Etiqueta: Visto de Fora

  • Um ano de PÁGINA UM

    Um ano de PÁGINA UM


    Quando o Pedro Almeida Vieira, director do PÁGINA UM, me explicou o conceito de um novo projecto jornalístico e me convidou para aqui escrever com regularidade, logo no início desta história, fiquei dividido.

    Por um lado, fico sempre contente com a possibilidade de escrever, já que essa É a minha maior paixão na vertente profissional. Por outro, tinha as minhas dúvidas sobre a sustentabilidade de um projecto que dependia integralmente dos leitores.

    Não sou jornalista, a minha formacão é noutra área, mas sempre me pareceu que o mundo da imprensa era dominado por dois ou três grupos, e algumas publicacões que, ao longo dos anos, mais ou menos alinhadas, se iam aguentando. E claro, sempre com publicidade paga, o que, desde logo, garantia o silêncio em algumas temáticas.

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    Crónica “Visto de Fora”, desde 12 de Fevereiro de 2022.

    Portanto, em teoria, a ideia do Pedro era óptima, mas a sua execucão prática parecia-me algo romantizada. Ainda assim, resolvi aceitar o convite, essencialmente porque o nosso director “é um tipo sério” – foi esta a frase utilizada para o descrever, quando uma amiga comum nos pôs em contacto algures durante a pandemia.

    Um ano depois, e cerca de 150 textos mais velho, percebo o quão enganado eu estava.

    O PÁGINA UM é, na minha opinião, uma história de sucesso, até ao momento. Tornou-se, em muito pouco tempo, o jornal mais lido entre os novos projectos que apareceram fora da chamada “imprensa mainstream”, e até para os consagrados da praça, serviu várias vezes de fonte para notícias de primeira página – sem que nos fizessem a fineza de referir o nome, mas isso são outros quinhentos paus, como se diz aqui na margem sul.

    Com uma equipa pequena, o PÁGINA UM conseguiu fazer jornalismo de investigacão, sem amarras ou condicionamentos, e obter furos que foram depois repetidos por outros. Sem perder a qualidade da escrita ou a devoção pela verdade, o nosso jornal abanou quem precisava de ser abanado e questionou quem tinha respostas para dar. Sem nunca entrar no sensacionalismo bacoco ou nas teorias da conspiração que lhe retiraria credibilidade. Foi, essencialmente, uma redacção que, com curtíssimos meios, andou, neste primeiro ano, atrás da notícia e não a fazer de repetidor e tradutor de agências noticiosas estrangeiras.

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    Rubrica “Recensão Eleitoral”, entre 16 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 2022, sobre as eleições legislativas.

    E, de facto, tudo isto é possível apenas porque o financiamento é garantido por quem nos lê. Não há tabus, não há temas proibidos, não há necessidade de escolher notícias. A liberdade é total.

    Pessoalmente, tem sido um enorme prazer assistir ao crescimento do PÁGINA UM, e tentar, na medida das minhas possibilidades, ajudar na caminhada.

    No início de tudo isto disse ao Pedro que não tinha grande jeito para elaborar a escrita de forma a que esta pudesse sair em condições de chegar ao grande público. Nem sequer os temas me aparecem de forma lógica. Eu gosto de escrever em cima do que sinto, e isso, muitas vezes, aparece em forma de desabafo, irritação, estupefacção. Não é o tom que habitualmente se espera numa coluna de opinião.

    O Pedro disse apenas: “tudo bem, escreve o que quiseres, como quiseres”. E de facto assim foi. Por vezes, nem as ****lhadas [N.D. racalhadas] que me saem no meio de um texto mais polémico ele “censura”. Ou seja, tenho mesmo a sensação que estou a escrever para um amigo que me conhece desde sempre, mas, no fim, isto chega a mais gente. De forma pura e sem filtros.

    É essa a magia de escrever com liberdade e sem tentativas de agradar a esta ou aquela corrente de pensamento ou ideologia.

    Isto já me valeu uns insultos, claro que sim, mas também me deu a conhecer pessoas muito simpáticas que me fazem ter vontade de continuar a escrever com regularidade. Ou seja, a experiência do primeiro ano do PÁGINA UM mostrou-me, no fundo, o mundo real, onde o cruzamento de opiniões nem sempre é pacífico, mas, quase sempre, se torna estimulante.    

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    Crónica “Pelota em Pelota”, entre 21 de Novembro e 18 de Dezembro de 2022, sobre o Mundial de Futebol.

    Agrada-me também que o PÁGINA UM se abra a diferentes correntes de opinião, e permita que, entre todos os que aqui escrevemos, se consigam encontrar opiniões literalmente opostas. É na pluralidade de pensamento que crescemos e, certamente, vamos ao encontro de mais leitores.

    Tem sido um gosto e um orgulho fazer parte deste primeiro ano. Assim vocês, leitores, o queiram, e chegaremos ao fim do segundo ano também. 

    Depois de dois anos de pandemia e um ano de guerra (agora no radar de todos) na Europa, 2023 não promete ser muito melhor. A inflação, os baixos salários, as lutas sociais e a volta dos Excesso, garantem desde já um 2023 ao nível dos últimos três anos. Em princípio, continuaremos todos a não ficar bem, mas, com alguma certeza, o PÁGINA UM dir-nos-á o que aconteceu. Antes dos outros.

    Por tudo isto, camaradas do PÁGINA UM, muitos parabéns e obrigado pela vossa dedicação. Continuemos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • E agora, minhas senhoras e meus senhores: o Kosovo

    E agora, minhas senhoras e meus senhores: o Kosovo


    Vi passarem, entre rodapés e notícias de futebol, duas intervenções que me pareceram importantes para antevermos 2023 já a imaginar o que será 2024. A primeira foram as afirmações de um representante ucraniano, opinando que as economias desenvolvidas davam pouco suporte à Ucrânia e que, na visão dele, cada membro da União Europeia deveria dar 0,1% do respectivo produto interno bruto (PIB). Dizia ele que, se fizéssemos as contas, até perceberíamos ser uma gota no oceano dos orçamentos da União Europeia.

    Eu não só concordo com ele como, até, acrescento que o pedido peca por escasso: mas é, por acaso, a Ucrânia algum Ministério da Cultura para ficar com percentagens tão ínfimas de um Orçamento de Estado?

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    Não bastam os 2% do PIB para a NATO, o material e dinheiro enviado pelos países europeus ou até as sanções à Rússia, que nos fazem pagar a mesma energia bem mais cara.

    Portanto, ficamos a saber que não basta empobrecer para garantir a defesa da Ucrânia; é preciso empobrecer por decreto e passar a incluir esta guerra, apenas esta, no planeamento do que fazer com os impostos no próximo ano.

    Há aqui um certo conforto com esta solidariedade europeia, que passou de necessária para obrigatória, seguida de “mais e mais”, vindos de Zelensky e companhia, que a cada dia exigem mais empobrecimento a todos nós para defender uma causa sua.

    Compreendo que o peçam; estão a manter a sua causa viva, mas não percebo porque se sentem os dirigentes europeus no direito de utilizarem livremente os impostos dos seus constituintes, de forma repetitiva, a favor da Ucrânia, mantendo o empobrecimento geral deste lado.

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    Bem sei que ninguém gosta de perder fatias de terreno, mas não nos cabe, a nós europeus, pagar uma guerra sem fim à vista.

    Quem a estimulou (Estados Unidos e Rússia), e quem acreditou no conto de fadas que ouviu (Ucrânia), que a pague ou resolva. Mas já chega de isto sobrar para todos. E já chega de ver Ursula e demais dirigentes europeus baixarem a cabeça a cada nova exigência de Zelensky, como se nós lhes devêssemos algo, ou como se aquela guerra fosse nossa. Lamento pelo povo dos dois lados, mas eles que resolvam as suas diferenças e, de caminho, se vejam livres de Putin e Zelensky.

    Por acaso alguém vê dirigentes palestinianos a exigirem anti-aéreas todos os dias? Acham que levam com poucos rockets? Ou os combatentes no Iémen, bombardeados pela ditadura “nossa amiga” (saudita), lembram-se de os ver em intervenções emocionadas nos parlamentos europeus a exigir armamento pesado?

    Não suporto esta hipocrisia com quase um ano, que se vai vivendo, em redor da Ucrânia. Há um problema para resolver, como em tantas partes do Mundo. O problema não é nosso. Ponto final. Se os deputados europeus começassem a defender os direitos de quem os elegeu é que a democracia agradecia.

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    A segunda notícia que me pareceu interessante, mas para a qual ninguém convidou a Helena Ferro Gouveia para falar, logo não deve ser importante, foi a recente tensão na fronteira do Kosovo com a Sérvia.

    Para a rapaziada mais nova que lê o PÁGINA UM, mas que ainda era pequenina na mudança do século, o Kosovo é um país que resultou de um corte de 20% do território da Sérvia, depois da NATO bombardear civis em Belgrado. Pronto: este é o trailer. Para o filme completo, vejam no Netflix.

    Contudo, a parte importante é esta: um território de um país soberano tinha uma maioria étnica, neste caso albaneses, que achou boa ideia formar um novo país. E conseguiram, com o apoio da comunidade internacional. A mesma lógica (das maiorias étnicas) poder-se-ia aplicar ao Donbass, Catalunha, País Basco, Chechénia, enclaves sérvios da Bósnia, Palestina, Curdistão…

    Epá… por absurdo, se amanhã o Paquistão, Bangladesh, Nepal ou Índia quiserem reclamar como seu o Qatar ou o Dubai, em princípio podem. Os emigrantes destas zonas já devem estar em maioria relativamente aos indígenas.

    Para resolver rapidamente estes problemas na fronteira, e a pressão sérvia, os kosovares pediram adesão à NATO há já algum tempo e, agora, à União Europeia. É o precedente que se abriu com a Ucrânia. Se um país em conflito passa por cima de todos os critérios para aderir, por que razão se deveria facilitar a entrada apenas à Ucrânia? 

    No ranking da liberdade, o Kosovo está ali por perto de países como as Filipinas (não sei se já ouviram falar do seu presidente e das medidas bem democráticas que implementa no país), da Somalilândia, de El Salvador e claro, da Ucrânia. Estão na parte da lista das democracias complicadas e consideradas “parcialmente livres”. 

    Ursula von der Leyen acha este interesse maravilhoso, porque, segundo ela, a União Europeia não está completa sem os Balcãs… Já agora, alguém poderia dizer à Ursula que a União Europeia costuma fazer umas certas “exigências” naquela região. Por exemplo, a Croácia só entrou em 2013, uma década após ter feito o pedido de adesão e depois de ter entregado uns generais por causa da Guerra dos Balcãs. E exigiu ainda mais à Sérvia, que está a marcar passo desde 2009 por não ter feito o mesmo com um batalhão de gente. Aliás, a proximidade de Belgrado a Putin não nasce de inspiracão divina.

    Com o Mundo novamente a caminho de formar dois blocos (ou três, quem sabe), a Europa tenta reunir todas as suas fronteiras e não olha a critérios ou nomes. O Kosovo pode não cumprir nada do que é necessário para integrar o grupo da União Europeia, mas faz parte daquele restrito leque de países onde atacar território soberano e roubar-lhe uma fatia, não é imperialista nem tão pouco errado. É apenas justo e reconhecido por todos.

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    Portanto, perante isso, o que é uma entrada a pés juntos na União Europeia com o árbitro de olhos fechados?

    Por mim, incluímos no negócio a Albânia, a Moldávia, a parte turca do Chipre, o Montenegro e a Macedónia. Depois, ainda esticávamos o bloco mais a sul e, na expectativa de criar um grande bloco, fazíamos o convite ao Sahara Ocidental, Argélia e Líbia. Se nos dessem gás e petróleo, e sem mandarem migrantes nos barcos de borracha, claro.

    Se os critérios servem para pouco, por mim então era só juntar mais pessoal. Imaginem o melão dos liberais quando vissem que, com esta malta toda, e mesmo ultrapassados pela Roménia, acabaríamos ali a meio da tabela para os próximos 10 anos. Sempre com o Ruanda à perna.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A magia do directo à portuguesa

    A magia do directo à portuguesa


    Em Campo Maior, numa rua cheia de lama, com carros ao monte, há pessoas de galochas e pás na mãos, encasacados até à cabeça, recolhendo o entulho e empurrando a água para as entradas de esgoto.
    Percebe-se, em apenas cinco segundos, o que estão ali a fazer.

    A jornalista, obrigada a criar qualquer coisa para o directo, aproxima-se, obriga um dos senhores a parar tarefa e atira-lhe a pergunta do milhão de dólares:

    “Então, o que estão aqui a fazer?”

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    O camarada alentejano levantou os olhos da enxada, olhou para a jornalista e deve ter pensado num “f***-se!! O que é que te parece que estamos a fazer??”. Mas respirou, lembrou-se que tinha ali uma câmara, e disse, de rajada e em volume aceitável: “LIMPEZAAA!”

    Os directos são um mistério para mim. Nunca percebi o interesse de, por exemplo, ter alguém numa cidade a 1.000 quilómetros de uma frente de batalha para entrar à noite, em directo do hotel, a tempo de nos contar o que alguém lhe disse que está a acontecer a oito horas de carro dali.

    Compreendo, obviamente, o interesse da reportagem em directo, que nos traz as imagens do que está a acontecer. Mas a necessidade extrema de criar conteúdo com interesse informativo nulo, para além de deixar uma sensação de vergonha alheia, acaba apenas por atrapalhar quem, de facto, está a tentar fazer algo de jeito.

    A história de Campo Maior fez-me lembrar um dos incêndios deste Verão, quando uns jornalistas, da CNN julgo, tentavam entrevistar bombeiros enquanto estes apagavam o fogo, o que é, só por isso, bizarro. Acabaram por ouvir, entre corridas desesperadas, que “têm que desviar o carro para o camião conseguir passar”.

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    Ou pior, quando perguntavam a populares o que por ali faziam, num incêndio junto ao Fundão, se a memória não me falha, e uma senhora, a carregar baldes de água, lhes disse: “se largassem o microfone e agarrassem nuns baldes é que era de valor!”

    Que informação relevante é que pode dar um popular, no meio de uma aflição, a quem precisa de encher uns minutos de directo? Não entendo, a sério que não.

    Mas pior do que as horas de irrelevância informativa, é a estratégia editorial. Seja qual for o tema, desde que apareça como novo, é espremido até à exaustão, como se deixasse de existir mundo a partir desse momento informativo.

    Quando a covid-19 rebentou tínhamos directos do aeroporto de Lisboa para acompanhar a chegada dos portugueses que tinham sido evacuados da China. O pessoal médico estava vestido com uns fatos da NASA, como naquele filme Outbreak dos anos 90 (com Dustin Hoffman), e lá atrás da rede de protecção, as câmaras das televisões faziam o zoom possível para nos mostrar qualquer coisa.

    Dois anos com directos dos hospitais, conferências do Infarmed, powerpoints do Costa, vacinas do almirante, regras e mais regras. Polícias na rua a correr com velhotes que comiam sandes num banco de jardim, restauração na falência, palminhas nas varandas. Mal nos apercebemos que já havia rockets no Donbass.

    Nos Verões são os incêndios, nos Invernos as cheias. Enquanto acontecem, temos horas e horas de directos, debates, diagnósticos do que está mal (matas, num caso, e sarjetas sujas, no outro) para, um ano depois, repetirmos todo o processo: directo, debate, diagnóstico. Pelo meio, mete-se o Natal e os directos passam para os centros comerciais ao som de Mariah Carey ou Wham.

    Chega a guerra a de 2014 até 2022 foi só o aquecimento e durante meses temos tanques no quintal e mapas de ocupação. Desaparece o resto do Mundo novamente. Acaba a covid-19 de forma oficial.

    Em Novembro, a guerra acalmou para ligarmos aos diretos do Qatar. Até a selecção portuguesa ser eliminada, ninguém se magoou em Donetsk. Por essa altura, interessou saber tudo, mas mesmo tudo, que Ronaldo disse, pensou, fez, disse mas não fez, pensou mas não disse, disse mas não queria dizer, e todas as demais combinações.

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    É importante massacrar um jogador até que já ninguém, nem sequer entre os seus colegas, consiga ouvir falar mais no tema. É importante não discutir o que joga ou podia jogar uma equipa de 25 e criar, em vez disso, uma gigantesca onda negativa em torno de uma equipa que, afinal, todos queríamos que vencesse.

    O golo marroquino acontece e o São Pedro começou a castigar o território ibérico. Os mouros estão de volta. Há água por todo o lado, carros a boiar, casas alagadas, cidades transformadas na Veneza dos subúrbios.

    Percebo a gravidade, os problemas e os dramas, mas, tal como nos demais temas, o Mundo volta a desaparecer. Como se, com tantos recursos de recolha de informação, cada linha editorial só conseguisse lidar com um tema de cada vez. Ou até como se, para representar uma calamidade, seja necessário entrevistar pessoas que limpam as ruas em cada aldeia do país. Vi um directo do Muxito. Do Muxito!

    Para vós que sois menos versados em cultura urbana da margem sul, o Muxito era uma mata que, na minha juventude, era conhecida por ser um sítio de paragem para profissionais de um ramo profissional muito antigo, ligado à venda de sensações cutâneas. Não é uma zona que tenha visto os seus primeiros líquidos nesta enchente.

    black and gray microphone

    E enquanto escrevia isto, pensando que então que terminara o texto, notei que o directo regressou a Campo Maior e apanhou outro senhor. O homem estava a carregar móveis, cheio de lama na cara e nas mãos, e, mal lhe cheira a pergunta, vira as costas ao jornalista que, para desenrascar, diz: “as pessoas não querem falar, mas as imagens falam por si”.

    Aleluia irmão!, aleluia!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Autoeuropa: recusaram 5,2% e fizeram muito bem

    Autoeuropa: recusaram 5,2% e fizeram muito bem


    Portugal vive um momento de alguma convulsão social com greves em diferentes sectores praticamente todas as semanas. De entre os vários “fogos”, chamou-me à atenção aquele que vai crescendo na Autoeuropa, onde, em plenário, os trabalhadores votaram contra o pré-acordo laboral que incluía um aumento de 5,2%.

    Acompanho a vida da Autoeuropa com alguma atenção há pelo menos 17 anos, a exacta quantidade de anos que levo desde que ali deixei de trabalhar e decidi emigrar. Conheci por lá pessoas extraordinárias e fiz amigos para a vida, pelo que notícias como esta – ou críticas, em geral, aos trabalhadores que por lá andam há duas décadas (ou mais) – obrigam-me quase sempre a uma leitura um pouco mais cuidada.

    A Autoeuropa é utilizada pelos Governos, abusivamente na minha opinião, como empresa modelo das exportações portuguesas e das boas relações laborais entre administrações e trabalhadores. Se a importância da Autoeuropa para o produto interno bruto (PIB) nacional é uma pura questão matemática – e não há muito por onde discutir –, o mito de os trabalhadores estarem cheios de regalias, ou que as condições de trabalho são óptimas, é algo que nunca percebi muito bem de onde veio.

    Não sei se o caro leitor alguma vez passou por uma linha de montagem, onde tudo é feito ao segundo, sem poder parar, com tempos controlados para comer, ir à casa de banho ou apanhar ar. Linhas onde os volumes de produção obrigam a trabalhar noites inteiras com consequências directas para a vida familiar. Linhas com um trabalho repetitivo, anos e anos a fio, a troco de mil e tal euros – visto por quem está cá fora como “muito bom”, porque 75% do país só leva 900 euros para casa.

    A eterna discussão sobre nivelarmos por baixo e pensarmos que, se eu estou na lama, por que razão deveria o meu vizinho ter o pescoço de fora.

    Estamos a falar de uma empresa que responde a uma casa-mãe onde os funcionários recebem três vezes mais pelo mesmo tipo de trabalho. Uma empresa onde um engenheiro, ao fim de 20 anos de dedicação, pode nem ter conseguido uma progressão salarial de 1.000 euros líquidos.

    E todos os anos a fábrica de Palmela está entre as melhores do grupo, mas, quando chega a altura dos aumentos, o que é que acontece? Soluções criativas. Ora são os “down days”, em troca de dinheiro, ora são os aumentos para as calendas gregas, ora são promessas de mais projectos, e aí sim, outras soluções.

    É claro que todos percebemos a dinâmica da coisa. As multinacionais mexem-se para onde a mão-de-obra é barata, o benefício fiscal existe e o trabalho fica feito. São as regras do negócio.

    No meu actual trabalho, vejo equipas espalhadas pela Índia, China e Ucrânia. Está tudo engatado, atrasos e problemas que não acabam (quem diria que um gajo a fugir de bombas não se consegue concentrar?!), mas o capital aumenta, os gastos são menores e o lucro dispara. Em Portugal, e com a Autoeuropa, é assim desde que me lembro.

    Lembram-se, aliás, do último VW, novo, bem barato que compraram? Pois, imagino que não, porque não existe. Os preços dos modelos vão acompanhando a inflação, ano após ano, com a sempre actual conversa dos custos de produção, mas, espante-se, os trabalhadores ficam essencialmente na mesma.

    Quando recusam uma proposta de aumento de 5,2% num ano em que a inflação real já vai em dois dígitos, o que eles estão a dizer, alto e bom som, é que percebem o mundo em que vivem. E estão a mostrar coragem, porque no sector privado, obviamente, o risco de perda de emprego é maior.

    Aliás, se se derem ao trabalho de ler as caixas de comentários dos vários jornais que falaram sobre a proposta chumbada pelos trabalhadores da Autoeuropa, podem atestar o que aqui escrevo. A onda de críticas da sociedade civil aos trabalhadores é gigante. Perdi a conta ao número de pessoas que os condenava ao desemprego, que falava na Opel da Azambuja, ou que lhes dizia que 5% era óptimo nos dias de hoje.

    O papão de “fechar e ir para outro sítio” deve existir desde o dia em que lançaram a primeira pedra na Quinta do Anjo. Ouvi essa ameaça não sei quantas vezes nos cinco anos que por lá passei, e à conta dela aceitámos dias de folga em vez de aumentos salariais de jeito. Entre a minha entrada em 2001 e saída em 2006, julgo que a diferença no salário líquido não chegou a 30 euros. Lembro-me de nos agarrarmos ao argumento de “é uma merda, mas é seguro”.

    Ora, o que mudou entretanto? Pouco. O grupo VW continua a ser um dos maiores do Mundo, a fazer lucros enormes e a espalhar fábricas de baixo custo por países pobres, pagando salários de jeito apenas na casa mãe (Wolfsburg) e nas demais fábricas do grupo (Audi, etc.) que estão em território alemão, onde os sindicatos não brincam em serviço.

    Bem sei que a VW não inventou a roda ou o capitalismo selvagem. O lucro é maior onde a mão-de-obra se vende por menos, e, no momento em que essa mão-de-obra fica mais cara, o capital vai para nova morada em busca de mais mão-de-obra barata. O ciclo é conhecido, está estudado e todos, a começar pelos trabalhadores da AutoEuropa, percebemos que fazemos parte dele.

    Agora, em consciência, cada um de nós, de preferência colectivamente, deve lutar contra essa ganância que nos leva direitos e qualidade de vida, a troco de lucro, com a promessa de um emprego e umas migalhas para pagar contas. É pouco, é muito pouco.

    Se a VW ameaçar, pela quinquagésima sétima vez, que vai explorar outros, ainda mais pobres, pois que vá. Se a força do nosso trabalho é tudo o que temos para a troca, não a podemos oferecer décadas a fio. Não podemos ver o custo de vida a subir exponencialmente e os salários, ano após ano, a serem uma envergonhada réplica do ano anterior.

    Algum dia acabam os povos para explorar e, nesse dia, começam as negociações a sério e a partilha de riqueza de forma justa. Quanto mais depressa lá chegarmos, melhor.

    Portanto, recusaram 5,2% e fizeram muito bem. Portugal não deve continuar a ser conhecido como um país onde a competência se vende barata. A Autoeuropa é, de facto, um exemplo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A caminho, mais um tiro no pé

    A caminho, mais um tiro no pé


    Aqui há uns meses, um amigo vindo do Leste Africano, que chegou à Suécia num avião militar a fugir de uma guerra nos anos 90, analisava o conflito na Ucrânia. Para ele, os dramas europeus são terças-feiras em África, já que não conheceu uma década de vida sem os horrores das armas.

    Perguntava-me, com alguma incredulidade: “mas antes da Europa começar a dizer que não comprava gás e petróleo ao Putin, arranjaram uma alternativa? É que se não o fizeram, o bluff vai rebentar-vos na cara!”

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    De facto, é um pouco como anunciar a independência em casa dos pais, sair com uma mochila às costas e ligar no dia seguinte a pedir a mesada.

    De uma forma simples, sem paixões e moralidades de pacotilha, a coisa resume-se a isto. Se queremos meter um país de joelhos pela via económica, o mínimo que se espera de quem decide é que perceba se o tiro não volta para trás, com o dobro da intensidade. 

    Depois de vários pacotes de sanções que serviram, até ver, apenas para empobrecer os europeus e deixar alguns milionários russos em dificuldades, Ursula von der Leyen anunciou a imposição de um tecto para o preço do petróleo russo. A União Europeia decidiu que não pagaria mais de 60 dólares por barril, Zelensky pediu 30. Se me tivessem também perguntado, eu teria dito para obrigarem o Putin a enviar o crude de borla. Se é para pedir, assim ao calhas, acho que devemos meter a carne toda no assador…

    O regime russo, como seria de esperar, já avisou que não venderá a quem quiser controlar o preço. Se bem que a ideia tem potencial, imaginem um Mundo onde o cliente decide o preço que quer pagar. Seria o primeiro passo para o fim das trocas monetárias e, de certa forma, a sentença de morte para o capitalismo. Ainda vou descobrir que a Ursula é camarada.

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    [N.D. Bom, na verdade, o PÁGINA UM funciona assim; os leitores decidem o que “pagar” pelo jornalismo independente; mas não é exemplo para o mundo real, admita-se].

    A teoria da Ursula ter-me-ia dado jeito esta semana, quando saí da oficina e por lá deixei dois salários mínimos a troco de uma simples revisão feita a um carro com alguns anos de estrada. Perante a minha estupefação com o aumento exponencial de preços, o gerente da oficina dizia-me: “sabe, isto da Ucrânia subiu os preços para toda a gente”. Bendita Ucrânia, que tens as costas tão largas para a ganância. A factura aumenta 20% para o cliente final, mas o trabalhador recebe aumentos de 2%. 

    Mas a parte de mais esta sanção que realmente me interessa é a análise dos sempre badalados mercados. A Rússia é o terceiro produtor mundial de crude, atrás dos Estados Unidos e da “democracia” amiga saudita. No caso do gás natural, a Rússia é o segundo produtor, apenas atrás também dos Estados Unidos, e o terceiro está a grande distância destes dois. Excluindo a Rússia, a Noruega é o segundo país europeu com maior produção, mas apenas com 25% daquilo que sai dos territórios de Putin. A Alemanha retira do seu subsolo o equivalente a 1,5% do gás sacado pela Rússia.

    Não sei se entretanto os cabecilhas da União Europeia descobriram lençóis de gás e de petróleo nos Campos Elísios, no Coliseu de Roma ou até no nosso Beato, mas, admitindo que não, a Europa ainda está dependente, e muito, para o funcionamento das suas economias, do fornecimento de energia vinda de fora dos seus territórios. 

    Se Putin diz que não vende, nesse caso a União Europeia terá de recorrer a outros produtores. O mercado ficará reduzido a menos fornecedores e a probabilidade de concertação de preços, entre os restantes players, aumenta. Não vejo bem de que forma é que isto não resultará num aumento de preço no barril do petróleo e também do gás. Pior, não vejo como é que isto não resultará em mais empobrecimento para nós, europeus, que somos arrastados para o pagamento de uma guerra que não escolhemos.

    Pelo andar da carruagem, as populações dos países da União Europeia ficarão dependentes da ajuda dos respectivos Estados para conseguirem fazer face aos custos mensais. Das prestações bancárias às energias, passando pelos bens essenciais, caminhamos a um passo assustadoramente rápido para vivermos de pacotes de apoio de emergência.

    Em Portugal, já temos cerca de 50% da população (antes das prestações sociais) em risco de pobreza; portanto, como é que se aguenta esta inflação? Como é que se aceita, alegre e sem luta, um empobrecimento em nome da disputa do Donbass? Lembro as declarações de um ministro indiano que, de forma prática e sem moralismos hipócritas, disse que o seu país não se queria meter no conflito, mas que, com uma população tão pobre, não recusaria petróleo russo mais barato. É tão simples quanto isto.

    Os Governos dos países da União Europeia foram eleitos para defenderem os direitos e as condições de vida dos seus cidadãos. Ninguém votou no Costa para ele desviar dinheiro do SNS e enviá-lo para Kiev, enquanto os portugueses vão ficando sem comida para meter na mesa. Esta hipocrisia começa a tornar-se insuportável.

    people sitting in front of table talking and eating

    Há relatos das populações envolvidas, russos e ucranianos, a pedirem aos seus Governos que iniciem as conversações de paz. E no lado europeu, segue a teoria do “as long as it takes“. 

    Vamos ver quando tempo demorará até que mais uma sanção se vire (ainda mais) contra nós. Se a guerra continuar por muito mais tempo, e admitindo que a União Europeia continua a desviar fundos para lá, espero que o que sobrar do Orçamento de Estado, depois da Ucrânia, dos salários da Função Pública e do gamanço para as clientelas, comece a ser distribuído pela população em forma de aumentos salariais, reduções de impostos ou simples subsídios. 

    Com a calma de quem não passa frio, não vê cortes salariais ou morre na frente da batalha, já ouço discussões, em horário nobre, sobre o abrandamento da guerra no Inverno e uma retomada, mais bárbara, lá para a Primavera. Estão loucos. Estão todos loucos. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Queres ser português de primeira? Concorre para nómada!

    Queres ser português de primeira? Concorre para nómada!


    Tenho ideia que a primeira pessoa com quem interagi na Suécia, com alguma regularidade, foi um senhor da Síria. Nos idos de 2006, quando aqui cheguei, foi ele o primeiro a dar-me a visão de um emigrante sobre a realidade nórdica, de cada vez que ia à pizzaria dele comer qualquer coisa com banana ou ananás. Sim, eu gosto de fruta na pizza, e há que saber viver com essa realidade.

    Dizia-me ele, sem grandes saudades da Síria – e foi antes da guerra civil, note-se –, que a Suécia era um paraíso. Defendia que, se o país tivesse sol, viveriam aqui 90 milhões e não os nove milhões de então. Quase 17 anos depois continuo a não concordar com ele. É difícil encontrar um paraíso longe de casa, mas o número dos nove milhões ficou-me para a década seguinte.

    white and black high rise buildings during sunset

    A Suécia no início do século XXI vivia uma política de incentivo à natalidade. Dada a sua dimensão geográfica, o envelhecimento populacional e a quantidade de empregos gerados pela forte Economia, era mais ou menos simples entender que a Suécia precisava de mais gente. O período que ficou conhecido como baby-boom, a que se juntaram várias vagas de emigração, resultaram num crescimento da população de cerca de um milhão no espaço de 20 anos, mais de 10%.

    Lembro-me de chegar de Portugal e ter a mentalidade que um filho seria um custo e um objectivo a realizar depois de estar financeiramente estável e, ao meu lado, um colega de trabalho preparava-se para ser pai enquanto a mulher estudava na universidade. O custo de ter uma criança era nulo e os benefícios, vários.   

    No mesmo período de tempo, Portugal viu a sua população diminuir em cerca de 500 mil habitantes e aproximar-se dos 10 milhões, onde cerca de 30% têm mais de 60 anos. 

    woman holding man and toddler hands during daytime

    Portanto, quando vejo que metade dos portugueses trabalham para suportar a outra metade – que se divide pelos que já não contribuem (reformados) e pelos que um dia contribuirão (crianças e estudantes) –, imaginei que uma política de natalidade daria jeito.

    Coisas simples como mais dias para gozar a paternidade/ maternidade, creches gratuitas em número suficiente, um abono de família que não fosse uma esmola, manuais escolares gratuitos e quejandos do género. Nada muito elaborado…

    Mas não, Portugal nunca fez nada disso. Portugal apostou nos últimos 20 anos em trazer turistas que ficam por cá uns dias e, de vez em quando, se a paixão assim ditar, mudam-se para uma das colinas. Queremos Madonnas. Ou chineses ou russos, que por cá venham investir 500.000 euros num apartamento qualquer inflacionado no preço, a troco de um passaporte europeu e de mais umas achas para a fogueira da especulação.

    man riding on vehicle looking for map

    Também escolhemos abocanhar as reformas dos velhotes escandinavos, deixando-os aqui viver sem nada pagar, e durante anos lá fomos ouvindo os raspanetes do Governo sueco, que via a receita fugir-lhe mas continuando a proporcionar aos seus reformados o Estado Social. Para as reformas miseráveis dos velhotes portugueses, nem uma borla que se visse ou um aumento de jeito que se contasse.

    Agora, sempre na onda da modernidade saloia, Portugal tenta atrair os nómadas digitais, dando-lhes benefícios fiscais que não estão disponíveis para o comum dos portugueses que aqui residem. Um deputado do PS, madeirense, defendia o sucesso da iniciativa piloto feita na Ponta do Sol, uma belíssima localidade na ilha da Madeira.

    O centro de trabalho partilhado, o sol da ilha, o atractivo fiscal, a facilidade com as ligações aéreas. Tudo a funcionar melhor do que o esperado, e os nómadas digitais, carregados com os seus Macs e iPhones, foram chegando em números interessantes à ilha.

    man on sun lounger using laptop

    Dizia um dos responsáveis do projecto, com satisfação, que os nómadas deixavam na comunidade local, em média, 2.000 euros por mês. Não sou grande coisa a medir o sucesso, mas, assim de repente, 2.000 euros por mês parece-me a factura que qualquer família tem, entre renda ou prestação da casa, crédito do carro, contas da casa e abastecimento do frigorífico. Já parto do princípio que não compram roupa ou vão a um espectáculo cultural fora de casa.

    Portanto, visto daqui, os nómadas estão a receber benefícios fiscais para gastarem o mesmo que os locais gastam, com a agravante de terem de pagar mais impostos. Provavelmente, a maior parte desses nómadas, pela definição de nómada, partirão para outras paragens quando melhores condições aparecerem. Serão, quando muito, uma parte da população móvel. Julgo ser difícil estimar quantos, de facto, contribuirão para Portugal durante um período considerável.

    Nada tenho contra nómadas digitais. Aliás, se pensar naquilo que é a minha vida e situação profissional, até encaixo no conceito de nómada. E, sinceramente, é uma condição laboral que me agrada, a de não estar preso fisicamente a lado nenhum. Só não percebo é por que razão deve um nómada ter vantagens fiscais que os residentes não têm.

    silhouette of person across gray clouds

    Um país que não consegue garantir qualidade de vida a grande parte da sua população, deve concentrar esforços e recursos para atrair moradores temporários? Não devia o Governo tentar, primeiro, inverter a curva de crescimento populacional? Ou combater os baixos salários? Ou tentar ajudar os 50% que estão perto da pobreza? 

    Em simultâneo, os nossos jovens continuam a formar-se e a sair do país, em busca de salários decentes e de uma vida que não seja dominada pela pobreza ou pela voracidade da máquina fiscal.

    Todas estas medidas, quase patéticas, de atrair habitantes – também há uma em curso para emigrantes – fazem-me lembrar aquelas quedas gigantes que abriam joelhos na década de 90, quando era normal ver miúdos a correr na rua em zonas de alcatrão rugoso, posteriormente tapadas com um penso rápido que invariavelmente se colava ao sangue e infectava aquilo um bocadinho mais.

    Desde os tempos do Cavaco que vejo estradas e mais estradas, vagas de emigração, salários estagnados, corrupção inesgotável, clientelas como abutres no erário público. E depois, quando os governantes percebem que falta gente para produzir num país cada vez mais pobre, lançam estas campanhas saloias que nos vão transformando, cada vez mais, na República Dominicana da Europa. Venham para cá viver, há sol, praia e custos reduzidos. Para quem vem, não para quem já cá estava.

    high-angle photo of road with vehicles

    Pouco ou nada se faz para quem já está em Portugal, para que queira por cá continuar, formar família e deixar descendência. Desde 2006, perdi a conta ao investimento em estradas portuguesas, e já não sei em quantas autoestradas vamos. Vi que já há uma A30 e qualquer coisa, portanto, entre IPs, SCUTss e as ditas cujas, já devem ser mais de 50. Os suecos continuam com o mesmo número delas – bastante miseráveis, por sinal –, e, no total dos 2.500 quilómetros de comprimento do país, não devem chegar a 15% da quantidade que nós temos entre Faro e Bragança. 

    Mas cada casal tem em média mais de dois filhos e em menos de duas décadas fizeram a população crescer em quase um milhão de pessoas.

    Coisas que me parecem tão simples, opções que julgo serem tão óbvias, quando leio notícias sobre uma população envelhecida, feliz porque um gajo de iPods vai passar uns meses à Madeira.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os 1000 euristas e os entreténs do Froes, do Milhazes e do Rui Santos

    Os 1000 euristas e os entreténs do Froes, do Milhazes e do Rui Santos


    Sou um defensor do sistema progressivo de impostos e da sua aplicação em benefício da população, com prioridade para os três pilares de qualquer sociedade civilizada: Educação, Saúde e Segurança Social.

    Nunca concordei com taxas fixas de contribuição por as considerar injustas, e também, por princípio, nunca defendi uma redução de impostos, porque significaria condenar a Escola Pública ou o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ou talvez ambos.

    Contudo, os últimos anos fizeram-me mudar um pouco esta visão, pelo menos em Portugal. No país para onde emigrei, a Suécia, esta teoria é aplicada com sucesso. Impostos progressivos, altos a partir dos 3.500 euros e sempre aplicados a favor dos contribuintes.  Educação universal grátis, desde a creche até às universidades. Saúde pública e gratuita, onde até o dentista está incluído (até aos 26 anos). Apoio social nas pensões, no desemprego e na paternidade. Para mim, isto é o ponto de partida, o mínimo, para que um contribuinte sinta que faz sentido pagar impostos. Nunca conheci, em 18 anos aqui, um trabalhador que não gostasse de pagar impostos na Escandinávia.

    Em Portugal, são anos, décadas, de Governos cuja receita para combater o défice é apenas uma: aumentar impostos. Pior do que isso, o retorno para os contribuintes é cada vez menor. Lembro-me de há 20 anos os créditos à habitação terem alguns benefícios em sede de IRS. Lembro-me de universidades sem propinas. Lembro-me de estradas sem portagens. Lembro-me de transportes públicos, combustíveis e casas com preços aceitáveis.

    Em três décadas, em Portugal, e especialmente nos grandes centros, atingiu-se o patamar europeu para os custos de vida, mas ficou-se pelo nível africano de rendimentos. Os salários não crescem, os impostos multiplicam-se, o Orçamento de Estado é cada vez mais para as clientelas, bancos e construtoras; e menos para quem paga impostos. É um sufoco. Quando penso na vida que os 1000 euristas fazem em Portugal – ou seja, a grande maioria –, fico com uma sensação de falta de ar, de angústia, de sobrevivência.

    group of person on stairs

    E por isso, pela primeira vez, sou obrigado a concordar com Carlos Guimarães Pinto, que na Assembleia da República exigiu uma baixa de impostos aos 1000 euristas. A expressão é dele, e eu acho-a feliz. A inflação trouxe um jackpot de impostos ao Governo português, e já tinha escrito aqui, no PÁGINA UM, que esse rio de dinheiro inesperado tinha de ser usado a favor da população.

    A minha proposta inicial tinha sido uma ajuda nos créditos à habitação, porque considero que será essa a maior despesa das famílias. Mas uma redução da carga fiscal retirada ao salário também seria uma boa medida, provavelmente melhor, porque deixaria mais dinheiro no bolso, hoje e sempre, permitindo algo que defendo, desde sempre, que é uma divisão mais justa da riqueza.

    Insisto, contudo, na ideia de que só concordo com esta implementação em Portugal porque, como se percebe ao fim de décadas, os impostos são cada vez menos revertidos a favor dos contribuintes.

    Num sítio onde o dinheiro fosse bem aplicado, eu seria totalmente contra uma redução fiscal. Mas, em Portugal, uma pessoa tem de se render e observar a realidade: se o Estado, enquanto guardião dos nossos impostos, não nos garante, sequer, Escola Pública e Saúde Pública de qualidade, então, bom, é melhor de facto que as pessoas fiquem com dinheiro no bolso para o aplicarem como bem entenderem.

    people raising hands with bokeh lights

    Claro que isto significa ainda pior Escola, ainda pior Saúde, ainda pior Segurança Social, mas, convenhamos, quantas décadas mais é que vamos andar a pagar bancos, clientelas, estradas e políticos corruptos com ajustes diretos a empresas de amigos? Sem Justiça que funcione em tempo útil, e com uma corrupção que consome todo o erário público, é preferível que cada 1000 eurista tenha, pelo menos, dinheiro para chegar ao fim do mês.

    O Estado português fica com cerca de 30% de um salário de 1.000 euros. Na Suécia, essa é a carga fiscal de um salário quatro vezes maior. Portanto…torna-se um pouco indefensável a carga fiscal que se aplica aos baixos salários portugueses. E ainda se percebe menos como é que perante o congelamento de carreiras na Função Pública e os aumentos muito abaixo da inflação no sector privado, a população continua impávida e serena, a reclamar das greves ou das lutas dos trabalhadores.

    Entretidos com as palestras do Froes sobre a covid-19, do Milhazes sobre o Donbass e agora do Rui Santos sobre o Qatar, vamos deixando para segundo plano o facto inquebrantável de estarmos cada vez mais pobres.

    Meus amigos, a Roménia em 2024 ultrapassará Portugal. Repito-vos: a Roménia. Pelo andar da governação e políticas de desenvolvimento, se o Burkina Faso entrar para a União Europeia, temo que em cinco anos nos apanhará.

    people in a city during daytime

    Não há ninguém aí que queira partir qualquer coisa?

    Hoje o tempo é de união, mas também de garantir que os impostos deixam de ir para o BES, para a Lusoponte, para os ajustes directos aos maridos das ministras, para os ajudantes de secretários de Estado com 21 anos, para os empresários amigos, para a família do autarca que quer fazer obras no largo da igreja, para as viagens de Falcon até ao Qatar. O tempo é mesmo de gritar, de ir para a rua, de começar a exigir algo mais em concreto. Ou os impostos baixam ou os salários sobem. Desse lado já não se vive, sobrevive-se. É essa a realidade.

    Por isto tudo, é tempo de lutar, e de exigir que as elites governantes, simplesmente, deixem de nos roubar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha

    Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha


    As atenções no conflito ucraniano passam agora para a mesa das negociações e, até nesta temática, conseguimos formar barricadas de opinião. Discute-se sobre quem está de boa-fé ou a quem um acordo de paz não interessa.

    Por vezes, fico com a sensação de que nos embrenhamos tanto num tópico, que acabamos por perder o contacto com a realidade e, sem querer, assumo, estamos a debater a paz como quem troca o Rossio pela Avenida da Liberdade no Monopólio.

    red and yellow abstract painting

    Nesse caso, do Rossio, todos sabem que é mau negócio, mas no caso das conversações de paz, poderíamos baixar o nível de arrogância e tentar vestir a pele de quem está no terreno. 

    Dos vários discursos que ouvi, o prémio “pimenta no cu dos outros é refresco” vai para o major Isidro de Morais Pereira, que anda há seis meses a vender a receita da NATO para conflitos de longa duração. Dizia ele que, neste momento, um acordo de paz não faria qualquer sentido para a Ucrânia, porque, segundo a doutrina dos conflitos, o tempo seria desfavorável aos russos e a iniciativa estava do lado ucraniano. Traduzindo, queria ele dizer que o poder negocial da Ucrânia aumentaria com o tempo e o inverso aconteceria com os russos.  

    Esta é a posição de quem analisa o conflito a 5.000 quilómetros de distância e que, quando chega a casa, vê paredes inteiras, aquecimento e a família dentro de portas. Tenho alguma dificuldade em conceber que quem está na linha da frente, a morrer todos os dias (seja de que lado for), pense lá no seu íntimo que é melhor aguentar mais um mês ou dois a fugir de bombas para o Zelensky ou o Putin terem mais cartas para meter na mesa.

    yellow and red round plastic

    É um pouco aquele pensamento das elites que se dignam a pensar e escolher como deve a plebe morrer. Aguentem, vão morrendo mais uns pais de família em nome do melhor timing de negociação. E não se preocupem porque, se faltar dinheiro, há mais uns milhões de europeus para esmifrar. Para tudo, menos o Inverno frio, as elites parecem ter uma solução. Sempre, obviamente, à custa do couro alheio.

    Pessoalmente, acho que, não se evitando a guerra, um acordo de paz deve ser o objectivo desde o primeiro dia. Mas aceito que deve ser um pensamento utópico. Há que ir matando uns quantos pobres por dia até que os milionários que nos dirigem decidam que a altura de falar chegou. Assim como assim, também temos pobres para dar e vender, estamos só a escoar produto.

    Zelensky apresentou uma lista de exigências para se sentar à mesa que é uma espécie de máquina do tempo para um dia qualquer de dezembro de 2013. Russos fora do país, territórios devolvidos, fim dos ataques, reparações e mudança de regime [ou pelo menos outro a decidir que não Putin].

    Para muitos, esta é uma lista realista e justa porque, lá está, a Ucrânia foi invadida. Concordo com esse argumento, o de voltar tudo ao que era, mas isso transformar-me-ia num negacionista da guerra. Já me bastou a experiência com os confinamentos…

    red white blue and yellow round textile

    Tendo existido a invasão, e tendo a Ucrânia perdido territórios, a realidade é essa, pelo que, chegar com uma lista exigências ao nível de “vamos fingir que não aconteceu nada”, é o mesmo que dizer que não se quer negociar.

    Se a Rússia aceitasse as exigências do Zelensky para se sentarem… iam discutir o quê? Se o pagamento seria feito em rublos ou dólares? É que não haveria muito mais para discutir.

    E repito: justo seria a total retirada russa sem perdas de território para a Ucrânia, mas, normalmente, não é esse o cenário depois de uma invasão de uma potência mais forte. E, numa guerra, vence o mais forte, não o mais justo.

    Bem sei que, neste momento, aplicamos um filtro histórico para condenar o invasor, enquanto nos 70 anos anteriores não nos preocupámos muito com o tema, quando o invasor tinha as nossas cores, mas é assim que, normalmente, estas coisas acabam. Regra geral, com o nosso consentimento.

    Portanto, nesta luta de barricadas pela moral adquirida em 2022, eu pergunto, de forma pragmática: qual é a solução?

    blue and yellow striped country flag

    Ainda há quem acredite nas conversas da Ursula do “as long as it takes” (leve o tempo que levar)? Os alemães já avisaram que o stock de armas está em baixo, os italianos já não têm nada para dar, os americanos também já começam a apertar o bolso.

    Os indianos, chineses e turcos fazem negócios com os russos, sendo que os turcos jogam nas duas frentes. Os bálticos, sempre afoitos na condenação aos russos, como se viu no “míssil russo que caiu a Polónia”, já vão nos dois dígitos de inflação.

    Portugal envia equipamento que não funciona, os iranianos produzem armas para os russos, a Escandinávia está com um custo de vida descontrolado, o Sul da Europa está cada vez mais pobre e, na Alemanha, vão-se fazendo negócios à margem da estratégia europeia para garantir empregos e menos convulsão social.

    Neste cenário de catástrofe, repito a questão: qual é a solução? Até quando podemos pagar esta guerra que não nos diz respeito? E, por favor, não me venham falar em democracias, que é para não ter que ir buscar a posição da Rússia ou da Ucrânia no ranking das democracias até ao dia 23 de Fevereiro de 2022. 

    walking person holding blue and brown striped banner

    Quantas vezes temos que ver o aumento da prestação da casa, perder empregos ou ficar sem comida na mesa? Quantos russos ou ucranianos pobres é que têm que morrer mais na frente da batalha? Digam-me, qual é a solução que não esteja presa a um acordo de paz?

    Eu vejo três hipóteses:

    a) chegam a acordo agora e a Ucrânia perde territórios;

    b) chegam a acordo mais tarde e a Ucrânia perde territórios, mais soldados morrem e mais europeus empobrecem;

    c) a NATO entra oficialmente no conflito, havendo a hipótese de os ucranianos recuperarem o terreno todo. Morrem muitos mais soldados, empobrecem muitos mais europeus. Estamos na III Grande Guerra.

    Perdoar-me-ão os moralistas que acordaram para a História das Nações em 2022, mas, visto daqui, a escolha é tremendamente simples. Para hipocrisia, já me chegaram os 20 anos em que a Europa apertou a mão ao Putin e com ele fez todo o tipo de negócios, sem querer saber de democracias ou teorias imperialistas.

    São, somos, cúmplices do que se está agora a passar. Já que não o soubemos evitar, tenhamos pelo menos a capacidade de lhe colocar um fim.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Salivando por uns mísseis russos caindo na Polónia

    Salivando por uns mísseis russos caindo na Polónia


    Desta vez, o rodapé de breaking news fazia mesmo sentido: tinham caído mísseis russos em território polaco e, por isso, na CNN Portugal reunia-se um painel de sete ou oito comentadores, desde generais da NATO a comandantes de coisas, a especialistas de comunicação. Até a Helena Ferro Gouveia lá estava como especialista em comentários de Helena Ferro Gouveia… Percebi logo, de imediato mesmo, que aquilo era uma breaking news mesmo de break.

    Ainda tentava perceber onde ficava Przewodów, uma vila no leste da Polónia, e já na CNN Portugal se debitavam todas as teorias. Aliás, para ser sincero, não eram assim tantas teorias, era apenas uma: os russos atacaram um país da NATO.

    Depois, mostravam prudência, eram cautelosos com as palavras, tentavam arranjar justificação, mas, em momento algum, se ouviu que o envolvimento da NATO no conflito traria essencialmente vantagem à Ucrânia.

    O comandante João Fonseca Ribeiro (SEDES) ainda disse que, dada a distância de Lviv à fronteira, seria pouco provável que uma anti-aérea lá chegasse. Usou até, para efeito de comparação, um ataque a Lisboa que fosse defendido na Nazaré.

    Um dos especialistas em comunicação dizia, acrescentando ao porquê dos russos atacarem a Polónia, que eles precisavam de mostrar a sua força depois da perda de Kherson. O general da NATO, Isidro Morais Pereira, teorizava que este era o modo habitual de actuação das forças russas. A cada perda no terreno, retaliavam indiscriminadamente. Portanto, a Polónia era consequência da humilhação em Kherson.

    No fundo, todos culpavam os russos do ataque e procuravam uma justificação para o sucedido que encaixasse nesta narrativa.

    Por esta altura, já eu tinha localizado Przewodów no mapa, e mantinha a estupefacção por ninguém questionar o óbvio: qual a vantagem russa numa intervenção da NATO neste conflito? Pois… nenhuma. Então, porque atacariam os russos um território protegido pelo artigo quinto? Não parecia fazer qualquer sentido.

    Escrevi então, na noite de 15 de Novembro, o seguinte:

    ———“Enquanto ouço uma verdadeira constelação, pergunto-me, porque iriam os russos disparar mísseis para um território da NATO, no final de uma guerra que já tinham no bolso? (Segundo o amigo Joe)

    Parece algo estupidamente surreal e um gigante tiro no pé do Kremlin, que faria desta forma um enorme favor à Ucrânia – e um péssimo serviço ao resto da Europa.

    Ainda assim, sem dizerem muito, porque nada sabem nesta altura, os comentadores de serviço admitem apenas uma hipótese. Surprise, surprise.

    Há até alguma excitação. Pode estar aí finalmente a III GG”——–

    Era essencialmente o que me parecia ouvir. Um certo salivar com a possibilidade de um conflito global e muito pouca lógica no raciocínio.

    Escrevi no PÁGINA UM, no artigo anterior, o que me pareceu que tinha acontecido em Kherson, e por isso não me vou repetir. Mas admitindo essa tese, que Kherson foi uma moeda de troca para que os ucranianos se sentassem à mesa, já pressionados pelo acordo com os Estados Unidos, que vantagem teriam os russos nesta escalada?

    yellow and blue wooden fence

    As negociações de paz trariam certamente territórios para a Rússia. A entrada da NATO no conflito seria provavelmente a única forma da Ucrânia não perder partes do Donbass e a Crimeia. Portanto, a situação criada era totalmente desfavorável aos intentos dos russos. Não fazia sentido. Era totalmente contraproducente.

    Faço aqui uma pausa para explicar algo de que venho sendo criticado frequentemente. O facto de eu achar estranho um ataque russo num país da Aliança, não quer dizer que defenda a invasão de Putin, não quer dizer que eu queira que um regime destes tenha ganhos com esta guerra e muito menos quer dizer que eu menospreze mortos, venham de onde vierem.

    Nunca, jamais, em momento algum o meu lado será o do invasor, venha ele de Moscovo, Telavive ou Washington.

    Agora, não me parece é fazer muito sentido construir análises baseadas naquilo que gostaríamos que acontecesse. Há meses escrevi que as sanções económicas trariam problemas à Europa e que essa não seria a forma certa da União Europeia se posicionar. Ontem, no encontro do G20, um representante inglês disse que a culpa da inflação na Zona Euro era da Rússia. Afinal, em que ficamos?

    gray concrete statue of man

    Não eram as nossas sanções que iam destruir a Economia deles? Portanto, uma coisa é querer derrotar o invasor, o que em princípio todos queremos; outra coisa é concordar no caminho para lá chegar.

    Lamento muito que não tenhamos a capacidade de separar o ideal da realidade, mas, também por isso, é que os especialistas e jornalistas no terreno nos devem informar no melhor das suas capacidades. Se repetidamente a realidade desmente quem nos traz a informação, como é que podemos tomar como bons os canais de propaganda? Digo isto sem qualquer ironia porque eu quero acreditar no que ouço. Quero que as dúvidas que qualquer um de nós tem, em tempos difíceis, sejam debatidas sem clubites.

    Eu quero, em resumo, que alguém me explique por que razão o Kremlin lançaria mísseis sobre a Polónia, quando se preparava para meter territórios no bolso. E notem, eu não fico contente com a perda de território por parte da Ucrânia, mas era essa a mais do que provável realidade, logo, partindo dessa premissa…em que cabeça mais tresloucada do comando russo caberia um ataque à Polónia? Não fazia qualquer sentido. Zero.

    Mas as bases estavam lançadas e as sentenças estavam dadas. Menos de 12 horas depois, na madrugada de dia 16, já a Associated Press, a presidência norte-americana e mais não sei quantas fontes diziam que os mísseis que atingiram a Polónia eram ucranianos, provavelmente dos seus sistemas de defesa. Os tais da Nazaré…

    grayscale photo of concrete houses

    Como é que uma pessoa que espera e desespera pelo fim da guerra, que tem a vida afectada por isto, e que vê com alguma angústia o futuro, pode confiar num bando de falcões que se reúne, em horário nobre, para salivar por mais armas, dinheiro, pobreza ou intervenções da NATO? De que me serve acreditar em quem apela à paz, mas vive da guerra?

    A falta de credibilidade está mais do que comprovada, resta saber como é que vão agora disfarçar a incompetência.

    Uma noite, outra, para esquecer, em direto, na CNN Portuga… Também já não é notícia, não é?.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A emboscada em Kherson… já aconteceu?

    A emboscada em Kherson… já aconteceu?


    Esta semana atingimos o pico da contra-informacão na Guerra da Ucrânia, e a minha expectativa era perceber de que forma os entusiastas, das bombas pela paz, iam justificar o que se passava em Kherson.

    Como não percebo nada de estratégia militar – algo que, em princípio, faria de mim um excelente comentador para a Sic Notícias –, limito-me a ouvir as explicações de quem, em teoria, sabe. E depois começo a tentar ligar os pontos, evitando “aprender História no Rambo III” – esta frase não é minha, por isso vai em aspas, mas não me canso de a usar.

    blue and yellow striped country flag

    Durante sete dias ouvi várias análises à retirada dos russos de Kherson e a sua passagem para a margem esquerda do Dnipro. A tese mais repetida era que tudo acabaria numa emboscada das forças russas aos combatentes ucranianos. Não sei se se lembram dos diretos, com os correspondentes no local, a afirmarem que soldados russos entravam em lojas de roupa e saíam de lá vestidos à civil, continuando a andar pelas ruas incógnitos, mas armados.

    A primeira coisa que pensei foi que, ao contrário das anteriores retiradas, feitas à pressa e com tudo destruído, desta vez os russos saíam tranquilamente, com horário marcado e transmissão em directo para o Mundo. Em simultâneo, os ucranianos, que estavam ali a poucos quilómetros, vendo algumas das tropas de elite da Rússia a abandonarem as posições, não dispararam um único tiro. Para quem não percebe nada disto, como assumidamente é o meu caso, parecia jogo combinado.

    Putin e o seu ministro da Defesa falavam, na televisão russa, sobre a retirada e os benefícios de colocarem as linhas de defesa na outra margem do rio, beneficiando da barreira natural. Se não havia dúvida quanto à encenação, a minha curiosidade era perceber a quem se destinava a mensagem.

    Zelensky mantinha o discurso desconfiado, e dizia que não só não acreditava na retirada pacífica como afirmava que os russos estavam a deixar para trás milhares de minas terrestres.

    Os habituais representantes da NATO nas nossas televisões insistiam na história da emboscada e algumas vozes, poucas, diziam que toda esta narrativa era falsa, que “retiradas não se anunciam”.

    Depois das eleições norte-americanas corre a notícia que Joe Biden terá puxado a ficha que mantinha a guerra ligada e que terá chegado a acordo com a Rússia. É por esta altura que se reafirma que, mesmo sem telefone vermelho, Washington e Moscovo nunca deixaram de falar.

    Aqui já começo a ouvir alguma coisa que parece fazer sentido.

    Desde que os norte-americanos assumiram, há uns meses, numa visita do seu secretário da defesa aos Bálticos, que procuravam desgastar os russos nesta guerra, que se tornou claro que seriam eles a determinar o seu fim. A posição mais conservadora dos republicanos sobre o fim do apoio militar, e financeiro à Ucrânia e o resultado das eleições intercalares, obrigaram Joe Biden a tomar uma posição.

    Poucos dias depois das eleições, numa conferência na Casa Branca, um porta-voz do governo disse que cada lado nesta contenda já teria perdido cerca de 100 000 vidas e era altura de se falar em paz.

    Reparem que, durante meses, o Ocidente declarava rios de mortos russos e quase nenhuma baixa ucraniana. De repente, temos um empate técnico e todos dizemos que sim. Que serve.

    Kherson é libertada sem combates e a população pró-ucraniana enche a cidade. Zelensky vai até lá, à tal cidade cheia de minas e russos disfarçados, e passeia sem qualquer problema.

    O Kremlin dá uma desculpa esfarrapada, que pretende poupar a vida dos seus soldados e por isso retira. Todos percebemos que o Kremlin nunca quis saber de soldados seus e provavelmente está a oferecer uma vitória ao Zelensky, a troco do que se seguirá. Curioso é que da primeira vez em que o regime de Putin está a mentir sem sequer disfarçar, Rogeiro e Milhazes afirmam que essa mentira é apenas para esconder a incapacidade de segurarem a cidade. Ou seja, para eles, Kherson foi mesmo uma vitória militar e a retirada a única hipótese possível dado o cerco ucraniano.

    Ninguém se parece lembrar que, nesta guerra, os russos continuam em maioria de efectivos e armamento, mas aceitamos como normal que as tropas de elite fujam com medo. Ou que Putin, um sanguinário, perca a única capital que tinha na mão desde o início, sem espernear muito.

    Zelensky que passou a semana da retirada a dizer que nem um centímetro a Ucrânia cederá, chega a Kherson de sorriso amarelo e anuncia o início do fim da guerra. Mas como assim? Que condições tem hoje Zelensky para se sentar a uma mesa com o invasor, que continua a ocupar terrenos no Donbass e na Crimeia, que não tinha na semana passada?

    Tem ele a grande vitória em Kherson: anunciada, televisionada e consentida. É essa a porta de saída para esta guerra. Os russos desistem da ligação a Odessa e àquele território no meio da Moldávia que ninguém sabe onde fica (Tiraspol – Transnístria) e “congelam” o mapa mais ou menos onde estão acampados neste momento.

    Por essa razão é que, provavelmente, enquanto fugiam para “poupar vidas” em Kherson, gastavam uns quantos esqueletos mais a norte, conquistando territórios na zona de Donetsk. O objectivo estará traçado e parece ser uma ligação do Donbass à Crimeia, pela margem esquerda do Dnipro.

    O discurso de Zelensky, antes e depois de chegar a Kherson, explicam, só por si, a quantidade de propaganda misturada com informação que andamos a receber estes meses todos. Que a guerra caminha para o fim, parece agora óbvio, até porque os seus comandantes assim o dizem – Estados Unidos e Rússia – e os executantes não podem mais do que obedecer. Que ninguém pode sair daqui derrotado também julgo ser consensual, e aí Kherson terá um papel importante.

    Resta-me perceber como é que se vão anunciar perdas de território como vitórias, e se tanto Zelensky como Putin sobreviverão politicamente ao desfecho desta guerra. Ou como diz o meu filho, na tese que me apresentou, pode ser que o Zelensky desobedeça ao Joe e siga a luta por conta própria. Seria nobre, respondi-lhe, mas suicida.

    Funcionou só uma vez, eu sei: mas era o Stallone que empunhava a metralhadora.    

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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