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  • Suécia: os frios ventos da mudança

    Suécia: os frios ventos da mudança


    No momento em que escrevia ainda se contavam os votos das eleições que ocorreram no passado domingo, para o Parlamento sueco. Os dois blocos que podem formar governo estavam separados por 0.7%. Em concreto, por um lado, 49% para a “geringonça” formada por socialistas, comunistas, verdes e centristas; e, por outro, 49.7% para a aliança de direita formada pelos moderados (o mais parecido com o PSD sueco) liberais, democratas-cristãos e democratas suecos (o Chega local).

    Até ver apenas três partidos ganharam votos relativamente às últimas eleições: socialistas, verdes e nacionalistas, sendo que estes últimos, com uma forte campanha contra os emigrantes, passaram a ser a segunda força política no Parlamento sueco.

    aurora borealis over body of water during nighttime

    Toda a discussão em torno dos emigrantes é interessante, mas deixá-la-ei para outro texto, depois de ver a constituição do Governo. Aquilo que, de facto, me intriga nesta retórica da emigração são os números.  Na Suécia, como em Portugal, o saldo de emigrantes que contribuem para o país com impostos é esmagador, quando comparado com os que beneficiam das ajudas.

    Ainda assim, lá como cá, a narrativa de que “vivem à nossa conta” vai rendendo dividendos. Seria até interessante que deixassem a Suécia apenas recheada de louros. Gostava de ter dedos para contar as falências no dia em que os dois milhões de emigrantes e descendentes arrumassem a trouxa.

    Há ainda assim uma saturação da população com o actual estado de coisas. Isso parece-me óbvio. Julgo que não será pelo comportamento do Governo durante a pandemia, onde foi, provavelmente, o melhor e o que mais respeitou as liberdades individuais em toda a Europa.

    Mas as repetidas crises de refugiados parecem ter deixado marca. A Suécia ainda não aluga terreno no Ruanda para enviar para lá os desesperados que fogem das guerras (como faz por exemplo a vizinha Dinamarca), mas as portas vão-se, lentamente, fechando.

    Resultados das eleições legislativas às 12:00 horas de hoje. Fonte: Aftonbladet.

    Um em cada cinco eleitores votou no partido que anunciou no Twitter que a próxima paragem da comunidade afegã seria Cabul. E apenas com bilhete de ida.

    Os liberais anunciaram que queriam as ruas livres de islâmicos e até os moderados (PSD), entraram no ataque racista na tentativa de captarem alguns votos à extrema-direita.

    Como a cópia nunca é melhor que o original, acabaram por contribuir para a subida dos nacionalistas. Aliás, em todo este processo há vários pontos de contacto com Portugal. Ulf Kristersson, líder dos moderados comprometeu-se em 2019, aquando de uma visita a uma sobrevivente do Holocausto, a nunca colaborar com os nacionalistas.

    Agora, sendo imperativa a sua presença para que a direita seja governo, apressa-se a discutir pastas e alianças com Jimmy Åkesson, o André Ventura lá do burgo. Parece uma repetição dos Açores com as contradições de Rui Rio, de então, a serem agora refletidas na governação sueca.

    Os socialistas foram o partido mais votado com os comunistas a aparecerem com a quarta força. Democratas-cristãos e liberais aparecem, respectivamente, em sexto e sétimo.

    Não me sinto particularmente confortável que 20% da população vote num partido que persegue etnias, raças ou credos, mas fico ainda mais perplexo com a incoerência do povo. Há pouco mais de dois meses, metade da população disse que queria entrar na NATO por receio da Rússia de Putin. Agora votam em massa num partido simpatizante com a política do nosso Vladimir, um dos vários que, de Budapeste a Varsóvia, passando por Paris e Roma, ali encontraram um parceiro.

    À direita há a promessa de baixar impostos e, claro, reduzir o Estado Social. Esse mesmo que faz da Suécia o primeiríssimo Mundo onde ninguém morre à porta de um hospital ou adormece na rua. O sítio onde a progressividade dos impostos não se destina a parcerias público-privadas (PPPs), a bancos ou a estradas sem fim, mas sim a educação universal e ajuda à população.

    Na Suécia recebemos o que pagamos em impostos. Tudo. Da creche à universidade, da Segurança Social ao desemprego. Até quando, é o que nos falta descobrir.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Pode não parecer, mas estamos a prevalecer bem para vencer melhor…

    Pode não parecer, mas estamos a prevalecer bem para vencer melhor…


    Ursula von der Leyen discursou esta manhã em Bruxelas uma boa horita. Ou como Fidel lhe chamaria, “uns bons cumprimentos iniciais”.

    Garantiu algumas coisas que me deixaram deveras descansado, logo a mim, confesso contribuinte europeu preocupado.

    Desde logo disse que “Putin falhará e a Ucrânia e a Europa prevalecerão”, e que as sanções à Rússia são para manter, e que as ajudas financeira e militar para a Ucrânia são para manter. Positivo: até porque, como se tem visto, este é um caminho de sucesso… Garantido!

    Ursula von der Leyen, ao centro, ladeada pelas comissárias europeias.

    Depois ainda explicou que a Europa e as suas democracias vão prevalecer, e que Putin falhará. Uma vez mais, parece-me uma excelente abordagem; porém, fico meio baralhado com a inclusão da nouvelle democracia ucraniana.

    Como sabemos, antes da invasão, a Ucrânia era um estado altamente corrupto, e naqueles rankings da limpeza aparecia ali bem pertinho da Rússia. Coloquemos os pontos nos iis: se, de repente, a Coreia do Sul invadisse a Coreia do Norte, não passaremos todos a dizer que uma democracia saudável foi invadida, certo?

    Uma merda maior invadiu uma merda mais pequena, tudo certo. Mas, por favor, evitem o discurso do Bem contra o Mal, e, especialmente, não besuntem merda com aroma de rosa, porque o cheiro não muda.

    A Rússia tem que perder esta guerra, e a Ucrânia, no cenário ideal, não deveria perder um metro de terra. Foi o que defendi na altura do Kosovo, Geórgia e qualquer outra anexação – não vou falar na mais antiga para não aborrecer os não-camaradas.

    Portanto, mantenho a coerência. Agora, não pintem a Ucrânia como vales verdejantes cheios de Heidis, porque aquilo não é, e nunca foi, algo parecido com uma democracia saudável ou de padrões europeus.

    Por fim, no seu discurso, Ursula, sabe-se lá porquê, ainda invocou a Elisabete II como exemplo maior dos valores europeus e da democracia. Aí já não dá Ursula… f$#@-se. Quem é que te escreve os discursos? Uma rainha que foi a zero eleições é um exemplo de democracia? Perdi alguma aula na escola e passei a História administrativamente, enquanto os conceitos eram alterados nos gabinetes?

    Entretanto, Lagarde ouviu este discurso e puxou logo da calculadora para encontrar o próximo aumento da taxa de juro. Aguardo em pulgas…

    Fiquei, contudo, na dúvida apenas em duas ou três coisitas, que talvez um de vós, mais estudado, me possa elucidar.

    Quem nos pede tantos esforços, e discursa de forma épica, sentindo-se um Churchill de Bruges, por acaso também leva cortes salariais? Perde poder de compra? Paga prestações ao banco? Passa anos com o mesmo salário?

    É que, se percebi bem, pode não ser o caso.

    A Europa prepara-se para ajudar os seus cidadãos nas faturas da electricidade – julgo que virá um pacote para as rendas de casa e a própria Ursula, certamente imbuída de um espírito venezuelano, já disse que é altura de limitar os preços e taxar as petrolíferas pelos lucros extraordinários.

    Portanto, vivemos uma fase de lucros desmesurado, jackpot de impostos, migalhas e esmolas para o povo e nada de aumentos salariais reais.

    Assim sendo, julgo que estamos a prevalecer bem para vencer melhor. Por mim é continuar:  também não tinha nada de especial planeado para os próximos cinco ano anos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A recessão organizada por Lagarde

    A recessão organizada por Lagarde


    Raquel Varela usou uma expressão, que considero feliz, para descrever a actual crise económica: recessão organizada. Enquanto governantes nos tentam convencer que a perda do poder de compra e a redução de salários se devem à guerra na Ucrânia, aquilo a que assistimos são lucros fabulosos na banca, nas energéticas e nas cadeias de supermercados.

    Sendo os preços definidos pelos salários e pelos lucros, sem que se conheçam aumentos significativos no lado dos salários, compreende-se que a subida de preços (inflação) se destine apenas a fazer crescer a balança no lado do lucro. É isto que o BCE de Lagarde consegue ao aumentar, repetidamente, as taxas de juro.

    man in gray jacket and black pants sitting on concrete bench

    Criar uma escandalosa orgia de lucros à custa da disparatada subida dos preços em contraponto com a estagnação dos salários. Está criada a tempestade perfeita em que o trabalhador por conta de outrem fica preso num ciclo sem saída. Por um lado, não pode deixar de trabalhar e, por outro, o valor a que vende a sua força de trabalho vale cada vez menos. Ao mesmo tempo, o lucro das corporações vai batendo recordes.

    Pelo meio, Lagarde diz-nos que é este o caminho para que a inflação regresse aos 2% lá para 2024, e António Costa (tal como os restantes governos da União Europeia), vai distribuindo umas migalhas pela população a partir do IVA extraordinário amealhado por conta da “economia de guerra”.

    Em lado nenhum se aumentam salários. Em lado nenhum se mantém o poder de compra do lado dos trabalhadores. Mas em todo o lado as empresas aumentam os seus lucros. Se isto não nos faz pensar, enfim, não sei o que mais será necessário. Talvez quando nos vierem buscar a pele.

    Dou por mim, pela primeira vez na vida, a concordar com uma afirmação de um deputado da Iniciativa Liberal. Se, de facto, o Governo quer proteger as famílias, bastaria que, por agora, reduzisse a fatia que tira de cada salário na contribuição do IRS. Era esse o verdadeiro acompanhamento da inflação.

    Mas então, e a Ucrânia? Sim, a Ucrânia, onde nos garantem que a vitória é possível (até ao último ucraniano, entenda-se), e que, de costas largas, aceita todas as justificações que nos empobrecem. Até onde iremos?

    black transmission towers under green sky

    Há uma ironia macabra em tudo isto. Enquanto os nossos governantes (europeus) nos garantem que não podemos deixar de apoiar financeiramente, e com armas, os esforços de guerra, dizem-nos que, também por causa desse esforço, devemos aceitar a perda de salários e, para alguns, das suas habitações. Isto depois de nos garantirem que a inflação seria temporária, quando todos já tínhamos percebido que estaria sempre associada (nem que fosse pela narrativa) a uma guerra que ninguém parece querer ver terminada.

    Sempre que ouço esta conversa de que a Ucrânia não pode cair, olho em volta e penso nos que, em qualquer parte do mundo, vão caindo todos os dias na ignorância dos interesses europeus. Mas mais do que isso, pergunto-me até quando aceitaremos patrocinar esta guerra com a nossa pobreza?

    Nada no terreno nos leva a pensar que os ucranianos poderão fazer mais do que resistir. Para além de Nuno Rogeiro, que nos garante desde Maio que os russos já não aguentam mais, a maior parte dos especialistas não vislumbram maneira alguma de rechaçar o exército russo do Donbass e da Crimeia. Mesmo aqueles que já viram a guerra para lá dos estúdios de televisão.

    Portanto, enquanto a União Europeia e os Estados Unidos forem enviando dinheiro e armas, enquanto nós formos empobrecendo sem gritar muito, enquanto os ucranianos tiverem gente viva e enquanto os russos conseguirem vender gás e petróleo aos asiáticos, em princípio a guerra tem pernas para andar.

    battle tank on green grass field during daytime

    Quem grita pela solidariedade eterna com a guerra no Leste Europeu é quem, por norma, nunca quis saber de qualquer outra invasão. Mas é também quem, acima de tudo, vê o drama alheio sem o risco de perder o telhado ou que, apesar dos aumentos do Banco Central Europeu (BCE), tem um salário suficientemente robusto para se sentar na poltrona a exigir solidariedade. Fica bem. É a barricada dos impérios pela verdade. São a nova versão do “fiquem em casa, salvem vidas”, que o meu emprego já é para a vida.

    Acalmaram-se um pouco os falcões que exigiam a entrada da NATO no terreno (de forma oficial, pelo menos), e isso leva-nos para a parte da solução de todo este imbróglio.

    Sem a NATO e uma III Guerra Mundial, é possível derrotar os russos? Rogeiro faz-nos crer que sim, os militares dizem que não. Acreditando nestes últimos, alguns que até defendem que a única solução do conflito passará pela perda de território por parte da Ucrânia, a quem interessa o prolongamento deste conflito?

    Assim de repente, consigo pensar em várias corporações que estão a lucrar como nunca, percebo que para os Estados Unidos seja importante desgastar os russos o mais possível (até porque eles já o admitiram), e para alguns governos até a inflação parece ser positiva.

    black and silver bicycle in front of the man in black shirt

    Mas para nós, o comum dos mortais que trabalha 40 horas por semana e paga contas, de que nos interessa a moral da escolha entre impérios? A hipocrisia da invasão boa vs. a invasão má? A irritante sobranceria com que aceitamos a morte de uns, mas declaramos inconcebível o sacrifício de outros, consoante o nome do invasor ou a proximidade do nosso bairro.

    Compreendo que ucraniano algum queira perder território. Mas… tem de ser a Europa toda a pagar por isso? Não posso eu escolher a que invadido quero dar a minha solidariedade, ou, pelo menos, achar que que tenho o direito de não pagar guerras que não escolhi?

    Andei, andámos, dois anos a pagar os lucros das farmacêuticas e dos laboratórios, enquanto nos cortavam salários. Agora transferimos o valor do trabalho para o capital que está no sector da energia, do armamento, da banca. E voltamos a reduzir salários.

    Quase três anos desta merda, deste ciclo de empobrecimento. Sem que nos perguntem sequer se queremos fazer parte dele. Uma minoria que controla, dirige e oprime a maioria que trabalha, mas que, ao que parece, se recusa a pensar e reagir.

    man on front of vending machines at nighttime

    Eu não aceito que me obriguem a pagar guerras que não escolho. Nem sequer aceito que me digam quais são as guerras boas ou guerras más. E certamente não compreendo, em nome de quem é que a estabilidade da minha família tem que ser colocada em causa para que a banca, os senhores da guerra e as energéticas lucrem como nunca.

    Entre o sangue ucraniano e a pobreza que aumenta na Europa, há quem ganhe fortunas. E nós, os idiotas de serviço, discutimos 125 euros de esmola e gritamos Slava Ukraini no sofá, sem saber quanto mais tempo nos sentaremos nele.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A indecência de chamar socialista ao Governo

    A indecência de chamar socialista ao Governo


    Tinha pensado desligar-me do mundo por uns dias e seguir por caminhos enviesados nesta longa estrada que liga Gotemburgo a Lisboa. Algures entre as intermináveis filas nas estradas alemãs, cujas obras são uma constante há pelo menos 20 anos, e a extorsão que a Vinci faz nas auto-estradas francesas, aborreci-me da playlist do Spotify e virei para as notícias.

    A Jonet falava, chegavam pedidos ao banco alimentar, aumentava o número de pobrezinhos. No mundo com que sonho, a Jonet seria uma crónica desempregada. Contudo, no Portugal do século XXI, a senhora tem palco e luzes cada vez maiores.

    man sleeping on bench in the middle of the street

    De seguida fala o Costa. Tinha medidas para anunciar que iriam ajudar os pobrezinhos da Jonet. Foi aqui que percebi que as obras nas estradas alemãs seriam a menor das minhas irritações em período de férias.

    O Governo anunciou um pacote de medidas de ajuda no combate à inflação e aos custos da energia. Antes de irmos às medidas em si, convém esclarecer uma coisa, a inflação aumenta o custo de vida de cada um de nós, mas traduz-se numa receita fiscal maior. Portanto, não existe qualquer pacote de ajudas em período de inflação galopante… quando muito existe um pacote de devolução extraordinária daquilo que nos tiram sem que percebamos bem porquê.

    Em todas estas discussões, onde se apuram culpados, é preciso que se perceba uma coisa: não foram os portugueses que decidiram ter uma das electricidades mais caras da Europa em simultâneo com salários dos mais baixos entre os parceiros europeus.

    E isto antes da guerra.

    E isto é preciso repetir 50 vezes para que não continuemos no engodo de atribuir à Ucrânia toda a miséria que nos assola há décadas.

    photo of truss towers

    António Costa disse que todos os cidadãos com salários brutos até 2.700 euros (cerca de 2.000 líquidos) receberiam um apoio de 125 euros. Eu juro que pensei que fosse uma verba mensal ou algo assim. Mas não. Para pessoas que deixam, no caso dos 2.700 euros de salário, cerca de 10.000 euros em IRS anual nos cofres do Estado, António Costa achou que 1,25% desse valor seria uma boa “ajuda”.

    Estamos a falar de famílias que passaram a pagar muito mais pela casa por causa das taxas de juro, que suportam os lucros pornográficos da energia (que repito, NÃO VEM DA RÚSSIA) e que ainda contribuem para mais um jackpot estatal com os impostos sobre os bens de consumo à boleia da inflação. Em resumo, e numa linguagem que se perceba, o Governo português recebeu um porco (Pata Negra, pelo menos) de cada um de nós, e resolveu dar-nos um chispe, anunciando-o com pompa e circunstância.

    Conseguiu o Governo, pela primeira vez, colocar toda a oposição de acordo, depois de este número de ilusionismo. Carlos Guimarães Pinto, da Iniciativa Liberal, disse, e eu concordo, se o Governo queria de facto ajudar, bastaria ter reduzido os impostos sobre os salários e permitido que, nesta fase excepcional, as pessoas ficassem com mais dinheiro no bolso para enfrentar as dificuldades.

    É, aliás, essa a base do problema: os nossos baixíssimos salários. Os 2.000 euros líquidos são o limite para a fabulosa ajuda dos 125 euros, daí para cima estão os ricos. Dificilmente se enfrentam tempos destes sem poupanças e, como qualquer um de nós perceberá, poucas ou nenhumas serão as poupanças num país onde a média salarial se aproxima dos 1.000 euros.

    two Euro banknotes

    Por isso, estamos condenados à caridade, aos subsídios, às ajudas extraordinárias. Isto porque a nossa massa salarial não é, nem nunca foi, em média, algo sequer parecido com o Primeiro Mundo.

    No fundo, somos o reflexo da política do país que durante mais de três décadas de presença na União Europeia se habitou a gerir subsídios em vez de os usar para começar a produzir riqueza. Triste fado o nosso que nos deixa de gatas a cada crise.

    Vejo também, com alguma curiosidade, a indignação (e bem) de alguma parte da direita política com o ridículo valor de 125 euros. Não nos atrapalhemos que eu também aí concordo, mas, curiosamente, é a mesmíssima direita que falava no RSI e dos Mercedes à porta. Ora, o valor é semelhante. Eu pensava que dava para fazer férias em Nassau mas, afinal, parece que não. 

    A medida de auxílio aos pensionistas foi, ainda assim, a tentativa de ilusão mais indecente deste Governo, que, lembre-se, anunciou o Orçamento mais à esquerda de sempre. Os pensionistas recebem em Outubro metade do valor da pensão e os restantes 4% de aumento em 2023, perfazendo o aumento esperado para esse ano, de acordo com o valor da inflação.

    two hands

    Contudo, a partir de 2024, o aumento incidirá sobre o valor final de 2023 (o tal a que se chegou com 4% em vez de 8%); portanto, o que na prática o Governo de António Costa faz é antecipar para Outubro de 2022 o que já estava previsto por lei, mas a partir de 2024 retira, na parte valor, até à data da morte de cada pensionista.

    Significa isto, portanto, que o adiantamento de Outubro de 2022 não aparecerá no aumento de 2023. Embora a totalidade do dinheiro recebido seja a mesma, o valor final da pensão bruta mensal não será. Portanto, quando se calcular o aumento para 2024, este incidirá sobre uma base menor. Ou seja, anunciando um aumento e uma ajuda, o que António Costa faz é, na verdade, um corte nas pensões. Segundo a ministra da Segurança Social, ontem no Parlamento durante o debate com a Oposição, devemos discutir para já 2023 e criticar, se for caso disso, o que o Governo apresentar daqui a um ano para o Orçamento de 2024. Aqui para nós, parece-me que o país percebeu rapidamente a ilusão e o PS procura empurrar com a barriga e ganhar tempo para respirar.

    O tempo raramente nos engana e seria bom, ao dia de hoje, lembrarmo-nos de quem condenou este Orçamento e quem repetiu, até à exaustão, que iria retirar poder de compra aos portugueses.

    Aí está ele, desmascarado por qualquer português que saiba fazer umas contas de merceeiro, o Orçamento mais “à esquerda de sempre”, que diminui o poder de compra dos pensionistas, rebenta com o que falta do SNS, desvia dinheiro para a NATO, mantém a Função Pública estagnada e nem por uma vez se digna cobrar impostos extraordinários sobre os lucros fabulosos do sector da energia. E isto enquanto os portugueses vão definhando para manter as casas.

    Quanto à compensação da factura da electricidade é apenas uma piada de mau gosto. Tentem manter uma casa quente no Inverno consumindo menos de 100 Kwh. O governo sueco, sem perguntas, filtros ou ses, resolveu compensar cada cidadão, ajudando com as despesas de energia para todo o inverno de 2021/2022. Através de um simples e-mail, informou que seria descontado o valor X na próxima factura e ponto final. Isto num sítio onde o salário médio deve rondar os 3.000 euros.

    person holding brown leather bifold wallet

    As medidas anunciadas em Portugal são, no fundo, uma mão cheia de nada. Uma aldrabice pegada onde o Governo poupa dinheiro dando a ilusão de que é um mecenas. Num país cada vez mais pobre e, infelizmente, dependente das ajudas, é um embaraço e uma vergonha ter que assistir ao que faz o Governo de António Costa.

    Os salários não acompanham a inflação; os impostos resultantes do aumento do custo de vida não são distribuídos; o BES (afinal) ainda existe; as clientelas e os Figueiredos também; as gasolineiras e as eléctricas continuam, em cartel, a decidir os preços praticados. E os portugueses estão reféns. De todos.

    Mas, enquanto nos continuam a roubar, tenham pelo menos a decência de não chamarem, ao Governo que nos governa, de socialista.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O t(r)emido legado da Marta

    O t(r)emido legado da Marta


    A demissão de Marta Temido tem vários ângulos de discussão e substitui, na prioridade da informação nacional, os directos das filas para compra de bilhetes para os Coldplay. Só por aí já ficámos a ganhar, e voltámos assim às discussões que interessam.

    É impossível, num texto só, abordar tudo o que já foi dito sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a demissão da senhora e o seu (e o nosso) futuro, e como tal, tentarei dividir a minha opinião por “zonas de reacção”. Não sendo propriamente um ás na arte da síntese, tentarei, ainda assim, não aborrecer o leitor.

    Marta Temido, ao centro.

    A ponta do iceberg

    Marta Temido decidiu sair depois de mais um escândalo no SNS. Sim, escândalo. Quando uma grávida morre numa ambulância estamos a caminhar a passos largos para o Terceiro Mundo. Quando uma mulher grávida é transferida, com um quadro clínico complicado, por falta de incubadoras no maior hospital do país, estamos a assistir à falência do sistema.

    A conferência de imprensa dada hoje pelos clínicos do Santa Maria, apesar das boas intenções, foi um tiro nos pés. Dizer que a mulher era estrangeira, que não se expressava em inglês ou português, e que não tinha sido admitida no hospital (mas que simplesmente aparecera lá), são argumentos absolutamente infelizes.

    Um ser humano aparece na urgência do maior hospital de um país que há 35 anos faz parte da zona mais civilizada do planeta, e até pode ser muda e paralítica… atende-se logo e não se pode mandá-la para outro lado porque há falta disto ou daquilo. É simples. Ou seria, se o SNS não andasse a ser desmantelado há anos. A culpa não é, obviamente, dos médicos, que fazem milagres com o que vai sobrando.

    photo of iceberg

    A reacção de Marta Temido

    A morte da mulher de origem indiana, grávida e de férias em Portugal, terá sido a gota de água que explica, publicamente, o caos que todos sabemos existir no SNS.

    A ministra não será certamente a única culpada, mas é a cabeça que tem de rolar. A falta de pessoal de Obstetrícia, que marcou o Verão, foi outro dos problemas que Temido carregava há alguns meses. Tal como os dois anos de pandemia em que o SNS ficou absolutamente sobrecarregado, por decisões políticas erradas, passando as demais doenças para segundo plano.

    O Governo português tomava as decisões com base numa equipa de especialistas (onde andarão eles agora?) e os hospitais privados, não sei se se lembram, decidiram ficar de fora do esforço nacional, a não ser que 13.000 euros por doente lhes fossem doados. Marta Temido foi, apesar de tudo, uma cara que tentou defender o SNS, mesmo se, aqui e ali, tenha cometido umas gaffes, como a famosa resiliência.

    Acho que foi vítima de alguma ingenuidade, e não me parece que seja a maior responsável na catástrofe em que se tornou o SNS, onde a maior parte das decisões que contam são tomadas no Ministério das Finanças. Marta Temido é a cara da política que nos trouxe aqui, não é a responsável principal.

    pregnant woman holding her tummy during daytime

    A reacção da Oposição

    A Oposição precisava desta demissão como de pão para a boca. A frase que mais ouvi foi “demite-se tarde” – e, por acaso, concordo. Por razões diferentes, mas concordo. Marta Temido devia ter batido com a porta mais cedo, mostrando que não legitimava as políticas do governo para o SNS, que, como alguma esquerda disse, “assistia passivamente ao desmantelamento do SNS”.

    Entre as diferentes tipologias de declarações do dia que ouvi, uma pareceu-me mais perigosa:  a ânsia de saber quem seria o substituto de Marta Temido e se estaria preparado para mudar radicalmente o SNS.

    E o que será mudar radicalmente o SNS? Será perceber que os “tempos são outros”, e que a Medicina mudou, e que os privados passaram a investir na Saúde de uma forma que não deixaria nada como era há 40 anos.

    Ou seja, para alguma Oposição de direita, o próximo ministro deve reconhecer que o SNS deve fornecer serviços básicos de Saúde, especialmente aos mais desfavorecidos, e deixar que os privados tomem o seu lugar e complementem a oferta do SNS. Traduzindo para português corrente: cartões de seguro para toda a gente e SNS apenas para passar receitas de aspirinas.

    Partidos como o Chega benzeram-se com esta crise, porque deixaram de falar nas sessões de pugilismo internas e aproveitaram para pedir a demissão de António Costa, também.

    O PSD, responsável pelo início desta caminhada no SNS, também culpa Marta Temido pelo caos no SNS e espera que o Governo encontre um ministro que seja fã das parcerias público-privadas (PPPs) da saúde.

    Já à esquerda, Bloco de Esquerda e PCP, dizem que é tempo de voltar a investir a sério e fixar médicos no SNS.

    Notei que foi pedida também uma reacção a Nuno Melo (CDS). Confesso que não percebi porquê.

    A reacção dos profissionais

    Entre as várias que passaram nos três canais informativos, destaco uma que me pareceu mais assertiva.

    Dizia uma profissional, com mais de 40 anos de experiência, que a debandada no SNS começou nos tempos da troika. Este parece-me um dado importante. Não é que não seja óbvio, mas é bom lembrar que a pandemia só mascarou um problema que já vinha de trás.

    Explicava esta profissional que os médicos que começaram a sair nessa altura (para fora do país ou para os privados) são a geração que hoje estaria nos 40/50 anos sendo que essa é a fatia que mais falta no SNS.

    Ou seja, há muitos jovens (no internato) e muitos médicos em fim de carreira. Faltam aqueles que, hoje, fariam a geração de transição. E esse é que é o cerne da questão.

    O SNS está preso por arames há muito e a culpa não é de Marta Temido. É de todos os governos que decidiram meter dinheiro em estradas, no BES, nas exigências para lá da troika, nos esforços de guerra, nas PPP’s e em todos os arranjinhos que, neste país, fazem de sorvedouro de dinheiros públicos. Tal como os professores, os médicos e enfermeiros andam a ver a degradação das suas carreiras há mais de uma década.

    Quando os liberais usam frases-chavão, e afirmam que não podemos despejar dinheiro no SNS porque o problema é de gestão, o que eles verdadeiramente querem dizer é que não podemos despejar dinheiro no SNS porque devemos fazê-lo na direcção dos grupos privados de saúde.

    Claro que o problema é de investimento. Os profissionais não abandonam o SNS se tiverem boas condições de trabalho. Não são diferentes de qualquer um de nós.

    man in white thobe standing

    A reacção da sociedade civil

    Quando todos os dias nos queixamos nas redes sociais, ao vizinho do lado ou no trabalho, sobre os problemas que enfrentamos no SNS, especialmente com as filas de espera, temos a inquestionável habilidade de nos esquecermos que, há pouco mais de um ano, andávamos a bater palmas aos médicos nas varandas e a agradecer por estarmos todos em casa a ignorar 99,9% das doenças do mundo.

    Ora, essa decisão governamental, apoiada pela maioria da população (bem sei que hoje já se esqueceram, mas há que aguentar), não só sobrecarregou os profissionais naquele momento como, os repetidos adiamentos, deslocaram a sobrecarga para outras especialidades mais à frente no tempo.

    Em parte, é isso que todos estamos a viver hoje: o ruir da última parede do edifício do SNS. Contudo, enquanto milhões de pessoas saudáveis ficavam em casa e pessoas doentes (sem covid) não eram assistidas, (quase) todos achávamos que seguíamos no caminho para ficar tudo bem.

    O dinheiro que aí se gastou, nomeadamente com o pagamento de layoffs e no trabalho extraordinário dos médicos, daria, provavelmente, para reforçar em permanência os quadros do SNS.

    A Suécia – ainda se lembram do país que “matava velhinhos” – não seguiu a política da maioria (Portugal incluído), não esgotou o seu SNS, não esbanjou dinheiro para que pessoas saudáveis ficassem em casa. Era possível ter feito diferente.

    timelapse photo of people passing the street

    Conclusão

    Marta Temido fará as parangonas de hoje e amanhã. É a cara de uma política que falhou. Não é, nem de perto nem de longe, a principal responsável pelo actual estado do SNS. Nem parece que quem vier, se vier com as mesmas ideias, faça este estado de coisas mudar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As lágrimas de Sanna Marin, a hipocrisia… e, já agora, os curdos

    As lágrimas de Sanna Marin, a hipocrisia… e, já agora, os curdos


    Não sei se já tiveram a oportunidade de passear as ancas numa discoteca finlandesa. Aviso já que é um trabalho árduo que requer alguma perícia e que nos obriga, com destreza, a acompanhar dezenas de pessoas que dançam uma música imaginária enquanto o dj nos oferece outra.

    Se Deus alguma vez existiu, esqueceu-se do Norte da Europa na altura de dotar os esqueletos de ritmo. Começando por aí, fiquei logo um pouco mais fã de Sanna Marin, a primeira-ministra mais nova do Planeta, residente num país onde, pelo que vi, deverá ser a mais profícua dançarina. Mais do que isso, conseguiu estar num espaço onde mais do que quatro finlandeses se riam em simultâneo. Isso, sim, é uma proeza. Quem não se lembra da alegria gélida com que Kimi Räikkönen festejava (com o semblante fechado) cada vitória na F1.

    Sanna Marin, primeira-ministra da Finlândia. Foto: ©Laura Kotila 

    Portanto, ter uma política destacada, nova, que se consegue divertir entre um grupo de amigos, como qualquer um de nós, é uma excelente notícia.

    Tudo o que se segue nesta história é uma pura desgraça que explica, em poucas passagens, a sociedade em que vivemos.

    Por que razão aparece um vídeo de uma festa privada nos jornais? É o primeiro ponto a discutir nesta sociedade em que escolhemos deixar de viver para gravar. Não vemos, não ouvimos, não sentimos. Gravamos para mais tarde mostrar a alguém.

    Sanna Marin apareceu em lágrimas a pedir desculpa pelas fotos que foram reveladas e até se sujeitou à suprema humilhação de fazer um teste de drogas. Imagino que para a maioria dos finlandeses a alegria e a euforia ainda seja algo artificialmente conseguido, entre umas Lapin Kulta e uns comprimidos de ecstasy.

    Passaria um destacado político, homem, por tamanho insulto ou perseguição?

    Eu acho que não. Boris Johnson, (ainda) primeiro-ministro inglês, foi apanhado a participar em várias festas [comparando as imagens da farra, a de Sanna ficaria na categoria de enterro], na residência oficial durante um período de confinamento decretado pelo próprio. Uma espécie de poker das trapalhadas. Demorou dois anos até ser corrido do cargo que ocupava.

    Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido. Foto:  ©Crown Copyright

    E note-se: sempre defendi que os confinamentos não faziam sentido, mas, se um Governo os impõe, não podem ser os próprios membros do Governo a furá-los. Aí esperava-se um exemplo. No caso da festa privada entre amigos, estamos num momento absolutamente irrelevante para a profissão desempenhada por Sanna Marin.

    Alguém imagina que um ministro, presidente ou secretário-geral, quando sai do seu horário de trabalho, se recolhe junto à lareira a escrever as memórias ou a pintar paisagens campestres?

    Na verdade, sejamos claros: Marin nunca passaria por este escrutínio se fosse um homem. E suceder o que sucedeu numa das sociedades onde a diferença de “tratamento” entre homens e mulheres é menor, mostra que o desnível ainda é real e muito grande.

    Notem que Silvio Berlusconi organizava orgias, mas, entre escândalos e prostitutas, foi primeiro-ministro italiano durante nove anos, o mais duradouro no poder desde a II Guerra Mundial.

    Enquanto isso, Sanna Marin vê uma foto sua, com quatro ou cinco amigos sorridentes numa noite de copos na casa de um deles, e de imediato tem de vir a público, de lágrimas nos olhos, dizer que é uma pessoa comum com 36 anos, que não faltou um dia ao trabalho e que também precisa de se divertir.

    Este é que é o drama real da hipocrisia que assalta os meios de comunicação social num mundo, ainda, profundamente machista.

    A lavagem que fazem perante escândalos masculinos, uns atrás dos outros, de proporções bíblicas (ou talvez mais romanas), e o empolamento que dão a uma mão cheia de nada, se a visada for uma mulher. Percebo que a oposição política use tudo na guerra dos votos, mas já não entendo que a imprensa e a sociedade os sigam. Se isto acontece num dos países mais avançados do Mundo, o que se diria num daqueles mais plantado à beira-mar, se é que me compreendem?

    Na verdade, eu acho que se deveria discutir não os dotes artísticos da jovem primeira-ministra finlandesa, na ocupacão dos seus tempos livres; mas outra coisa bem diferente, mais política. Como, por exemplo, perguntar-lhe como se atinge aquele nível de alegria depois de se aceitar entregar curdos ao Erdogan em nome da entrada na NATO.

    Bem sei que para um governante foi apenas mais um dia no escritório, e uma decisão em mil, mas, se era para a deixar em lágrimas e encher telejornais, podiam ter-lhe perguntado o preço de uma vida curda neste mercado de Verão. Sempre aprendíamos qualquer coisa.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Jacob, filho de Sérgio

    Jacob, filho de Sérgio


    O meu filho tem um plano simples: aos 18 pensa ser milionário. Já lhe expliquei que a escolaridade obrigatória na Suécia termina aos 19 (12º ano) pelo que não estou a ver bem a articulação do seu projecto.

    Em todo o caso, também já percebi que ele vai, aqui e ali, pensando em planos B e C, para o caso de o original falhar. De vez em quando, pergunta-me se pode ficar com as residências familiares quando tiver 18 anos.

    Isto leva-me a concluir duas coisas simples: desde logo, ele imagina que o Palácio de Queluz é nosso e ainda – aspecto ligeiramente pior para mim –  que dentro de cinco anos não estarei por cá.

    Sérgio Jacob Ribeiro (à direita), filho de Sérgio Figueiredo.

    Mas eu, como sou optimista, digo não a tudo, embora lhe ofereça ajuda nessa estrada para a fortuna. Aliás, quem é que não quer ser pai de um milionário? E qual é o pai que não ajuda um filho?

    Pelo menos isso sucede na cultura latina, onde somos mais dados à família. Entre os nórdicos já não é bem assim.

    Em tempos, conheci um velhote que mostrava com orgulho uma casa que tinha desde os tempos de estudante e que hoje, já perto da reforma, ainda alugava. Perguntei a quem, e ele, com o sorriso de quem tinha feito um grande negócio, disse-me: “ao meu filho”. Ah, valentes! Cada um por si e Odin por todos!

    Já connosco não é assim. Temos amor para dar e vender. Ajudamos o filho, a nora, o cunhado e a amante do primo. Somos muito da proximidade sanguínea.

    De modo que não entendo o escândalo que agora rebentou a propósito do apoio de 350.000 euros concedido ao filho do Sérgio Figueiredo em 2020, pela Câmara Municipal de Lisboa presidida pelo Fernando Medina, na altura comentador da TVI, canal onde o mesmo Sérgio Figueiredo era director de informação, entretanto convidado para consultor do ministro Medina em 2022 com um salário de cinco mil e qualquer coisa euros.

    Uma pessoa até deveria meter umas dez vírgulas nisto para se perceber o enredo. Não é fácil. Parece aquelas histórias do Jorge Amado que acabavam interpretadas pela Fernanda Montenegro na Globo. Ahhh… bons tempos em que todos víamos a novela da noite porque só havia um canal. Sim pequenada, isto aconteceu. Mas adiante.

    girl holding umbrella on grass field

    Sérgio Jacob, filho de Sérgio, tal como o pai, veio a público defender-se, dizendo que é culpado de ser filho do pai (dele).

    Ora, não querendo ser picuinhas, essa é, na verdade, a única responsabilidade que ele não tem.

    De facto, não tem ele culpa alguma de ser filho do pai dele já que, tecnicamente, não estava presente no momento da escolha. Julgo que podemos pacificamente concordar nesta parte.

    E, provavelmente, também não terá culpa de fazer parte de uma teia de contactos que vale milhões, e que, por acaso, facilita o estabelecimento de uma vida entre aquilo a que decidimos chamar de verdadeira classe média-alta.

    Claro que ele podia escolher o caminho das pedras e trilhar o seu destino, mas, convenhamos, quem é que caminha descalço numa estrada a ferver quando pode ir de Volvo com ar condicionado e o melhor airbag do Mundo?

    A história do Sérgio Jacob não (nos) é estranha porque não é original. É uma entre centenas que não chegam aos jornais. Mas, na verdade, o que é que isso importa? As notícias de hoje serão a forra do caixote do lixo de amanhã. Sim, é verdade: acabei de usar uma passagem do Notting Hill, mas, meus amigos, todos nós vimos aquela história de amor e gostámos. Hoje é que temos vergonha de dizer.

    E a história do Sérgio Jacob é também uma história de amor. A história de um miúdo que, ao contrário de nós, nunca precisou de emigrar, ser rejeitado em entrevistas de emprego ou juntar dinheiro para investir na criação de uma empresa. É alguém que, mal acabou a licenciatura em engenharia das bio-cenas, passou de imediato a cronista de qualquer coisa e, ao fim de um ou dois estágios, já era CEO da sua própria empresa.

    Sérgio Figueiredo

    Nunca precisou de exercer a profissão que estudou e, em menos de três anos, com uma empresa de seis ou sete funcionários, já estava a organizar eventos de três milhões de euros. Segundo o próprio, apoiados em 12% pela Câmara de Lisboa (350.000 euros), mais de 1.000.000 euros vindo do Turismo de Portugal e o restante pela porta da União Europeia, Presidência da República ou Nações Unidas.

    Ou seja, o Sérgio Jacob, filho do Sérgio da TVI, consegue montar um evento de milhões, poucos anos depois de ter saído da universidade, com apoios de instituições públicas onde o comum dos mortais nem sequer sabe onde fica a porta.

    Claro que, ao olho desarmado, uma pessoa fica com a sensação de que a teia de interesses e de devolução de favores entre o Medina e o Sérgio pai pode ter chegado ao filho. Ou até que os contactos de um abrem portas a outro. Mas talvez seja isso mesmo, uma simples sensação. Aquelas coisas que se vêm lá ao longe e se vai dizendo: “parece que é e até cheira… será que é mesmo?”

    E notem: eu queria mesmo acreditar que não. Aliás, os dados que escrevi aí em cima foram-me entregues pelo próprio Sérgio Jacob, na entrevista que deu e no curriculum que escreveu no LinkedIn. Digamos que, um de nós, com o CV do Sérgio não ia longe, talvez, quiçá, em topo de carreira chegássemos ao sector das energias mais verdinhas da EDP. E até dava para um escritório em open space com café gratuito. Mas CEO com três milhões para organizar o “Planetiers World Gathering” já seria mais difícil.

    Antes que comecem já a falar mal, o Planetiers World Gathering, é um certame com três milhões de euros em apoios públicos que se destinam, e cito, “a qualquer pessoa que quer descobrir e aprender mais sobre práticas sustentáveis, startups que procuram investimento para crescer, empresas que estão ávidas por acompanhar as tendências ou liderar a transformação, e empresários que pretendem expandir a sua rede de contactos.”

    Portanto, não é nada. Nem dá para fingir que se anda de unicórnio como na Web Summit.

    Enfim, o meu problema não é tanto a “subida a pulso” dos Sérgios desta vida. É nunca aparecer um gajo, qualquer, vindo de uma aldeia, filho de um pastor, que depois de tirar um curso universitário tenha acesso a investimentos de milhões do erário público na sua empresa. Pode até ser coincidência, mas, quando leio notícias sobre putos da aldeia, é sempre de alguém que usou um machado ou descobriu forma de mastigar sem dentes.

    Donald Trump, outro conhecido empreendedor que subiu a pulso, disse há uns anos, numa entrevista, que tinha “começado do zero, com um empréstimo de um milhão do pai”.

    Ora, o Sérgio Jacob subiu a parada e nem aborreceu o pai: recebeu o seu milhão, não do pai Sérgio, mas de todos nós, assim, sem espinhas e sem nos perguntar se não fazia falta para fechar aquela marquise.

    Empreendedores assim há poucos, o que é pena. Contem comigo para apoiar mais gente com ideias em inglês e pouca vontade de trabalhar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gente que sai à rua

    Gente que sai à rua


    Quando li a notícia de que os sindicatos da Função Pública iam exigir, para 2023, aumentos que acompanhassem a inflação, imaginei a reacção popular.

    Sabemos que há um certo atrito na opinião pública (e publicada) contra a Administração Pública. Começando nos professores, passando nos funcionários das diferentes repartições e terminando nas forças de segurança. Há, enfim, aquele velho estigma associado aos mandriões com bons salários e empregos para a vida.

    A realidade é ligeiramente diferente. Um emprego para a vida não sei se é algo assim tão fantástico; pessoalmente não conseguiria fazer a mesma coisa durante 40 anos. E os bons salários só mesmo se tivermos como bitola a miséria reinante em Portugal, onde quem recebe 1.000 euros por mês passa por classe média. 

    Entre nós, trabalhadores portugueses, escasseia a solidariedade.

    Queremos nivelar quase sempre por baixo. Se eu estou a dois passos da escravidão, a luta do meu vizinho deve ser inglória para que não me sinta tão mal.

    A intenção dos sindicatos peca por humilde, mas, ainda assim, está condenada ao fracasso.

    Com a inflação a chegar aos dois dígitos, seria necessário um milagre na Concertação Social para o Governo ceder a tal valor.

    Contudo, esta é a parte engraçada da história: mesmo que cedesse, ainda assim seria um mau negócio para a Administração Pública.

    10 and 20 banknotes on concrete surface

    Para quem tem as carreiras congeladas há mais de 10 anos, e que, consequentemente, já perdeu muito poder de compra, um acerto com a inflação deste ano não compensa tudo o que foi perdido. Pior, deixa-os a pagar, quase sozinhos, por crises que não provocaram e guerras que não escolheram.

    De todas as facções discordantes na discussão dos aumentos, a minha preferida é a da ala liberal, que exige que estes estejam indexados à produtividade. É uma narrativa antiga e recorrente do patronato para adiar, para a calendas, qualquer hipótese de aumento digno para os trabalhadores de base.

    Note-se que estas exigências raramente apanham gestores, políticos ou directores – a faixa de onde, por mais galopante que seja a inflação ou por mais crises que o FMI nos traga, se conseguem sempre dividir prémios de gestão. Pensem também nos subsídios dos deputados que nunca sofrem ajustes, ou nos gestores do BES que dividiam lucros pelos accionistas quando a arraia-miúda os sustentava com impostos.

    A história da produtividade é uma falácia. Quem a mede, quem a quantifica e quem faz a sua relação para o valor acrescentado do que se produz?

    Lembrei-me assim de repente de uma empresa dinamarquesa, um dos líderes mundiais na produção de eólicas, que instalou um centro de engenharia ali para os lados de Matosinhos.

    pen om paper

    Pelo mesmo trabalho feito, e a mesmíssima produtividade, pagam a um engenheiro português cerca de 25% do que pagam a um dinamarquês, nos escritórios de Copenhaga. Portanto, quem paga tenta fazê-lo com trocos de forma a aumentar os lucros e, dentro e fora de portas, o nosso país não se livra do selo de mão de obra competente e barata.

    É por isso que tudo o que não seja um aumento digno, a cada ano que passa, é uma falácia. O dinheiro existe, a produção também. A divisão é que é feita de forma diferente. E o lucro, hoje e sempre, construído em cima de baixos salários.

    Se os argumentos da produtividade na discussão salarial já era uma história da carochinha no mundo pré-covid e pré-Ucrânia, hoje então passou a ser um episódio de Narnia.

    Com uma crise totalmente criada pelos decisores mundiais, seja de quem invade ou de quem decide apoiar esforços de guerra, com sanções que provocaram escassez na oferta e aumentos de preços… faz algum sentido castigar quem trabalha e depende do seu salário, exigindo-lhe que perca poder de compra?

    Ou, no caso dos funcionários públicos, uma década depois, que CONTINUEM a perder poder de compra, mas agora em doses maiores?

    close-up photo of assorted coins

    É aqui que devemos parar para pensar no que está a acontecer no Reino Unido. Um país rico onde o primeiro-ministro, antes de ser corrido, anunciou que dinheiro e armas não faltariam para a Ucrânia. E a Suécia também, caso o Putin se aborrecesse da embrulhada em que está.

    Curiosamente, enquanto procurava o seu lugar triste na história, Boris Johnson não teve tempo de reparar que as sanções estavam a empobrecer o povo inglês que, como se sabe, não está habituado a ser pobre. Uma coisa é ser português, espanhol ou grego na União Europeia – já estamos habituados a viver com migalhas. Outra coisa é ser-se inglês e perceber que, de repente, o dinheiro já não chega para três rondas no pub e umas voltas pelo Algarve.

    De modo que resolveram parar.

    O Reino Unido enfrenta hoje, por causa da inflação causada pelas sanções à Rússia, as piores greves dos últimos 30 anos. Caminhos-de-ferro, portos, transportes em geral. O país paralisou e não mexe por menos do que um aumento que acompanhe a inflação. O mesmo que a nossa Função Pública pede, embora se aguardem resultados diferentes.

    A força dos trabalhadores é perfeitamente demonstrada nestes movimentos solidários. Só os decisores podem escolher guerras, canalizar dinheiro ou aumentar taxas. Mas não são os únicos que conseguem criar movimentos de bloqueio.

    crowd of people standing outdoors

    Da mesma forma que escolheram bloquear economicamente a Rússia, deixando os seus povos à mercê da escassez da oferta e subida de preços, ficaram também dependentes das reacções dos trabalhadores que, entre pagar a solidariedade com outro povo, ou sustentar a sua família, optam pela segunda. 

    E isto não quer dizer que quem luta pelos seus direitos não queira ver o invasor fora da Ucrânia. Só não quer é ter que pagar ou empobrecer por isso. É aborrecido, mas é a lei humana. Quem decide, pede esforços, mas não os pratica.

    Acabamos sempre no velho e bafiento carrossel em que as elites nos dizem como devemos sofrer, continuando os seus dias na serenidade de quem não abala com os dramas do Mundo. De vez em quando, os trabalhadores juntam-se, e dizem já chega. Não há movimento mais belo do que esse. A força de quem trabalha nas ruas. A força de quem realmente constrói um país na luta por uma vida melhor.

    Que pena vermos esses movimentos, nós portugueses, quase sempre pela televisão, e tardarmos em perceber que, lá como cá, quem manda é quem trabalha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O Sérgio e a pasta ‘se fores apanhado, usa esta’

    O Sérgio e a pasta ‘se fores apanhado, usa esta’


    O trabalho está a dar-me gastura. Não sei bem o que significa esta palavra, mas a minha avó, sempre que a usava, franzia os olhos e massajava a barriga para ilustrar. Sei sim que é mais ou menos a sensação que tenho quando penso na minha equipa da “apanha da azeitona”.

    Estimo que 75% é formada por pessoas que gerem cenas e organizam coisas; os outros 25% são aqueles que fazem, de facto, essas coisas. Somos quatro. Eu tenho gastura, portanto. Deixo as contas para os Antunes desta vida.

    Sérgio Figueiredo

    Penso muito naquela imagem das obras, com nove gajos em redor do buraco a olhar e dar indicações e um outro com a picareta nas mãos a bulir. Mas, enfim, menos queixume, porque sou eu que me meto nestes comboios.

    A parte que realmente quero trazer para aqui é que isto: do ponto de vista de gestão, tudo isto é uma péssima utilização de recursos. Gasta-se dinheiro a mais e produz-se a menos. Contudo, como é investimento privado (e chinês, já agora) ninguém está interessado em poupanças. Por mim, tudo bem, que não sou de grandes complicações. Desde que a Pelosi deixe de chatear e a China não tenha que investir em canhões de longo alcance, em princípio, os outros 75% da minha equipa podem continuar a esfregar a micose nos PowerPoint.

    Agora, com o Sérgio Figueiredo, já não é bem assim.

    Hiiiiii… cá ganda volta foste dar migaaaaa!!

    Exacto. Eu não gosto de ir directo ao assunto, e umas flores no ramalhete nunca ficaram mal.

    Fernando Medina, ao centro, ministro das Finanças.

    O Sérgio Figueiredo é o novo ofendido da Praça Pública, e, por isso mesmo, defendeu-se com um longo texto no Jornal de Negócios, anunciando que desistia do contrato de consultoria arranjado com o Medina para o Ministério das Finanças.

    E porque pia mais fino o enredo do Sérgio, quando comparado com o desperdício dos meus amigos chineses? Por causa dos mercados, fiéis amigos, para o bem e para o mal. O Sérgio não estava inserido neles, seria pago com dinheiro público e, portanto, está sujeito ao escrutínio dos pobres.

    A prosa de defesa, feita pelo próprio, é retirada de uma minuta disponível em todas as Secretarias de Estado e arquivada nos servidores do Governo dentro da pasta “se fores apanhado, usa esta”.

    Começa com “não aguento mais as calúnias, acusações e difamações”; continua com “blá, blá, blá“; pelo meio há sempre um “injustiças e poderes instalados”; e termina-se com “por isso abdico” e “na defesa do meu bom nome”. Assina-se. E está feito.

    O Ministério das Finanças anunciou a contratação de Sérgio Figueiredo para a função de consultor na área da avaliação das políticas públicas, com um salário de 140 mil euros por dois anos de contrato. Cerca de 5.800 euros por mês, mais do que o salário do próprio ministro.

    brown and blue wooden cabinet

    Como o Governo já tinha criado um centro de competências para as políticas públicas (chamado PlanApp), o pagode ficou ligeiramente desconfiado de Medina contratar um consultor, durante dois anos, e dar-lhe um salário de piloto, para fazer essencialmente o que um centro inteiro já fazia.

    Claro que, a partir daqui, o Ministério das Finanças apressou-se a justificar a diferença de trabalho que Sérgio, jornalista de carreira sem experiência em políticas públicas, faria, quando comparado com os demais ocupantes desses lugares no PlanApp. Aparentemente, ou melhor, alegadamente, não faria nada porque não percebia da poda.

    E foi aí que a pobretada que sabe ler se indignou e pensou: “tu queres ver que isto é o Medina a pagar favores pelo palanque que teve na TVI?”

    O barulho ficou ensurdecedor e o desgraçado do Sérgio lá teve que abdicar do cargo, mostrando ao mundo aquela ponta de dignidade só ao alcance dos ilustres que são apanhados entre maroscas colossais.

    Isto vai um pouco na linha do turista espacial, que nos pedia orgulho por ter feito uma excursão de luxo enquanto carpia por 40 milhões de euros de ajuda ao erário público, e que depois, também ofendido, lá acabou por desistir de nos sugar mais uns cobres.

    brown short coat large dog jumping on green grass field during daytime

    Sebastian Maniscalco, um comediante que aprecio, dizia um dia sobre a nova moda em Hollywood com os centros de reabilitação para homens viciados em sexo: “não existem viciados nesses sítios, só maridos que foram apanhados”.

    De cada vez que um Sérgio ficar ofendido e largar a teta do erário público, nós, sociedade civil, cumprimos o nosso papel.

    Mas aquilo que me continua a aborrecer, e fazer pensar, enquanto agarro na minha picareta, são os milhares de Sérgios que vão passando entre os pingos da chuva.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Ucrânia: um rodapé do Pontal

    Ucrânia: um rodapé do Pontal


    Entendo que Zelensky não pode deixar que os holofotes se apaguem. O pior que pode acontecer ao povo ucraniano, depois da guerra que não se evitou, é serem esquecidos. No fundo, o pior que podemos fazer ao povo ucraniano é fazermos, essencialmente, o que fazemos a todos os outros povos: passar ao drama seguinte quando o sangue se torna velho.

    Assim que a cortina se fechar, os russos terão palco e espaço para agirem como bem lhes apetecer. A velha teoria de o tempo ser ainda o maior aliado do exército russo.

    Não tenho qualquer opinião formada sobre Zelensky, para lá de um rapaz que foi apanhado nos Panama Papers e que era governante de uma democracia pouco saudável quando os verdadeiros donos do Mundo resolveram usar o quintal dele.

    E antes que me apareçam os puritanos da ordem, asseguro que Putin só não está nos Panama Papers porque não precisa deles para nada: esconde o dinheiro que rouba na Sibéria. O Panamá é para totós que ainda não a sabem fazer bem feita.

    Noto o desinteresse na causa ucraniana a cada dia que passa. Já não é novidade, já não é tão dramático, já nem dá tantos directos. Na verdade, ainda é mais dramático, mas quem não vê é como quem não sente. A História do Mundo Ocidental.

    Pelo meio, Zelensky vai dando uns tiros nos pés como, por exemplo, exigir que todos os cidadãos russos sejam bloqueados onde quer que vão. O Zé e a Maria de Vladivostok, que nem sabem onde fica o Panamá, não podem ir ao Intermarché de Tóquio, que fica mais em caminho do que o Pingo Doce de Moscovo.

    Uma guerra feita por velhos ditadores que Zelensky, amigo dos cancelamentos de partidos, quer que seja culpa de populares.

    Até os mais acérrimos defensores da guerra começam, paulatinamente, a assinalar as vezes em que Zelensy mete água. Na Vogue, nos cancelamentos, nos pedidos de mais sanções.

    Diga-se que, ainda assim, eu concordo com ele: é preciso que não se deixe arrefecer o assunto e que se vá discutindo a causa. Venha de onde vier o tema, o que importa é não deixar cair no esquecimento.

    Mas, deste lado, as sanções já pesam. A malta das bandeirinhas também se aborrece com a inflação, com os juros, com os impostos, com o custo da energia. A Ucrânia começa a ter costas muito largas para a comoção diária que nos exige.

    É preciso lembrar que a nossa natureza é não querer saber. É olhar para o umbigo. É largar um “coitados”, e depois fazer scroll down.

    Ontem, enquanto Luís Delgado – o homem das análises se chove-molha – falava na SIC sobre a festa do Pontal, os apelos de Zelensky apareciam em rodapé. Mais sanções e exigências, ali a 200 à hora no fundo da televisão, e apareciam imagens em loop com Montenegro de camisa branca e dois dedos no ar.

    Quando algo já só surge em rodapé, ao mesmo tempo que se mostra a Festa do Pontal – que é tão relevante para o país como a Festa da Nossa Senhora da Aparição da Nazaré –, é porque já atingiu o estatuto de refugo noticioso.

    Como disse inicialmente, interessa-me pouco Zelensky ou os seus gritos. Como ainda menos me interessa Putin e as suas certezas ou loucuras imperialistas. Tenho é pena dos mesmos que, desde Fevereiro, vão perdendo casas, vidas, amigos e familiares, em nome de uma guerra que nunca foi sua.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.