Aqui há uns meses conheci um jardineiro que me disse que, dadas as “condições”, iria aumentar o preço do trabalho para o dobro. Perguntei-lhe porquê, pensando que ia ouvir o clássico recital da Ucrânia, dos combustíveis e do custo de vida em geral. Mas não. Este empreendedor tinha uma abordagem diferente no mundo dos negócios: “se o carpinteiro e o pintor aumentaram para o dobro, porque não deveria eu fazer o mesmo? Sou mais parvo do que os outros?”
Gostei da honestidade – afinal, para quem nunca foi à Web Summit, este homem tinha a noção perfeita de como aumentar os seus rendimentos sem ter de trabalhar mais. Os custos eram essencialmente os mesmos, os salários também, o trabalho era feito cada vez mais a despachar, mas o preço final aumentava porque sim. Num meio pequeno, longe dos unicórnios, faz-se o que vizinho faz, não vão os clientes pensarem que somos menos empreendedores.
Expliquei-lhe que essa não era uma forma de compensar custos-extra, mas pura e simplesmente uma forma de aumentar o lucro. Ele disse-me que “lucros excessivos” era um conceito que desconhecia e, já em desespero de causa, lá falou na Ucrânia para dizer que o petróleo nigeriano com que abastecia a carrinha estava pela hora da morte – embora naquela região o combustível seja sempre mais barato.
Não chegámos a acordo, o que foi uma pena porque eu adoro empreendedores que não nasceram em fábricas de unicórnios, e acabei por fechar negócio com outro empreendedor que somente tinha a vantagem de ser honesto. Algo que, confesso, aprecio em geral nas pessoas.
A segunda vez que ouvi a frase “desconheço o que são lucros excessivos” veio da boca da Cecília Meireles, naquele debate semanal que faz com a Mariana Mortágua na SIC. A Cecília, como é “mais estudada” (sempre que possível uso expressões da minha avó) do que o empreendedor da relva, já conseguia definir o conceito de uma forma mais apelativa e recorrendo a palavras complexas.
Segundo ela, as empresas servem para dar lucro, logo, não havendo limite ao lucro, quanto mais melhor porque é exactamente para isso que lá estão. E todos ganham: os accionistas, os investidores, o Estado com a receita fiscal, etc. Portanto, “lucro excessivo” é um conceito absurdo e uma impossibilidade económica, dizia a Cecília do ex-partido do táxi.
Aquilo que a Cecília quer dizer, passando para linguagem que todos entendemos é que, se o Gonçalo Ramos desatar a marcar 10 golos em cada jogo do Benfica, ninguém vai dizer que ele está a marcar golos a mais: é esse o trabalho dele, e não há nenhuma regra que diga que a partir de cinco já se torna desagradável. Portanto, eu percebo a semântica da Cecília, e entendo o carapau que nos tenta vender em nome de um robalo.
Mas afinal qual é o problema? O problema é que o conceito de “lucro excessivo” não é acompanhado de outro conceito, que gostava de introduzir aqui, que é o do “aumento de salário excessivo”.
Vou dar aqui um exemplo, como fazia o meu professor de antenas, quando percebia que a malta já não ia lá só com expressões de rotacionais no quadro.
Para este quadro, trago a Sonae, até porque o seu administrador financeiro, João Dolores foi a terceira pessoa que eu ouvi a dizer, desta vez ao Observador, que “não reconhecemos o conceito de lucros excessivos“.
Imaginemos que no Continente, por causa da inflação, que a Sonae não controla, sobem os preços ao cliente. Vamos assumir que, com o maior fluxo de dinheiro gerado, depois de cobertos os custos dos fornecedores, a Sonae decide aumentar, em igual ordem de grandeza, os salários aos seus funcionários. Dessa forma, o maior lucro (inesperado) criado pela inflação, é distribuído não só pelos accionistas e Estado, na receita fiscal, mas também pelos trabalhadores. Ou seja, todos, mesmo todos, ganham com a subida dos preços. Não sei se conhecem algum caixa do Modelo que tenha comprado um Tesla recentemente.
Como o ramalhete não ficava completo com políticos do sistema e empresas de distribuição, veio Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Bancos e antigo administrador do Novo Banco, dizer ao Expresso que também não reconhece o conceito de “lucro excessivo”. Acrescentou ainda que os bancos não estão no negócio da caridade e quanto maior for o lucro, mais investidores conseguem captar.
Aqui sou obrigado a concordar com o amigo Vítor. Os bancos não estão no negócio da caridade. Aliás, vindo de um ex-administrador ligado ao BES, esta frase é tão cristalina e pura que deveria ser emoldurada: a caridade bancária fica ao encargo dos contribuintes. Aos bancos compete aumentar juros – quando a Lagarde diz –, cobrar taxas por serviços que não fazem, não dar juros que prometem ou, aqui e ali, sacarem o dinheiro todo das poupanças dos clientes (não fiques aborrecido Rendeiro, também já não ouves).
Quando a coisa aperta e a crise se instala, os contribuintes são chamados a pagar, cabendo a administradores, como o Vítor, a espinhosa tarefa de distribuir prémios de gestão pela administração. Repare-se que eu falei em caridade dos contribuintes para com a banca, mas não fui factual nem exacto. Caridade é voluntária; no caso dos contribuintes foi mesmo roubo.
Vamos então imaginar que a EDP, a GALP, as empresas de águas e saneamento, as Telecom, os bancos, e todas as outras que fazem parte do cabaz mensal, utilizavam os lucros gerados pela inflação em forma de aumento salarial para os trabalhadores. Eu disse trabalhadores, porque os colaboradores normalmente sujam pouco as mãos.
Estão a ver o cenário? Todos pagávamos mais pelos produtos, mas tínhamos aumentos reais. E com a parte da receita fiscal, o Estado faria o mesmo no lado da Função Pública. Desta forma, subíamos todos, ainda que níveis diferentes, mas pelo menos haveria alguma distribuição da riqueza gerada.
Portanto, Cecília, João e Vítor, desta forma não seriam apenas vocês a desconhecer o conceito de “lucro excessivo”. E porquê? Porque como esse lucro seria distribuído por toda a gente, deixava de haver excesso. Eu sei, parece utópico, mas é mesmo assim.
Embora lucro excessivo não exista, o que a plebe que está a contribuir para isso quer dizer, quando vê a montanha de dinheiro que se forma do outro lado, é que já chega. Estão a compreender o grito?
O trabalhador que tem o mesmo salário há 10 anos e entra na bomba da Galp como quem vai a um spa de luxo, reza antes de abrir a conta da luz, paga mais 25% pela prestação da casa ou traz um saquinho do Modelo pelo valor do que costumava dar três, vai depois lembrar-se da palavra “excessivo” ao ouvir os lucros anunciados para essas empresas. A ele compete apenas pagar, empobrecendo, porque o salário estagnou. A quem não conhece o conceito de “lucro excessivo”, compete enriquecer, ainda mais, sem o reconhecer, obviamente.
Uma pessoa farta-se e acaba por não ter muita paciência para semânticas irónicas da Cecília, do João e ainda menos do Vítor.
Lucro excessivo é quando uma minoria enriquece à custa da exploração e empobrecimento da maioria. É dinheiro que cai do céu sem que as empresas tenham feito algo para isso, com a agravante de nem os próprios trabalhadores beneficiarem com esse lucro.
No fundo, lucro excessivo é uma forma de quem trabalha, e depende disso para viver, vos dizer: “deixem de ser filhos da puta e gananciosos”. Pardon my french, obviamente.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Quando o PS alcançou a maioria absoluta nas últimas eleições, imaginei que se seguiria um passeio no parque na Assembleia da República, e apenas, quando muito, alguma contestação nas ruas, uma vez que PCP e BE (principalmente o PCP) voltariam ao seu habitat natural.
Estava a vislumbrar António Costa fingindo querer saber das opiniões da oposição, ou da “maioria dialogante” como lhe chamou, e a seguir a sua trajetória de político hábil e pragmático. Deu um cheirinho destas suas intenções com o pacto de regime com o PSD em relação ao novo aeroporto de Lisboa (que vale zero e deve gerar apenas mais um ou dois estudos para um laboratório amigo) e o namoro ao Livre e PAN na discussão do Orçamento de Estado.
António Costa, primeiro-ministro de Portugal.
Aquilo que eu não esperava, depois do autêntico show do ex-ministro Eduardo Cabrita na anterior legislatura, era ver António Costa a dar tiros nos pés com tantos elementos tóxicos no novo elenco governativo. É certo que a oposição precisa destes casos como de pão para a boca, considerando que o seu combate no hemiciclo está perdido à partida. Obviamente, no meio da gritaria, misturam-se “casos” que não são casos – como o do ministro Pedro Nuno Santos – com outros que, de facto, nos deixam perplexos.
O governo de maioria do PS tem estado a explicar-nos, palavra por palavra, por que se devem evitar maiorias. De repente, “incompatibilidade” passou a ser a palavra procurada no curriculum vitae como mandatória para uma promoção neste governo. Costa olha para a esquerda, e depois olha para a direita, e só vê drones kamikazes (outro conceito curioso) saídos dos seus próprios ministros.
Manuel Pizarro foi nomeado ministro da Saúde, enquanto era sócio-gerente de uma consultora na área da saúde. Evitou-se assim aquela imagem já batida da raposa a tomar conta do galinheiro – diria eu que seria como se um médico, patrocinado por farmacêuticas, nos andasse todas as semanas a vender injecções em horário nobre nas televisões… Imaginem apenas o escândalo que seria… Felizmente, nunca vimos algo sequer parecido…
Manuel Pizarro, ministro da Saúde.
Duas semanas depois de alguém dar com a incompatibilidade, e de fazer todas as manchetes, Manuel Pizarro lá foi passar a empresa ao sócio. Portanto, muda-se um papel, os ganhos continuam e a incompatibilidade também. Mas, legalmente, tudo está bem. Aliás, só há problema porque alguém fez o trabalho de casa… Em princípio, isto seria coisa para passar sem grandes alaridos.
Vejam o caso de Carlos César, por exemplo. Até ao terceiro familiar encaixado no aparelho, ninguém deu por ela. A partir do quarto e até ao sétimo, já se fizeram umas caixas e ouvimos alguns gritos. Depois do oitavo, já passa a procedimento legal e aceita-se como algo normal. É um pouco como o funk brasileiro: ninguém gosta, mas todos batem o pé a pelo menos três músicas.
Entretanto, Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, seria responsável pela gestão de fundos comunitários a que a empresa do marido acedeu. Nada ilegal, ao que parece – e, segundo alguns comentadores, um caso perfeitamente normal, porque, num país como Portugal, com um tecido empresarial tão pequeno, um empreendedor não pode deixar de concorrer a fundos europeus só porque tem família no Governo.
Esta frase faz-me logo pensar que o Governo é uma grande família, e que, nem que seja em segundo ou terceiro grau, ter ministros na família é algo absolutamente comum para 10 milhões de portugueses. A forma como uma parte dos comentadores políticos tenta normalizar aquilo que, à vista do comum dos mortais, é uma cunha sem fim, leva-me as rugas aos cantos dos olhos, de tanto franzir a testa de estupefacção.
Quando apareceu Miguel Alves, o secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, injustiçado pela corte lisboeta, lá longe em Caminha, pensei que tínhamos chegado ao pináculo. Um argumento muito bom, uma excelente produção, disparates ditos em catadupa. Tudo para ser um sucesso de bilheteira. Costa nomeou para seu adjunto um rapaz que é arguido em dois processos de corrupção. Um deles é a Operacão Éter, onde, juntamente com o ex-presidente do Turismo do Porto e Norte, está a ser investigado pelo Ministério Público por contratos ilícitos, corrupção e abuso de poder com autarcas socialistas.
Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial
Em cima disto, desconfia-se que fez uns ajustes diretos na aquisição de material informático com outras autarquias do Norte (Operação Teia), e ainda há um adiantamento de 300.000 euros da câmara de Caminha a uma empresa para construir um centro que não está bem explicado.
Portanto, temos aqui um cv excepcional para andar no bolso de António Costa. Para se defender, Miguel Alves foi à página 4 do manual escrito por Pinto da Costa: desde logo, está inocente e, como é óbvio, sente-se perseguido pelo centralismo de Lisboa. É o tipo de argumentação que funciona no mundo da bola, onde a paixão move os cérebros. No mundo da política já não será bem assim. O melhor que a plebe consegue fazer é encolher os ombros, dizer que “os políticos são todos iguais a roubar” e, em dia de eleições, não ir votar. Mas acreditar na inocência, quer dizer, também já é pedir demais a quem anda a contar migalhas.
Entre todos os tiros nos pés que o PS deu no último mês, este parece ser, de facto, o mais grave. É tão insustentável para o Costa que até duas deputadas do PS, com presença habitual no comentário televisivo, já rasgaram o camarada Alves de cima a baixo. E como se não bastassem os processos para a gravidade da coisa, a defesa de Miguel Alves – no grito arrogante contra a corte de Lisboa e a vitimização de quem vem do interior do país – é uma cereja difícil de rejeitar. Aplausos de pé e saída triunfante, deixando Costa com a jogada seguinte.
Miguel Alves, secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro.
Pensava eu que estava feito o mês… Uma certa dose de escândalo, incompatibilidade, alguma corrupção, dinheiro desviado, epá, tudo o que uma pessoa precisa para escrever: MAIORIAS NÃO SÃO BOAS.
Mas não, voltei a enganar-me.
Antes de ver o Costa começar a usar aquela ginga de cintura para novas danças contorcionistas, eis que a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva – ela própria filha de um antigo ministro (acontece, se um pescador leva um filho para o mar, porque não pode um ministro levar um filho para o ministério?) – contrata um assessor de 21 anos, recém-licenciado, pela módica quantia de 4.000 euros mensais. Tiago Cunha, é o nome do jovem premiado e já faz sozinho a piada que tinha para aqui meter: nunca trabalhou e, ao que parece, identifica-se como “ocasionalmente estudante de Direito” tendo concluído recentemente (julgo) uma licenciatura de três anos.
Dirão os defensores das oportunidades aos mais jovens que não podemos discriminar por idade. É verdade. Eu e o meu filho, só para dar um exemplo, estamos a ver uma série sobre um puto prodígio que aos 11 anos já tinha chegado à universidade e era um cientista fabuloso. É uma história maravilhosa. Só que é ficção, estão a ver?
Mariana Vieira da Silva, ministra de Estado e da Presidência.
O Tiago Cunha pode ser o rapaz mais inteligente do planeta, e daqui a 10 anos chegar a primeiro-ministro, depois do governo do Ventura cair. Mesmo assim, não invalida a simples questão de entender como é que o primeiro emprego de alguém, sem qualquer experiência profissional relevante, é o de “assistir” um ministro. Se a assistência for algo como recolha de cafés no Starbucks e, aqui e ali, umas encomendas de pastéis de nata, tudo bem… Nesse caso, pergunto então apenas se a UberEats não seria uma opção mais económica.
Agora, se de facto é suposto o rapaz trazer alguma mais-valia que justifique os 4.000 euros brutos, não estamos perante uma daquelas situações em que o abuso, a cunha e o desperdício de dinheiro público, estão ali a bater no escandaloso?
É que, para colocar algum contexto nesta história, no artigo que há dias aqui escrevi sobre os professores, recebi algumas críticas por dizer que o salário em topo de carreira era mau (3.400 euros brutos ao fim de 40 anos de trabalho). Perante este caso do Tiago Cunha, tenho de facto que me retractar. Não é mau; é péssimo.
Dava um dedo, daqueles que se usam menos, para beber um café com o Cabrita e perguntar-lhe o que acha destes clones todos. O homem deve andar a rir-se há um mês, e parecendo que não, todos precisamos de alguma alegria para lidar com a corrupção e abuso de poder a que as elites nos vão habituando.
Mas, no fim, continuamos a ser, nós, os entalados. Continuamos apenas a assistir.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Para quem ainda tinha dúvidas sobre o conto do “estamos todos no mesmo barco“, que nos andam a recitar desde 2020, eis que a recente visita do chanceler alemão à China eleva a ironia ao nível diplomático.
Portanto, temos Olaf Scholz a visitar Xi Jinping, poucas semanas depois de o líder chinês ter dado uma nova roupagem à Ditadura. Julgo que já podemos dizer isto assim, com a palavras toda e com a maiúscula no D. Mas façamo-lo, ainda assim, em tom suave, para evitar cortes súbitos na electricidade em Portugal – e, se calhar, no Mundo. Não queiramos ter essa responsabilidade.
Mas o Olaf foi lá e não foi só. Levou na bagagem os presidentes executivos da BMW, da Volkswagen, da Bayer e da BASF, entre outros, que pela China-amiga espalharam fábricas. O chanceler foi, portanto, criticado internamente, na Alemanha, e até também por alguns parceiros europeus. Aliás, os mesmos que já tinham criticado o governo alemão pelos 200 milhões oferecidos às empresas para que, no actual cenário, aguentassem o choque da inflação nos custos energéticos.
Entretanto, a também alemã Ursula von der Leyen – sempre ela na parte de leão de tesourinhos deprimentes –, discursou em Bruxelas alertando para a lição que o Ocidente tinha aprendido com a Rússia e o erro que não repetiríamos com a China.
Na altura, escrevi aqui no PÁGINA UM que a Ursula não deve ter lido os jornais dos últimos 20 anos e, provavelmente, ainda não saberá que as grandes multinacionais europeias (e americanas) há muito que instalaram os seus centros de produção pela China. A dependência ocidental, neste momento, não é um risco, uma ameaça ou um receio futuro. É um facto. Já aconteceu quando os donos do capital quiseram aumentar as suas receitas a troco de mão-de-obra barata.
Quando Bruxelas começa a gritar, teoricamente em nome de todos os membros, que a China não é um parceiro de confiança, eu só tenho de começar a rir… até me lembrar que, hélas, eu também trabalho para chineses.
E quando Nanci Pelosi vai a Taiwan repetir o número ucraniano, oferecendo ajuda militar na defesa da terra longínqua, caso a China resolva dar um abraço mais apertado, eu fico com a certeza de que esta gente sabe o que faz.
A União Europeia sabe que as suas multinacionais estão espalhadas pela China. Os Estados Unidos sabem que oferecer ajuda a Taiwan é hostilizar um dos maiores mercados do Mundo.
Na verdade, embora fosse mais fácil pensar que esta gente está apenas de cabeça perdida, eu acho mais razoável pensar que sabem mesmo o que estão a fazer: empobrecimento para os europeus, mas, sem grande réstia de dúvida, numa estratégia concertada.
Ora, os alemães não estão para isto. Sabem que a sua Economia depende fortemente das exportações e, nesse cenário, ninguém pode desprezar o mercado chinês. Por mais conferências cheias de intenções de Ursula von der Leyen, ou dessa aberração que dá pelo nome de Josep Borrell, onde se grita por mais sanções à Rússia ou pelo alargamento da desconfiança à China, os alemães, esses, decidem o seu rumo.
Ursula von der Leyen
E fazem-no a solo, defendendo em primeiro lugar os interesses do seu povo: seja o aquecimento das casas, a proteção aos empregos ou a garantia de que se desviam da recessão.
Por ser a Alemanha a maior Economia da Zona Euro, estas posições fora da “concertação” de Bruxelas acabam por deixar os restantes países numa posição de fragilidade.
Assim, num dia vemos Ursula von der Leyen exigir uma posição chinesa no conflito da Ucrânia – e que seja, obviamente, uma forte condenação à Rússia; e, no dia seguinte, está Olaf Scholz a tentar vender BMWs ao Xi Jinping, pedindo-lhe que diga qualquer coisa sobre a guerra para que não o chateiem muito no regresso a Berlim.
Os alemães são, de facto, os únicos que se estão a afastar da loucura do “as long as it takes“. Pressionados internamente por sindicatos e trabalhadores, o seu Governo segue um rumo autónomo, ignorando o que os parceiros europeus querem. Estão preocupados na defesa do seu povo.
Numa frase, os alemães estão cansados do jogo de marionetes em que a Europa se colocou relativamente aos Estados Unidos, e optaram por seguir a solo. Estarão na sua fase Yoko Ono, se é que me entendem.
Não estamos no mesmo barco. Nunca estivemos.
Aquilo que se vê é a maior parte dos governantes europeus a estarem apenas a contribuir para o empobrecimento dos seus povos. E alguns não estão para isso. A Hungria, a Sérvia e a Eslováquia já disseram que não têm alternativa ao gás russo, e portanto, vão continuar a comprar. Hungria e Sérvia são mesmo explícitas na amizade com Putin.
A França vai abrindo porta ao negócio, dizendo que é altura de estabelecer um acordo de paz e, nas conferências de imprensa, tenta Macron fazer aquele papel clássico dos estadistas franceses em tempo de crise: tentam assumir um papel de liderança, apesar de ninguém lhes ligar, esperando para ver o que dizem ingleses e alemães.
Entretanto, Portugal e a maior parte dos outros desgraçados vão seguindo o rio, acatando ordens, esperando por bazucas e vendo se a coisa no Donbass pára a tempo de não rebentar os próximos quadros de apoio comunitário, em que a Ucrânia parece um sorvedouro de divisas.
Voltando à China: no último congresso, este país tornou-se uma ditadura capitalista, ainda mais musculada. Querem esta guerra tanto como eu. Para Xi Jinping, a paz significa mais negócios; logo, a paz deve imperar. Sabe ele, como nós, que a China tem os mercados na mão. Seja pelas dívidas externas, pelas fábricas do Ocidente, seja pelas posições em empresas públicas europeias (ainda agora ficaram com uma fatia do maior porto da Europa, o de Hamburgo), pela produção com mão-de-obra barata ou pelo gigantesco mercado para exportações.
Bem pode, assim, vir Ursula gritar com Xi para que escolha um lado nesta guerra. Bem pode Nancy Pelosi ir fazer marketing bélico a Taiwan.
Xi fará o que quiser, ajudará quem quiser e falará sobre o que quiser. E, no fim, se quiserem, ele ainda deixa que lhe vendam uns BMWs, lhe peçam para produzir uns iPhones ou construir um Airbus mais barato. Certo é que irão lá todos bater à porta.
Agora os alemães, depois os outros. Até porque, sejamos pragmáticos: a solidariedade à custa do empobrecimento é um conceito nobre e válido, mas dura pouco quando o frio aperta e a fome desperta.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Há pelo menos 10 anos que escrevo com alguma regularidade sobre o tema dos professores em Portugal. Do congelamento das progressões ao desmembramento da carreira. Do que antes era uma profissão de referência, respeitada e ambicionada até ao ponto em que estamos hoje, com a escola pública seriamente ameaçada.
Começo por repetir algo que me parece coerente para um país que quer pertencer ao Primeiro Mundo: médicos e professores são os pilares de qualquer sociedade civilizada. Os primeiros, porque nos deixam o coração a bater; os segundos, porque formam as restantes profissões.
Sempre que se anuncia nova greve da Função Pública, dos professores especialmente, junta-se um coro de críticas de Norte a Sul do país, como se um bando de privilegiados tomasse as ruas em protesto. Emprego para a vida, 25 horas de trabalho, salários garantidos ou progressões automáticas – estes são alguns dos critérios utilizados por quem desdenha esta classe profissional e não lhes reconhece o direito à luta por melhores condições laborais.
Tenho uma opinião absolutamente oposta, e nos dias de hoje pergunto-me: quem é que quer ser professor em Portugal?
Com todo o respeito pelos outros profissionais, mas acho mesmo que ser professor no nosso país é hoje um caso de paixão e gosto pelo ensino. Racionalmente não pode ser outra coisa qualquer. É mau. É muito mau ser hoje professor em Portugal.
Bem sei que a destruição da carreira e, consequentemente, da Escola Pública é responsabilidade dos sucessivos Governos, mas custa-me ver a forma como a comunicação social pouco ou nada faz para levantar a voz em defesa desta classe.
Dizia ontem uma professora em protesto que o principal investimento de um país – de Primeiro Mundo, acrescento eu – tem de ser na Educação, porque isso é que garante o seu desenvolvimento futuro. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) relativos a 2020 revelam que Portugal está no meio da tabela com um pouco menos de 4% do PIB em investimento público na Educação. Sem grande surpresa percebemos que os países nórdicos estão no topo da lista. Mas há ainda casos como os da África do Sul, Costa Rica ou Índia, cujo investimento público na Educação é bastante superior ao português, sendo qualquer um deles referências de desenvolvimento nas suas regiões.
A Índia fornece engenheiros ao Mundo, a África do Sul será provavelmente a maior potência de África e a Costa Rica é um dos países mais desenvolvidos da América Central e com uma das economias mais fortes na região. Isto significa que, independentemente das dificuldades de cada país ou do tamanho da sua Economia, a escolha da Educação como forma de melhoria futura é sempre uma boa opção política.
Pessoalmente, nunca percebi como é que não é a prioridade de cada nação.
Resolvi perguntar a vários professores, do ensino pré-escolar ao secundário, quais eram as suas condições laborais e, honestamente, fiquei deprimido e com pouca vontade de escrever.
A situação é, afinal, muito pior do que eu imaginava ou daquilo que ia lendo, de forma aleatória, nas notícias dos diferentes órgãos de comunicação social. Entre congelamento da carreira ou pessoas presas nos escalões, passam-se décadas com salários absolutamente vergonhosos. A isso juntam-se os milhares de precários, com anos e anos de recibos verdes e outros tantos que mal conseguem ter uma vida familiar equilibrada, tal é a mudança de zona a que estão sujeitos. Há ainda quem pense que é uma profissão de regalias e bons salários, e eu pergunto-me, cada vez mais, de onde se construiu essa ideia? Qual a parte do verdadeiro inferno a que os professores estão sujeitos que não é ainda claro para todos?
Dir-me-ão que não é apenas o salário que faz a carreira, ou o bom professor, algo que eu tenderia a concordar se esse não fosse o primeiro preconceito da discussão.
O professor, como qualquer profissional, vende a sua força de trabalho em troca de uma recompensa, que se espera justa. Quem só tem o seu trabalho como meio de sustento, espera vendê-lo por um valor que lhe permita ter uma vida de qualidade. Reparem: qualidade, escrevi eu. Não escrevi digna, mínima ou satisfatória. Escrevi de qualidade, porque deve ser esse o nosso objectivo enquanto trabalhadores. Vender o nosso conhecimento a troco de uma vida descansada, boa e de qualidade. Não uma vida de aflição e contas.
Se em cima disto colocarem a importância da profissão – espero que, pelo menos nisso, tenhamos um consenso alargado –, então é fácil perceber que os salários são, de facto, muito baixos.
Vejamos os exemplos que recolhi.
T é educadora de infância, tirou uma licenciatura e um mestrado, e espera um dia entrar para os quadros do Estado. Recebe menos de 820 euros líquidos e vive num dos subúrbios no norte de Lisboa. Reparem que o nosso país está envelhecido e as políticas de natalidade são a quase inexistência de creches públicas, fortunas exigidas por cada filho nos privados e salários pouco acima do mínimo legal para educadores com formação superior. É uma absoluta calamidade para o país e um garrote para os profissionais.
L é formada pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Durante 20 anos, foi professora contratada e levava para casa cerca de 1.000 euros, trabalhando, por vezes, em duas ou três escolas ao mesmo tempo. Agora, ao fim de 24 anos de ensino, entrou para o quadro e ficou bloqueada no quarto escalão, pois há quotas para a passagem ao seguinte. Recebe 1.300 euros líquidos, ao fim de quase um quarto de século como professora.
LR é professora no oitavo escalão, tem 35 anos de serviço e vai-se aposentar antes de chegar ao topo da carreira. Recebe 1.700 euros líquidos e desconta cerca de 1.100 euros para o IRS, pensão e ADSE. Se LR quisesse hoje, ao fim de quase quatro décadas a trabalhar, alugar um apartamento no centro de Lisboa, não lhe sobraria dinheiro para comer.
Este é um dos dramas dos baixos salários em Portugal. O custo de vida acompanha o crescimento das capitais dos países mais ricos, mas aquilo que recebemos ao fim de cada mês aproxima-se cada vez mais dos níveis do chamado Terceiro Mundo. Portugal é hoje o terceiro mais pobre da União Europeia e, para isso, como se percebe, contribui o empobrecimento da classe média.
I tem 25 anos de trabalho e subiu recentemente de escalão. Disse-me que, “mais migalha, menos migalha”, receberá 1.400 euros líquidos. A expressão usada é feliz, porque é isso que aqui se discute. Migalhas. Os professores que dão 25 horas de aulas e usam o tempo da família para preparar o dia seguinte, corrigir testes e cumprir a burocracia que o ministério lhes exige, são pagos com migalhas. Felizmente para I, que vive numa ilha dos Açores, a especulação imobiliária ali ainda não atingiu a selva que se verifica em território continental e, como tal, sobra-lhe mais salário para viver. É, aliás, uma das razões porque optou ser professora na Região Autónoma.
Tal como I, também AA vive numa ilha dos Açores e durante quase 20 anos trabalhou no ensino público. Tirou uma licenciatura, um mestrado e uma pós-graduação. Desistiu da carreira quando o salário líquido mal chegava aos mesmos 1.400 euros, porque, a dada altura do processo, compreendeu que não era paga dignamente para o trabalho que fazia e não existiam grandes perspectivas de evolução ou mudança. Fez como vários professores, que acabam por emigrar, mudar de área ou procurar outras fontes de rendimento.
A falta de professores não se prende apenas com os que vão envelhecendo e que vão para a reforma. Muitos, ainda com alguns anos de ensino pela frente, optam por sair das escolas na procura de melhores condições e remunerações mais justas. E não: mesmo que a realidade do país seja, hoje em dia, miserável, convenhamos que pagar 1.400 euros a um professor ao fim de 20 anos de trabalho não é bom. É uma vergonha. São pessoas absolutamente essenciais na sociedade, com uma profissão de desgaste, responsáveis pelo sucesso ou insucesso futuro das mentes que trabalharão no país, e que, não nos esqueçamos, passaram entre 17 a 20 anos da sua vida em formação, para cumprirem o seu papel no mundo do trabalho.
J tem 12 anos de trabalho. Em linguagem do Ministério da Educação, “começou ontem”. É contratada para dar aulas ao segundo e terceiros ciclos. Recebe, ao fim de mais de uma década, 817 euros mensais. Não lhe perguntei como se vive com a actual inflação com 817 euros, porque tive vergonha.
Aliás, não perguntei a muitos destes professores coisas que queria saber por achar que seriam um atentado à dignidade. Eu sinto pena de quem investe na própria educação e, ao fim de anos e mais anos no mercado de trabalho, é compensado com pouco mais do que o salário mínimo. É uma absoluta desgraça para os trabalhadores, mas é um prejuízo ainda maior para o país.
O que impede um professor de emigrar? A idade? A família? As saudades? Receio? Fico admirado, seja lá qual for a razão, pelos que ficam e vão lutando pela Escola Pública. A eles devo também o meu percurso profissional.
Mas sobram-me interrogações a partir das histórias que me vão contando. Como é que um professor pode ser um bom profissional sendo pago com migalhas? Como é que alguém pode estar do outro lado da barricada e não os apoiar nesta luta mais do que justa?
Se o Governo conseguiu fechar escolas por causa da covid-19, quando tal não era necessário, como nos explicou a Suécia, espero que ninguém use hoje, contra os professores, o argumento de que as crianças estão a perder matéria.
Agora, meus amigos, é que era altura de irem bater palmas à janela – depois, claro, de engrossarem as demonstrações na rua.
Entretanto, B anda nisto há 16 anos e passou agora ao quadro. Leva 1.275 euros para casa.
R tem uma situação ainda mais problemática, pois nem horário fixo tem. Estudou e aperfeiçoou um instrumento musical durante 39 anos e, agora, fica sujeito todos os anos a que uma escola o contrate e pague à hora, por uma tabela que ignora o nível de experiência do educador. As próprias regras fazem com que o tempo de serviço nem sempre seja contado. Anda a “virar frangos” há 24 anos, mas para o Ministério apenas contam 13.
C tem 32 anos de serviço e, pelo meio, obteve um doutoramento. Como prémio pelo investimento extra na sua educação, o governo português recompensa-a com uns extraordinários 1.570 euros líquidos, resultado da colocação no sétimo escalão. O congelamento da carreira retirou-lhe a hipótese de chegar ao topo dos escalões.
S dá aulas desde 1995 e entrou no quadro em 2004. Está agora no quarto escalão e recebe menos de 1.400 euros, ao fim de 27 anos a trabalhar. Seria uma piada se não fosse trágico. Diz agora que tem de ir para a lista de espera até que surjam vagas no escalão seguinte. Portanto, digo eu, qual é a motivação para se ser extraordinário se a progressão é uma miragem?
Como é que, ao fim de quase 30 anos a trabalhar, uma pessoa se pode realizar com dois salários mínimos? Não percebemos todos que é esta a base do problema? Que salários dignos e justos para os professores deveriam ser uma prioridade do país? Onde está o Éden apregoado aos quatro ventos pela oposição?
Afinal, o que queremos nós? Um sítio cheio de miúdos que abandonam a escola e vão servir à mesa nas tascas gourmet de Lisboa ou nos hotéis do Algarve, ou um país onde ir para a universidade seja algo banal, normal e acessível a todos?
Eu sei que as histórias do Bill Gates, Steve Jobs e demais génios milionários inspiram as narrativas de que “a Escola não é tudo”. Mas não, meus amigos, a escola é mesmo tudo. Para a esmagadora maioria das pessoas, que criam mais valias, trazem desenvolvimento, geram empregos ou produzem novos conceitos, a escola é mesmo a base de tudo. Não há desenvolvimento sem escola, por mais tik-tokers ou youtubers que digam o contrário.
Continuemos.
AL começou a dar aulas quando Vata jogava no Benfica, ali pelos idos de 90, com o Sven-Goran Eriksson. Tirou uma licenciatura, um mestrado e um doutoramento. Antes de Bolonha, quando estas coisas demoravam três vidas. Está no penúltimo escalão da carreira e vê o Estado “rapar-lhe” cerca de 40% do vencimento, resultando em 1.930 euros no bolso. O filho, como muitos da sua geração, tem empregos precários e AL ainda hoje tem de o ajudar, pelo que ter dois empregos é algo normal na sua vida. Trabalha muito mais do que as horas que são idealizadas para a classe, pelo menos na opinião pública, e diz que está cansada de ouvir “dizer mal dos professores e a PQOP”. Achei por bem citá-lo, porque algum vernáculo ajuda a entender os estados de espírito.
SJ é professora de Física e Química há 25 anos e, como ter de perceber de Física não é castigo suficiente, está no quarto escalão. Recebe 1.417 euros líquidos. É mais um daqueles casos onde metade da carreira contributiva já passou, continuando presa a um salário baixo e com um longuíssimo caminho para o topo bloqueado, como resultado do congelamento da última década.
AC tem uma situação semelhante à de AL. Conta 36 anos a dar aulas, acresce um doutoramento e 1.900 euros no bolso. Qualquer coisa como 40% do ordenado bruto são levados pelo Estado. A sensação de que, a partir de certa altura, mesmo, mesmo lá no fim, o salário bruto até pode ser interessante para a realidade portuguesa (superior a 3.000 euros), esfumou-se: a carga fiscal faz o favor de manter o empobrecimento.
AM chegou ao topo da montanha. Está no décimo escalão, recebe 2.000 euros líquidos e paga cerca de 1.400 em impostos. Para a direita portuguesa, e habituais opositores das lutas dos professores, é quase uma milionária. Na Europa civilizada estaria abaixo do salário mínimo. Tem 41 anos de carreira, 64 de vida. Tem literalmente uma vida de trabalho e, a pouco tempo da reforma, não conseguiria pagar um T2 no centro de Lisboa ou do Porto, e viver confortavelmente, aos preços de hoje.
Depois de ler estes relatos, que tentei resumir o melhor que consegui, fiquei com a sensação de não sabermos bem do que falamos quando nos queixamos ou insurgimos contra as lutas dos professores. Onde estão a regalias de pessoas que trabalham a vida inteira a troco de baixos salários, vidas nos subúrbios ou famílias criadas em regime nómada, sem saber onde se dará o acampamento do ano seguinte?
Grande parte do país está na lama, bem sei. Muitos de nós vivem mesmo com salários mínimos ou no limiar da pobreza e, por isso, tendemos sempre a nivelar por baixo.
Para quem recebe 700 euros, ver protestar um professor que, ao fim de 20 anos de trabalho, recebe o dobro, pode parecer fútil ou supérfluo. Mas não é.
Parte do nosso problema, enquanto sociedade, é exactamente esta necessidade de colocarmos a fasquia na lama. Viver com um salário mínimo é, de facto, um atentado social e um factor de estagnação. Mas ver que, ao fim de três décadas de carreira, um trabalhador, professor neste caso, leva para casa 1.500 euros, não é diferente. É também uma catástrofe com a agravante de trazer impacto no futuro do país.
Não há evolução sem Educação e não há Educação sem Escola Pública: isto é um princípio básico de qualquer sociedade civilizada. A luta dos professores é, no fundo, a luta de todos. De cada pai, de cada estudante, de cada pessoa que quer viver num país mais justo, desenvolvido e, porque não dizê-lo, mais rico e próspero.
Se todos percebermos que os professores, mais do que lutarem por eles, estão a lutar por um país melhor e, de certa forma, a beneficiar toda a sociedade, talvez pudéssemos dar uma ajuda onde de facto podemos fazer a diferença.
Na rua. Na solidariedade.
Esta luta também é nossa. Os professores não podem ficar sozinhos.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
Nota: O PÁGINA UM teve acesso a diversos recibos de vencimento dos exemplos relatados pelo Tiago Franco, confirmando assim a veracidade dos valores indicados.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Não sou grande coisa em balanços. Desde logo porque me falta paciência, ou maturidade, mas, essencialmente, porque raramente consigo estar em silêncio comigo próprio para pensar no que foi feito e no que falta fazer.
Se vos vir no LinkedIn, malta da ioga e da meditação, vou largar uns quantos #kudos. Entrar naquele buraco no fundo da mente, carregado de silêncio e paz interior, é para mim o equivalente a encontrar o fim do arco-íris.
Como dormir também é arte que não domino, escolho transpirar: uma, duas, três ou quatro horas por dia. É o mais próximo que consigo ter de pensamentos interiores.
Entro no campo antes das oito da manhã. Tenho sono, o café ainda não deu aquele chuto do costume e começo a pensar se devia continuar a comprar Starbucks. Entretanto, a bola começa a saltar.
O meu parceiro, alguém que conheci há três minutos, diz-me que jogava ténis e que está a tentar adaptar-se ao padel. Ainda não me correu a primeira gota de suor nas costas e já sei que a percentagem de bolas na rede andará nos 65%.
Mas tudo bem. Já larguei o latino que vivia comigo há muito. Agora sou aquele gajo que mete o relógio dos velhos, conta os batimentos cardíacos e fico feliz apenas pelo desporto. A cada bola na rede digo um f***-se interior, e cá para fora repito um “tranquilo, a próxima é melhor”. Minto e sorrio tão bem que podia ser escandinavo.
Aos poucos vou-me desligando do jogo e começo a fazer uma ronda pelos temas da vida. No fundo, o mais parecido que consigo com um balanço.
A minha avó disse-me em Setembro que conduzisse com cuidado no regresso à Suécia porque não queria morrer sem me ver. E desatou a chorar. Ela chora sempre que me vê, há anos que é assim. Mas nunca refere o momento da morte como inevitável, porque, como já escrevi aqui, ela decide quando quer ir. Não são os outros. Durante uma semana não pensei em mais nada e de vez em quando, volta-me este pensamento e o peso na consciência de aqui estar, neste fim de mundo.
Digo-lhe pela quarta vez que não pode estar no meio do campo senão, nem apanha as da rede nem as do vidro. Passo o tempo a correr para apanhar as bolas nas costas dele.
Apesar de tudo, estou contente por ir chegando a cada uma delas. Tenho 45 anos, nada me dói, dou à raquete pelo menos duas horas por dia. Faço o meu balanço médico enquanto o ouço a criticar-se de forma violenta. Digo-lhe que não se preocupe, que não tarda está a atinar com aquilo. Por dentro, continuo latino e fervo por todo o lado.
Ligo a idade com o trabalho. Lembro-me de uma entrevista que fiz numa empresa de telecomunicações, aos 23 anos, onde a entrevistadora me disse que tinha concorrência de miúdos de 21, e acrescentou: “o que andou a fazer da vida, sr. Tiago?”. Era um velho de 23 anos em Lisboa. Hoje, sou ainda mais velho e todas as semanas faço entrevistas de trabalho, todas as semanas me são apresentadas novas hipóteses.
Bem sei que são realidades diferentes (necessidades da indústria sueca vs. portuguesa) e qualquer pessoa da minha área arranja emprego aqui, a dormir, mas, mesmo assim, sabe bem não ser excluído do direito a trabalhar pela idade.
O gajo faz uma jogada extraordinária e pede desculpa à dupla que enfrentamos quando, aqui para nós, devia dirigir as desculpas a mim, pelos 60 minutos anteriores. Volto a sorrir, agora com vontade. E ainda lhe meto um “vamos” pelo meio, para ele sentir aquele calor ibérico.
Voltam a voar bolas e eu lembro-me da conversa com o meu filho na tarde anterior. Dizia ele que sentia muita pressão na escola para ter boas notas, por causa de mim, e que ter-me como pai era cool, mas que seria muito difícil ter ainda mais sucesso.
O meu filho, cuja geração mede o sucesso pela aquisição de um Tesla ou qualquer coisa decidida por um tik-toker, acha que sair do país, ficar longe de amigos e família, a troco de uma vida que se espera melhor, é uma história de sucesso. Tentei explicar-lhe que somos cerca de cinco milhões de pessoas de “sucesso”, só de origem portuguesa (fora os demais deslocados), e muitos, onde me incluo, só procuravam uma vida boa no local de nascimento.
Em vez disso, acabamos por passar boa parte da vida, em sofrimento, e até solidão, para proporcionar algo melhor à família, que, entretanto, criamos. Será facílimo ele ter mais “sucesso”. Bastará que possa escolher ficar e ter uma vida boa no sítio onde criou raízes. Ou, pelo menos, que a razão para sair seja outra que não a busca de uma vida melhor.
Volto a olhar para o relógio e já não me apetece estar ali. Começo a pensar no supermercado. Há 15 dias que não meto lá os pés e hoje é um daqueles dias que tenho de vestir o fato do burro de carga. É isso ou dar vinho do Porto ao puto para jantar.
Agora vejo os preços dos produtos, faço comparações de quilos e litros. Olho para o recibo no fim como se fosse uma carta de amor. Gosto de me indignar, como se a solução dependesse de mim e não como se fosse apenas mais um neste xadrez de pagar e não bufar.
Estou farto de fazer contas. Estou mesmo cansado disso. Vim para cá para não ter de fazer contas e, de repente, tenho a Lagarde, o Putin, o Zelensky, o Biden e a von der Leyen a dizerem-me que tenho que voltar a fazer contas.
Desperto da meditação para lhe dizer que se desvie e apanho uma bola no campo dele, quando ele já estava todo esticado para a meter na rede. Quase, quase a terminar o balanço lembro-me do Isaltino, de novo a contas com a justiça por prevaricação e negociatas com uns privados da construção, numa daquelas parcerias público-privadas (PPPs) que não desiludem. Dinheiro público adjudicado diretamente a privados, sem concurso, para várias obras.
Tento uma víbora, mas o gajo do outro lado apanha, e fico com o sorriso do Isaltino na cabeça. Com toda a calma, apanhado pelos jornalistas no meio da rua, dizia a propósito deste caso que era preciso ter tranquilidade, deixar a justiça fazer o seu trabalho e que, obviamente, estava de consciência tranquila.
E tem razão, acrescente-se. Para qualquer um de nós, uma investigação do Ministério Público e a hipótese de irmos parar à prisão seria o fim da vida; para Isaltino é apenas uma terça-feira de trabalho: já tem experiência, sabe a morosidade dos processos, sabe todos os baldes de areia que pode meter na engrenagem. Foi assim antes, quando andou anos a ser investigado e julgado, depois de ter desviado dinheiro, acabando menos de dois anos na Carregueira; e será assim, agora, num crime que começou a ser investigado em 2011. Repito: 2011!
O Isaltino sabe que tem tempo de ganhar mais duas eleições, manter a aura do homem que “rouba mas faz”, reformar-se e, provavelmente, morrer antes de ter que rever os parceiros de sueca na Carregueira.
A bola volta a passar por cima dele, no corredor que devia defender. Estático, rodando a cabeça na minha direcção grita: “é tuuuuua!!!” Eu corro, digo alguns impropérios, estico-me todo para apanhar a bola e ouço um barulho nas costas – parecido com aquele que a minha sola faz à passagem das baratas. Fico esticado no chão, sem me conseguir mexer e com a mão na base das costas.
Levanto-me e caminho dobrado, entre vários ais e a lembrar-me em cada passo da fragilidade do meu corpo de 45 anos. Haverá cliché maior de velhice do que uma raquete esticada no ar seguida de um grito de dor nas costas?
Ainda nem tinha terminado o meu balanço, e já estava errado. Eis porque nunca os faço.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Por estes lados, onde me encontro, diz-se que, se a Alemanha cair, caímos todos. Isto é, se o motor da Europa parar, seguir-se-á o efeito dominó que nos deixará a todos numa situação de instabilidade. Ou mesmo esparramados no chão.
Nesse sentido, vejo com algum agrado o esforço que a Alemanha faz para manter a sua indústria a funcionar, injectando vários milhões em ajudas para o pagamento das energias.
França e outros membros da União Europeia ficaram particularmente furiosos com esta atitude individualista do governo alemão, furando directivas europeias e, de certa forma, financiando as vantagens competitivas das suas empresas.
Bem sei que não estamos habituados a colocar o nosso futuro em mãos alemãs, mas dificilmente alguém, que viva do seu trabalho, poderá criticar as opções do governo germânico.
De facto, uma coisa é decidir em Bruxelas um pacote de sanções à Rússia; outra, bem diferente, é aguentar a pressão interna quando os custos de produção disparam ou a energia fornecida não chega para os gastos. Os sindicatos na Alemanha não são para brincadeiras e a sua influência nas políticas do trabalho é bem real.
Portanto, o governo alemão decidiu o seu rumo e ignorou os parceiros europeus. E fez bem. Era o que eu diria se lá vivesse.
Parte da hipocrisia dos actuais dirigentes europeus passa muito por esta irritação, especialmente dos franceses, com as opções alemãs. Contudo, é bom que compreendamos uma coisa: as sanções não afectaram todos os países da mesma forma. A Alemanha tinha uma enorme dependência do gás russo. Outros países não.
É um pouco como as sanções que agora se impõem ao Irão por causa dos drones fornecidos à Rússia, depois da invasão, em Fevereiro, ter sido executada com equipamento comprado a diversos países europeus.
Ou seja, nós (europeus) fornecemos parte do armamento utilizado contra os ucranianos. E mesmo durante o período de guerra, financiámos os russos, através da compra de energia. Mas desatamos a distribuir sanções por quem queira fazer semelhante negócio.
A hipocrisia de quem nos governa chega a ser deprimente. Até na moralidade das negociatas queremos mandar.
Esta divisão europeia, cedo ou tarde, fará com que o apoio à guerra deixe de ser “as long as it takes”, como a nossa Ursula gosta de repetir.
A Alemanha é a maior Economia europeia e começa a trilhar o seu caminho. Há mais três ou quatro países com governos de extrema-direita que simpatizam com o regime de Putin. A Europa está dividida e, por mais discursos emproados em Bruxelas que von der Leyen faça, esta é a realidade.
Com a ajuda que Lagarde deu ontem – nova subida da taxa de juro –, deu-se mais um passo para o desespero das populações e um afastamento cada vez maior da solidariedade demonstrada quando a guerra só chegava pela televisão.
Entretanto, passámos a deixar o salário no supermercado, na conta da luz, nos combustíveis e na prestação da casa. Escrevi, há umas semanas, que a preocupação com a guerra dos outros deixa de existir, ou esbate-se na espuma dos dias, quando não sabemos o que meter na mesa para os nossos filhos. Ou sequer sabermos se ainda teremos mesa no dia seguinte.
Começam a aparecer os primeiros protestos, em diversos países europeus, contra a pobreza a que parecemos estar destinados.
Ninguém se quer sentar. Ninguém quer falar. Entre quem manda, a guerra parece não trazer dissabores. Putin tem apoio em partes da Europa, em África, no Médio Oriente, na América do Sul e na Ásia. China e Índia não se afastam – e depois do último congresso do partido comunista chinês, houve mesmo um apoio formal à Rússia.
Mesmo assim, a porta-voz da Casa Branca disse, na última conferência de imprensa, que os russos estão cada vez mais isolados. É uma visão do mundo muito própria consonante com quem chama “world series” à final de um campeonato de basebol entre equipas norte-americanas. É um mapa-mundo muito especial, que começa no Maine e termina na Califórnia.
O problema é que não é essa a realidade.
Putin recolhe apoios, forma novas parcerias, garante as ajudas para o “as long as it takes”, versão russa. Tal como Zelensky, que diariamente pede dinheiro à União Europeia e armamento aos americanos. De um lado e de outro há apenas o desejo de continuar e deixar que o Inverno faça o seu trabalho.
Entretanto, os ucranianos foram mandados para o século XIX e combatem o frio com lenha. Quase 20% da população quer negociações de paz. O recrutamento de mercenários e combatentes estrangeiros tornou-se um negócio próspero. O Kremlim foi bater à porta do regime talibã para pedir chefias militares. O ex-grupo terrorista, que passou a governo amigo quando Biden lhes devolveu o poder, está a dias de voltar a ser um inimigo. A insustentável leveza da hipocrisia nos jogos de poder e do cruzamento de interesses.
E como a coisa não está complicada que chegue, Joe Biden achou boa ideia afirmar que queria manter a vantagem militar sobre os chineses. Numa altura em que Xi Jinping deu uma demonstração de poder interno, mudando a constituição para se perpetuar no poder e tornar o seu pensamento doutrina inquestionável, Biden quer levar o Donbass um pouco mais longe e repetir a dose em Taiwan.
A China – que nunca mudou de regime, note-se – foi um parceiro óptimo nestas últimas duas décadas, produzindo tudo aquilo que a Europa e os EUA precisavam, com mão-de-obra barata. Ninguém quis saber de direitos humanos, de Taiwan ou do Tibete. Ninguém quis saber do regime. Ninguém quis saber da estabilidade, liberdade ou justiça. Quisemos foi produzir os nossos iPhones, aviões, carros e electrodomésticos a baixo custo. Quisemos manter o nosso estilo de vida à custa de trabalho escravo.
E agora, quando esse regime autoritário continua a ser o que sempre foi, a Europa faz um mea culpa, dizendo que não é um parceiro de confiança. Agora, com o apoio demonstrado a Putin. Agora, com as empresas chinesas espalhadas pelos cinco continentes e investimentos que garantem emprego um pouco por todo o Mundo. Agora, que têm os EUA pelos fundilhos com a dívida externa. Agora, que controlam empresas com monopólios em países europeus e espalharam as suas tecnológicas por toda a Europa. Agora, querem… o quê?
Este estado de conflito à escala mundial pode ajudar os norte-americanos, que não sofrem com os cortes energéticos e mantêm a máquina de guerra a funcionar, mas pouco ou nada trará de bom ao Velho Continente.
Nada temos a ganhar, nós europeus, com a guerra na Ucrânia e muito menos com um alargamento do conflito à China. A cidade onde eu vivo, no mais recente país da família NATO, ficaria com milhares de desempregados se o investimento chinês desaparecesse. Eu seria um dos que iria para a fila do fundo de desemprego. Portanto, quando vejo as elites europeias a brincarem com a pobreza dos seus habitantes e os americanos a meterem em risco os nossos empregos, lamento, mas a minha solidariedade termina. Não é esta a minha luta.
E por isso compreendo a estratégia do Governo alemão e o seu distanciamento ao suposto alinhamento de Bruxelas. Se os ucranianos fornecem a carne neste jogo de marionetas, o resto da Europa parece querer oferecer a nossa pobreza como contributo para a guerra.
Não se vê uma estratégia europeia que não seja a de cumprir ordens vindas do outro lado do Atlântico, e chega a ser embaraçoso ver este desempenho dos governantes europeus num momento de viragem histórico. Bem sei que não é Churchill quem quer, mas merecíamos algo melhor.
Por tudo isto, os alemães fazem o que devem fazer na defesa dos seus trabalhadores. E arrisco dizer que, por uma vez, estão do lado certo da História.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Quando vi as imagens de atum protegido por sensores e caixas rígidas, que habitualmente via em iPhones e artigos do género, pensei que fosse uma campanha de marketing da Bom Petisco.
Convenhamos, seria uma bela tirada de propaganda, elevando o valor de cada lata a algo que deveria ser protegido por um sistema de segurança mais caro que a própria lata.
Depois de perceber que era real, que, de facto, se gastavam sensores em latas, a minha interrogação foi mesmo para o custo-benefício da operação. Quantas latas é que são precisas nos bolsos alheios para pagar o custo dos sensores?
Parecia-me uma tentativa de matar uma mosca com um elefante. Mas não. A realidade, aparentemente, não só justifica como ainda poupam dinheiro com os sensores, segundo uma responsável de uma grande superfície que comentava os porquês aos microfones de uma jornalista com a mesma dúvida.
Aritméticas de gestão à parte, o que isto significa é que estamos perto de bater no fundo. Quando o roubo de bens de primeira necessidade é de tal ordem que justifica este tipo de investimento na prevenção, percebemos que as famílias estão a passar por dificuldades.
Não seria no entanto preciso chegar ao caso das latas de atum para percebermos isto. A estatística é pública; sabe-se hoje que, segundo dados do Pordata, cerca de 43% da população portuguesa vive em risco de pobreza antes das transferências sociais (pensões, apoios, etc).
Ou seja, para quem critica o Estado Social e defende um país com menos impostos, menos solidário e sem rede para os mais desfavorecidos, fica a informação de que quase metade da população portuguesa estaria abaixo do limiar da pobreza sem a componente de apoio social.
Claro que devemos discutir como sair desta situação e conseguir crescimento económico, para que a população não dependa de transferências sociais, mas talvez não seja este o momento.
Depois de dois anos e meio de pandemia, perda de empregos e direitos fundamentais, seguiu-se uma guerra, inflação, novamente perda do poder de compra, redução de salários e pensões, em simultâneo com uma enorme carga fiscal.
Portanto, com os jovens diplomados a abandonar o país, os portugueses cada vez mais pobres e o Estado a arrecadar uma fortuna em impostos extraordinários, enquanto a União Europeia investe o futuro de todos numa guerra sem sentido, não sei bem como é que se pode falar na redução dos apoios à população.
E reparem: os dados do Pordata são de 2020. Ou seja, a situação hoje ainda deve ser bem pior, e é mais ou menos fácil de perceber que o número de pobres cresceu nos últimos dois anos.
E se a União Europeia aceita dispensar 19 mil milhões de euros para a reconstrução e armamento da Ucrânia, poderá certamente devolver-nos, a todos os europeus, parte dos impostos que a inflação nos leva. Pode aguentar as taxas de juro, pode segurar a voracidade dos bancos, pode aumentar salários na exata medida da inflação. É difícil? Não, não é. São opções políticas.
Ao contrário do que defendia o Governo do PS, a inflação não será temporária e dificilmente os preços voltarão aos níveis pré-guerra. Não podemos continuar a discutir o Orçamento de Estado ou qualquer política vindoura com base em fundamentos errados.
Basta ir a um supermercado para ver produtos com aumentos de 15, 20 ou 30% e depois, chegamos a casa, e vemos o Governo a anunciar aumentos de 5% como sendo 1% acima do valor estimado para a inflação. Parece uma conversa de surdos. Ou então uma conversa onde um dos lados assume que do outro estão apenas idiotas. Adivinhem lá qual é o nosso lado?
Fui muito crítico na altura dos confinamentos, e escrevi, repetidamente, que o Estado Português optava por meter gente saudável em casa, pagando os lay-offs à custa do aumento da dívida. E, na altura, lembro-me de ouvir aquela conversa de que “tínhamos que salvar vidas” (como se dependessem de confinamentos) e que “logo se veria a Economia”. Ora, o que acontece agora é uma consequência directa disso.
O Governo do PS apresenta agora, orgulhosamente, um orçamento de “contas certas”, ou seja, recusa endividar-se mais, uma vez que passou os últimos dois anos a fazê-lo. Entretanto a inflação comeu o poder de compra e não é possível aumentar salários na mesma proporção porque, como nos explicaram na concertação, há que manter o défice controlado.
Meus amigos, isto é exatamente uma factura das políticas da covid-19 e um resultado do “a Economia logo se vê”.
Contribuimos todos para o nosso próprio empobrecimento e ainda batemos palmas à janela.
José Soeiro, do Bloco de Esquerda, explicou na Assembleia da República, repetindo um número já feito com lego, de que forma o Governo estava a reduzir as pensões dos mais idosos. O caso da redução efectiva das pensões é ainda mais escandaloso porque segue um foguetório onde esta foi apresentada como um aumento, e acabou, como hoje sabemos, num simples corte e, ainda por cima, ilegal.
Novos ou velhos, com ou sem emprego, hoje a realidade do país é de uma pobreza que já não é envergonhada. É mesmo assumida.
Mais de três décadas depois de subsídios europeus, conseguimos, ainda assim, não ter produção tecnológica significativa, só apostamos fortemente no turismo e dependemos, quase em exclusivo, dos quadros comunitários de apoio para comer. Somos cada vez mais a República Dominicana da União Europeia.
O jargão “a Economia logo se vê” deveria estar a ser usado agora. Era hoje, e não em 2020, que deveríamos mandar a Economia às malvas e ter folga orçamental para combater o empobrecimento generalizado que está a acontecer à população portuguesa. Ou pelo menos, o Governo deveria conseguir reverter os impostos extraordinários a favor dos salários dos trabalhadores, dos impostos da empresas e das casas das famílias. Era o mínimo decente a fazer. E já nem falo da famosa bazuca, porque essa sabemos estar, desde a sua origem, destinada aos amigos do regime.
Entretanto, esta semana fizeram-se testes nucleares na Europa, numa “missão de rotina”, que a NATO nos garante ser apenas para rodar os bombardeiros B52 que estavam a enferrujar lá no hangar no Dakota do Norte. Portanto, não só compreendemos que estamos a empobrecer a uma velocidade estonteante como, ao contrário do que escrevi no início deste texto, ainda temos alguma folga até batermos mesmo lá no fundo.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Para começar, sobre consumo de hidratos de carbono, digo-vos já que sou um fã de arroz. Massa é porreira e tal, mas, se o Mundo estivesse à beira do fim, a minha escolha para decorar o bunker seria um saco de 5 quilos de arroz. Está comigo desde que nasci, nunca me desiludiu e, convenhamos, fica bem com tudo. Tudo. Desde a mesa mais pobre ao prato mais gourmet. Até naquelas coisas de fusão aparecem uns bagos coloridos.
O discurso dos liberais portugueses é um pouco como o arroz. Dá para juntar a quase tudo e, com alguma imaginação, até sentimos sabores diferentes. O problema está somente no sal da retórica utilizada. Nunca, em momento algum, se ligam os pontos com o tempero mestre, e tal como um arroz mal feito, uma pessoa acaba com aquela cara enrugada do “falta sal” quando os ouve.
Liz Truss, primeira ministra demissionária do Reino Unido.
Assim, vamos ao que interessa: os projectos do departamento de marketing da Iniciativa Liberal (IL) seguem a metodologia Agile. Traçam objectivos, executam e avaliam a cada 15 dias. Dali resultam maravilhosos outdoors e toda uma comunicação bastante atrativa. E não estou a ser irónico.
Inevitavelmente, a realidade contraria as jogadas de marketing ao fim de umas semanas e, nessa altura, aparece o plano B (uma espécie de emenda ao Agile), que consiste num longo texto do Carlos Guimarães Pinto a explicar-nos que não percebemos nada do que eles queriam dizer. Os liberais seguem o mantra e respiram de alívio, esperando que o próximo exemplo de liberalismo em qualquer parte do Mundo, de facto, resulte.
Quando Liz Truss entrou a matar em Downing Street com aquela ideia de reduzir impostos aos mais ricos porque isso, segundo ela, faria o dinheiro chegar às camadas mais pobres, fiquei a pensar nos inúmeros exemplos de ricos que libertam dinheiro para os pobres. Como aquelas cascatas de champanhe nos casamentos onde, a partir de um copo no topo da pirâmide, se enchem os demais. Curiosamente não me lembrei de nenhum exemplo, mas também não sou grande coisa de memória.
Liz Truss anunciou que reduziria os impostos das empresas e não taxaria os lucros extraordinários. Ora, isto foi exactamente o que Carlos Guimarães Pinto defendeu num debate televisivo a propósito dos lucros extraordinários da GALP. O departamento de marketing da IL começou a pintar os cartazes com a Liz, mas antes de darem a segunda demão já os mercados, também amigos dos liberais, explicaram que a Truss não sabia o que estava a dizer.
A libra desabou e os juros da dívida dispararam. O caos instalou-se e Liz ficou isolada, acabando por substituir o ministro das Finanças por outro que se aguentou três dias. Os mercados decidiram que Governo deve vigorar, substituindo os eleitores. Contudo, se forem perguntar aos liberais eles vão dizer que só defendem os mercados até ao momento em que eles definem de facto o rumo das nações.
A IL reuniu de emergência e afinou o discurso. “O que é que se pode arranjar para dizer que somos diferentes?”, perguntou o Cotrim. Guimarães, o mais afinado estratega do momento, soltou o Eureka! e apontou para a despesa pública. Liz ia reduzir impostos e aumentar a despesa. A IL defende a redução de impostos e da despesa. E deixou cair o microfone…
Houve palmas e suspiros de alívio. Estava feito! Por hoje…
Cotrim de Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal.
Mas um dos estagiários, sentado lá ao fundo, perguntou: “então, e se nos questionarem sobre o nosso modelo de liberalismo, dizemos que seguimos qual?”
“Nórdico, pá!!”, gritou o Cotrim enquanto acabava o chá de tília. “Mas…”, ripostou o outro, “esses gajos não têm uma despesa enorme porque 30% do mercado de trabalho é Função Pública? Como podemos dizer que defendemos o modelo nórdico e despesa baixa? Os gajos dão tudo de borla!!”
Cotrim coçou a cabeça e Guimarães agarrou no queixo. Voltaram ao brainstorming com termos em inglês, e outro estagiário, mais desatento, gritou: “e se fosse liberalismo do Báltico?? Já temos os cartazes e tudo!”. Fez-se silêncio na sala e rolaram olhos naquele sentimento de “f***-se, quem é este gajo?”. O parceiro de carteira disse-lhe ao ouvido que a Estónia já estava com a inflação nos dois dígitos e os cartazes jaziam na salamandra da sede.
“E se assumíssemos a nossa Meca?! O liberalismo americano: cada um por si e Deus por todos?”, sugeriu um daqueles deputados que fica atrás do Cotrim na Assembleia da República a exclamar sempre “muito bem!” mas que ninguém conhece.
Guimarães, que deu aulas em Hanói e se fartou de comer arroz, agarrou nos cabelos a pensar como é que tinha ido ali parar.
O problema não está tanto no liberalismo porque esse tem poucos segredos e, com uma ou outra variante, nós percebemos o caminho que nos destina. Ou melhor, como diria um liberal, nós conseguimos visualizar a big picture. E os membros da IL também sabem exactamente o que defendem: é arroz, branco, com açafrão, chau-chau, tomate. É o tipo de arroz que cada um de nós quiser e encaixa em todo o lado. Agora basta que nos consigam convencer que, mesmo sem sal, faz falta e sabe bem.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A ofensiva ucraniana em Kherson não vem, confesso-vos, na melhor altura. Aproxima-se o primeiro teste da época para o Benfica e precisávamos de, no mínimo, três dias para discutir o penalti do Taremi e a expulsão do Otamendi. Já todos sabemos o que por ali acontece, mas fingimos sempre que é a primeira vez. Um pouco como os incêndios no Verão ou as cheias no Inverno que, enfim, apanham todos, ano após ano, de surpresa.
Na verdade, os nossos dramas com a política internacional podem sempre esperar quando a bola rola, uma figura pública faz publicidade à Prozis ou os Coldplay anunciam um quinto concerto. Também aí somos únicos…
Alguns países ainda avisam os seus cidadãos para abandonarem a Ucrânia (entre eles a China), e eu pergunto-me o que saberão eles que a nossa CNN ainda não nos contou?
Entretanto, Putin declarou lei marcial nos territórios anexados e já classifica a Ucrânia como invasor. O Mundo ao contrário, neste caso.
Dizem os especialistas que quase 60 mil homens estão às portas de Kherson e a evacuação de civis, por parte das tropas russas, significa que a cidade deve estar por horas.
Em determinados momentos deste conflito, achei mesmo que a diplomacia acabaria por resolver a coisa. Neste momento, a escalada é de tal forma grave que não consigo ver um fim para a guerra.
O apoio à Ucrânia à custa do empobrecimento está para durar e russos a largarem territórios é um cenário que se vê de século a século. Portanto, estamos naquele momento de impasse no diálogo em que a única garantia é que continuarão a morrer jovens russos e ucranianos, com ou sem armas nas mãos.
Falava com um amigo, já reformado, que me dizia com toda a honestidade que estava pouco interessado no destino do Donbass. A frase dele foi, literalmente: “nem sei bem onde fica aquela merda”, e acrescentou: “mas o Putin ainda é pior que o Zelensky. Os ucranianos podem respeitar pouco eleições, mas o Putin até as leis do país muda para se perpetuar no poder. É um ditador! Espero que acabe esta aventura a fazer tijolo!”
Quando lhe perguntei se a guerra devia parar por troca com a diplomacia, disse-me que não. Não podemos discutir com russos que só percebem o som das balas. De modo que, então, pois bem, era de continuar, até dar cabo deles.
No fim, já meio a rir, lá disse: “não podemos deixar aqueles comunistas virem por aí fora! Além do mais, não tenho créditos bancários, portanto, por mim isto pode durar o tempo que for preciso!”
Depois de lhe explicar que o Putin não é propriamente comunista, mas sim do outro lado da barricada, fiquei a pensar na honestidade do ancião. A reforma está garantida, detesta o Putin “comunista” e a casa está paga. Os filhos estão criados. Com algum jeito isto até traz alguma excitação à vida e aos debates no café com os amigos.
Depois pensei no que o meu filho me disse, após me ouvir ao telefone com o banco a tentar evitar uma subida para mais do dobro na taxa de juro do nosso crédito à habitação. “Não te preocupes pai, se tivermos de vender a casa não há problema. Eu compreendo.”
De facto, ele compreende. Tem uma curiosidade pelo mundo que o rodeia, e faz-me perguntas sobre tudo, desde que me lembro. É aluno de “A” em temas de política, e discute, quase diariamente comigo, as possíveis soluções para a situação da Ucrânia. Não concordamos em tudo o que me agrada, e ele já partilha opiniões que me fazem pensar.
Mas aquilo que me espantou foi ver uma criança disposta a sair do bairro onde viveu toda a vida, onde tem os amigos e a escola, ao perceber a minha angústia com a onda que se abaterá sobre nós. Ele, tal como eu, entende que o fim da guerra virá mais tarde do que o tempo que nos resta do crédito fixo acordado há mais de quatro anos. Nada nos trará imunidade perante a guerra por procuração que se trava na Ucrânia.
Pergunto-me: porque terá a vida do meu filho de ser alterada por uma guerra que nenhum de nós escolheu, concorda ou apoia? Ou sequer onde nenhum dos países em que vivemos está envolvido? Ou estarão? Já podemos dizer que estamos todos envolvidos nesta guerra?
Prometi-lhe que faria tudo para que não tivéssemos de vender a nossa casa, mas sinceramente não sei bem como. Tudo escapou da minha mão. A este ritmo de escalada no conflito, dentro de alguns meses teremos sorte se conseguirmos manter os empregos e as fontes de rendimento.
Voltei a pensar no ancião que clamava por mais bombas e gente musculada que se fosse desancando para entretenimento. Não está só, este meu amigo.
Quem nada tem a perder, uma família para sustentar ou uma casa para pagar, pode pedir tudo e entrar neste moralismo da solidariedade selectiva que nunca dispensámos a qualquer outro povo invadido.
Quem não corre riscos, nem sequer o de ter de ir parar ao campo de batalha, pode no conforto do lar exigir as famosas bombas pela paz. Mais, mais e mais…
Homens na reforma, mulheres, pessoal sem casa própria ou com vencimento dependente do Estado, estão entre aqueles que vou lendo a exigirem mais empobrecimento, mais armas, mais taxas de juro. Tudo, mas mesmo tudo, pelo Donbass.
Com a nossa inacreditável passividade, a guerra continuará e alguém tratará de ir pagando as facturas.
Um puto de 13 anos percebeu que a nossa vinha a caminho. Nem tudo é mau, afinal. Ainda vamos a tempo de perceber que esta geração será, provavelmente, bem mais esperta do que a nossa.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Quando ouvi António Costa a anunciar as linhas gerais do Orçamento de Estado fiquei com alguma expectativa. Escrevi, nessa altura, que o cálculo da inflação parecia muito optimista, mas a subida do salário mínimo para 900 euros, num espaço de três anos, mostrava alguma abertura ao diálogo.
Quando Medina assumiu as rédeas da apresentação, no dia seguinte, já fiquei mais inseguro. Por um lado, ele anunciava protecção às famílias com créditos à habitação, enquanto, ao mesmo tempo, dizia que os bancos apenas seriam obrigados a responder a pedidos de renegociação de crédito. Ora, uma “obrigação de responder” é uma mão cheia de nada e limitar-se-ia a confirmar, por escrito, o futuro das famílias.
Fernando Medina, ministro das Finanças, a entregar formalmente o Orçamento de Estado para 2023 ao presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva…
A banca continuaria protegida. À medida que toda a Oposição foi detalhando o Orçamento, ficou mais claro o que ali estava. E se dúvidas tivesse, ficaram desfeitas com a rapidez com que os patrões chegaram a um acordo na concertação social.
Alguns produtos alimentícios sofreram aumentos reais entre 9 e 18%. Material escolar subiu em cerca de 16%, combustíveis à volta de 17% e a energia mais de 20%. Portanto, nesse cenário, o acordo significa apenas que os reformados e os funcionários públicos com vencimentos acima do salário mínimo vão, na realidade, perder, e muito, poder de compra.
Já vários partidos da Oposição se manifestaram contra o Orçamento. Da esquerda à direita, ninguém parece muito interessado em votar a favor, ainda que por razões diferentes. Segue-se o esperado pela parte de quem não assinou este acordo, a CGTP, e a contestação, que agora recomeçou este fim-de-semana, já tem novas datas marcadas. A rua voltará a trazer a voz do descontentamento.
… e que teve uma inopinada queda em directo para as televisões.
Se a realidade dos preços mostra que a inflação estimada pelo Governo é um sonho de uma noite de Verão, torna-se relativamente simples perceber que sem aumentos na casa dos dois dígitos, dificilmente a classe média conseguirá recuperar o poder de compra. E quando digo classe média refiro-me a qualquer pessoa que receba 1.000 euros, aquilo a que na Europa do Primeiro Mundo se designa por “pobre”.
Portanto, já estamos com a fasquia incrivelmente baixa, mas corremos o risco de a ver descer ainda mais. E por lá ficar longos anos.
Há, no entanto, algumas coisas, raciocínios bastante simples, que favorecem o argumento de quem está na rua a lutar por aumentos reais dos salários. É um facto que os preços aumentaram e que, em virtude disso, não só o lucro das empresas cresceu como, por consequência, o Estado arrecadou um jackpot de impostos à boleia da inflação.
Portanto, o dinheiro existe, está lá. Saiu em maior quantidade da carteira dos trabalhadores para pagar a escalada de preços, transformou-se em lucro das corporações, e daí passou a imposto extraordinário para o Estado. Certo? Até aqui ainda não precisamos de um Nobel da Economia.
Agora, o verdadeiro problema começa quando o Governo não quer devolver o que arrecadou, ainda por cima se considerarmos a urgência que as famílias vivem. É que aqui não existem grandes hipóteses para quem quer manter a decência e ajudar os trabalhadores no mundo real, não apenas num mar de intenções escarrapachado num PowerPoint.
O Governo pode baixar os impostos às empresas e garantir que estas transferem esse dinheiro para os aumentos dos salários, e deve, como empregador que é, usar os impostos extraordinários que recebeu e aumentar os salários dos funcionários públicos, na exacta medida da inflação.
Ao não fazer, a fundo, nenhuma destas medidas, o que o Orçamento de Estado está a conseguir é, na prática, transferir o dinheiro dos trabalhadores (salários) para o capital (lucros das empresas), e depois a usar os impostos arrecadados para, na melhor das hipóteses, abater dívida pública. Ou, na pior, distribuir pelas clientelas do costume.
Traduzindo por miúdos, este Orçamento vai empobrecer uma população que já é pobre, vai enriquecer (mais) quem já é rico e vai criar um fundo de maneio bem jeitoso para alimentar a elite que vive na órbita do Estado.
Ainda por cima, os economistas da praça já nos avisaram que, ao contrário do que nos foi vendido, a inflação não será passageira. Uma vez que a população se reajuste para pagar preços escandalosamente altos, as corporações não os trarão para o valor pré-guerra. Poderão não ficar tão altos como hoje, mas certamente que a adaptação será feita do nosso lado. Os mercados, os famosos mercados, não reduzem preços; quando muito não os aumentam tanto.
Portanto, quando os funcionários públicos vão gritar para a rua e exigir que o dinheiro arrecadado (a eles) volte em boa parte para eles, estão a assumir uma luta justa, lógica e a única que não nos deixará ainda mais pobres. No fundo estão a disputar uma batalha, esta sim, que diz respeito a todos os portugueses que trabalhem por conta de outrem. Era bom que por uma vez percebêssemos onde devem estar as nossas prioridades.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.