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  • A “ciência contrafactual” é uma treta ou como se salvam cientistas patetas

    A “ciência contrafactual” é uma treta ou como se salvam cientistas patetas


    Se a minha avó tivesse rodas era um camião – este dichote, bem conhecido, tem sido usado amiúde por treinadores da bola perante perguntas parvas de jornalistas.

    Nesta senda, surge agora em força uma modalidade de fazer-se Ciência: a aplicação de modelos matemáticos para simular uma contrafactualidade. É a Ciencia do Se… É a Ciência do “imaginemos que era assim como queríamos”…

    white bird on brown wood

    Por oposição dos modelos preditivos, em que se estabelecem premissas e assumpções, partindo daí para uma previsão que poderá depois ser verificada – e permitindo-se assim, à posteriori uma avaliação da precisão do dito modelo –, nos modelos matemáticos contrafactuais pode-se logo “gabar cestos” sem perigo de desmentido.

    Por exemplo, basta pegar numa medida ou acção previamente tomada e avaliar a sua eficácia à posterior, sem ter em consideração qualquer outra variável. E depois atribuir à medida toda a responsabilidade (boa) do diferencial obtido.

    Imagine-se, por absurdo, que se atribuía ao assobiar nas ruas uma hipotética redução dos atropelamentos em 90%, e se avaliava depois, passado um ano, a eficácia dessa medida sem, por exemplo, incorporar as campanhas de sensibilização dos condutores, a maior concentração de passadeiras ou semáforos e uma diminuição da velocidade máxima dos automóveis. Ora, alguém sensato poderia acreditar que havendo mesmo uma redução em 90% nos atropelamentos tal se devia exclusivamente aos assobios?

    Dos seis autores do artigo da The Lancet Infectious Diseases, três estiveram na equipa de Neil Ferguson que apresentou previsões catastrofistas em Março de 2020, que estiveram longe de ocorrerem.

    Ora, nos últimos dois dias muito se tem falado de um estudo, publicado na revista científica The Lancet Infectious Diseases por investigadores do Imperial College de Londres sobre a eficácia das vacinas contra a covid-19, atribuindo-lhe a “responsabilidade” de terem salvado cerca de 20 milhões de vidas em todo o Mundo. Em Portugal, segundo as declarações de um dos autores dessa análise (Oliver Watson) ao jornal Público, estimaram que se tenham evitado 135.900 mortes até 8 de Dezembro de 2021, com “uma incerteza entre 126.700 e 179.300 mortes”.

    Esse estudo tem quatro problemas básicos e graves.

    Primeiro problema, estamos perante um estudo contrafactual: pressupõe que tenha sido apenas a vacina o único contribuinte para a evidente descida da mortalidade absoluta e da taxa de letalidade, ignorando, ou pretendendo ignorar, que a covid-19 de hoje, sobretudo com a variante Ómicron agora dominante, é menos letal independentemente da vacinação, e que a população já não é naïve – ou seja, a imunidade natural tem uma relevância significativa não desprezável.

    Segundo problema: o estudo apresenta pressupostos que enviesam à partida os resultados, permitindo que o “cesto se gabe”. Com efeito, em vez de confrontar a letalidade (e mortalidade) dos vacinados com a dos não-vacinados e com a dos infectados recuperados, o estudo aproveitou apenas as referências de uns poucos estudos, alguns ainda não revisados, e até mesmo um comunicado de imprensa de uma das farmacêuticas. Por outro lado, a análise matemática usa tantas estimativas e pressupostos que, enfim, por mais que o modelo matemático seja extraordinário e os cientistas uns estupendos génios da Matemática, não conseguem fazer mais do que uma porcaria embelezada.

    Terceiro problema: uma parte dos cientistas autores deste panegírico às vacinas tem um grave conflito de interesses. Não tanto por este estudo ter sido financiado pela Bill & Melinda Gates Foundation, pela Organização Mundial da Saúde, pela GAVI e pelo The Vaccine Alliance.

    O grande conflito de interesses advém, sim, de três dos seis autores – Oliver J. Watson, Peter Winskill e Azra C. Ghani – terem sido co-autores da célebre estimativa do Imperial College feita em Março de 2020 que espoletou todo o alarme mundial em redor da pandemia.

    Estudo catastrofista do Imperial College previa um morticínio sem medidas não-farmacológicas, e justificou lockdowns e máscaras, cuja eficácia nunca se comprovou. Três dos autores dizem agora que as vacinas é que salvaram milhões.

    Recorde-se que esse estudo – publicado no inicio da pandemia à Europa, em 26 de Março de 2020, e tendo Neil Ferguson como cabeça de cartaz – estimava que, sem medidas, a covid-19 poderia fazer 7 mil milhões de infectados e 40 milhões de mortes.

    Ora, para apagar este colossal e vergonhoso erro de previsão – um exemplo paradigmático da má Ciência ao serviço do alarmismo –, nada melhor do que um outro pseudo-estudo onde as vacinas surgem – como sucedeu com muitas das absurdas medidas não farmacológicas – como o ente salvador. Mas salvador sobretudo da lamentável credibilidade de certos investigadores.

    Em suma, com este suposto estudo glorificador das salvíficas vacinas, a par das tais medidas não farmacológicas, a absurda estimativa de Março de 2020 estará sempre certificada. Pelo próprios que a fizeram.

    Quarto problema: não vale a pena olhar para a razoabilidade das estimativas mundiais quando os autores nem sequer acertam com a realidade de um país. O caso de Portugal, por exemplo.

    Com efeito, atribuir às vacinas contra a covid-19 o condão de salvar entre finais de Dezembro de 2020 (quando se iniciou o programa de vacinação) e 8 de Dezembro de 2021 um total de 135.900 pessoas é um absurdo.

    Não por representar mais mortes do que as que são causadas por todas as outras doenças (a covid-19 não é a gripe espanhola), mas sim por ser uma impossibilidade.

    De facto, se analisarmos a taxa de letalidade da covid-19 antes da introdução das vacinas, observamos que, em 27 de Dezembro de 2020 (dia da inoculação da primeira), a taxa de letalidade desta doença era de 1,77% (6.693 mortes em 378.395 casos positivos).

    Ora, entre 27 de Dezembro de 2020 e 8 de Dezembro de 2021, registaram-se em Portugal 802.923 casos positivos, que resultaram em mais 11.917 óbitos, o que significa que, no primeiro ano com vacinação, a taxa de letalidade foi de 1,48%.

    Ou seja, com a introdução da vacina, a taxa de letalidade apenas baixou de 1,77% para 1,48%, algo que jamais poderia implicar um tão grande contributo das vacinas na redução da mortalidade.

    Mesmo que, por absurdo, toda a população tivesse sido infectada (cerca de 10,2 milhões de pessoas), a redução da taxa de letalidade global em apenas 0,29 pontos percentuais significava que teriam sido poupadas apenas 29.580 pessoas. Mas notem: tinha de ser infectada TODA a população no espaço de UM ano. Até agora, em dois anos e quase quatro meses foi infectada, segundo dados oficiais, cerca de metade da população (5,120,970 casos positivos, até hoje).

    Na verdade, o game changer da covid-19 não foram as vacinas, mas sim o surgimento da Ómicron, por muito que Governos, farmacêuticas e certos investigadores inescrupulosos queiram convencer-nos do contrário.

    photo of red and blue bird person on brown tree branch

    Com efeito, veja-se como mudou a taxa de letalidade em 2022 em Portugal com a dominância da Ómicron, de muito menor agressividade: desde Janeiro até 22 de Junho registaram-se 3.693.100 casos positivos que resultaram em 5.022 óbitos atribuídos à covid-19. Isto significa que a taxa de letalidade – que, recorde-se, era de 1,48% no primeiro ano de vacinação – se cifrou em apenas 0,14%, o que está ao nível das pneumonias.

    Querer atribuir às vacinas – e não à menor agressividade da Ómicron, que foi, para nossa fortuna, o que fez cessar a pandemia – a maior fatia desta enorme redução da letalidade do SARS-CoV-2 é, no mínimo, desonesto. E nenhum cientista o pode ser, porque a desonestidade é inimiga da Ciência, e é um defeito  moral independente das capacidade cognitivas.    

    Em suma, tal como o estudo preditivo do Imperial College de Março de 2020, também este estudo contrafactual de Junho de 2022 do mesmo Imperial College deveria ficar nos anais da má Ciência. Tanto um como o outro nem para limpar o rabo servem.

  • Ouvir a raposa sobre como morreu a galinha? Chamem é a polícia!

    Ouvir a raposa sobre como morreu a galinha? Chamem é a polícia!


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tomou recentemente uma magna deliberação contra a Rádio Campanário porque copiou integralmente uma notícia da Rádio Portalegre sem citar a origem da informação.

    O PÁGINA UM não irá queixar-se à ERC sobre as “campanices” de diversos órgãos de comunicação social mainstream, como a RTP, o Jornal i, o Sol, o Público ou a CNN Portugal que, sem nunca citarem o PÁGINA UM, “acordaram” estremunhados para o excesso de mortalidade em Junho.

    red fox on concrete road

    Nunca citarem o PÁGINA UM, mas irem depois atrás das suas notícias, ainda há-de ser um must. Um dever cívico para qualquer jornalista que se preze.

    Mas passemos à frente.

    Na verdade, até tenho o inconfessável desejo de que a imprensa mainstream me siga. E, por exemplo, em vez de irem os jornalistas a correr falar com “especialistas”, passem a clamar sim por maior  transparência – será que alguém se chocará com o “apagão” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar denunciado ontem pelo PÁGINA UM? – e ou chamem a polícia, ou seja, a Procuradoria-Geral da República.

    Vamos ser claros.

    Primeira notícia do PÁGINA UM sobre o excesso de mortalidade total de Junho em domingo passado. Seria publicada nova análise no dia 14. A partir daí sucederam-se as notícias na imprensa mainstream.

    A situação da mortalidade total perfeitamente absurda em Junho – e já tinha sido em Abril e em Maio, sobretudo nos mais idosos – não é questão para especulação. É para investigação. Já.

    Mostra-se, por isso, perfeitamente patético que jornais como o Público peçam ao matemático Óscar Felgueiras que explique este excesso, e ele se “socorra” dos supostos 40 óbitos diários por covid-19 e da “temperatura”.

    Pouco vale recolher as dissertações – no bom sentido do termo – da demógrafa Maria João Valente Rosa, que até avisa, e muito bem, que o chamado “efeito colheita” não justifica os excessos de mortalidade em Abril, Maio e primeira metade de Junho. Aquilo que ela faz é teorizar e deduzir, mas não é com isto que se descobre a verdade.

    Mas mesmo pior é ouvir e reportar acriticamente a posição da Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre esta matéria.

    Segundo o Público, a DGS “junta o ‘aumento da mortalidade específica’ por covid-19 ao ‘aumento da temperatura média do ar’”, acrescentando ainda que esta entidade relembra “que este indicador tem estado ‘acima do normal para esta época do ano’”.

    A comunicação social não serve para construir “cortinas de fumo”, baralhar e contribuir para criar “falsas narrativas” justificativas.

    Mas é aquilo que muita imprensa mainstream nos tem habituado.

    Bem sei que, provavelmente, serei criticado por criticar, mais uma vez, o jornal Público, mas não pode um órgão de comunicação social com o seu histórico continuar a usar jornalistas impreparados ou agradar a “narrativa oficial”.

    No caso em concreto – e é extensível aos outros media –, o jornal Público nunca deveria destacar o argumento de uma mortalidade excessiva por via directa da covid-19 – cujos valores já são muito duvidosos, como já apontei, por estarmos em finais de Primavera e sermos um dos países com maior taxa de imunidade vacinal e natural – e de um pretenso aumento da temperatura média do ar, sem sequer qualquer posterior avaliação. E contribuindo para a manipulação da opinião pública. Fazendo desinformação.

    Notícia do Público de hoje que especula sobre as causas da mortalidade em Junho

    Por exemplo, escrever que “o último mês de Maio foi o mais quente dos últimos 92 anos” é induzir o leitor a pensar que um mês de Maio quente é altamente mortífero. Não é, pelo contrário.

    Um Maio quente não é o mesmo que um Agosto quente.

    Um Maio quente será sempre mais frio do que um Agosto frio.

    Um Agosto frio será sempre mais quente do que um Maio quente.

    Entendem?

    Vejamos então. Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, durante o mês de Maio passado, o valor médio da temperatura média foi de 19,19 graus centígrados, uma anomalia de 3,47 graus, e o valor médio da temperatura máxima foi de 25,87 graus.

    As temperaturas de Maio deste ano são, afinal, mais baixas do que um Setembro médio, que é o mês do ano geralmente com a mortalidade total mais baixa!

    Aliás, basta ver que a evolução da mortalidade diária ao longo do último Maio não teve um padrão típico da ocorrência de ondas de calor (uma subida repentina, seguida de uma descida para números normais).

    Teve sim um evidente e sustentado acréscimo face aos anos anteriores. Foi um problema “estrutural”; não meteorológico.

    Aliás, se o Público quisesse confirmar esta argumentação estapafúrdia da DGS deveria ter então consultado o Índice Ícaro – ainda disponível no Portal da Transparência, não sei até quando –, que mede o risco potencial que as temperaturas ambientais elevadas têm para a saúde da população, podendo levar ao óbito.

    Notem: o supostamente tórrido Maio de 2022 teve todos os dias com o valor de 0,00. Significa que as temperaturas terão contribuído com zero mortes.

    Aliás, mesmo agora em Junho, apenas em oito dos 17 dias o valor do Índice Ícaro esteve acima de 0,00, sendo que o máximo foi no dia 13, mas apenas com 0,11.

    Evolução da mortalidade diária em Maio de 2022 e no período 2017-2021 (média móvel de 7 dias). Fonte: SICO.

    Se fosse verdade que um Índice Ícaro de 0,11 justificasse um contributo por mínimo que fosse para se chegar a 403 mortes de pessoas (como sucedeu na segunda-feira passada), nem quero imaginar então o que acontecerá se, por exemplo, no próximo mês de Julho (onde ser um mês mais quente do que o habitual é já outra “fruta”), se repetirem os valores registados em Julho de 2020 (23 dias com Índice Ícaro acima de 0,11, com o máximo a atingir 1,17).

    Aliás, se houver mesmo uma onda de calor, à séria, neste Verão, encomendem já não ventiladores à China mas sim caixões.

    Mas, na verdade, o busílis da questão – e a minha irritação sobre a postura da imprensa face à DGS – é que o Ministério da Saúde e o Governo, se assim quisessem – e não quisessem apenas “salvar o coiro” –, poderiam encontrar já, em tempo real, em cinco minutos, as causas directas de tamanho morticínio.

    Bastava que fossem transparentes e permitissem o acesso aos dados em bruto (anonimizados, claro) das causas das mortes diárias registadas no Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO).

    Esta ferramenta permite até, por exemplo, saber qual a causa da morte sancionada hoje por um médico legista que registou o óbito há cinco minutos.

    Evolução da mortalidade diária (média móvel de 7 dias) em Julho de 2020, marcada por uma onda de calor. Fonte: SICO.

    Por maioria de razão, pode a DGS saber quais foram as causas de morte ao longo de 2022, comparar essas causas, de forma estratificada, com a média de outros anos, cruzar informação por região ou concelho, e daí apurar quais os desvios mais significativos para cada doença.

    Aliás, com o acesso aberto ao SICO ficava-se a saber se o número de mortes por covid-19 anunciado pela DGS é mesmo verdadeiro, se as mortes por cancros estão a aumentar ou não, se há mais ataques cardíacos ou AVC, ou até quantas mortes houve pelas vacinas (porque têm um subcódigo próprio, segundo a terminologia da OMS, o U12.9).

    Acaba-se assim, quaisquer que fossem as perspectivas e as sensibilidades, com as especulações, as cortinas de fumo, as desinformações, as tiragens de cavalinhos da chuvas e as mortes a falecerem solteiras.   

    Mas a DGS nunca fará isso de motu proprio. Nem o Ministério da Saúde quer. E muito menos o Governo e António Costa.

    Por tudo isto, espero mesmo que um dia, a imprensa mainstream me copie mais uma vez e clame, como eu já faço agora: chamem a polícia. Ou seja, meta-se a Procuradoria-Geral da República a investigar isto, porque já estamos na fase do crime.

  • Da vergonha ou pelas ruas da amargura da (má) Ciência e do (mau) Jornalismo

    Da vergonha ou pelas ruas da amargura da (má) Ciência e do (mau) Jornalismo


    Na semana em que sucedem os relatos de problemas nas urgências de vários hospitais e nos serviços de Obstetrícia, foi divulgado hoje, pelo jornal Público, a publicação de um artigo na Acta Médica Portuguesa, uma putativa revista científica da Ordem dos Médicos.

    Ler o suposto artigo científico e ler o correspondente artigo jornalístico que o divulga é ter um em dois: comprova-se o deplorável estado de validação da Ciência em Portugal e o lastimável percurso do Jornalismo, que deixou de ser o watchdog da sociedade para assumir a ignóbil tarefa de criar narrativas de marketing.

    O (suposto) artigo científico da revista da Ordem dos Médicos, saído em Maio deste ano, intitula-se Um ano de covid-19 na gravidez: um estudo colaborativo nacional – ou One year of covid-19 in pregnancy: a national wide collaborative study, na sua tradução para inglês, língua em que surge escrito, com excepção de resumos em português. E é assinado por 28 autoras  – todas mulheres, devido à especialidade –, sendo 26 médicas de serviços de obstetrícia e ginecologia de hospitais portugueses, uma investigadora da Universidade Nova de Lisboa e uma técnica da Direcção-Geral da Saúde.

    closeup photography of pregnant woman wearing blue panty

    Infelizmente, nenhuma teve a lucidez de achar que, com aqueles dados, e com a informação recolhida do tratamento dos dados, não tinha ali nada de científico, e muito menos para se retirar a seguinte conclusão: “A infeção pelo SARS-COV-2 na gravidez pode acarretar riscos aumentados para as grávidas e fetos. Recomenda-se uma vigilância individualizada nestes casos e a profilaxia desta população com a vacinação.” E sobretudo a segunda frase.

    Mas fizeram, e todas assinaram pomposamente o artigo, e irão listá-lo nos respectivos currículos. Hipócrates, entretanto, dá voltas no túmulo. Alberto Magno dá piruetas para a esquerda. Francis Bacon para a direita.

    E mais grave do que isso, os editores da Acta Médica Portuguesa, nos quais se destaca o editor-chefe Tiago Villanueva (médico de família na Unidade de Saúde Familiar Reynaldo Santos, na Póvoa de Santa Iria), permitiram que fosse publicado, assim como foi, o dito “estudo”. Vergonha alheia.

    Não se diga que não tiveram tempo de reflexão. O artigo foi recebido na Ordem dos Médicos em 17 de Maio do ano passado, foi aceite em 27 de Outubro, até esteve publicado online (sem qualquer relevo) desde 11 de Fevereiro, e saiu na revista em 2 de Maio.

    O Público lembrou-se agora, e não vou discutir critérios e timings editoriais, em dar-lhe parangonas de destaque, sob o título “Covid-19 pode implicar risco acrescido em grávidas e fetos”, fazendo eco das conclusões das autoras do estudo no sentido de se fazer “uma vigilância individualizada nestes casos” de infecção pelo SARS-CoV-2 (uma recomendação óbvia, aplicável a todas as doenças, presumo eu que nem sou médico).

    E acrescentando ainda a mensagem central: recomenda-se “a profilaxia desta população [de grávidas] com a vacinação”

    Sejamos claros.

    Usar a Ciência, para tomar decisões políticas, é meritório.

    Abusar da Ciência, manipulando-a, para tomar decisões políticas, é vergonhoso, ainda mais quando a Comunicação Social serve de instrumento.

    Este estudo é uma anedota. Porque sendo um mero estudo observacional é meramente descritivo e, portanto, serve para pouca coisa, e nunca para conclusões daquela jaez. Não é um estudo de coorte, nem pode ser de caso-controle, nem é transversal nem ecológico, nem nada que se pareça com um estudo epidemiológico.

    Meramente descreve, e pouco, e de forma agregada, a evolução de um conjunto de 630 grávidas portuguesas com teste positivo à covid-19, sem sequer apresentar comparação com as afecções decorrentes de outras infecções respiratórias em anos anteriores ou com as complicações gerais no decurso das gravidezes e partos; sem sequer comparar com grávidas que estivessem ao longo de 2021 vacinadas; e sem recolher dados que permitisse apontar hipóteses de explicações para os (pouquíssimos) casos graves relacionados com a covid-19.

    O “estudo” é uma inutilidade, uma anedota científica.

    Deveria servir, nas universidades, para duas coisas: ou para ensinar os alunos sobre o que não se deve fazer num estudo; ou chumbar os alunos que fizessem um estudo assim.

    clap board roadside Jakob and Ryan

    Quando muito, este “estudo” deveria merecer de editores científicos mais compaixão do que publicação: as autoras imaginaram mesmo que poderiam fazer um estudo desta natureza (e vê-lo numa revista científica) com base em 630 gravidezes entre Março de 2020 e Março de 2021! Seiscentas e trinta gravidezes! E depois acharam que poderiam retirar conclusões para todo o universo das quase 200.000 gravidezes que já se registaram em Portugal desde o início da pandemia, e também para as 85 mil mulheres que, em cada ano, vierem a engravidar.

    Não há, para as autoras, necessidade sequer de introduzir um singelo grupo de controlo (grávidas sem covid-19, vá lá, tiradas ao calhas) para comparar? Ó céus!

    Publicarem uma coisa destas numa (mesmo que suposta) revista científica com uma amostra deste tamanho, só pode ser porque a revista científica não é científica coisa nenhuma. E também revela a falta de cultura científica nas unidades de saúde portuguesas, a começar pelo desenho dos estudos, pela colecta dos dados e pela análise crítica (ou ausência) dos resultados e até onde se pode ir nas conclusões.

    Mas publicou-se. E ficamos a saber que das 630, nenhuma morreu, quase dois terços estiveram assintomáticas (só souberam que estavam com covid-19 porque fizeram teste) e apenas 10 (1,5%) estiveram em UCI, embora apenas 2 ventiladas (0,3%).

    black and white cat on brown wooden shelf

    Duas mulheres ventiladas em 630: é isto preocupante do ponto de vista de Saúde Pública? Foi só por causa da covid-19 que estas duas em 630 foram ventiladas? As autoras nada dizem, porque não sabem, porque não apresentaram comparações. Na verdade, sabiam bem que o seu “estudo” valia nada do ponto de vista científico, mas arrogam-se no direito de defender: vacinem-se todas as grávidas. E acham que isto é Ciência.

    Não pode bastar-nos que escrevam, na introdução do resumo do artigo, o seguinte: “Apesar do risco da covid-19 na gravidez poder ser acrescido, são necessários estudos em larga escala para o melhor conhecimento do impacto desta infeção nesta população.”

    Porque, na verdade, isto é uma mera confissão: o que fizemos não foi um estudo. Foi uma “coisa”… Mas, com esta “coisa”, recomendam depois “a profilaxia desta população com a vacinação”. Expliquem-me como é que, com “coisa” tão malparida, se afirma peremptoriamente uma coisa destas?

    Aliás, ao longo do “artigo científico” (escrevamos com aspas), nem sequer se quantifica o risco (senhores e senhoras autoras do artigo, um risco tem de ser quantificado) para se retirar qualquer conclusão digna desse nome.

    Ora, mas o objectivo desta “coisa” foi óbvio e claro, mas não-científico: contribuir para a narrativa, dar um argumento supostamente científico na promoção da vacinação das grávidas, sem sequer se apresentar um estudo decente sobre os efeitos benéficos (que poderá haver) e/ou eventualmente prejudiciais (que também poderá haver).

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    Minhas senhoras e meus senhores: só com análises rigorosas e científicas se pode concluir por uma recomendação ou por um desaconselhamento. Não é com uma “coisa” como esta assinada por 28 pessoas, muito doutas, certo, mas sem ética científica.

    Este é, para mim, mais um exemplo paradigmático do estado da Ciência em época pandémica: querendo-se, uma determinada entidade usa o seu prestígio do passado – como a Ordem dos Médicos – para “prostituir” a Ciência, abusando dela para transmitir uma narrativa, bastando que uma Comunicação Social acrítica e/ou colaborativa faça as necessárias parangonas, agora sempre com o famigerado e vergonhoso “PODE” no título.

    Em suma, blá blá blá…, isto é Ciência, e vacinem-se. Uma vergonha.

    Ao longo da pandemia viveu-se, de facto, assim. Com pseudociência e pseudo-jornalismo. E não deveria ser. Não pode ser.

    Enquanto isto, faltam obstetras nos hospitais portugueses. E o Serviço Nacional de Saúde num caos. E isso mata. Tem-se visto.

  • 9 (para não serem 10) ‘postais’ de um país de inimputáveis

    9 (para não serem 10) ‘postais’ de um país de inimputáveis


    1 – Fausto Pinto, director da Faculdade de Medicina de Lisboa, anunciou há uma semana a sua candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos. Não deverá haver clínico com melhores relações com as farmacêuticas: a sua Associação para a Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina recebeu, desde 2018, mais de 4 milhões de euros em patrocínios e apoios para a realização de estudos. À cabeça surge a Gilead, com mais de 1,5 milhões de euros, uma parte substancial para estudos (nunca vistos) sobre os efeitos do polémico antiviral remdesivir.

    Fausto Pinto

    2 – Tato Borges, o novo presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, já está a rentabilizar o seu novo cargo, depois de ter substituído Ricardo Mexia. Enquanto lamentava que o Governo deixasse cair a obrigatoriedade de uso das máscaras – símbolo da pandemia –, recebia 1.000 euros por uma palestra da Pfizer.

    3 – Filipe Froes, pneumologista do SNS e consultor da DGS, nos intervalos das suas colaborações com a indústria farmacêutica, é agora consultor da Sanofi para a vacina contra a gripe da marca Fluzone HD. Esta nova versão da vacina para idosos contra o vírus influenza é uma aposta da farmacêutica francesa para a conseguir compatibilizar com a vacina contra a covid-19. O médico-marketeer já recebeu uma tranche de 2.514 euros.

    4 – Luís Varandas, infecciologista pediátrico no Hospital Dona Estefânia (Lisboa) e também professor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, que foi um dos subscritores da denúncia contra o presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias – por delito de opinião –, dá conselhos à Pfizer facturando 2.000 euros por mês. O caso foi denunciado há já quase um ano, mas continua. De permeio, escreveu artigos de opinião em jornais a recomendar vivamente a vacinação de crianças contra a covid-19.

    5 – António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPS), é um ‘fazedor de dinheiro’: este ano, a sua associação já recebeu 499.228,4 euros da indústria farmacêutica. Para ele continuar a ser consultor da DGS e do Infarmed, a SPP só poderia receber em média 50.000 euros por ano. A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde precisa, contudo, de um “processo de esclarecimento” para acabar com este regabofe, enquanto Infarmed e DGS estão calados que nem ratos.

    António Morais (ao centro), preside à Sociedade Portuguesa de Pneumologia, e é consultor da DGS e do Infarmed.

    6 – A Pfizer pagou em Maio mais de 90 mil euros a médicos para estarem presentes no habitual encontro sobre vacinas, desta vez na Trofa. Estiveram lá nomes sonantes, de grande “independência” aquando da pandemia, tais como Baltazar Nunes, Luís Varandas, Maria João Brito, Tato Borges, Ricardo Mexia e António Diniz.

    7 – Em vez do Estado português, e o seu Ministério da Saúde, promover um estudo independente sobre a insuficiência cardíaca, deixa que seja a Sociedade Portuguesa de Cardiologia a receber 151.927,49 euros da AstraZeneca para o fazer. O Porthos Study iniciou-se em Dezembro do ano passado e consistirá numa baterias de testes a 5.616 voluntários com mais de 50 anos. Os resutados ficam nas mãos da farmacêutica, que os pode usar para convencer o Estado a gastar mais dinheiro em medicação.

    AstraZeneca é o financiador de um estudo necessário mas que o Estado não faz. Os dados vitais ficam na posse da farmacêutica.

    8 – A Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares que, visto está, tem administradores hospitalares como sócios, não tem razões de queixa das farmacêuticas: desde 2018, as diversas empresas já lhes concederam subsídios e apoios no valor de 1.521.815 euros. À cabeça está a incontornável Gilead – a produtora do polémico antiviral remdesivir – que concedeu 320.846 euros durante esse período. Só este ano, o crédito a favor da associação dos administradores pela parte da Gilead vai em mais de 84 mil euros, grande parte dos quais para a segunda edição da Bolsa de Desenvolvimento do Capital Humano em Saúde.

    Gilead é um dos principais financiadores da associação que integra os administradores hospitalatres que decidem as compras de fármacos.

    9 – A Cofina recebeu 133.455 euros da Sanofi, desde o ano passado, para organizar o Prémio Saúde Sustentável. Ignora-se se o valor é grande ou pequeno em comparação com os montantes recebidos pela Impresa, Público e Global Notícias, entre outros órgãos de comunicação social, porque mais nenhuma outra farmacêutica envia essa informação para o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed. A transparência é um conceito teórico em Portugal.

  • O Hipócrita que “matou” Hipócrates

    O Hipócrita que “matou” Hipócrates


    Nas últimas semanas, o pneumologista Filipe Froes – um dos mais promíscuos médicos desta Nação, tantas são as suas relações com a indústria farmacêutica, ao mesmo tempo que é clínico no SNS e consultor na Direcção-Geral da Saúde (DGS) – desdobrou-se em declarações elogiosas a favor dos antivirais e anticorpos monoclonais para tratamento da covid-19.

    Estes medicamentos – cuja rapidez na aprovação por parte dos reguladores causa espanto, apesar das dúvidas da sua eficácia e das notícias sobre os efeitos secundários – têm sido, claramente, uma aposta de marketing das farmacêuticas nesta fase da pandemia: na generalidade, destinam-se a doentes com sintomas ligeiros a moderados, numa altura em que a Omicron, no caso português, somente causa a hospitalização de 0,2% dos casos positivos.

    Como cada tratamento poderá vir a custar cerca de 500 euros, fácil se conclui que as farmacêuticas ficam com os louros e com o dinheiro mesmo se a eficácia dos medicamentos for idêntica à de um placebo. E isto já para não falar nos problemas já anotados, sobretudo nos Estados Unidos, onde o seu uso, promovido por Joe Biden, se tem generalizado.

    Filipe Froes é pneumologista no SNS, consultor da DGS (incluindo a definição de terapêuticas contra a covid-19) e consultor e palestrante pago por farmacêuticas.

    Mas voltemos ao Doutor Filipe Froes. Para o Infarmed garantir a “luz verde” para compras e o Governo tratar de gastar uns bons milhões de euros para constituir uma Reserva Nacional – como sucedeu com o remdesivir, da Gilead –, este especialista desmultiplicou-se, nesta última quinzena, em perorações em tudo quanto era sítio que lhe dá guarida – leia-se, imprensa mainstream – a promover dois antivirais das suas queridas farmacêuticas, a saber: o Paxlovid, da Pfizer, e o Lagevrio, da Merck Sharpe & Dohme (MSD).

    Em simultâneo, como consultor da DGS, o mesmo Doutor Filipe Froes afanosamente procurava incluir os tais antivirais e anticorpos monoclonais nas terapêuticas oficiais contra a covid-19. No intervalo disto – ou aquilo é que é o intervalo – continuava a passar facturas às farmacêuticas, como a Pfizer, Merck Sharpe & Dohme e GlaxoSmithKline, interessadas neste chorudo negócio. Este ano já vai em 23.383 euros de oito farmacêuticas. E o ano ainda nem vai a meio, e nem sempre tudo se vê.

    Mas regressemos às aparições mediáticas do Doutor Filipe Froes nas últimas duas semanas.

    Foi um fartote.

    Uma pornografia.

    No dia 16 de Maio era vê-lo na Visão numa peça jornalística (?) de pura publicidade a elogiar o antiviral Paxlovid, produzida pela sua “querida” Pfizer. O título não poderia ser mais sugestivo: O que é Paxlovid, o antiviral campeão de vendas nos EUA, que pode pôr a salvo os doentes de risco”. Se pode ou não, ignora-se. Sabe-se, sim, que a Pfizer já anunciou metas de vendas até ao final do ano de 20 mil milhões de euros.

    Paxlovid, o antiviral da Pfizer.

    No dia 19 de Maio, era ouvi-lo na Rádio Renascença a dizer que era necessário “divulgarmos rapidamente e termos acesso aos novos medicamentos antivirais que têm impacto na diminuição da circulação do vírus e aos anticorpos monoclonais, de maneira ainda a protegermos mais as pessoas mais graves.” (sic)

    No mesmo dia, também o encontramos no inefável Diário de Notícias, em artigo de opinião, em que avisa que “Portugal não pode continuar a ser dos escassos países europeus que não disponibiliza as novas intervenções terapêuticas à sua população e, em particular, aos doentes com maior risco de evolução para gravidade ou incapazes de montar uma resposta eficaz à vacinação e que se mantêm ‘prisioneiros da pandemia’”.

    No dia 22 de Maio, lá o encontrámos na CNN Portugal, a dizer que “nós temos de acelerar, para o nosso país, o acesso a dois fármacos que já têm muito impacte nos outros países em termos de controlo da doença, que são os novos antivíricos”.

    No dia 27 de Maio, em mais um artigo de opinião, desta vez no Expresso, lá surgiu o Doutor Filipe Froes a defender, entre outras coisas, hélas, “o acesso prioritário aos novos antivirais e anticorpos monoclonais”.

    Anteontem, dia 29 de Maio, mais uma nova notícia na CNN Portugal, com o Doutor Filipe Froes a botar faladura sobre antivirais e anticorpos monoclonais.

    Nos Estados Unidos têm sido relatados casos de reincidência de covid-19 pouco depois do tratamento com Paxlovid, que custa mais de 500 dólares por tratamento.

    E eis, portanto, que hoje surge a notícia de ter sido homologado, no passado sábado (!), uma nova norma terapêutica farmacológica para a covid-19 pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas, que passou a incluir, como forma de tratamento convencional, e em alguns casos de forma prioritária, os antivirais da Pfizer (Paxlovid) e da Merck Sharpe & Dohme (Lagrevio), mais os anticorpos monoclonais da GlaxoSmithKline (Xevudy).

    A inclusão não é nada discreta: na verdade, os clínicos que sigam doentes-covid têm, a partir de agora, de fundamentar no processo clínico a existência de uma “eventual impossibilidade da aplicação da presente Norma”. Leia-se: se não quiserem chatices, prescrevam o que está aqui, que as farmacêuticas agradecem.

    Ora, mas adivinhem quem é um dos peritos da DGS-Infarmed que compôs a norma?

    Parabéns!!!

    Acertou!!!

    O Doutor Filipe Froes, claro!, que surge logo no segundo posto na lista (que não está por ordem alfabética).

    Este país, de facto, não sabe o que é o pudor. Não tem vergonha na cara.

    Mas eu quero ir mais longe. Tenho de ir mais longe.

    Que o Doutor Filipe Froes se venda e haja quem o compre, eu dou de barato, mesmo que ele se faça caro. Não posso é aceitar, como cidadão, que ele brinque com a Saúde Pública, com o dinheiro dos contribuintes e com um dos princípios básicos da Medicina: o primum non nocere.

    Bem sei que isto é molhar a chuva, porque o Doutor Filipe Froes existe como o sabemos porque ele não é só ele: ele representa uma tipologia de pessoas que juraram perante Hipócrates mas servem apenas Mamon. Por isso, onde se lê Doutor Filipe Froes, leia-se pessoas como o Doutor Filipe Froes.

    silver and black stethoscope on 100 indian rupee bill

    Para o Doutor Filipe Froes basta-lhe apenas as simpatias da imprensa mainstream, o ouro das farmacêuticas e o despudor das autoridades de Saúde em o manterem como consultor.

    Ele faz o resto, e bem, como bom marketeer: vende fármacos, apenas garantindo, sem qualquer base que não seja o seu paleio e os argumentos das farmacêuticas, que se tem de salvar a velhinha da covid-19, custe o que custar, mais o gato e o periquito, e ele garantirá que tudo é verdade, e que por isso ali está ele nas televisões, rádios e jornais – e que, quem o contestar, só pode ser por maledicência, por ser um negacionista, um anti-vacinas, um anti-ciência, um terraplanista e o mais que lhe aprouver inventar, desde que ele, assim como se comporta e o deixam comportar, continue o acarinhado ponta de lança do lobby das farmacêuticas.

    Nunca ouviremos da boca do Doutor Filipe Froes que, por exemplo, o “seu” Paxlovid foi ensaiado apenas para a variante Delta (muitíssimo mais agressiva do que a actual dominante Omicron), e que, portanto, os potenciais benefícios são uma mão-cheia de nada.

    Nem dele se ouvirá qualquer comentário sobre a (fraca) segurança efectiva deste fármaco que, no Resumo das Características do Medicamento (RCM lista (e ainda estamos no começo) 125 medicamentos com interacções indesejadas ou ainda não completamente conhecidas (vd. pp. 6-21). São cento e vinte e cinco medicamentos – agora por extenso: uma coisa raramente vista. Se acham que exagero, eu listo-os:

    assorted medication tables and capsules

    Alfuzosina, Anfetamina, Buprenorfina, Norbuprenorfina, Petidina, Piroxicam, Propoxifeno, Fentanilo, Metadona, Morfina, Ranolazinha, Amiodarona, Bepridil, Dronedarona, Ecainida, Flecainida, Propafenona, Quinidina, Digoxina, Teofilina, Afatinib, Abemaciclib, Apalutamida, Ceritinib, Dasatinib, Nilotinib, Vincristina, Vinblastina, Encorafenib, Fostamatinib, Ibrutinib, Neratinib, Venetoclax, Rivaroxabano, Vorapaxar, Varfarina, Carbamazepina, Fenobarbital, Fenitoína, Valproato, Lamotrigina, Fenitoína, Amitriptilina, Fluoxetina, Imipramina, Nortriptilina, Paroxetina, Sertralina, Desipramina, Colquicina, Astemizol, Terfenadina, Fexofenadina, Loratadina, Rifabutina, Metabolito 25-O-desacetilo da rifabutina, Voriconazol, Cetoconazol, Itraconazola, Eritromicina, Atovaquona, Bedaquilina, Delamanid, Claritromicina, Metabolito 14-OH da claritromicina, Sulfametoxazol/trimetoprim, Ácido fusídico, Rifampicina, Efavirenz, Maraviroc, Raltegravir, Zidovudina, Glecaprevir/pibrentasvir, Clozapina, Pimozida, Haloperidol, Risperidona, Tioridazina, Lurasidona, Quetiapina, Salmeterol, Amlodipina, Diltiazem, Nifedipina, Bosentano, Riociguat, Di-hidroergotamina, Ergonovina, Ergotamina, Metilergonovina, Cisaprida, Hipericão, Atorvastatina, Fluvastatina, Lovastatina, Pravastatina, Rosuvastatina, Sinvastatina, Etinilestradiol, Ciclosporina, Tacrolímus, Everolímus, Lomitapida, Avanafil, Sildenafil, Tadalafil, Vardenafil, Clorazepato, Diazepam, Estazolam, Flurazepam, Midazolam, Triazolam, Petidina, Metabolito da norpetidina, Alprazolam, Buspirona, Zolpidem, Bupropiom, Propionato de fluticasona, Budesonida, Triamcinolona, Dexametasona, Prednisolona e Levotiroxina.

    Venha o Doutor Filipe Froes dizer-nos quantos medicamentos com consumo em ambulatório têm tamanha quantidade de contra-indicações. E venha dizer-nos ele – na verdade, deveria ser o Infarmed, ou a DGS, ou melhor mesmo a ministra da Saúde, Marta Temido – quem prescreverá estes fármacos pagos a preço de ouro pelo Estado (porque vai ser o Estado a pagar), quem os avia, quem confere se os doentes não estão a tomar quaisquer daqueles medicamentos com possíveis interações graves.

    Ah, já agora, atenção: o RCM do Paxlovid diz que os atrás referidos medicamentos listados “servem de referência e não são considerados uma lista exaustiva de todos os possíveis medicamentos que são contraindicados ou que podem interagir” (sic) com o Plaxovid. Mas que interessa isso ao Doutor Filipe Froes?

    Dele, do Doutor Filipe Froes, só ouviremos loas e ditirambos, hosanas e panegíricos em honra das supostas benesses de antivrais e anticorpos monoclonais para uso extensivo – como previsto na norma da DGS – em “doentes” com sintomas leves ou moderados.

    girl covering her face with both hands

    Qual a razão de tamanha pressa na compra de fármacos que arriscam a dar mais problemas do que vantagens, quando nem sequer se permitiu ainda realizar estudos carcinogénicos nem sobre a gravidez nem sobre a fertilidade nem sobre muitos outros aspectos vitais.

    Mesmo sendo escrito pela própria farmacêutica, a leitura do RCM do Paxlovid – mesmo dizendo pouco – mostra bem, aliás, como a prudência é deitada às malvas por pessoas como o Doutor Filipe Froes. Por exemplo, lá se escreve que “não existem dados sobre a utilização de Paxlovid em mulheres grávidas”, pelo que se recomenda que “as mulheres com potencial para engravidar devem evitar engravidar durante o tratamento com Paxlovid e, como medida de precaução, durante 7 dias após a conclusão da terapêutica com Paxlovid”. Contudo, mais adiante acrescenta-se que um dos fármacos que integram o Paxlovid (ritonavir) “poderá reduzir a eficácia de contraceptivos hormonais combinados”. Se isto não fosse grave, seria cómico.

    Enfim, por vezes me pergunto, muitas vezes, perante médicos como o Doutor Filipe Froes: o que os move?

    Os princípios de Hipócrates não são, certamente. E se ele os invoca – em vão –, então a sua atitude entra, clara e etiologicamente falando, na esfera da Hipocrisia. Temos um Hipócrita que todos os dias “mata” Hipócrates.

  • Dos ‘macacos’ da Direcção-Geral da Saúde

    Dos ‘macacos’ da Direcção-Geral da Saúde


    Começou este mês. Recebo no dia 1 de Maio, o primeiro comunicado de imprensa da Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre os casos positivos da “varíola dos macacos” – ou monkeypox – uma doença endémica em certas regiões do continente africano, mas rara na Europa. A doença, sabe-se, é de difícil transmissão e, por regra benigna. Está longe de ser um problema premente de saúde pública.

    Porém, a DGS – provavelmente já para testar a nossa participação no projecto-piloto da Organização de Saúde no âmbito do Universal Health and Preparedness Review (UHPR) – tem estado a transformar este evento numa operação de criação de alarme, alimentando a imprensa com “actualizações” diárias. O objectivo é claro: fornecer “combustível” para criar pânico.

    Só esta semana, a DGS enviou para a imprensa cinco comunicados sobre o monkeypox.

    brown coated monkey on branch

    Sobre outro qualquer assunto de Saúde Pública, nada.

    Nada sobre as consequências dos atrasos nos rastreios de cancros.

    Nada sobre os ataques cardíacos.

    Nada sobre os casos de AVC.

    Nada sobre a tuberculose.

    Nada sobre as infecções do aparelho respiratório não-covid e, muito menos, sobre uma infindável quantidade de doenças infecciosas e parasitárias com letalidade superior à causada pelo SARS-CoV-2.

    Nada sobre os doentes que não conseguem ter médico de família.

    Nada sobre o facto de não se conseguir já marcações online de consultas.

    Nada mais. Deve chegar hoje ainda, ao final da tarde, um novo update sobre a covid-19, mas de resto, esta semana só saiu monkeypox do gabinete de imprensa da senhora directora-geral Graça Freitas.

    E o que são esses comunicados sobre o monkeypox?

    Bem, o de segunda-feira passada dizia que havia 37 casos, mais 14 do que três dias antes.

    O de terça-feira apontava 39 casos, mais 2 do que no dia anterior.

    Graça Freitas, directora-geral da Saúde.

    Quarta-feira seguia nos 49 casos, mais 10 do que no dia anterior.

    Quinta-feira lá estávamos nos 58 casos, mais 9 do que no dia anterior.

    E, por fim, hoje, 74 casos, mais 16 do que no dia anterior.

    Tudo isto, assim, para uma doença que não matou sequer alguém. Em média, garanto-vos, há mais casos detectados de tuberculose, que felizmente é doença bem mais rara do que no passado, mas ainda bastante mortal.

    Enquanto andamos nisto, e após um excedente de mortalidade de cerca de 20% nos últimos dois anos, a doutora Graça Freitas, mais a doutora Marta Temido, e mais ainda o doutor António Costa, nada dizem sobre a actual situação de Saúde Pública em Portugal. Em Maio (até ao dia 25), a mortalidade por todas as causas está em níveis absurdos: 14% acima do período homólogo de 2020-2021 e 18% acima da média do período homólogo dos cinco anos anteriores à pandemia (2015-2019).

    Sobre isto nem um piu se ouve da DGS ou do Ministério da Saúde ou do Governo. E da imprensa mainstream, que anda há muito anestesiada.

    Como já não têm cara para culpar a pandemia – afinal como podemos estar a falhar se “nós já ganhámos a este vírus”, como nos afiançou o putativo candidato a Belém, o almirante Gouveia e Melo, em Setembro passado –, inventam agora uma manobra de diversão.

    Entretêm-nos com “macacadas”, enquanto a “casa arde”.

  • Guimarães & Froes, Lda., delegados de propaganda médica da 6ª vaga dos lucros das farmacêuticas

    Guimarães & Froes, Lda., delegados de propaganda médica da 6ª vaga dos lucros das farmacêuticas


    Miguel Guimarães, circunstancial presidente de uma associação profissional denominada Ordem dos Médicos, veio ontem escrever no diário Correio da Manhã um artigo de opinião intitulado “6ª vaga”. Não consta que Maria do Céu Machado, presidente do Conselho Disciplinar Sul na Ordem dos Médicos – investida de inquisidora-mor dos seus colegas que, desde 2020, “mijam fora do penico” da doutrina de discurso único –, venha questionar o seu amigo urologista sobre os palpites ali esparramados.

    É pena; até porque o bastonário não opinou; andou a fazer descarado “lobby” a favor de produtos farmacêuticos. Não andou a dar a recomendações de médico; andou sim, com toda a ardileza de um delegado de propaganda médica (mas munido do bastão de líder máximo dos médicos), a pressionar o Infarmed e o Estado português para se comprar fármacos caros e de custo-benefício mais que duvidoso – sobretudo se compararmos com a eficácia de outras medidas fulcrais, como seja a de haver médico de família para mais de um milhão de portugueses que não o têm.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.

    Escreveu, portanto, Miguel Guimarães que “está a acontecer o expectável: o alívio das medidas contra a pandemia, nomeadamente a eliminação do uso obrigatório de máscara, tem levado ao aumento de casos”.

    Esta lógica bacoca – que, aliás, foi o alimento da “Narrativa Única”, e unificadora, por pressão do senhor Guimarães – devia ser automaticamente criticada e censurada pelo Conselho Disciplinar do Sul da Ordem dos Médicos por não-científica. O senhor doutor Guimarães deveria, sim, divulgar todos os pareceres dos diversos Colégios da Especialidade, em vez de apenas divulgar os que lhe interessam e armar-se em dono da Verdade Médica. Aqueles que ele quer esconder é que são científicos; não as suas “opiniões” comprometidas, e comprometedoras para uma profissão (ainda) respeitável.

    Vamos ser claros. Não existe sexta vaga coisíssima nenhuma em Portugal – na verdade, ao longo da pandemia, tivemos uma única onda digna desse nome (no Inverno de 2020-2021, cf. imagem) –; tudo o resto que se anunciam como vagas são ficção, foram “ondinhas”. Basta olhar para os gráficos.

    Mortalidade atribuída à covid-19 em Portugal desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.

    Por outro lado, a defesa de uma relação “máscaras, logo menos casos” não está consubstanciada na realidade nem na Ciência. Em finais de Janeiro deste ano, na época da “loucura dos testes” – onde se despendeu milhões de euros em testes por dia, quando a letalidade da covid-19 já equivalia à dos surtos gripais –, chegámos a ultrapassar os 60 mil casos positivos em 24 horas.

    E isto numa altura em que havia máscaras obrigatórias em todos os espaços fechados e impôs-se a discriminação dos não-vacinados. Por exemplo, eu, que tinha valores de imunidade (IgG) muita acima do valor mínimo (mais de 400 BAU/ml em testes serológicos realizados em Dezembro do ano passado e Março deste ano), não podia sequer entrar num restaurante ou ir a um espectáculo.

    Na verdade, alguém com dois pingos de inteligência (mas necessariamente sem ligações à “indústria da pandemia”), deve sim questionar-se sobre as razões de ainda subsistir tanto burburinho em redor de uma doença (covid-19) que já nada tem a ver com aqueloutra com o mesmo nome (da qual até eu padeci há um ano), e que por cá andou antes da dominância da variante Omicron (que até Bill Gates, num momento de lucidez, veio confessar que fez mais contra a pandemia do que a própria vacina).

    Como se compreende a retomada do pânico sobre uma doença que, por exemplo, em Janeiro do ano passado teve uma taxa de letalidade em Portugal de 1,90%, e que em Janeiro deste ano já só registou uma letalidade de 0,08%, compatível com um surto gripal? A covid-19 de 2021 era quase 24 vezes mais perigosa do que é a covid-19 de 2022.

    woman in black tank top with white face mask

    Pode o senhor doutor Guimarães dizer que as vacinas são as (únicas) responsáveis por esta situação. Já dou tal de barato. Mas, vendendo-se bem as vacinas, não pode é, através de uma artificial promoção do pânico, baseando-se somente em casos positivos, vir promover ainda mais as ditas vacinas, mas à boleia, como quem não quer a “coisa”, opinar que se deve “garantir acesso às terapêuticas com antivirais e anticorpos monoclonais neutralizantes, já disponíveis em outros países”.

    Na verdade, o que ele diz é muito simples: o Infarmed deve autorizar a comercialização e o Estado deve comprar. O dinheiro não é dele, mas as vantagens de “estoirar” dinheiro público (escasso para a solidez do Serviço Nacional de Saúde) parecem ser.

    Não sejamos ingénuos – e eu não sou, pelo menos, neste capítulo.

    Não existem, neste momento, quaisquer sinais que justifiquem a aposta num fármaco que custa 500 euros por cada tratamento completo de um doente vulnerável que já estará muito provavelmente vacinado com três e quatro doses, e numa fase inicial de sintomas (leves ou moderados). Mais ainda sabendo-se que esses antivirais são de eficácia ainda longe de ser evidente.

    E mais ainda quando estamos, a nível mundial, numa evidentíssima e claríssima fase endémica da covid-19. Anteontem, a mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2 em todo o Mundo situou-se em 1.590 óbitos (média móvel de 7 dias), o valor mais baixo desde 23 de Março de 2020 – ou seja, o mês da chegada em força da pandemia ao Hemisfério Norte.

    Mortalidade atribuída à covid-19 no Mundo desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.

    A queda da mortalidade da covid-19 é indesmentível. Desde o início do presente ano, a descida da mortalidade tem sido contínua: em 9 de Fevereiro atingiu um máximo de 10.918 óbitos. Ou seja, caiu 85% em três meses! Sem descanso.

    Porém, apesar disso, o senhor doutor Guimarães confirmou, nesta sua “opinião” no Correio da Manhã, a existência clara de uma medonha e diria mesmo criminosa operação de promoção dos antivirais contra a covid-19, sobretudo do Paxlovid da Pfizer, sobre o qual já aqui escrevi a pretexto de uma suposta notícia da Visão Saúde – na verdade, a mais pura peça de jornalismo ao serviço das farmacêuticas que já vi, e que contou com a participação despudorada de um marketeer travestido de médico, o pneumologista Filipe Froes.

    O dito Filipe Froes não satisfeito em servir de “porta-voz” do Paxlovid naquela peça da Visão Saúde, promovendo explicitamente, um fármaco – algo que as regras deontológicas proíbem, e ainda mais o decoro, sabendo-se das suas ligações à Pfizer e mais de duas dezenas de farmacêuticas –, veio no passado fim de semana perorar também na CNN Portugal a favor, hélas, dos antivirais.

    Disse ele, a partir do minuto 9:30, com aquela sua desavergonhada cara de quem recebeu já mais de 400 mil euros de farmacêuticas: “(…) e, finalmente, nós temos de acelerar, para o nosso país, o acesso a dois fármacos que já têm muito impacte nos outros países em termos de controlo da doença, que são os novos antivíricos”.

    Filipe Froes

    Ora, esse dois “novos antivíricos” são, obviamente, o Paxlovid (nirmatrelvir e o ritnonavir), da Pfizer – e o Lagevrio (molnupiravir), da Merck Sharpe & Dohme (MSD).   

    Nem de propósito – oh, coincidências –, a Pfizer e a MSD são as duas farmacêuticas que mais dinheiro encaminharam para a conta bancária do senhor doutor Froes: entre 2013 e 2021, a primeira transferiu 134.574 euros e a segunda 85.522 euros. Isto atendendo ao que foi declarado no Portal da Transparência e Publicidade, que como sabemos é feito voluntariamente, sem introdução de comprovativos e sem qualquer auditoria posterior.

    Receitas de Filipe Froes das farmacêuticas entre 2013 e 2021. Fonte: Infarmed.

    Por tudo isto, pelos sinais de “fim de festa da pandemia”, percebe-se a acção deste duo  de marketeers de alto gabarito, destacados ou contratados, para meter todas as fichas – leia-se, promover a mensagem de uma falsa necessidade – para pressionar o Governo a comprar aqueles antivirais.

    E então, se os marketeers, como os Guimarães & Froes, Lda., forem bem-sucedidos, estarão depois dispostos a garantir-nos que os tais fármacos da Pfizer e da MSD são mesmo miraculosos.

    E fá-lo-ão com a mesma convicção do tipo que, assobiando estridentemente pelas ruas, afiança que serve para afugentar tubarões, sendo que a prova da eficácia do seu método é não se verem aí tubarões.

  • Do nojo e da desvergonha: os fretes da Visão Saúde e o mercantilismo de Filipe Froes

    Do nojo e da desvergonha: os fretes da Visão Saúde e o mercantilismo de Filipe Froes


    Será difícil, nos tempos vindouros, encontrar peça jornalística mais infame. Ademais, complementada pelas balelas do mais mercantilista “vendedor da banha da cobra do país” que ostenta (ainda) uma cédula passada pela Ordem dos Médicos.

    Este é um sinal dos tempos modernos, do Novo Normal: do conluio entre uma imprensa sem escrúpulos e vergonhosa, alicerçada em médicos que mandaram Hipócrates à merda e que se vendem por 29 dinheiros, porque até se comercializam abaixo da cotação de um Judas.

    Hoje, pelas 10h15 horas, na edição online da revisa Visão Saúde, a jornalista Mariana Almeida Nogueira – que, pelo seu número elevado de carteira profissional (CP 8227), não deve ter tido ainda tempo de ler o Código Deontológico – escreve o mais descarado artigo de propaganda de marketing de que tenho memória. Ou melhor dizendo, publicidade pura e dura. E tenho (ainda) muito boa memória.

    Para sustentar esta peça: as opiniões de um vendedor encartado pela Ordem dos Médicos, e não investigado a preceito pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS): o pneumologista Filipe Froes.

    Qual o tema?

    Notícia de hoje na Visão Saúde, assinada pela jornalista Mariana Almeida Nogueira.

    Já viram na imagem em cima: Paxlovid, um antiviral contra a covid-19 da farmacêutica Pfizer, apresentado logo no título como o “antiviral campeão de vendas nos EUA”, e que, acrescenta-se ainda, “pode [sempre a velha questão do pode, que pode significar o contrário, ou seja, pode não] pôr a salvo os doentes de risco”.

    O lead não seria melhor escrito por uma agência de comunicação; e mal não lhe ficaria.

    Mas a imprensa, e um(a) jornalista não pode ser uma agência de comunicação.

    O texto da Visão Saúde, através de uma (suposta) jornalista encartada, não pode ter um lead assim: “E se existisse um antiviral capaz de complementar a ação da vacina e de reduzir a probabilidade de estes doentes de risco irem parar ao hospital, terem doença grave e morrerem? E existe mesmo. Chama-se Paxlovid, mas ainda não está disponível no nosso País, nem se sabe quando estará”.

    Se fosse a Cristina Ferreira ou o Manuel Luís Goucha a dizer isto do Calcitrin, a gente até aguentava. Mas isto não é “banha da cobra”: é um medicamento que arrisca custar-nos, se levados por esta intrujice de vendedor, muitos milhões de euros sem préstimo. Na melhor das hipóteses.

    De facto, toda esta (alegada) notícia é escrita como se fosse inexplicável o não-aproveitamento deste milagre da Pfizer.

    Como se estivéssemos perante uma inexplicável negligência do Estado.

    Não é o caso. Na verdade, a notícia é puro marketing para favorecer (sem aspas) uma farmacêutica, criando pressão mediática sobre o Governo e o Infarmed para a concretização de um negócio de milhões.

    girl in front of cake

    Mas, afinal, do que falamos quando falamos do Paxlovid – questão de pouca relevância para a Visão Saúde, mais preocupada em panfletar o fármaco milagroso da Pfizer?

    O Paxlovid é, na verdade, uma combinação antiviral, de toma oral, constituída por dois medicamentos: o nirmatrelvir e o ritnonavir. O primeiro destes medicamentos já tinha sido criado em 2002 para combater o primeiro SARS, mas sem qualquer utilidade prática. Com o advento do SARS-CoV-2, a Pfizer começou então a testá-lo, em conjunto com outros. Apenas em Novembro do ano passado, a Pfizer anunciou um ensaio provisório envolvendo 774 pacientes com sintomas ainda leves ou moderados de covid-19, sobre os quais se avaliava o seu risco de internamento e morte. Em menos de um mês e meio, a farmacêutica apresentou então os resultados finais e, sem grandes demoras, em 16 de Fevereiro passado, saiu um artigo na revista científica New England Journal of Medicine.

    Se acham estranha a rapidez da publicação deste artigo – assinado por investigadores da Pfizer (que admiração!) – numa revista científica, que dizer então da celeridade na autorização de comercialização pela Food and Drug Administration (FDA)?

    Apenas 11 dias após a imprensa – que passou a constituir a fase crucial para convencer Governos e reguladores – ter divulgado os resultados obviamente extraordinários do Paxlovid, a Pfizer pediu autorização à FDA. Estávamos em 11 de Novembro do ano passado. No dia 22 de Dezembro, quase sem pestanejar, a FDA concedeu uma “autorização de uso de emergência”.

    Nunca outro medicamento teve aprovação tão rápida. E isto não é uma boa notícia.

    Israel seguiu logo os passos dos Estados Unidos, com uma autorização em 26 de Dezembro. E depois foi em cascata: Reino Unido em 31 de Dezembro e, por fim, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) recomendou a autorização de comercialização condicional em 27 de Janeiro passado, deixando aos reguladores dos países europeus solicitar ou não mais testes.

    red apple fruit beside clear plastic bottle

    A euforia com que o Paxlovid foi recebido nos últimos meses somente encontra paralelo com o anúncio das vacinas contra a covid-19. Lembram-se?! Daquelas que iriam ter uma eficácia de quase 100%, que concederiam imunidade de grupo e até maior protecção contra as infecções. Lembram-se? Pois bem, os resultados são bem mais modestos, e tanto assim que as autoridades de Saúde – incluindo a nossa DGS – os escondem para uma avaliação independente.

    Mas para escoar o Paxlovid, a máquina de marketing da Pfizer ainda está mais oleada, mostrando uma “eficácia” extraordinária na perspectiva de obtenção dos máximos lucros no mais curto espaço de tempo.

    De facto, sem uma justificação plausível – e muito menos transparente –, o preço de cada tratamento de cinco dias de Paxlovid nos Estados Unidos custará quase 530 dólares, ou seja, aproximadamente 510 euros. Este deverá ser o preço estabelecido para a Europa.

    Os preços dos medicamentos já não reflectem, em grande parte dos casos, os custos de investimento, mas sim os previstos benefícios para a saúde individual e colectiva. Como o Plaxlovid está a ser “vendido” como um fármaco milagroso – apenas com base em ensaios clínicos realizados pela empresa e sem uma análise independente de longo prazo –, anunciando-se uma redução de 88% das hospitalizações, então a farmacêutica pode pedir um valor elevado desde que inferior ao custo de internamento dos doentes que seriam hospitalizados se o medicamento não existisse.

    Mas isso é fazer futurologia. O Paxlovid é um medicamento que não mostrou ainda provas. Não justifica compras massivas.

    Aliás, em epidemias, muitos medicamentos prometeram muito, e deram pouco, mas custaram muito. Tamiflu, há uma década, ou o Veklury (remdesivir), na pandemia da covid-19, surgem logo à lembrança. Milhões entregues de bandeja às farmacêuticas; resultados zero. Aliás, sobre o Tamiflu, da farmacêutica suíça Roche, corre ainda um processo judicial nos Estados Unidos por falsificação de dados que sobrestimaram efeitos benéficos.

    Artigo científico que “explica” como a Roche actuou para vender o Tamiflu em 2009.

    Aliás, quem quiser entender como funcionam as estratégias de marketing farmacêutico em tempos de pandemia, basta ler o artigo científico de 2017 intitulado “Pharmaceutical lobbying and pandemic stockpiling of Tamiflu: a qualitative study of arguments and tactics”, no Journal of Public Health.

    Mas a máquina da Pfizer quer mais do que vender aos países ricos. Sabe que pode maximizar o lucro se vender o Paxlovid aos países pobres com suposto preço de saldo. Até, supostamente, fica bem na fotografia. Não sejamos ingénuos: as margens de lucro serão muito menores, mas muitas mais vendas sempre dará mais lucro.

    E assim, sem perda de tempo, vimos a Pfizer a querer inundar os países pobres com Paxlovid. No passado dia 17 de Março, o Pool de Patentes de Medicamentos, apoiado pelas Nações Unidas, assinou acordos com 35 fabricantes de medicamentos genéricos na Europa, Ásia e América Central e do Sul para fabricar este fármaco e fornecê-lo em 95 países mais pobres.

    Dois dias mais tarde, os Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças assinaram um memorando de entendimento com a Pfizer para fornecer Paxlovid com um preço de 25 euros.

    No início de Maio, a Pfizer estimava conseguir vender 22 mil milhões de dólares, até final deste ano, de Paxlovid, aproximando-se das receitas da vacina Cominarty (32 mil milhões de dólares).

    Obviamente, para esta estratégia ser bem-sucedida, além de uma imprensa ao seu serviço, a Pfizer precisa de pessoas como o Doutor Filipe Froes, um marketeer travestido de médico, que foi “chamado” para a peça da Visão Saúde.

    O pneumologista – que já foi o maior “impingidor” de remdesivir, da Gilead, que nos custou 20 milhões de euros sem préstimo algum, a troco de uns bons milhares de euros – está agora vocacionado para vender – e aqui sem aspas – o Paxlovid da Pfizer, tal como virá, certamente em breve, a vender também o Molnupiravir da Merck Sharpe & Dohme (MSD). Ele não é esquisito.

    Para que não se tenha dúvidas sobre a índole mercantilista de Filipe Froes – contra todas as regras éticas, deontológicas e até legais, tanto mais que é médico do SNS e consultor da DGS, integrando a equipa que define as terapêuticas anti-covid –, atente-se nas frases usadas pela (suposta) jornalista Mariana Almeida Nogueira (e mais ainda nas aspas que são declarações textuais deste pneumologista; os parêntesis rectos são meus):

    1 – Segundo o pneumologista Filipe Froes, perante o que está a acontecer agora em Portugal, a aposta deveria ser feita, precisamente, nas medidas que diminuem o impacto da gravidade da doença, “nomeadamente, o reforço da vacinação e um acesso mais fácil a outras terapêuticas, que já existem noutros países, como os anticorpos monoclonais neutralizantes e os novos antivíricos, dos quais o Paxlovid é um deles”.

    2 – Filipe Froes sublinha que “este tipo de medicamentos [novos antivíricos, como o Paxlovid] é muito bem vindo em Portugal e necessário nesta fase de combate à pandemia, que é diferente da fase inicial”.

    Filipe Froes

    3 – Segundo o médico, o fármaco [Paxlovid] “é essencial, sobretudo na altura em que nos encontramos, por contribuir significativamente na diminuição do impacto da gravidade e da mortalidade nas pessoas mais vulneráveis”.

    4 – Perante a importância do Paxlovid, surge a dúvida: Por que razão não está ainda disponível no nosso País? Desde janeiro, que a DGS estará a preparar uma norma “para a utilização o mais racional e equitativa possível deste medicamento”, afirma Filipe Froes [que integra a equipa da DGS que define as terapêuticas anti-covid].

    5 – O pneumologista considera o medicamento [Paxlovid] “essencial para controlar a circulação do vírus na comunidade e, sobretudo, para diminuir a gravidade da pandemia na população, sobretudo na mais vulnerável”.

    Acrescento eu, por fim, apenas mais uma nota: corre na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) uma queixa contra mim e contra o PÁGINA UM accionada pelo presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), onde Froes tem um lugar de destaque. António Morais – o dito presidente, que também é consultor da DGS e do Infarmed, e não deveria ser por incompatibilidades legais – escreveu que “a SPP é uma associação sem fins lucrativos e não faz publicidade ou comércio de produtos farmacêuticos”, e que “a sua actividade é de natureza científica, recolhendo patrocínios e donativos para os seus objectivos estatutários, no escrupuloso cumprimento das normas em vigor”.

    É tudo “gente séria”! Neste caso, as aspas é porque, obviamente, estou a ser irónico.

  • Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública: um aborto antidemocrático ou um golpe de Estado?

    Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública: um aborto antidemocrático ou um golpe de Estado?


    Numa democracia não se deve proibir de discutir nada. Mas, em abono da verdade, deve haver temas que teremos mesmo de descartar para um debate aos primeiros sinais. Logo ao lermos as primeiras linhas. À cabeça deve estar a possibilidade de regressarmos à ditadura, ao regime de um homem-só, salvífico, protector e redentor.

    Ora, ler e aceitar a possibilidade de aprovar, a partir do anteprojecto conhecido, uma Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública (LPESP) é predispormo-nos a regressar à ditadura.

    Nem sequer me apetece discutir demasiado as minudências e consequências deste anteprojecto – de onde se destaca a possibilidade de uma autoridade de saúde, a mando de um Governo, impôr restrições às liberdades individuais e colectivas, sob pena de prisão.

    Apetece-me, sim, abordar conceitos, porque a democracia também são conceitos e princípios.

    red vehicle in timelapse photography

    O dito anteprojecto da LPESP começa logo mal. Diz que tem “por objeto o conjunto de procedimentos e ações, regulamentares, científicas, organizativas e materiais, com a finalidade de conter, tratar e eliminar as causas e as consequências de doenças que tenham por efeito gerar elevado risco ou provocar danos severos na saúde pública”.

    Note-se: inclui procedimentos científicos – os procedimentos da Ciência a serem regulamentados por legislação política. Começa bem, mesmo – ou melhor, começa mal.

    Depois, seguimos para o artigo 2º, referente às definições. Ler aquilo, deveria logo levar-nos a devolver ao remetente estas desgraçadas páginas. Portanto, uma “emergência de saúde pública” é, para os doutos autores desta lamentável peça, apenas uma manta de retalhos sem indicadores, sem métricas, sem Ciência, acabando por ser definida como uma “ocorrência extraordinária, ou a ameaça iminente, de uma doença ou condição de saúde (…) que constitua um risco para a saúde pública ou com efeitos graves no funcionamento de sectores críticos da sociedade e da economia”?

    Não admira que, desde as Descobertas, a Ciência nunca foi bem tratada em Portugal.

    Ademais, o conceito de “pandemia” e “epidemia” – que constituem factores para desencadear a suposta “emergência de saúde pública”, a par, entre outros, do bioterrorismo, de acidentes radiológicos ou nucleares, e de uma enigmática “ocorrência ambiental” – seria risível, se não configurasse um enorme perigo. No anteprojecto surgem como sinónimos e definidos, simplesmente, como “surtos de doenças de natureza e localização disseminada”.

    Minhas senhoras e meus senhores, aqui cabe tudo.

    traffic light sign underwater

    Um surto de gripe, num qualquer Inverno, pode transformar-se numa “emergência de saúde pública”. Até uma constipação.

    Uma nova variante do SARS-CoV-2 – das centenas e centenas que já se formaram, e mais haverá – pode alcandorar-se, num estalar de dedos, a uma “ameaça iminente” e lá temos a “emergência de saúde pública”.

    A própria possibilidade imprevista no tempo, mas previsível do ponto de vista histórico de surgir uma nova pandemia (tantas que já houve) pode sempre encaixar-se no conceito (não especificado) de “ameaça iminente”, e portanto pode accionar-se uma “emergência de saúde pública” hoje, amanhã, para a semana, quando o Governo estiver em queda de popularidade…

    Os serviços secretos “desenterram” uma sempre secreta ameaça de bioterrorismo? Hélas, aqui vai uma redobrada “emergência de saúde pública”.

    Um anúncio de “onda de calor” no Verão? Meta-se tudo dentro de casa e encerrem-se as praias.

    Extraordinário é ver que, de acordo com o artigo 6º do tal anteprojecto, é o Governo que decreta a “ocorrência extraordinária”, e somente tem de apresentar os “elementos disponíveis” e uma “análise de risco”. E em que deve consistir isso? Nada se diz. A Doutora Graça Freitas há-de inventar qualquer coisa.

    Sabendo como sabemos o obscurantismo da gestão da pandemia da covid-19 – com a recusa sistemática da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed, a par de uma “imprensa mansa” –, já se antevê que “elementos disponíveis” nos preparam, e que “análise de risco” nos mostrarão. Se for como os famosos e vergonhosos “relatórios de monitorização das linhas vermelhas”, estamos conversados.

    Mas o mais espantoso neste anteprojecto – que deveria envergonhar qualquer pessoa com uma sinapse de pendor democrático – é que todas estas decisões políticas – apenas políticas – desencadeiam depois a constituição de um Conselho Científico. Pasmo absoluto: uma decisão que deveria ser baseada sobretudo em Ciência – ou previamente ratificada por cientistas –, acaba por ser uma decisão política de um Governo que depois vai procurar “cientistas” que digam ámen.

    white robot in black and white suit

    A fantochada anti-democrática chega ao ponto de determinar, no artigo 39º e seguintes, que o Conselho Científico, sendo um “órgão pluridisciplinar de apoio à decisão”, é nomeado imediatamente pelo Governo, sendo que seis dos nove membros são escolhidos pelo próprio primeiro-ministro. E outros três por entidades políticas (Assembleia da República e Governos Regionais). Coisa nunca vista em democracia.

    Gente sem escrúpulos e ausentes de “coluna vertebral”, como uns Filipes Froes ou umas Raquéis Duarte, terão certamente, nestes Conselhos Científicos, a sinecura que ambicionam. E farão todos os fretes políticos que lhes solicitarem. Serão mais papistas do que o papa.

    Aliás, serão cooperantes, até porque o anteprojecto não se esquece de vincar o direito a mordomias – leia-se “regime de compensação pelo exercício de missão” – determinadas por despacho do primeiro-ministro, e com a possibilidade de perpetuarem o posto, porque o dito Conselho Científico “mantém-se em funções até à declaração de cessação da emergência de saúde pública”.

    Posto tudo isto, escalpelizar o articulado deste anteprojecto de “aborto antidemocrático” – que, em súmula, aplica aquilo que foi a gestão da pandemia – acaba por ser exercício desnecessário.

    Isto não pode sequer chegar ao nível de uma discussão em Assembleia da República. E aprovar um diploma deste jaez equivale a Golpe de Estado; é accionar um mecanismo que pode transformar uma democracia numa ditadura quando o primeiro-ministro quiser.

  • A desinformação só não existe em sistemas não-democráticos; portanto: Viva a Desinformação!

    A desinformação só não existe em sistemas não-democráticos; portanto: Viva a Desinformação!


    A desinformação é uma externalidade negativa da democracia, prejudicial para as sociedades. Mas também é um indicador da saúde de uma democracia. A sua existência, visível e “palpável”, indicia que a democracia existe. E a sua existência é benéfica para as sociedades.

    Explico melhor: a desinformação – sendo um desvio da verdade e da realidade – advém exclusivamente da possibilidade de existir liberdade de expressão e informação livre, e estas só podem ser concebidas numa democracia. Sem liberdade não existe diversidade de opinião; sem diversidade de opinião, não existe possibilidades de alcançarmos a verdade, que nem sempre é óbvia, nem sempre surge pelo caminho mais fácil e comummente observável.

    Basta-nos hoje olhar para a verdade em torno da teoria heliocêntrica: se acreditamos agora que a Terra roda à volta do Sol, e não o contrário, não é porque a esmagadora maioria de nós confirmou esse fenómeno (pelo contrário, o Sol aparentemente move-se de este para oeste), mas sim porque houve provas científicas que o comprovaram e, embora demorando séculos e séculos, se inculcaram como Verdade.

    man in black crew neck shirt with red and white face paint

    A dificuldade que essa Verdade teve em se impor deveu-se exactamente à ausência de liberdade de expressão e de informação livre; à ausência de um sistema democrático livre. De facto, a teoria heliocêntrica de Galileu foi, em tempos, considerada uma heresia, uma falsidade. Nem sequer era desinformação, porque nem poderia circular. Não tinha sequer existência.

    Actualmente, em países como a Coreia do Norte, a China, mesmo na Rússia, e em muitas outras partes do Mundo, a desinformação continua a não existir. Existe sim um controlo estatal ou institucional que impõe uma verdade única e absoluta: essa é a “informação”, inquestionável, dogmática, a qual pouco importa se se sustém sobre a realidade. A “informação” oficial sobrepõe-se à realidade; impõe-se perante a realidade; molda a realidade em si mesma.

    Ora, nesta linha de raciocínio, conclui-se que num sistema político que bloqueie a liberdade de expressão e de circulação de ideias não existe desinformação, porque, não havendo essa necessária liberdade democrática, não há lugar a “segundas opiniões”. A mentira (associada à desinformação, mas feita pelo poder), sendo imposta, passa a “verdade oficial”, logo é “informação”. E, perante isso, a realidade molda-se, e a verdade (e a realidade) arrisca-se a poder ser, numa bitola independente, a “desinformação”.   

    Contudo, na verdade – e perdoem-me o pleonasmo –, mesmo em sistemas democráticos a verdade tem vindo a arriscar surgir como uma imposição. Alguma verdade já não se plasma apenas com argumentos científicos, empíricos, etc.. Começa já a ser manipulada pelos poderes políticos, financeiros, económicos, por lobbies, por clubites.

    white and black printed paper

    Com a falácia de a “desinformação” ser agora um “bicho-papão” disseminado e incontrolável nas redes sociais, temos agora falsos arautos da democracia, até de cravo na lapela no 25 de Abril, a defender de forma tenaz, e com uma tenaz, uma linha, uma narrativa, uma orientação por vezes normativa para constranger alguém ou um grupo de assumir, sem sofrer um qualquer grau de censura, uma qualquer posição contrária.

    Vimos isso durante a pandemia.

    Vemos isso durante a Guerra da Ucrânia.

    Temo que vejamos isso nos tempos futuros, em outras circunstâncias e eventos, pelas marcas indeléveis que pandemia e Guerra da Ucrânia deixarão mesmo nas sociedades mais desenvolvidas.

    Caminhamos, sem nos apercebermos, para uma democracia distópica. Para uma democracia em que todas as nossas opiniões são bem-vindas desde que não colidam com temas sensíveis, mas se houver temas sensíveis, mediáticos e mediatizados até ao supremo absurdo, então passará a haver uma obrigação de opinar, embora apenas para dizer amén: sofreremos censura se discordarmos, se dissermos um simples “mas”, e até se calhar se quisermos não dar a opinião. Até o silêncio passará a ser suspeito.

    Mesmo correndo eu o risco de, escrevendo nos dias de hoje este simples texto, ser apelidado de um sem-número de epítetos por qualquer pessoa com a quarta classe e opiniões obtidas por osmose de um qualquer Rodrigo Guedes de Carvalho, não posso deixar de defender a existência da desinformação.

    Viva a desinformação, deverei gritar mesmo, porque ela é e será o principal sintoma da existência da democracia. E sobretudo, porque não quero correr o risco de termos um qualquer Galileu no século XXI que seja censurado e obrigado a abjurar porque as suas teses são contrárias a uma imposta narrativa oficial.

    Mas estou eu a defender que a desinformação é bem-vinda?

    Claro que não. Apenas que ela é intrinsecamente humana. É uma decorrência da democracia, da liberdade. Basta conhecer um pouco de História, ler alguns livros antigos, para constatar a existência de montanhas de mentiras e cordilheiras de absurdos, em muitos casos vistos e tidos como verdades na época, e por vezes sem maldade, mas apenas por ignorância. E boatos, rumores, balelas, atoardas e rumorejos sempre existiram antes sequer do surgimento da comunicação social ou das redes sociais.

    Aquilo que estou a defender é que não se elimina a desinformação com medidas anti-democráticas, com o silenciamento, com a censura, com a discriminação de pessoas ou grupos com pensamentos diferentes (mesmo se aparentemente obtusos), porque, parecendo à primeira vista benéfico, traz consequências terríveis a curto e a longo prazo.

    Não se pode correr o risco de a censura errar. Ou não podemos correr o risco de dar o poder da censura a ninguém, mesmo a alguém que jure a pés junto que é democrata.

    Aliás, um democrata que aceite um “bastão“ da Censura, que se assuma “bastonário da Verdade”, deixa automaticamente de ser um democrata.

    Em sistemas democráticos temos de saber conviver com a inconveniência da desinformação, da mentira, do logro, enquanto fazemos esforços para amenizar os seus efeitos nefastos, encontrando “medicamentos” para eliminar umas quantas “variantes”, mas sabendo que outras surgirão.

    selective focus photography of iPhone on MacBook

    Esses “medicamentos” passam pela Educação, pela informação, pela transparência da Administração Pública, pelo debate, pela argumentação, pela Ciência. Nunca por uma lei, nunca por um algoritmo, nunca pela censura.

    Na verdade, nunca eliminaremos a desinformação enquanto tivermos democracia. No momento em que alguém gritar, satisfeito, que acabámos com a desinformação, estará a congratular-se com o fim da democracia.

    Não caiamos, por isso, na tentação de considerar legítimo que algoritmos em computadores remotos ou em clouds censurem a suposta desinformação, que empresas privadas pré-censurem ou “expulsem” da comunidade aqueles que mentem, aqueles que enganam, aqueles que produzem discursos de ódios e de violência.

    Para esses, antes das redes sociais, antes das empresas como o Facebook ou o Twitter, existe um poder disciplinador e regulador: a Justiça. Não tem meios para os novos desafios? Que seja: forneçam-se. Não deixemos essa função social, que deve ser rápida e eficaz, mas moderada, aos algoritmos e às empresas privadas. Essas são funções que foram acometidas à Justiça pelos cidadãos de uma democracia. Não se privatizam nem se “desumanizam”.

    Mas, além disto, para lutar contra a desinformação em sociedades democráticas – nas outras, a questão coloca-se mais a montante: encontrar mecanismos para as tornar democráticas primeiro –, a comunicação social deve assumir o seu papel de regulador e de árbitro, com base em legitimidade assente na confiança.

    Porém, tem a imprensa aí falhado rotundamente nos últimos anos. Não apenas porque a sua independência (financeira, ética, etc.) há muito se questiona já, o que coloca em causa o seu papel de árbitro da verdade, por falta de credibilidade. Mas sobretudo porque deixou de questionar, de pressionar, de exigir justificações. E, em muitos casos, passou mesmo a ser adepta fervorosa de formas de censura. E a praticá-la.

    Por isso, quando leio, como crocodilos lacrimejantes, certos jornalistas queixarem-se da desinformação e a defenderem regras censórias, dá-me vontade de os mandar a um certo sítio.