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  • Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…


    No seu editorial do passado 4 de Abril no jornal Público, Manuel Carvalho zurze em “majores generais” e em “aprendizes de espiões” que promovem a desinformação.

    Omitiu ele que o Público foi já um promotor de desinformação na primeira fase da injustificável invasão da Rússia, quando anunciou, em 25 de Fevereiro, que 13 soldados ucranianos tinham sido massacrados na ilha das Serpentes, para surgir três dias depois com uma, enfim, “actualização” (sic): afinal os homens estavam vivos. O Polígrafo tratou de fazer a “limpeza“. Ou tentar fazer.

    O Público, esse, e Manuel Carvalho, esse, não pediram desculpas aos leitores. Por quem sois.

    Nem se lembrou ele serem essas atitudes desresponsabilizantes – que perpassam a legacy media –, que alimentam hoje a falta de confiança dos leitores na imprensa, nos jornalistas.

    Colocar dúvidas sobre os agentes do massacre de Bucha não se deve à desinformação que possa vir da propaganda russa – como em tempos houve propaganda norte-americana para justificar a invasão do Iraque – nem às análises mais ou menos enviesadas e erradas de “majores generais” alegadamente putinistas ou de “aprendizes de espiões” sem o corte de cabelo de Nuno Rogeiro.

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    A incredulidade deve-se à situação da imprensa, à qualidade da sua informação, porque quase todos os jornalistas deixaram de querer ser meros observadores ou árbitros, que são funções nobres e primordiais numa sociedade democrática, para se transformarem em diligentes arautos da verdade imediatista, em sacerdotes de uma doutrina maioritária.

    Na pressa, e sobre a pressão de serem os primeiros, muitos jornalistas optam por “publicar” agora primeiro e “confirmar” depois, subvertendo o princípio basilar do jornalismo. Na verdade, nem sequer confirmam depois, ou se o fazem e verificam que meteram os pés pelas mãos, saem de mansinho como sendeiros.

    Nunca a imprensa mainstream gosta de admitir ser o rei que vai nu, e até tem horror ao espelho. Não acredita sequer que não acreditam nela, e quando se lhe mostra o descrédito, apontam-no como mera maledicência de uma minoria sem expressão da realidade.

    Não é, por mais vezes e vozes que lhes diga o contrário.

    O descrédito de jornalistas como Manuel Carvalho é um descrédito que plasma sobretudo nos momentos em que, pomposamente, se entoam grandiloquentes princípios de ética jornalística.

    Note-se esta passagem do seu editorial de 4 de Abril, após a zurzidela nos “majores generais” e “aprendizes de espiões”, e onde defende até o seu direito a expressarem-se [presumo que com um letreiro a atestar serem “desinformadores, pela forma como ele os destrata]:

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    Se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão. Um bem precioso, mas delicado, que é melhor ter a mais do que a menos. Uma leve amputação pode confortar a consciência no presente – mas implica um risco para o futuro.”

    Ui! Palavras como boomerangs!

    Vamos ser claros: sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Ou, pelo menos, no dia 19 de Agosto de 2021.

    “Despublicaste” um artigo de opinião do médico Pedro Girão, e ainda escreveste, para opróbrio do dito, a seguinte nota editorial intitulada “Um erro e um pedido de desculpas”:

    Um erro de controlo editorial corrigido nesta quinta-feira às 17h42 permitiu que um artigo de opinião (‘Uma vacina longe de mais’) assinado pelo médico anestesiologista Pedro Girão estivesse disponível na nossa edição digital durante horas.

    A sua despublicação justifica-se não apenas pelo tom desprimoroso e supérfluo usado pelo autor em relação a várias personalidades da nossa vida pública, como pelo seu teor que, de forma ora mais velada, ora mais explícita, tende a instigar a ideia de que a vacina contra a covid-19 é ‘uma experiência terapêutica’ sem validade científica.

    Como é do conhecimento dos nossos leitores, o PÚBLICO é um jornal que cultiva e estimula a diferença de opiniões que alimenta as sociedades democráticas. Mas há padrões e valores que não podem ser cedidos em nome do pluralismo. Numa questão tão sensível como a da pandemia, recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas.

    Por isso errámos ao publicar o texto e por isso agimos com a celeridade possível para corrigir esse erro, despublicando o artigo em questão e pedindo desculpas aos nossos leitores pelo sucedido.

    Ora, hoje sabemos que Manuel Carvalho errou, mas não foi apenas por ter exercido um reles acto de censura, ainda mais eufemisticamente auto-classificado de “despublicação”.

    Manuel Carvalho cerceou uma opinião porque, entre outros considerações, recusava “em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas”, e Pedro Girão era uma das vozes que publicamente criticava o tema quente de então: a vacinação de adolescentes.

    Mas hoje sabemos sobretudo que o consenso em redor das vacinas em adolescentes nunca existiu mesmo no seio da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que integra 12 insuspeitos “peritos”.

    E sabemos não graças a perguntas de Manuel Carvalho ou dos jornalistas do Público – que sempre se mantiveram unha com carne da narrativa do Governo, do Presidente da República e da Direcção-Geral da Saúde – alvos das críticas do artigo “despublicado” de Pedro Girão –, mas das insistências e da luta do PÁGINA UM.

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    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM perguntou pelos documentos à DGS, e não ficou satisfeito com o silêncio, e recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, e insistiu e insistiu, e ganhou para os “arrancar”. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que fez perguntas incómodas à DGS e lhe pediu documentos para comprovar ou desmentir a narrativa. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje, graças ao PÁGINA UM, que em 8 Agosto do ano passado, 11 dias antes do acto de censura do Público a Pedro Girão, que cinco membros da CTVC não votaram favoravelmente o parecer que recomendava a vacinação dos adolescentes. Quatro dos 12 peritos votaram contra, e um decidiu não votar. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que divulgou essa informação.

    Informação essa que deveria ser agora cruzada com o acto de censura de Manuel Carvalho em Agosto de 2021 e com esta frase do mesmo Manuel Carvalho em Abril de 2022: “uma leve amputação [leia-se, censura] pode confortar a consciência no presente, mas implica um risco para o futuro”.

    Nunca vai haver desculpas de Manuel Carvalho, porque não se pode esperar desculpas quando se andou meses e meses a fio alimentando e propalando o mito do consenso, o mito da certeza absoluta baseada na Ciência, o mito da existência de uma estúpida, tresloucada e marginal franja de “negacionistas assassinos” anti-vacinas, onde se metia todos aqueles que questionavam e incomodavam com perguntas e opiniões dissonantes.

    Aquilo que Manuel Carvalho e o Público fizeram, ao longo de toda a pandemia, não foi defenderem a liberdade de expressão e de opinião; foi sim o oposto. Chegaram ao cúmulo de se munirem de um lápis negro para “limpar” supostas heresias, quando, por engano, não se aperceberam do conteúdo.

    Isto não pode jamais ser esquecido, e deve ser agora sobrelevado mais ainda por causa do fingido editorial de Manuel Carvalho do passado 4 de Abril.

    Mas, para mim, pior do que aquilo que Manuel Carvalho fez no Verão passado, é aquilo que Manuel Carvalho fez no final do Inverno passado e na Primavera que se iniciou. E continuará a fazer.

    Já passaram 24 dias – não são 24 horas, são 24 dias – desde que o PÁGINA UM publicou integralmente – até para a concorrência ver, ler e usar – todos os pareceres da CTVC, incluindo aquele de 8 de Agosto de 2021 sobre o programa de vacinação dos adolescentes.

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    Nesse parecer mostra-se, prova-se, de forma indesmentível, que o consenso nunca existiu sobre a vacinação de adolescentes. Mostra-se, prova-se, que Pedro Girão tinha razão quando escreveu, por exemplo, que “a posição do Presidente da República nessa matéria [apoio incondicional à vacinação de adolescentes] é absolutamente escandalosa, parecendo baseada em conhecimentos débeis do assunto, em hipóteses duvidosas, em desvario emocional, ou em possíveis interesses.”

    Para Manuel Carvalho, isso pouco importa agora.

    O PÁGINA UM até chegou a aguardar três dias, depois de 14 de Março passado, antes de escrutinar o conteúdo daquele parecer dos adolescentes, e fazer a notícia sobre o assunto. Quis testar a legacy media; saber se a concorrência pegava no assunto.

    Confirmou-se. Ninguém quis. Pudera: arder-lhes-iam as mãos. Teriam de se vergar, e envergonharem-se pelos actos passados.

    Nem quando a própria DGS divulgou no seu site os ditos pareceres, que desmoronam toda a narrativa do alegado consenso, a imprensa mainstream se mexeu. Era o que faltava.

    Ah, mas talvez eu esteja a ser demasiado exigente com Manuel Carvalho. O Verão passado já passou.

    As suas incongruências e hipocrisias, não.

    Contudo, não se livra Manuel Carvalho de uma coisa: escrevendo ele agora, no ano da graça de 2022, que “se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão”, então eu direi, ao abrigo da liberdade de expressão, que o jornalismo deveria expugnar-se de pessoas como ele.

    São pessoas como ele, Manuel Carvalho, que, infeliz e lamentavelmente, embora se espere não inexoravelmente, descredibilizaram a imprensa.

  • Nada há de mais humano do que a desumanidade

    Nada há de mais humano do que a desumanidade


    Não quero saber, por agora, se é ou não encenado. Se quem fez aquilo foram os russos ou os ucranianos para acicatar o Ocidente a diabolizar ainda mais alguém que é, era e será um diabo enquanto estiver no poder. Há fortes indícios de massacre. Deve ser investigado, de forma independente; não sei se para já. Não sei se se chegará alguma vez à verdade.

    A verdade é maleável, depende do poder, depende de quem sai vitorioso de uma contenda. Nem sempre coincide com a realidade. A verdade pode ser imposta. A mentira pode ser tornada verdade, por mais evidências que possam aparentemente existir. A História farta-se de nos dar desses ensinamentos.

    Mas importante, talvez sim, seja reflectirmos, desde já, noutro aspecto essencial: aquilo poderá ser real porque é possível? SIM.

    Sim, infelizmente é muito, muito possível que aquela situação em Bucha seja real, e que tenha sido causada pelos russos.

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    E mesmo que não seja, nada nega uma invasão, que tantas mortes já causou. E mesmo que sejam militares, essas vidas perdidas não são justificadas nem legitimadas por os corpos estarem vestidos com uma farda. Eram vidas.

    E ter acontecido mesmo um massacre de civis, será Bucha inédito, merece uma consternação em êxtase, o nosso estupor perante um horror inaudito, uma inqualificável desumanidade? NÃO.

    Lembro-me sempre, desde que escrevi essa frase, da passagem de um dos meus romances em que o narrador, por sinal o diabo, argumenta (cito de cor) que “nada há mais humano do que a desumanidade”.

    Bucha deveria chocar-nos não por ser inédito, não por ser uma surpresa, mas exactamente por ser expectável.

    Lembremo-nos, apenas para nos mantermos num cenário similar, de Grozny. Não foi assim há tanto tempo. Putin “esteve” lá.

    Mas lembremo-nos também que nenhuma guerra, nenhuma outra guerra mata ou matou com contos de fada.

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    Nenhuma das mais de 10 milhões de vidas perdidas em conflitos armados desde a barbárie da chamada II Guerra Mundial, muitos sem ser televisionados, foi através de doces canções de embalar.

    Nos últimos dois anos, antes da invasão da Ucrânia, a base de dados do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED) contabilizou 73.199 mortes no Afeganistão em conflitos bélicos, 38.146 mortes no Iémen, 17.671 mortes Nigéria, 16.704 mortes no México, 14.083 mortes na Síria, 11.723 mortes no República Democrática do Congo, 11.365 mortes no Myanmar e 10.528 mortes no Brasil, que nem sequer está formalmente em guerra, mas onde a violência armada é endémica. Dois anos apenas, e mais conflitos se registaram.

    Os mesmo dirigentes políticos da Europa que agora correm a chamar nomes a Putin e a ameaçá-lo com o Tribunal Penal Internacional (TPI) andaram a banquetear-se à sua mesa e à dos seus oligarcas durante, pelo menos, duas dezenas de anos. E andaram a alimentar guerras e conflitos, nem que fosse através da indústria do armamento.

    Andaram em jogos perigosos com quem nunca foi de confiança.

    Por isso, não se surpreendam, pelo menos se honram a vossa inteligência, com as atrocidades na Ucrânia. Não são de agora nem são só de lá.

    Não esqueçam Bucha, não esqueçam Grozny, não esqueçam sobretudo como chegámos aqui.

    Porque se esquecerem, haverá sempre mais Buchas, com Putin e sem Putin. Com Zelenski e sem Zelenski.

    Haverá sim estas contínuas atrocidades, estas humanas desumanidades, se as democracias ocidentais mantiverem este estilo de virgens surpresas.

    E haverá os vossos horrores para amenizarem as vossas consciências. As nossas consciências. Pesadas. Sempre. Como se fôssemos todos culpados. E talvez sejamos, mas por inacção, antes dos conflitos. Por pouco pressionarmos os nossos dirigentes políticos. Preocupamo-nos só perante as monstruosidades, e pouco com aquilo que vai alimentando os monstros. E esses monstros são alimentados pela realpolitik.

  • Manifesto consciente e com Ciência contra os senhores inquisidores dos tempos modernos

    Manifesto consciente e com Ciência contra os senhores inquisidores dos tempos modernos


    Por quatro vezes, pelo menos, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já se debruçou sobre a magna questão da legitimidade dos jornalistas em chamarem alguém, a pretexto da pandemia, de “negacionista”.

    Em 9 de Dezembro do ano passado, sobre um artigo da Visão, a ERC considerou que como uma peça jornalística “se reporta[va] a um conjunto de pessoas que ou negam a existência da pandemia de covid-19, ou a sua gravidade, ou a validade científica das respostas de combate à doença”, então mostrava-se “adequada e contextualizada a terminologia (‘negacionistas’)”.

    No mesmo dia, abordando mais duas outras peças, ambas do Observador (a primeira publicada em 12 de Setembro; a segunda em 21 do mesmo mês) , a ERC considerava também adequada a terminologia “negacionistas” usada para retratar uma manifestação contra a vacinação contra a covid-19 de crianças realizada em Setembro do ano passado. E acrescentavam os membros da ERC que “negacionistas” era já expressão “globalmente utilizada para descrever pessoas e grupos de pessoas que negam os conhecimentos científicos existentes, à data, sobre a covid-19”.

    Mais recentemente, em 23 de Fevereiro passado, a ERC reiterou a sua posição anterior, e, nessa medida, concordava até com a TVI que, em defesa do seu jornalista José Alberto Carvalho, alegou a existência de um insondável “princípio, estatisticamente correto, segundo o qual negacionistas (pessoas que negam a existência da covid-19 ou são críticos das restrições impostas para a resolução do problema de saúde pública por ela colocado) teriam tendencialmente taxas de vacinação e logo de imunização mais baixas do que a população em geral”.

    Os excelsos membros da ERC “comeram” de bom modo o tal “princípio, estatisticamente correcto” ditado pela TVI, tal como consideraram que qualquer pessoa que questione e critique uma determinada “linha maioritária” seja “negacionista”.

    Compreende-se, lendo os seus curricula:

    Sebastião Póvoas, o seu presidente, é licenciado em Direito e juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

    Mário Mesquita, o seu vice-presidente, é licenciado em Comunicação Social e foi jornalista.

    Francisco Azevedo e Silva é licenciado em História da Arte e foi jornalista.

    Fátima Resende é licenciada em Direito.

    João Pedro Figueiredo é licenciado em Direito.

    Nenhum dos excelsos membros da ERC se vê obrigado, portanto, a ler artigos científicos sobre Epidemiologia ou Ciências Médicas.

    Até porque são eles sobretudo pessoas de Fé: acreditam na Direcção-Geral da Saúde, no Governo, no vice-almirante herói da Nação, na TVI, na demais imprensa amen, etc..

    Mas mesmo que lessem, seguiram os dogmas contra a pravidade e apostasia .

    Por exemplo, sem pestanejar mas sem evitar também um estremecimento de horror, determinariam que, perante um texto intitulado “The illusion of evidence based medicine”, os seus autores, um certo Jon Jureidini e tal Leemon McHenry, eram “negacionistas” impenitentes e relapsos.

    Benzer-se-iam se chegassem ao lead, com a seguinte frase: “A medicina baseada em evidências tem sido corrompida por interesses corporativos, regulamentação falhada e mercantilização da academia”.

    E exorcizariam os hereges perante o seguinte trecho: “Os reguladores recebem financiamento da indústria e usam ensaios financiados e realizados pela indústria para aprovar medicamentos, sem, na maioria dos casos, ver os dados brutos. Que confiança temos num sistema em que as empresas farmacêuticas podem ‘marcar o seu próprio trabalho de casa’ em vez de ter os seus produtos testados por especialistas independentes como parte de um sistema regulatório público?”

    E sentenciariam à mesma um anátema mesmo se lhes dissessem que o primeiro autor é um psiquiatra infantil da Faculdade de Medicina de Alberta e o segundo é um especialista em bioética e professor emérito de Filosofia da Universidade Estadual da Califórnia.

    E confirmariam a sentença mesmo que lhes argumentassem que esse artigo tinha sido publicado na conceituada revista científica BMJ.

    E também decretariam ser um “negacionista” quem questionasse a Direcção-Geral da Saúde para disponibilizar dados e relatórios, e que, após uma “luta” para obter alguns desses dados, revelasse que, afinal, andou-se a vacinar adolescentes quando cinco dos 12 membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) não concordava com a medida. Como eu fiz.

    Também promulgariam ad perpetuam rei memoriam ser um “negacionista” quem questionasse a ética do senhor vice-almirante Gouveia e Melo e da Direcção-Geral da Saúde de quererem vacinar a torto e a direito os recuperados da covid-19, sabendo – porque sabiam – que este grupo não tinha sido incluído nos ensaios clínicos das vacinas, e que existiam já indicações sobre os riscos de efeitos adversos das ditas serem superiores nesses em comparação com aqueles que nunca antes tinham tido contacto anterior com o vírus. Como eu fiz.

    E também deliberariam in saecula saeculorum ser um “negacionista” quem questionasse a ética deontológica de certos jornalistas e o sentido ético dos membros da ERC. Como eu fiz.

    E por esses benquistos motivos, porque chamar “negacionista” a alguém incómodo é um expediente muito cómodo para evitar questionamentos, o jornalista José Alberto Carvalho não tem assim de provar coisíssima nenhuma.

    Nem tem ele e ela de mostrarem estudos a suportar aquelas afirmações. Um dogma surge da Fé.

    Nem a ERC exigirá, a si e à TVI, que seja provada a existência de um “princípio, estatisticamente correto, segundo o qual negacionistas (pessoas que negam a existência da covid-19 ou são críticos das restrições impostas para a resolução do problema de saúde pública por ela colocado) teriam tendencialmente taxas de vacinação e logo de imunização mais baixas do que a população em geral”. Um dogma não necessita de comprovação nem comprovativo.

    Resultado do teste serológico de IgG em 24 de Março de 2022 com referência ao valor obtido em 20 de Dezembro de 2021 para um “recuperado” em Junho de 2021 e não-vacinado nem com teste positivo nos últimos 10 meses.

    Não têm eles, nem ninguém, nem muito menos a Direcção-Geral da Saúde, nem o vice-almirante, nem quem o premiou, nem os excelsos membros da ERC terão que dar explicações sobre as razões pelas quais eu e muitos outros recuperados da covid-19 – mais precisamente, agora, um terço da população – temos de nos vacinar se quisermos ser, ou continuar a ser, cidadãos de pleno direito no século XXI, uma vez que só assim, com injecções cujos efeitos não são conhecidos (aguarda-se que o Infarmed cumpra o parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos), receberemos uma espécie de “carta de alforria” como obedientes súbditos dos paladinos de um bem comum e das nossas vontades.  

    E se eu, recuperado há nove meses, argumentar que a Ciência me indicou, através de um teste serológico em Dezembro de 2021, que os meus níveis de IgG no sangue eram de 427,00 BAU/ml, e que três meses mais tarde (terceira semana de Março) o valor era de 438,00 BAU/ml (não me tendo vacinado nem sentido quaisquer sintomas de nova infecção nesse interim), e que, portanto, não vislumbro necessidade de vacinação, então têm eles todos o “direito” de me chamarem “negacionista”. E de me prescreverem castigo compatível.

    E podem ter, sim, esse poder.

    Não devem é chamar a isto uma democracia.

  • Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal

    Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal


    Não sei por que razão – talvez seja muito pela sonoridade do nome –, sempre que sou confrontado com algo chocante do ponto de vista do funcionamento de uma sociedade, surge-me de imediato o Burkina Faso na cabeça. Não me aparece tanto Ouagadougou, a sua capital, porque nunca consegui decorar este nome, e pronunciá-lo exige esforço suplementar.

    Enfim, e surgiu-me esta manhã novamente o Burkina Faso na mente, e não por acaso: foi no exacto momento em que li um e-mail para mim enviado pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) com um “despacho” da juíza secretária, de seu nome Ana Cristina Dias Chambel Matias.

    Versava a magna questiúncula sobre se um cidadão de uma república constitucionalmente democrática – leia-se, Portugal – tem o direito de aceder a documentos administrativos na posse daquela entidade que superintende os juízes.

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    Neste caso, documentos relacionados com a Operação Marquês, o qual já merecera um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Pensava que era um e-mail para me informar que podia ir consultar finalmente os documentos.

    Não era. Era para me informar de que, apesar do parecer da CADA, o CSM não os quer ceder. Que eu vá, diz-me o CSM, “intentar respetiva acção especial no Tribunal Administrativo, cujos juízes são avaliados pelo próprio CSM…

    Deu-me, entretanto, um vaipe e resolvi que deveria ser mais justo com o Burkina Faso, e corri a consultar o Índice do World Justice Project do Estado de Direito.

    E penitencio-me agora pela injustiça da associação.

    O Burkina Faso não é o pior país do Mundo em matéria de Estado de Direito. Longe disso.

    No que diz respeito ao indicador das restrições legais do Poder do Estado, o Burkina Faso está na posição 61 em 139 países. O pior é a Venezuela.

    Sobre a ausência de corrupção, o Burkina Faso surge também na posição 61. O pior é a República Democrática do Congo.

    Em relação à transparência e abertura do Governo aos cidadãos, o Burkina Faso ocupa a posição 80. O pior é o Egipto.

    Relativamente à consagração de direitos fundamentais, o Burkina Faso está no lugar 69. O pior é o Irão.

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    No que concerne à ordem e segurança, o Burkina Faso está na 128º posição. O pior é o Afeganistão.

    Em relação à aplicação das leis e regulação, o Burkina Faso encontra-se no lugar 74. O pior é a Venezuela.

    Na aplicação da justiça civil, o Burkina Faso ocupa o lugar 100. O pior é o Camboja.

    E, por fim, na aplicação de justiça criminal, o Burkina Faso situa-se na posição 58. O pior é a Venezuela.

    O Burkina Faso é, por isso, um péssimo exemplo para eu utilizar. No global, no Índice do World Justice Project do Estado de Direito, está em 75º lugar. Tenho de me “corrigir”.

    Mas Portugal, país para onde trabalham as pessoas que integram o CSM, também não é exemplo para ninguém.

    Não por causa daquilo que diz o World Justice Project, que coloca Portugal na 26ª posição no seu índice global, e mostra-nos em situação razoável nos diversos indicadores, entre a posição 16 (restrições legais do Poder do Estado) e a 49 (ordem e segurança).

    Na verdade, estes índices e indicadores dizem-nos pouco, na maior parte dos casos. São giros para fazer rankings e para comparações globais, muito apreciados por políticos (quando são bem classificados) e adorados pelos jornalistas.

    Na prática quotidiana, são os pequenos detalhes que interessam, em muitos casos daqueles que não enformam qualquer indicador ou índice. E são, afinal, esses pormenores que mostram, por vezes, que em matérias essenciais Portugal e o Burkina Faso não são assim tão distintos, que o nosso CSM não será assim tão diferente da entidade homóloga daquele país subsariana.

    Com efeito, quando se vê o nosso CSM – atenção, estamos a falar de uma entidade como o CSM, um dos pilares da Democracia –, em apenas duas páginas:

    a) menosprezar um parecer de uma entidade presidida por um juiz conselheiro – Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos –, destacando que, enfim não os têm de cumprir porque “não são vinculativos para a entidade administrativa”;

    b) declarar que se deve atribuir “confidencialidade ao processo disciplinar” sobre a entrega da Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre em 2014, para assim esconder os detalhes e pressupostos desse arquivamento;

    c) defender que um jornalista não deve ter acesso a determinados documentos, socorrendo-se a interpretação enviesada e absurda do regime de protecção de dados;

    d) e, impor que um jornalista tem de esclarecer previamente “qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos” para que, depois disso, o CSM possa ponderar se concede ou não os documentos;

    então, podemos concluir que Portugal pode não ser o Burkina Faso, mas está longe de ser uma Democracia madura.

    Pelo menos enquanto o CSM tiver pessoas com esta mentalidade anti-democrática.

  • Do Wali (assim bem escrito), ou onde está a imprensa?

    Do Wali (assim bem escrito), ou onde está a imprensa?


    A forma como a esmagadora maioria dos jornalistas “embarcou” para a cobertura da invasão da Ucrânia não surpreende: já se tinha mostrado na cobertura da pandemia.

    Espírito militante, missionário do maniqueísmo, sacerdotes do bem contra o mal, os jornalistas expõem pornograficamente a sua ignorância, nem se importando de “atirar” primeiro “informação” antes de a confirmar, tomam um lado, independente do contexto.

    Infantilizam os seus leitores, ouvintes e telespectadores insistindo sempre na tónica de quem é o mau, como se fosse necessário (re)lembrar a alguém que tenha um QI acima do 1 que quem dá o primeiro passo para uma guerra, invadindo um outro, será sempre o invasor – e que, portanto, um jornalista tem a função de relatar os acontecimentos, em primeiro lugar, sem fazer parte da máquina de propaganda de uma das partes, como tem sido visto nos últimos tempos.

    Aliás, contribuindo para que, do lado do invasor, intensifique as restrições à (já escassa) imprensa independente na Rússia, incluindo mesmo o Gazeta Novaya, de Dmitry Muratov, o recente Prémio Nobel da Paz.

    Porém, aquilo que mais me tem chocado é a cinematização de uma guerra, não por ser estramos perante um filme mau (no sentido de cruento), mas por ser mau filme, geralmente por via de um argumento que “exige” que a guerra seja relatada com a constância de emoções ao rubro de um jogo de PlayStation, ou do sangrento desembarque da Normandia ficcionado em O Resgate do Soldado Ryan, do Steven Spielberg, ou de um rotineiro mas contínuo trabalho das 9 às 5 a apertar parafusos.

    A guerra não é isto, e muito menos uma guerra moderna, mais táctica que destrutiva.

    Por isso, caímos no ridículo de momentos silly season, como os do fabrico de cocktails molotov (quantos já foram atirados contra tropas russas?), e agora temos, espalhados pela imprensa nacional e internacional, a história do sniper canadiano Wali, herói contra o Daesh, que foi para a Ucrânia matar russos.

    Os jornalistas viram O Sniper Americano do Clint Eastwood, e pronto já julgam que Putin está no papo, não é?

    A invasão da Ucrânia pela Rússia é grave. Prescinde de patetices.

  • Ivermectinagate: que fazer com estes jornalistas?

    Ivermectinagate: que fazer com estes jornalistas?


    A CNN Portugal, através do jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino (TP 886), adiante tratado por HMC, fez mais uma das suas, depois de em Dezembro me ter feito esta. E o pior é que, mais uma vez, foi seguido fielmente por outros media, como o Correio da Manhã, Público e Sábado, pelo menos.

    A “bomba” de HCM até parece possuir todos os ingredientes para um escândalo em redor da ivermectina, para um Ivermectinagate, igual ou pior ao Remdesivirgate, da Gilead, que ontem sugeri.

    Na suposta “bomba de HCM, temos um médico – António Pedro Machado – que, segundo o título da CNN Portugal, “defende antiparasitário de piolhos contra a covid-19 [e que] recebeu 224 mil euros da farmacêutica que o produz”.

    Contudo, não tem. Tem sim motivos suficientes, e demasiados, para nos benzermos sobre o estado da imprensa em Portugal, e, hélas, sobre a formação dos jovens jornalistas e sobretudo sobre a ética e a deontologia dos jornalistas seniores da chamada legacy media ou imprensa mainstream.

    Ivermectina, na sua versão original, da Merck Sharpe & Dohme.

    Vamos lá ver então como o suposto Ivermectinagate é, na verdade, sim, uma montanha a parir um camundongo – aqui mais apropriado do que um rato, por estarmos a falar de fármacos, dado este roedor ser comummente usado em ensaios clínicos.

    O título de HCM, na sua peça da CNN Portugal, daria logo para uma pergunta: mas qual farmacêutica?

    Mas, calma! HCM explica no corpo do seu texto: é a A. Menarini, uma farmacêutica italiana.

    HCM explica que “segundo a Plataforma de Comunicações – Transparência e Publicidade do Infarmed, na edição de 2021”, um evento organizado pela empresa detida por António Pedro Machado (Update em Medicina, Lda.) “recebeu 119.802 euros da farmacêutica A. Menarini Portugal”, uma sucursal do grupo italiano, acrescentando que “em 2020, este valor chegara aos 32.035,10 euros.”

    E diz ainda HCM que “o maior patrocinador em 2021” da Update em Medicina Lda. foi a A. Menarini Portugal.

    Henrique Magalhães Claudino (HMC), jornalista-estagiário da CNN Portugal.

    Primeira “argolada”, ou mesmo mentira de HCM: a A. Menarini não foi, na verdade, a principal empresa patrocinadora em 2021 da Update em Medicina Lda.: foi sim a portuguesa BIAL, que entregou 170.799 euros naquele ano.

    Um pormenor? Não.

    Na verdade, HCM omitiu que a Update em Medicina Lda. foi até pródiga em receber apoios de farmacêuticas para os seus cursos médicos. De forma directa, e sobretudo em 2021, a empresa de António Pedro Machado recebeu financiamentos de mais 20 empresas do sector farmacêutico, para além da A. Menarini Portugal.

    HCM omitiu, de igual modo, que estes apoios das farmacêuticas visavam também o pagamento de formadores dos médicos inscritos nos cursos organizados pela Update em Medicina Lda., muitos dos quais com a inscrição paga pelas mais diversas empresas deste sector.

    De acordo com o relatório e contas de 2020 (último ano fiscal), a Update em Medicina Lda. teve receitas de 499.087 euros e gastos com pessoal e serviços externos de 298.375 euros, acabando com um lucro líquido de 71.479 euros, após pagar 38.380 euros de impostos ao Estado.

    E por que razão não terá HCM gastado uma letra sobre tudo isto? Talvez porque sabia que lhe estragaria a tese: a de que António Pedro Machado – efectivamente um declarado defensor do uso de ivermectina contra a covid-19 – recebera dinheiro para fazer lobby a favor de uma empresa interessada em vender aquele produto.

    Montantes recebidos (em euros) pela Update em Medicina Lda. das farmacêuticas em 2020 e 2021. Fonte: Infarmed.

    Se HCM escrevesse que, por exemplo, na lista de patrocinadores da Update em Medicina Lda. encontra-se a Pfizer – que lhe concedeu apoios de 18.450 euros, em 2020, e de 12.300 euros, no ano passado –, a coisa soava estranha.

    De facto, sendo António Pedro Machado um suposto lobbista – na tese de HCM –, não faria então muito sentido que fosse um dos subscritores de uma carta aberta a pedir à Direcção-Geral da Saúde a suspensão das vacinas contra a covid-19 em crianças saudáveis, uma vez que estas são comercializadas pelas Pfizer.

    Teria a Pfizer “contratado” António Pedro Machado para fazer lobby ao contrário? Ou António Pedro Machado mostrou, ao co-assinar a carta aberta, a sua independência, criticando uma decisão política, a qual, havendo um recuo (suspensão da vacinação em crianças), prejudicaria uma empresa que o patrocinava?

    Nunca saberemos a interpretação de HCM.

    Mas mais curiosa, ou sintomática de patetice, ou sinal de má-fé ou de má formação (profissional e cívica), é ainda a tese de HCM de que António Pedro Machado estaria, com a sua defesa da invermectina, a ser “pago” pela A. Menarini, de modo a beneficiar a “Menarini Group, empresa que, na Índia, produz um medicamento à base de Ivermectina (o Ivecop), utilizado para combater infecções parasitárias do trato intestinal, da pele e dos olhos”.

    Além de HCM ignorar, enfim, o que faz a ivermectina – um fármaco que só por lamentável asnice pode ser olhado como um mero “antiparasitário de piolhos”; pelas suas potencialidades, já fez dois investigadores receberem o Prémio Nobel da Medicina em 2015 –, tudo isto encaixa numa tese estapafúrdia.

    Edição do Correio da Manhã de 10 de Fevereiro deste ano, um dia após a publicação da peça da CNN Portugal.

    E a tese é esta: uma empresa italiana “compra” um médico português, através da sua sucursal portuguesa, para que este faça lobby em Portugal e assim beneficie uma sucursal indiana que produz aquele fármaco, que nem sequer exporta para Portugal.

    Caramba!

    Bom, mas dirão que poder-se-ia dar o caso de haver interesse da A. Menarini em expandir negócio em Portugal, intento agora denunciado por este novo “Woodward & Bernstein português”, de seu nome HCM.

    Seria má ideia, garanto.

    Primeiro, porque a ivermectina em Portugal, se fosse negócio a expandir-se por conta da covid-19, tal já se tinha verificado, e nem sequer pela mão da A. Menarini.

    Em Portugal existe já uma autorização de introdução no mercado (AIM) obtida pela sucursal portuguesa da Laboratoires Galderma, uma joint-venture da Nestlé e da L’Oreal – que, aliás, nunca financiou a empresa de António Pedro Machado. É certo que essa AIM se aplica a uma pomada de ivermectina, para tratamento da rosáceas, mas se o negócio fosse assim tão florescente, por certo seria fácil usar o princípio activo para passar a produzir comprimidos.

    Na verdade, e isso já terá sido vislumbrado pelos leitores mais atentos ao longo deste meu texto (pelas fotografias que o acompanham), a tese de HCM é obtusa – e lamentável a forma acrítica, mais uma vez, como os outros jornais (re)pegaram no tema (o Correio da Manhã, inclusive, fez manchete) – sobretudo porque, enfim, a ivermectina nunca poderia fazer enriquecer a A. Menari nem outra qualquer farmacêutica na Índia, em Portugal ou resto do Mundo.

    Nem com mil Machados, mesmo se António Pedros, espalhados por todos os continentes e ilhas.

    Nem que agora se descobrisse que a ivermectina, afinal, tinha mesmo um efeito anti-viral contra a covid-19.

    Marcas de genéricos da ivermectina.

    Por um simples motivo: a ivermerctina não tem patente, sobretudo por via da disponibilidade, a partir de 1987, da Merck Sharpe & Dohme (MSD) em doar ivermectina para controlo de duas devastadoras e incapacitantes doenças tropicais: a oncocercose (ou cegueira dos rios) e a filariose linfática.

    Essas doações encaixam-se no Programa de Doação de Mectizan, nome pelo qual é mais conhecido este fármaco, sendo co-administrado com albendazol, também doado, mas pela GlaxoSmithKline (GSK). Este programa de beneficência é, aliás, a coqueluche (não do sentido de sinónimo de tosse convulsa) da indústria farmacêutica.

    Apesar disso, a MSD continua a comercializar a ivermectina para uso humano, sob a marca Stromectol – que pode ser usada para a sarna, incluindo a de jornalistas pouco atreitos a códigos deontológicos.

    Mas há mais multinacionais interessadas neste agora genérico. Para uso humano, encontramos a helvética Sandoz e as norte-americanas Abbott e Mylan. No continente africano também se identifica a sul-africana Aspen, que comercializa ivermectina sob a marca Ivermax. Portanto, já não é só a italiana A. Menarini!

    Porém, e na Índia? Como é?

    Ivecop, marca da ivermectina produzida pela A. Menarini India.

    Lamento, ou regozijo-me (?), imenso em informar HCM – e mesmo a Direcção Editorial do Público que fez um acrescento deplorável, de pedantismo ridículo e ignaro, ao direito de resposta de António Pedro Machado – que, além da Ivecop produzida pela A. Meranini Índia, temos por lá a vender ivermectina em comprimidos – preparem-se! – as seguintes farmacêuticas indianas: Abia Pharmaceuticals (sob a marca Ermect), Abod Pharmaceuticals (Abodmec), Agron Remedies (Iverag), Ajanta Pharma (Ivrea), Akumentis Healthcare (Ivervirl), Alicanto Drugs (Ivopi), Ankran Biotech (Iveran), Arlak Group (Aver), Bennet Pharmaceuticals (Isco), Biochemix Healthcare (Paranix e Tinbest), Biorex Healthcare (Ividoc), Blubell Pharma (Dinzo), Brinton Pharmaceuticals (Scabover), Canbro Healthcare (Ivercan), Canixa Life Sciences (Itin), Care Formulation Labs (Ivertac), Connote Healthcare (Scabivert), Cubit Healthcare (Iverise), Dellwich Healthcare (Vernt), Dermawin Pharmaceuticals (Ivel), Dewcare Concept (Vermin), Domagk Smith (Ivermect), Dr D Pharma (Ivercet), E Derma Pharma India (Iviturn), East West Pharma (Ivercid), Efedra Pharmaceuticals (Fedramect), Ethinext Pharma (Ivscab), Evans Healthcare (Evitin), FDC (Ivsit), Finecure Pharmaceuticals (Iverfine), Gary Pharmaceuticals (Imec H ), Genpharma International (Ivamer), Globetus Therapeutics (Globetin), Healing Pharma India (Iverheal), Helios Pharmaceuticals (I), Heramb Healthcare (Iverfast), Household Remedies (Hvtek), Ikon Remedies (Iverzide), Innovative Pharmaceuticals (Ivernex), Intra Life (Iverlife), Iris Biosciences (Iverhub), JB Chemicals and Pharmaceuticals (Ivernock), Johnlee Pharmaceuticals (Iverjohn), Kaizen Research Labs India (Zen Mectin), Kivi Labs (Jetta), Knoll Healthcare (Imrotab), Lakssha Pharmaceuticals (Ivelak), Macleods Pharmaceuticals (Iverhope e Ivernew), Macro Labs (Ivercop), Mankind Pharma (Iverkind, Vermact e Vermikind), Medichi Biocare (Iverchi), Mediispecs (Ivermed), Medishri Healthcare (Iverscan), Mefro Pharma (Verpin), Megma Helathcare (Votrin), Meridian Medicare (Mectin), Merion Care (Ly Mectin), Micro Labs (Vermectin), Nidus Pharmaceuticals (Nectol), Noel Pharma India (Iverwar), NuLife Pharmaceuticals (Iverscab), Oaknet Healthcare (Combactin), Olcare Laboratories (Avertol), Organic Laboratories (Ivory), Palson Derma (Orascab), Panzer Pharmaceuticals (Iverpan), Psychotropics India (Iverpil), Psyco Remedies (Iversol), Pulse Pharmaceuticals (Imectin), Remedial Healthcare (Iverdon), Roussel Labs (Iverwon), Rowan Bioceuticals (Scaberase IF), Rowlinges Life Sciences (Scabsafe), Santo Medi Sciences (Ivy), Satven and Mer Pharma (Iverin), Schwitz Biotech (Evert), Sigma Softgel and Formulation (Zeoriser), Sun Pharmaceutical (Ivermectol), Symbiosis Pharmaceutical (Iver, Ivernorm e Ivozol), Synergy Pharmaceuticals (Ecomectin), Systopic Laboratories (V Sys), Taj Pharma (Iverotaj), The World Wide Pharma (Wormectin), Tripada Biotech (Ivert), Will Impex Pharmachem (Impect), Wish Life Pharmaceuticals (Iverwish), Worth Medicines (Ectover), Zee Laboratories (Iroshell e Evertin), Zenlabs Ethica (Ivcol), Zuventus Healthcare (Scavista) e Zydus Healthcare (Iveloc e Ivertreat).

    Contaram todas? Não?! Eu digo então: são 92 empresas farmacêuticas, só na Índia, a produzir genéricos de ivermectina.

    A A. Meranini é apenas uma; só é mais uma; somente mais uma, o que a faz uma, mais as outras 91.

    photo of shouting horse under cloudy sky

    Será que o médico António Pedro Machado se “vendeu” para beneficiar a A. Meranini Índia e mais 91 farmacêuticas indianas para venderem um medicamento genérico?

    Teremos um Ivermectinagate? Ou apenas uma Ignorânciagate na nossa imprensa?

    Ah, e já agora, há mesmo uma loção para piolhos, sob a marca Sklice, contendo ivermectina. É produzida pela Arbor Pharmaceuticals, farmacêutica norte-americana. Para que HCM tome boa nota dessa informação. Pode precisar dela!


    Disclaimer: Nunca tomei ivermectina. Não tenho opinião formulada sobre os seus efeitos contra a covid-19, além do conhecimento da leitura de diversos estudos científicos que a colocam ainda com incertezas sobre a sua eficácia.

    Considero-a, porém, um fármaco milagroso (pela sua acção contra outras doenças) que não merecia a campanha “difamatória” feita pela imprensa mainstream.

    Não sou favorável à ligação de farmacêuticas com médicos que exerçam funções públicas (em hospitais do SNS, por exemplo). Julgo mesmo que a formação contínua dos médicos deveria ser uma actividade regulada e completamente financiada pelo Estado, independentemente de poder ser produzida por empresas não-farmacêuticas.

    Conheço e, salvo erro, falei quatro vezes com o médico António Pedro Machado no último ano, a última das quais em Janeiro, ou seja, antes do artigo de HCM.

    Para a elaboração deste texto não contactei este médico, e recorri à compra da Certidão de Contas Anuais, no portal do Estado, para aceder às contas de 2020, último ano fiscal, da Update em Medicina, Lda.. Para tal, foram gastos cinco euros.

    Para conferir os dados usados por HCM, recorri à consulta da Plataforma da Transparência e Publicidade, onde pode ser confirmado o seu erro relativo ao maior patrocinador da Update em Medicina Lda..

    Pensei e trabalhei para a pesquisa e execução deste texto.

  • A César o que é de Cesar: a Procuradoria-Geral da República e os abusos da Igreja

    A César o que é de Cesar: a Procuradoria-Geral da República e os abusos da Igreja


    No passado dia 15 de Janeiro, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, nomeado pela Igreja Católica para presidir à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica (perdoem-me a redundância, mas serve para melhor salientar que o potencial criminoso escolhe a dedo uma comissão para avaliar os seus eventuais crimes, autodenominando-a de independente), anunciou que “validou, em menos de uma semana, 102 testemunhos”, que, segundo o dito, contêm “momentos de profunda dor e sofrimento”.

    E adiantou ainda que a dita Comissão – de que fazem parte Laborinho Lúcio (juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e antigo ministro da Justiça), Ana Nunes de Almeida (investigadora do Instituto de Ciências Sociais), Daniel Sampaio (psiquiatra e professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina de Lisboa), Filipa Tavares (assistente social e terapeuta familiar) e Catarina Vasconcelos (cineasta) – tinha já “situações agendadas para contacto pessoal”.

    man sitting on chair holding and surrounded by people

    Não colocando em causa a idoneidade destas personalidades, convém, contudo, relembrar que, desde Abril de 2019, Pedro Strecht é “membro convidado do Patriarcado de Lisboa na equipa de prevenção de abusos sexuais na Igreja”. O termo “comissão independente” surge-me aqui de utilização demasiado lata. Ou com lata.

    Esta semana foi também anunciada, pela Igreja Católica (claro!), a nomeação do ex-procurador-geral da República José Souto Moura para presidir à Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores. Segundo um comunicado da Conferência Episcopal Portuguesa, a dita Comissão “tem o objetivo de assessorar o trabalho de cada comissão diocesana, propor procedimentos e orientações comuns, ajudar em tudo o que possa proteger as vítimas e esclarecer sobre quadros normativos canónicos e civis relacionados com os processos de abuso sobre menores, tanto no que respeita ao acompanhamento da vítima como na atenção ao agressor”.

    Recorde-se também que José Souto de Moura – além de não ser recordado propriamente como um procurador-geral inflexível no seu mandato de seis anos (2000-2006) – foi, tal como Pedro Strecht, convidado pelo Patriarcado de Lisboa há três anos para integrar a equipa de prevenção de abusos sexuais na Igreja. E nessa altura, quando se jubilou, Souto de Moura anunciou que iria manter as suas ligações com “a revista Brotéria, dos jesuítas, com a Associação de Juristas Católicos [uma idiossincrasia portuguesa num Estado e numa Justiça que se quer laica, acrescento eu] e com a Comunidade Vida e Paz”.

    Enfim, já Cristo dizia, mas a Igreja Católica parece não aprender: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Ora, sendo Portugal um Estado de Direito – ou, pelo menos, alegando-se que é –, havendo separação de poderes (e desde o século XVIII a Igreja Católica deixou de ser um Estado dentro de outro Estado), não se compreende (ou melhor, compreende-se, mas não se deveria admitir) que tantas e tão doutas pessoas, algumas da Magistratura e outras da área social, disponham da sua imagem, do seu talento e do seu trabalho para contribuírem, nem que seja indirecta e involuntariamente, para uma autêntica operação de lavagem de crimes no interior da Igreja Católica em Portugal.

    Note-se: em menos de uma semana, a dita Comissão Independente, com parcos meios investigativos, validou 102 testemunhos, alguns certamente documentados, mas sempre abafados ao longo dos tempos e tempos, tanto mais que as alegadas vítimas têm já idades compreendidas entre os 30 e os 80 anos. Não há inocentes. Quem cria agora estas comissões não está inocente.

    sliced of bread beside goblet

    Que a Igreja – como entidade humana – tente fazer sempre bem o seu trabalho para se perpetuar, sabendo ultrapassar momentos difíceis, isso sabe-se, porque assim sempre fez: quem conhece alguma História da Igreja sabe bem disso. Agora, que um Estado de Direito laico deixe agora isso suceder, de forma impune, não se pode aceitar. Não se deve aceitar.

    Não se deve assim aceitar ver uma Procuradoria-Geral da República a assistir impávida e serena à criação de comissões supostamente independentes e de coordenações também supostamente independentes dentro da própria Igreja Católica – e onde se assume já que se vai trabalhar em tudo aquilo que “respeita ao acompanhamento da vítima como na atenção ao agressor” –, sem gritar “alto!, e pára o baile!; isto não é assunto de Deus; é de César!”

    Que a Igreja Católica se entretenha e nos tente entreter com as diligências que bem entender com vista a eventuais castigos divinos ou eclesiásticos, está no seu direito como entidade privada.

    Porém, sobre aquilo que faz ou sobretudo não faz a Procuradoria-Geral da República, já é algo que nos diz respeito. E pessoalmente, julgo que já deveria estar no terreno para ouvir as 102 pessoas identificadas pela tal Comissão de Pedro Strecht, e outras mais. Deveria estar já a vasculhar toda a documentação da Igreja Católica onde possa constar informação com relevância penal para identificação de crimes, e dos respectivos criminosos e seus cúmplices (que também são criminosos). E ontem já era tarde.

  • Do jogo sujo

    Do jogo sujo


    A CNN Portugal fez uma sórdida campanha suja contra o PÁGINA UM em Dezembro passado acusando-me, sem me identificar pelo nome (mas facilmente se chegaria a mim), de eu ter divulgado numa “página negacionista”, dados clínicos de crianças, dados esses que estavam anonimizados.

    Divulgar dados clínicos, usando até uma médica, para criar pânico já é correcto para a CNN Portugal.

    O processo está em queixa na ERC, mas enfim a CNN Portugal nem teve coragem de mandar fazer esse sujo jogo por um jornalista: foi um jornalista-estagiário a tratar da coisa.

    Agora, já não faz mal para a CNN – nem choca o especialista em Urologia Miguel Guimarães, circunstancial presidente de uma associação profissional de direito público conhecida por Ordem dos Médicos – que se divulgue com detalhe, e que haja até uma médica a comentar, o caso do tratamento por ECMO de um bebé de 13 meses com miocardite eventualmente associada à covid-19.

    Independentemente de ser a covid-19 a causa, há todo um jogo sujo nisto, até porque a mensagem final é sempre a mesma: vacinem crianças, mesmo se o risco de morte ou de situação grave é remota.

    Recordo que nascem por ano cerca de 80 mil crianças, e que as pneumonias “normais” ou as meningites, por exemplo, embora muito raras, são até mais graves e perigosas do que a covid-19.

    Aliás, estamos sempre com o mesmo problema da informação enviesada: fala-se de casos da covid-19 sem nunca se apresentar dados comparativos.

    Quantos casos de tratamento por ECMO se fizeram em crianças com miocardite por outros vírus (porque pode suceder) antes da pandemia? É pergunta que o PÁGINA UM irá fazer ao Hospital de São João, já que a CNN Portugal não fez.

  • Adeus, minoria maioritária. Bem-vinda, maioria minoritária

    Adeus, minoria maioritária. Bem-vinda, maioria minoritária


    Não sou particularmente adepto de maiorias, que sempre são convenientes apenas para quem está no poder. Uma democracia deve pugnar sempre por defender as minorias, daí que uma maioria no poder nunca traz bons resultados, por mais que muitos defendam pretensos benefícios de uma estabilidade. Também nunca apreciei estabilidades, mas isso são contas de outro rosário.

    Tivemos três maiorias no Parlamento durante esta nossa democracia, se excluirmos as duas primeiras – por resultarem de uma coligação (as eleições ganhas por Sá Carneiro para a Aliança Democrática, com PSD, CDS e PPM) –, e nenhuma foi particularmente favorável para Portugal. Cavaco Silva, com as maiorias em 1987 e 1991, desbaratou os fundos comunitários – como D. João V esbanjara o ouro e diamantes do Brasil no século XVIII – em obras sem glória, em programas assentes em sinecuras e subsidiodependências e na formação da cultura da negociata. Depois, em 2005, José Sócrates traçou-nos a sorte até à intervenção da troika.

    Porém, por paradoxal que pareça, saúdo a maioria parlamentar agora obtida pelo Partido Socialista (PS). Os próximos quatros anos vão fazer muito bem à democracia, apesar da minha falta de confiança em mais um Governo de António Costa. Sobretudo porque, paradoxalmente, os seus últimos seis anos como primeiro-ministro desenrolaram-se em falsa minoria. O PS viveu com a desresponsabilização de compartilhar o poder, legislativo e até executivo, por ser Governo minoritário, mas na prática beneficiou de um poder como se fosse Governo maioritário. Podia assim receber os louros pelas coisas boas; descartar responsabilidades pelas coisas más.

    woman holding signboard

    Em 2015, na ânsia de derrotarem Pedro Passos Coelho na “secretaria”, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) aceitaram um estranho acordo – que viria a ser baptizado de “geringonça” – para viabilizar um Governo do segundo mais votado partido (PS), mas sem quererem entrar nos corredores ministeriais.

    Durante quatro anos, Costa conseguiu assim o melhor dos dois mundos: governar em minoria, gerindo acordos na Assembleia da República, e eliminar à nascença, em reuniões apenas, qualquer contestação social, porque BE e PCP se auto-manietaram.

    Com apenas 86 deputados em 2015, na verdade António Costa geriu o país durante quatro anos como se fosse o líder de 122 deputados, tendo apenas que “amestrar” 19 de uma ala bloquista e mais 17 de uma ala comunista.

    O desfecho deste casamento de interesse foi glorioso para o PS e trágico para o BE e PCP, lembrando a cópula dos louva-a-deus, em que, no fim, a fêmea deglute literalmente o macho. Com a diferença de o repasto ter sido afinal aos poucos, dentada aqui, dentada ali, até ao golpe final consumado no passado fim-de-semana.

    Com efeito, quatro anos depois desse matrimónio, o PS evidenciava já nas eleições de 2019 ter registado melhores benefícios: o reforço nos mandatos eleitorais para 108 – em especial pela atracção do eleitorado do centro-direita e também de uma parte dos comunistas, que perderam então cinco deputados. PC perdeu com o casamento; o BE nada beneficiou. António Costa mostrou então que o seu casamento com a esquerda fora completamente de interesse: a partir de 2019 não quis saber de qualquer “geringonça 2.0”.

    Liberto de acordos escritos, sendo-lhe preciso apenas “coligações” pontuais de compromisso, bastando para isso arregimentar um de três partidos (BE, PCP ou PSD), o PS tinha, mesmo assim, a vida mais facilitada.

    E depois veio a pandemia. E até aí o PS beneficiou, passando sempre pelos pingos da chuva. Criando-se uma unanimidade nunca vista em outro assunto durante tanto tempo – as leituras dos plenários na Assembleia da República constituem um exercício de pasmo por esse movimento de concordância quase plena –, António Costa não teve qualquer oposição visível nem contestação relevante durante quase dois anos. De mais nada se falava, e se algo mal corria, a culpa era da pandemia. O microscópico vírus teve sempre as costas largas.

    crowd of people standing outdoors

    Não apenas pelas restrições impostas para conter a pandemia, com o consequente acomodamento da sociedade às limitações de direitos fundamentais – sempre apoiadas por uma diligente imprensa –, como também pelo receio de qualquer partido em simular sequer críticas em matérias sensíveis da pandemia (e dos atropelos às liberdades, direitos e garantias), e que dominaram o país desde Março de 2020.

    Portugal esteve anestesiado durante dois anos. E o PS sempre a ganhar em minoria. Mas não era o suficiente no Largo do Rato.

    Bastou, por fim, um incidente forçado para, em fim de festa pandémica – com a generalidade da população e da imprensa em loas ao Governo socialista, esquecendo-se o caos no SNS, o despesismo incontrolado e a crise económica e social –, para António Costa comer, finalmente, toda a oposição de cebolada.

    O Orçamento de Estado (OE) para 2022 foi o álibi perfeito. Foi chumbado porque o PS quis, e queria mesmo eleições; era o momento ideal para aquilo que está na massa do sangue de muitos políticos: vencer com maioria absoluta, porque negociar custa sempre.

    woman in white and pink floral shirt raising her hands

    No diferendo da OE, a oposição, e particularmente o BE e o PCP, estaria sempre na célebre condição de ser presa por ter e não ter cão. Chumbando-o, como fizeram, levariam a uma vitimização do PS, como benefícios para este partido, como se viu. Não o chumbando, os partidos da oposição, sobretudo da esquerda, tinham tudo também a perder: confessariam que Costa governava em maioria de facto, embora não in jure. E assim seria até que outra qualquer coisa fizesse cair o Governo, e o PS se fizesse de vítima, para em novas eleições almejar a maioria absoluta.

    Como alcançou.

    Os partidos à esquerda do PS nunca quiseram perceber que jamais sairiam a ganhar do amplexo da “geringonça”, nem no cenário político após as eleições de 2019, nem na forma como intervieram durante a pandemia.

    Nos últimos dois anos, PCP e BE mostraram-se inexistentes, e gastaram mais tempo a perseguir a extrema-direita do que a lutar contra as carências e injustiças que engrossaram, por exemplo, os votos do Chega.

    Esqueceram que o partido de André Ventura não tem eleitores saudosistas de Salazar, mas sim eleitores que, pouco se importando com a amálgama ideológica (se é que existe no Chega), se sentem filhos de um deus (democracia) menor. Enquanto a esquerda não perceber que o Chega é um barómetro da democracia – quanto mais justa e equitativa ela for, menor será o peso eleitoral de André Ventura –, as coisas só podem correr mal para ela. Para ela, esquerda; para ela, democracia.

    Mas, enfim, temos, portanto, uma maioria absoluta. E ainda bem.

    Porque, agora, finalmente, mesmo se aparentemente com mais de metade do hemiciclo, António Costa ouvirá mais críticas no Parlamento, de mais partidos. Terá capacidade plena de tudo aprovar na Assembleia da República e de execução de quaisquer medidas em Conselho de Ministros e nos Ministérios, mas, independentemente da bondade da sua governação (hipótese académica), arcará certamente com mais críticas num mês de maioria absoluta do que num ano de minoria apoiada.

    person watching through hole

    O BE e o PCP lutarão nos próximos anos por mais do que pelas suas causas; lutarão pela sua sobrevivência, porque se o PS for bem-sucedido nestes quatro anos será os seus enterros. IL e Chega não perderão também oportunidade de se ouvirem mais do que antes, pelo peso dos respectivos grupos parlamentares, e o PSD também não poderá ficar atrás.

    Nas ruas ouvir-se-ão mais vozes, até porque uma larga franja dos sindicatos não é “afiliada” aos socialistas. Haverá mais pressão. Nas ruas. Mais greves. Haverá maior mobilização social, assim se espera, até porque a saúde económica do país, além da saúde pública, não se compadecerá apenas com bazucas – que aliás serão mais escrutinadas do que todas as negociatas de ajustes directos nestes anos da pandemia.

    Enfim, haverá mais democracia. Ou, pelo menos, maior participação democrática.

    Exactamente porque sempre acreditei que a democracia se exerce melhor, e de forma mais justa e equitativa, após as eleições – que são um mero, embora importante, acto de eleitores elegerem eleitos, mas não uma “carta branca” para governar. E por isso julgo ser bem-vinda esta maioria.

    Será uma maioria absoluta de jure, mas não tão forte de facto, como foram os Governos minoritários de António Costa nos últimos seis anos.

    Isto vai fazer bem à esquerda; vai fazer bem à direita. Vai fazer bem à democracia.

    Por isso mesmo, saúdo esta maioria do PS, exactamente porque, na verdade, lhe concedeu menor poder do que aquele que teve desde 2015.

  • O caldeirão da indigência jornalística: Spotify, Young, Rogan, Tesla, Musk e o que mais quiserem

    O caldeirão da indigência jornalística: Spotify, Young, Rogan, Tesla, Musk e o que mais quiserem


    A Tesla teve uma queda bolsista na semana passada de 10,3%. Entretanto, vamos imaginar que Elon Musk se preocupava com isto – numa empresa cotada que valorizou 20 vezes nos últimos dois anos e meio –, e aflito corria a twittar, como efectivamente fez, a dar apoio ao Freedom Convoy, o movimento de camionistas canadianos que se manifestam em Ottawa.

    Como esta segunda-feira a Tesla – da qual este empresário detém cerca de 20,7% – está a subir, no momento em que escrevo, 9,57% – “comendo” praticamente as perdas da semana anterior –, se eu fosse um jornalista acéfalo, com conhecimentos de Economia ao nível da regra de três simples mal-amanhada, poderia já fazer o seguinte título bombástico: “Apoio a negacionistas canadianos faz Elon Musk enriquecer 15,2 mil milhões de euros”.

    Depois, no lead, se fosse um jornalista sem escrúpulos, especularia que, por obra e graça de mais umas postas de pescada, o empresário sul-africano-canadiano poderia agora aproveitar a onda para reforçar ainda mais o apoio ao tal Freedom Convoy, porque dois tweets lhe tinham rendido numa só sessão bolsista do Nasdaq o equivalente a 7,3% do produto interno bruto (PIB) português.

    blue coupe parked beside white wall

    Se eu quisesse ser ainda mais populista – e para me aproveitar da desoladora iliteracia económica cá do burgo –, ainda fazia os crédulos comer como verdade que o suporte de Musk aos tais “negacionistas” das vacinas, afinal tinha feito todos os accionistas da Tesla empochar tanto guito como aquele que Portugal acumular este ano até finais de Abril.

    Enfim, se assim agisse, esquecia tudo o resto, esquecia o essencial, esquecia como funcionavam os mercados, esquecia que era jornalista que não embarca no primeiro navio nem surfa a primeira onda que lhe surge, nem veste a primeira camisola que lhe estendem.

    Vamos ser claros: o absurdo do meu imaginário título, e da minha esdrúxula história de Elon Musk, da Tesla e do Freedom Convoy, não difere em nada dos bizarros e verdadeiros títulos de recentes notícias do Expresso – copiando a Variety – e do Público sobre o alegado impacte do ultimato e posterior boicote ao Spotify do músico Neil Young por causa dos podcasts do comediante Joe Rogan.

    Vejam. O Expresso titula “Spotify vê o seu valor de mercado cair 1,8 mil milhões de euros devido ao boicote de Neil Young e ao movimento #CancelSpotify”, enquanto o Público adianta: “Spotify em queda acentuada no mercado após diferendo com Neil Young”, acrescentando logo no lead que “as acções da empresa caíram 6% entre a quarta-feira e a sexta-feira da semana passada”. E diz ainda mais a jornalista Inês Nadais, a autora desta rica peça: o “impacto da saída de Joni Mitchell e de uma possível vaga de cancelamentos de assinaturas pode agravar as perdas do serviço de streaming dominante no segmento áudio”.

    person holding iPhone showing Spotify application

    Eis um caso clássico do jornalista que olha a asa sem ver a mosca, e só sabe fazer contas de merceeiro: pega numa semana, observa um evento e extrapola logo que um efeito é só e apenas do evento que observou.

    É aquele jornalista que, se lhe metessem um Excel com o número absoluto de padres e ladrões num vasto conjunto de cidades, concluiria logo serem os padres atreitos a quadrilhas, porquanto nas cidades de maiores dimensões havia, em número, mais padres e também mais ladrões do que em cidades pequenas.

    O absurdo deste tipo de notícias manipuladoras – perfeitas, vergonhosas e intencionalmente manipuladoras – deveriam ser o opróbrio para qualquer jornalista decente. Ou, pelo menos, à decisão voluntária ou obrigatória de não voltar a escrever sobre aquilo de que pouco ou nada sabe, de sorte a evitar usar uma nobre profissão para desinformar.

    Não sei qual seria a cara da jornalista Inês Nadais – não sei mesmo, porque nem a conheço, e surge aqui porque assina a peça do Público, mas não está sozinha – se tivesse de justificar o que estará por detrás da cotação de hoje do Spotify no NYSE, que, à hora que escrevo, apresenta uma valorização de 12,03% em relação ao fecho de sexta-feira passada. Comeu a perda de toda a semana da polémica de Neil Young. Qual a explicação, Inês? Há-de haver uma, que envolva obrigatoriamente o Neil Young e Joe Rogan, mesmo se inventada, não é?

    E então, Ineses desta vida, quais foram os Neils Youngs ou Joe Rogans que estiveram por detrás da queda de 47% na cotação do Spotify desde 19 de Fevereiro do ano passado? E o que sucedeu para antes disso se ter registado uma subida de 200% a partir do início da pandemia? Foram também os Neils Youngs ou Joe Rogans desta vida? Ou há mais palpites por aí?

    Foi mercado, minhas senhoras e meus senhores. Foi apenas mercado.

    Tal como foi o mercado que causou as quedas na semana passada da Tesla (-10,3%), do Airbnb (-8,9%), da Intel (-8,3%) ou da Electronic Arts (-5,1%). Nada disto teve a ver com o Neil Young ou com o Joe Rogan, ou com o Elon Musk ou com outra qualquer causa explicada por “cartomantes da pena”.

    Na verdade, se os jornalistas, antes de escreverem parvoíces do género da polémica com o Spotify, olhassem fora dos “óculos de uma narrativa”, veriam que a empresa sueca de streaming fez o que andava a fazer desde Outubro do ano passado: cair de forma consistente, ou seja, na sexta-feira registava, nesta período, uma queda acumulada de 40%.

    E hoje, como poderia ser amanhã, ou nunca, recuperou. Que teve isto a ver com o Neil Young ou o Joe Rogan? Pode ter sido tudo. Pode ter sido nada. E o jornalismo tem de acabar com essa bengala irresponsável do “pode isto”, ou do “pode aquilo”. Basta!