EUA pensavam que Bashar Al-Assad ia cair na guerra civil da Síria, meteram-se ao barulho e apoiaram as forças curdas que combatiam o regime. A principal frente era mantida pelo YPG (People Protection Units), uma unidade curda, conhecida por ser a extensão do PKK em território sírio.

    gold and silver coins in clear glass jar

    Foram eles – a solo ou integrados nas forças democráticas sírias (SDF) – que combateram Al-Assad e o ISIS. Como de costume, os curdos foram à frente e deram o corpo ao manifesto para combater uma ameaça que era global: o Estado Islâmico.

    Ou seja, os Estados Unidos, através da NATO, consideravam o PKK uma organização terrorista e, em simultâneo, aliavam-se ao “PKK da Síria” para terem o trabalhinho sujo feito. Erdogan não gostou, mas comeu sem calar. No fim, como de costume, os curdos foram abandonados à sua sorte contra nova chacina turca que aproveitou a guerra civil síria para resolver assuntos internos.

    Portanto, os curdos conseguiram ser terroristas e combatentes da liberdade no mesmo dia. E abandonados no seguinte. Não é para todos.

    Agora, em Madrid, Erdogan conseguiu que a Suécia e a Finlândia não só considerassem o PKK como uma organização terrorista como os obrigou a terminar o embargo de armas para a Turquia. A Suécia é um dos maiores fabricantes de armas a nível europeu e a NATO aludiu a essa mais-valia com a entrada do novo membro.

    A partir de agora, não só acaba o asilo para os curdos como, sempre que Erdogan quiser, a Suécia tem de lhe fornecer armas, ao abrigo dos protocolos da Aliança, para que ele possa arrasar mais umas vilas no Curdistão.

    De uma assentada, a Suécia cria um problema interno – o óbvio descontentamento da enorme comunidade curda – e passa a contribuir directamente para mais uma guerra. Cessa o apoio à maior população do Mundo sem território (30 milhões) e passa a fornecer armas a um país não-democrático.

    Nada mau para uma terça-feira de manhã nos escritórios da NATO.

    Só não vislumbra a paz, aqui, quem estiver provido de “óbvia” má vontade.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sobre esta coisa chamada opinião

    Sobre esta coisa chamada opinião


    Antes de emigrar para a Suécia costumava ter acesos debates com um amigo “passista”. Tínhamos visões absolutamente distintas do mundo e percursos de vida completamente antagónicos. Certo dia, durante um almoço perto do mar, com aquele sol bem luso e um peixe grelhado com mestria, ele abre os braços e diz-me: “Tiago, percebes agora porque não emigro? Como é que se vive sem isto?”.

    Eu ouvi, respirei e disse: “os teus pais, depois de te pagarem os estudos em universidades estrangeiras, ofereceram-te uma casa e, ao dia de hoje, usas o teu salário para as contas do Pingo-Doce e da EDP. Percebes agora porque não emigras?”

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    Os nossos caminhos deixaram de se cruzar e imagino que, entretanto, se tenha tornado liberal. Tinha tudo para ser um forte apoiante dos mercados. Mas, por mais que as opiniões dele me irritassem, eu adorava debater com o sujeito. Não só era inteligente na defesa dos seus argumentos, como o fazia de forma convicta, educada e racional. Nas estuchas que eu tinha que levar nos convívios com aquela malta, o choque de opiniões com aquele indivíduo era a única coisa que me cativava.

    E isso nunca mudou.

    Sempre preferi estar no meio de correntes diversas de opinião em vez de me situar, apenas, entre aqueles que pensam como eu. É a única forma que conheço de evoluir, aprender e até de formar a raiz do pensamento. Se falarmos apenas com pessoas que votam como nós, apoiam o nosso clube e adoram a mesma zona balnear, dificilmente saíamos da bolha a que as redes sociais e a manipulação de informação dos dias de hoje nos condenam.

    Portanto, partindo desta base de pensamento, do respeito pelas diversas opiniões e do facto de expor a minha opinião publicamente há algum tempo, estou habituado a receber críticas constantes ao que escrevo. Faz parte e até agradeço.

    Aliás, incentivo.

    people in conference

    Alguns dos reparos que me fazem ajudam-me a melhorar a escrita e até a ver as coisas de outra forma. Por outro lado, se há crítica é porque há leitores – e esse é sempre o primeiro objectivo de quem quer escrever.

    Aqui há uns anos, 2019 julgo, escrevi um texto sobre a TAP e as reclamações constantes dos portugueses aos seus serviços (não me lembro se nessa altura ainda pertencia aos privados a quem o Passos a ofereceu).

    Pelo meio fiz uma piada sobre glúten, que, como se percebe, não era o foco do texto. A coisa acabou por ter mais de mil partilhas, e eu passei os meses seguintes a ser insultado por algumas mães ofendidas, cujas intolerâncias próprias ou dos filhos, tinham sido mortalmente ofendidas com essa piada. Não é que eu tivesse matado alguém, mas, a avaliar por algumas reacções, poder-se-ia pensar que sim.

    Foi mais ou menos por esta altura que deixei de ler comentários ao que escrevo. Sejam elogiosos ou não, prefiro passar sem ver, porque tenho sempre a tendência para entrar em debate. Especialmente quando leio coisas mais disparatadas ou insultuosas. Um dos fenómenos que nunca perceberei é dos anónimos, sentados em frente a um teclado, e que dedicam boa parte do seu dia a insultarem outros anónimos, por divergência de opinião.

    man wearing black t-shirt close-up photography

    Pode ser um golo em fora-de-jogo, o resultado de uma eleição, a obrigatoriedade de uma máscara ou uma brasileira a abanar as nádegas no Rock in Rio. Tudo, mas absolutamente tudo, serve para insultar o desconhecido do lado, se este não corroborar a nossa opinião. Ora, eu acho esse movimento ligeiramente deprimente e, com a vossa licença, prefiro não entrar nele.

    Quando fui convidado para escrever colunas de opinião no PÁGINA UM, a minha pena estava mais do que identificada: emigrante, benfiquista, eleitor de esquerda, área de Ciências, contra os sucessivos confinamentos e pouco amante da histeria em volta da covid-19, sem nunca negar que o vírus existe, e nada fã de teorias da conspiração.

    Em princípio, não serei parte de nenhuma minoria escondida… vam’lá a ver: benfiquista e eleitor de esquerda, dizem os números, é onde se situa a maioria da nossa população. E pelo andar da carroça, não tarda, e também seremos mais na condição de emigrantes do que os residentes neste cantinho de bom sol e fresca sardinha.

    Portanto, quando escrevo opinião neste jornal – e isto poderá ser surpreendente –, escrevo a minha. Não a do partido A ou B, do clube Z ou Y. Pego nos temas da actualidade, e dou, sobre eles, a minha opinião. Critico o que tenho que criticar, elogio o que tenho que elogiar. Como qualquer um de nós.

    Depois das legislativas, repeti que Jerónimo de Sousa estava a afundar o PCP (e fui criticado por comunistas), que Rio não tinha qualquer ideia original e fazia a melhor oposição que Costa podia pedir. Disse que Cotrim de Figueiredo vendia um ideal que não se podia aplicar em Portugal e, mesmo assim, era constantemente apanhado em contradições na tentativa de explicar o liberalismo pensado para a nossa realidade. Valeu-me críticas da malta dos sapatos de vela. Disse que o Ventura não tinha conteúdo para mais do que dois ou três debates de seis minutos, como se provou nos 36 das últimas eleições onde chegou a ser penoso vê-lo.

    person touching and pointing MacBook Pro

    Critiquei Jorge Jesus desde o malfadado dia em que abandonou o Flamengo. Critiquei as escutas do YouTube que não foram usadas como prova no Apito Dourado. Critiquei Bruno de Carvalho por todo o ódio em que empestou o Sporting.

    Durante o confinamento, critiquei muito o Governo português, e escrevi, noutro jornal, sobre a experiência sueca onde a vida seguiu com menos limitações e restrições à liberdade individual. Alguns votantes de esquerda chamaram-me “negacionista” e votantes de direita, nomeadamente liberais ou apoiantes do Chega, sentiram-se mais representados nesse tema.

    No entanto, quando o assunto passou a ser eleitoral, os mesmos que elogiavam, passaram a insultar-me. Portanto, é normal que todos cruzemos opiniões algures na vida e que, aqui e ali, concordemos em temas.

    Aquilo que quero dizer com isto é que a minha opinião não é partidária ou ideológica. É minha. Segue apenas aquilo que a minha cabeça dita em cada momento.

    Ontem, abri uma pequena excepção, e fui ler alguns comentários ao meu texto sobre o festival do Chega. Era uma paródia, pouco mais do que isso.

    Vi que alguns leitores decidiam deixar de apoiar o jornal porque o seu partido era satirizado nestas páginas. Houve até quem pedisse mais isenção. Ora… é aqui que eu queria ser bem claro nas linhas escritas: a opinião não é isenta, a opinião nunca pode ser isenta, porque se o for, então não é opinião. É outra coisa qualquer, mas não opinião. 

    As notícias do PÁGINA UM é que são, e devem ser, isentas.

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    O facto deste jornal ser apoiado pelos leitores e não ter qualquer patrocínio de entidades privadas ou públicas, significa que nunca será pressionado para não dar a notícia A ou alterar um pouco o conteúdo da notícia B. É isso que marca a isenção do PÁGINA UM, e é isso que o torna diferente e único no panorama nacional.

    Quem espera colunas de opinião que reflictam única e exclusivamente o seu pensamento, não está verdadeiramente interessado em “opinião”, mas sim numa extensão da sua bolha informativa.

    Em todos os jornais, eu tenho colunistas que gosto muito e outros que não suporto. O mesmo nas televisões. O que faço, quando fala ou escreve algum daqueles que me dá voltas ao estômago, não é partir a televisão ou fechar o jornal. Simplesmente mudo de canal, ou folheio as páginas.

    Já se encontrar algum órgão de comunicação social que reflicta apenas aquilo que penso, bom, nesse dia deixo mesmo de o seguir. Para espelho já basta o que tenho em casa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Chega: só há uma “festa” como esta!

    Chega: só há uma “festa” como esta!


    O meu timing de entrada nos temas que circundam o Chega é quase sempre péssimo. Tenho a sensação que corro para a paragem e só vejo o escape do autocarro. Mas não é fácil, não é fácil, embora eu tenha tentado perceber este fenómeno da extrema-direita desde o início da aventura do nosso André.

    Um dia estava ele na CMTV a discutir centímetros dum penalti com aquele advogado que, alegadamente, recebia umas massas do Rui Pinto; e, no dia seguinte, aparecia ele em frente à Assembleia da República aos gritos contra o sistema.

    [Disseram-me que com a muleta do “alegadamente”, antes do verbo, podemos disparar toda e qualquer bojarda sem aquele risco incómodo de ir parar a um tribunal português. Ninguém tem 10 anos de vida para desperdiçar num processo na justiça lusa. De modo que, alegadamente, disparemos…]

    André Ventura, líder do Chega.

    Quando fui ver que ruído era aquele, e porque razão o gajo dos penaltis andava na rua a vociferar contra os poderes instalados, cheguei atrasado umas semanas. Já havia um partido político formado e com um segundo nome. O “Basta!” durou pouco e eu já só vivenciei mais a sério a experiência “Chegana”. Ainda dei ali o benefício da dúvida, porque, convenhamos, quem é que não corrige os temperos a meio do guisado? “Basta” era mais queque; “Chega” parecia mais do povo. Estavam afinados e prontos para partir.

    Nome bem acutilante, e grito de guerra “vergonha” a postos, faltavam as ideias. Ouço por um amigo: “ouve lá, este Ventura é que diz as verdades!”. Fui ver as verdades a meio de uma campanha legislativa e, novamente, cheguei tarde.

    Havia um programa político que previa o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, mas, segundo consta, deu reclamações em barda. Foi alterado, e quando lá apareci já só vi a versão 2.0, mais difusa e macia, de forma a agradar às hostes. Pensei: “ora aqui está uma originalidade política, programas à la carte!”. Gostei e percebi de imediato que iam longe.

    A legislatura foi mais fraca em termos de trabalho feito. Metade do tempo fora das votações e todo o poder de fogo colocado em vídeos do YouTube de dois minutos com bocas ao primeiro-ministro. O homem das verdades conseguia ainda assim trilhar o seu caminho. Continuei à espera das ideias, nem que viessem numa terceira versão do programa, mas, essencialmente, a coisa resumiu-se a cascar nos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e nos ciganos, em geral, sem qualquer ordem em particular.

    Lá por fora, o Chega colou-se aos outros partidos de extrema-direita – da Le Pen ao Salvini –, o que levou alguns ingratos a apelidarem-nos de racistas. Quando fui escrever sobre o tema, já o assunto estava, novamente, fora de prazo. Ventura, Parrachita e alguns incógnitos apoiantes desfilavam pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, empunhando tarjas com o slogan: “Portugal não é racista”. Fiquei informado sobre a nova posição e até me senti aliviado. Era o Portugal que eu queria também.

    André Ventura durante encontro do grupo político do Parlamento Europeu (direita e extrema-direita) Identidade e Democracia em 23 de Junho em Antuérpia (Bélgica).

    Tentei então dizer qualquer coisa sobre o tema, mas, de repente, um deputado do Chega afirmou, na Assembleia da República, que só não tinha sido eleito vice-presidente por causa da sua cor de pele, ou seja, por discriminação racial. Fiquei fora de jogo – e sem hipótese de ir ao VAR, tema que o André tanto gostava de debater, antes de se meter nestas andanças.

    Enfim, eu quero comentar a actualidade do Chega, mas torna-se incompatível com um horário de trabalho normal. Entre o tempo que começo a escrever e a pausa para o café, já o Ventura mudou de opinião três vezes. Aliás, nem estou a ser original, ele de facto mudou a intenção de voto três vezes no mesmo dia numa votação parlamentar. Não sei se o editor do PÁGINA UM aceita podcasts, mas, com palavra escrita, não há pai para a velocidade do Ventura.

    Há uns meses ouvi uma intervenção de alguém do Chega que falava nos boys dos aparelhos partidários. Alegadamente do Carlos César que, alegadamente, tem metade da árvore genealógica encaixada em cargos públicos.

    Muito bem, de repente senti um ponto de encontro e finalmente ia dar uma palmadinha nas costas por escrito. Porém, a meio do meu texto já se tinha descoberto que o pai de um deputado qualquer do Chega era agora assessor do Chega na Assembleia da República.

    Não quero imaginar o drama de combinar um jantar com um gajo destes. Sugerem a tasca do Avillez, 20 minutos antes do repasto dizem que é mesmo na tasca, mas do Zé e em Alfama. Trinta minutos depois da hora ligam a perguntar se sabemos onde fica a roulotte da Sónia, ali por baixo da Segunda Circular, mesmo na saída do Campo Grande. É gente que não se decide. Ou que estuda pouco e navega às sortes. Também pode ser isso.

    Antes do Verão, quando recebemos todos ordem de soltura da covid-19, o Ventura anunciou que o Chega faria a maior festa de Portugal, um festival algures em Julho, com comes e bebes, boa música e muita diversão. Pensei que seria uma forma de, por exemplo, arrasarem com o Avante.

    Imagino que seja fácil: se um partido moribundo, que nos juram estar a dar os últimos passos (há décadas), consegue juntar uns milhares há quatro décadas durante três dias, certamente que o Chega consegue juntar muito mais.

    A expectativa era alta até ter saído o cartaz do festival. E uso aqui a palavra “cartaz”, porque “programa” seria um exagero. Em termos de artistas, não sei se podem ser encaixados nessa categoria profissional: confirmados, estarão lá o Rui Bandeira e o Jaimão.

    Lembro-me que o primeiro cantava o “que venha um alien divino e nos leve para lá, aqui já não dá!”; e o segundo, julgo ser um camarada que aposta numas rimas à Quim Barreiros, mas com menos classe na métrica. Não sei se chegam para o “maior festival de Verão português”, mas darão uns bons três minutos de Youtube. Com o enquadramento certo e apresentação do Tilly, até poderá ser equiparado ao Rock in Rio na ChegaTV.

    Devo, contudo, manifestar-vos a minha surpresa com a forma de preenchimento de linhas no cartaz. Nunca tinha visto a referência a música ambiente num evento deste tipo. É quase como anunciar uma lista do Spotify ou avisar que o recinto terá urinóis. Parece aqueles relatórios de electrónica, que eu fazia, depois das madrugadas no Bairro Alto, em Times New Roman 16, só para conseguir ter mais do que uma folha atrás do título do trabalho. 

    Rui Bandeira, cabeça de cartaz da Chega Fest Batalha.

    Noto também a astúcia na pesquisa de trabalhadores. O Chega pede por voluntários, e depois diz-lhes que terão que passar por uma selecção. É o equivalente à experiência de trabalho voluntário na WebSummit, mas na companhia de pessoas que não terminaram a escolaridade obrigatória.

    Em suma, o Chega gosta da voracidade dos mercados, do indivíduo que se sobrepõe ao todo e, sempre que possível, do desvio de dinheiro público para lucros de uma minoria privada, mas, no seu quintal, opta pela camaradagem do trabalho gratuito em prol do bem comum. Ahh…o sol ainda nascerá para todos eles. 

    Quando comecei a escrever isto colocava, sem ironia, todas as esperanças musicais deste festival na banda de tributo aos Queen. Não há forma de correr mal quando se tocam os clássicos. “I want it all, I want it all, and I want it noooooow!”

    Um pouco antes de enviar o texto, vou olhar para o cartaz de novo para ver se não me esqueci de nada, e vejo que a banda anunciou ter sido colocada no programa da festa por engano e, como tal, não marcará presença. Estes gajos não têm descanso. Devem andar a calmantes com o carrossel que a vida lhes proporciona.

    Provam ainda assim que tenho duplamente razão: a banda deve de facto ser boa, e não há maneira de uma verdade chegana durar o tempo de cozedura de um texto.

    Que venha a FEST. Vai ser porreira, pá!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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