Etiqueta: Vértebras

  • Filipe Froes, esse Grandessíssimo Cara-de-Pau

    Filipe Froes, esse Grandessíssimo Cara-de-Pau


    Este texto fez-se sozinho. Ou quase. Ou melhor dizendo, fez-se com citações ipsi verbis de uma palestra do pneumologista Filipe Froes no passado dia 23 de Outubro na Visão Fest – uma “feira de vaidades” da revista Visão, sempre com competentes patrocínios empresariais, nomeadamente da Janssen (tem de haver agora sempre uma farmacêutica), da Tabaqueira (que anda empenhada em vender saúde), da Delta Café (porque fica sempre bem um cafezinho), da McDonalds (que o fast food é uma boa dieta) e da EPAL (ter uma empresa pública a apoiar serve como bênção do Governo).

    Podia destacar o papel de nigromante de Filipe Froes – que também é –, ao anunciar que virá aí, no futuro, nova pandemia que será causada pelo “vírus influenza, sobretudo de origem aviária, talvez o H2; [ou por] um novo coronavírus; ou [por] um agente X, um micro-organismo que ainda não identificámos”.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    Podia destacar o papel de vendilhão de Filipe Froes – que também é –, ao anunciar que “precisamos de um programa nacional para o long-covid”, porque vivemos um “pandemónio” depois da pandemia, sabendo-se que a sua amiga Pfizer anda a tentar convencer as autoridades norte-americanas a aprovarem o Paxlovid como panaceia (ou trapaceia) dessa nova condição de saúde, da qual potencialmente padecem os mais de 600 milhões de seres humanos que tiveram covid-19 e sobreviveram.

    Mas prefiro destacar o papel de grandessíssimo cara-de-pau de Filipe Froes – que sobretudo é –, através desta passagem integral da sua alocução, a partir do minuto 2:43, na dita Visão Fest. Atentem:

    É habitual nós falarmos – quando um médico é convidado para uma sessão destas –, que lhe é atribuído cerca de 20 minutos, apresentarmos os nossos conflitos de interesse. Nós nunca temos conflitos de interesses. Eu não tenho qualquer conflito de interesses. Mas eu pus este slide para vos mostrar que os principais conflitos de interesses são aqueles que muitas vezes não são revelados. E em Ciência há dois conflitos de interesses que são extremamente importantes, e que vão condicionar muito o futuro que nós vamos encontrar: são os chamados conflitos científicos. O primeiro conflito científico é o preconceito – isto vem numa revista médica. O conflito de interesses mais enraizado em Medicina é a dificuldade em reverter uma opinião prévia. Nós temos a nossa opinião, e tudo fazemos para encontrar aquilo que a gente procura para justificar a nossa opinião. E esse é o segundo conflito de interesses, também identificado por Stephen Hawking, que é ‘escolher as cerejas’, cherry-picking, que é eu escolho aquilo que me dá jeito e não mostro aquilo que põe em causa o que quero. E, portanto, estes é que são os conflitos de interesses mais frequentes em Ciência: o preconceito e a ‘escolha das cerejas’. E o que nós estamos a viver cada vez mais é uma pandemia que resulta destes dois conflitos de interesses, como eu vos vou mostrar.

    Filipe Froes apresentando um slide na sua apresentação na Visão Fest, onde revelou que “não tem conflitos de interesses”.

    Para contextualizar os mais distraídos, Filipe Froes recebeu 41.474 euros de farmacêuticas em 2020, mais 56.097 euros em 2021 e este ano vai já em 38.692 euros. Desde o início da pandemia contabiliza 136.263 euros de financiamentos de 15 distintas farmacêuticas, entre as quais a Pfizer, a Merck Sharp & Dohme, a AstraZeneca e a Gilead, todas com interesses comerciais muito directos no tratamento da covid-19, sendo que Froes integra a comissão da Direcção-Geral da Saúde que define as terapêuticas. Na última década, Froes recebeu 419.524 euros de 24 empresas farmacêuticas.

    A promiscuidade faz-se ao mais alto nível. Ao nível rasteiro da própria Ordem dos Médicos que, sendo uma mera associação privada, se tem arvorado de inquisidor-mor sobre a independência dos profissionais de saúde, ameaçando e cerceando opiniões divergentes. Froes é um peão feito torre, que agora assume a patética função de coordenador do Gabinete Estratégico para a Saúde Global, uma invenção do urologista Miguel Guimarães, circunstancial bastonário, criada ao arrepio dos colégios da especialidade deste outrora respeitável grémio.

    E perante isto ainda tem ele, Filipe Froes, o desplante de dizer que não possui conflitos de interesses, e de o dizer num encontro organizado por um (suposto) órgão de comunicação… E, ainda por cima, sabendo que lhe baterão palmas e lhe darão também palmadinhas nas costas, e convicto fica ele de novos convites per omnia saecula saeculorum, aproveitando a lábia de nigromante e de vendilhão; tudo isto com a mesmíssima cara-de-pau com que nos tem brindado nos últimos dois anos e meio. Haja paciência! E haja vergonha!

    P.S. Consta que, no próximo dia 7, Filipe Froes apresentará no Grémio Literário, um livro sobre a pandemia, “editado” por um conhecido Diário e “patrocinado” por uma farmacêutica, como convém. E tendo como convidado especial uma figura grada de alta patente militar que garantiu ter derrotado o vírus no ano passado. Nada de novo no “reino da Dinamarca”.

    Nota: A palestra integral de Filipe Froes na Visão Fest, enquanto estiver disponível, pode ser visionada aqui.

  • As contas de merceeiro do Polígrafo em prol da narrativa oficial

    As contas de merceeiro do Polígrafo em prol da narrativa oficial


    Na passada quinta-feira, o fact-checker (verificador de factos) Polígrafo, financiado a mais de 90% pelo Facebook, escrutinou como verdadeira a afirmação do primeiro-ministro António Costa de que “Portugal desde 2015 até 2019 cresceu em média 2,8% ao ano, sete vezes mais do que nos 16 anos anteriores“.

    Alcandorados a verdade oficial pelas redes sociais, os fact-checkers têm especiais responsabilidades, e, nessa medida, deviam munir-se de maiores talentos do que um simples lápis atrás da orelha e um papel pardo de embrulhar bacalhau, como antes faziam os merceeiros.

    No Polígrafo munem-se, para um caso desta natureza, de um licenciado em Jornalismo (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), pós-graduado em Direitos Humanos (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais (Universidade Católica Portuguesa). E ainda de uma licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra e pós-graduada em Direito da Comunicação na mesma institução.

    Podia bastar, mas não basta…

    Vemo-nos, por isso, obrigados a escrutinar, primeiro, os jornalistas do Polígrafo, para a seguir determinar se António Costa disse mesmo a verdade, ou se manipulou a estatística para tornar factos numéricos numa realidade virtual que é falsa na essência.  

    Para começar, os jornalistas Gustavo Sampaio e Marina Ferreira começam mal a mostrar os seus dotes de análise. Informam eles que no período em análise o crescimento em cada ano foi o seguinte: “+2,02% em 2016, +3,51% em 2017, +2,85% em 2018 e +2,68% em 2019”, rapidamente concluem: “Média de 2,76%, percentagem muito próxima da que foi indicada por Costa no debate de ontem na Assembleia da República.

    António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Chumbados logo no primeiro teste. Os estimados jornalistas do Polígrafo deveriam saber que não se aplica uma média aritmética às taxas de crescimento anuais para um dado período, mas sim deve-se calcular o crescimento acumulado, e seguidamente anualizar.

    Como somos pela pedagogia, aqui estão os passos a seguir:

    • em primeiro lugar, calcula-se o crescimento acumulado do período: (1+0,0202) × (1+0,0351) × (1+0,0285) × (1+0,0268) – 1= 11,52%;
    • em segundo lugar, calcula-se a taxa de crescimento composta anualizada para o período: (1+0,1152)0,25-1= 2,764%.
    person using black computer keyboard

    Seguidamente, os jornalistas do Polígrafo partem para a análise dos 16 anos anteriores ao período em causa: “Relativamente aos 16 anos anteriores, como disse Costa, apontando para o período entre 2000 e 2015, verifica-se um crescimento acumulado de 7,15%, o que perfaz uma média de cerca de 0,44%”, escrevem.

    Aqui, para além de voltarem a insistir no erro da média aritmética, que deveria ter sido 0,4469%, em lugar de 0,44% – provavelmente para ajudar o primeiro-ministro –, enganam-se até a definir o período em análise, que deveria ter sido entre 1999 e 2015, e não entre 2000 e 2015 – pois apenas temos 15 períodos, e não 16.

    Eis o cálculo correcto, usando dados do Pordata:

    • em primeiro lugar, calcular o crescimento acumulado do período: (1+3,82%) × (1+1,94%) × (1+0,77%) × (1-0,93%) × (1+1,79%) × (1+0,78%) × (1+1,63%) × (1+2,51%) × (1+0,32%) × (1+0,32%) × (1-3,12%) × (1+1,74%) × (1-1,7%) × (1- 4,06%) × (1-0,92%) × (1+0,79%) × (1+1,79%) -1 = 7,04%;
    • em segundo lugar, calcular a taxa de crescimento composta anualizada para o período entre 1999 e 2015: (1+0,0704)(1/16)-1= 0,426%.

    Em resumo, na comparação entre os dois períodos, ocorreu um crescimento 6,5 vezes superior e não de 7 (2,764% vs. 0,426%), tal como afirmou António Costa.

    Mas, pronto, admitamos que um fact-checker não tenha de ser muito rigoroso, e que a sorte até o tenha bafejado desta vez, dado que o valor da simples taxa aritmética é “quase igual” à taxa de crescimento acumulado anual composta – que notem, não integra a palavra média. Aliás, o valor é “quase igual” exactamente porque não houve grande oscilações na Economia, o que é sobretudo um sinal de estagnação.

    Utilizemos outro exemplo do erro do Polígrafo em usar a média (aritmética) em Economia. Se houver um decréscimo de 10% num ano, seguido de um crescimento de 11%, a média aritmética daria 0,5% por ano, mas a taxa de crescimento anual composta (e bem real) seria negativa em 0,25031%.

    Mas além de tudo isto, um jornalista – e ainda mais um fact-checker – deve sempre questionar o uso das estatísticas que os governantes lhes vendem: por essa razão, no passado, muitos os definiram como o Quarto Poder.

    Vejamos então aquilo que está em causa com os números apresentados pelo primeiro-ministro, sobre os quais o Polígrafo mostrou incapacidade de análise crítica, o que pelo menos recomendaria que estivessem quietos.

    green plant on brown round coins

    Olhemos então o “problema” de outra forma:

    • O crescimento nominal do PIB entre 2015 e 2019 foi de 19,29%, segundo o Eurostat. Ou seja, comparando o PIB a preços correntes, temos 214.374,6 milhões de Euros em 2019 vs. 179.713,2 milhões de Euros em 2015;
    • Seguidamente, apliquemos o deflator do PIB, usado pelo Banco de Portugal, para o período entre 2015 e 2019:  (1+3,3%) × (1+2,4%) × (1+3,4%) × (1+4,2%) -1 = 13,97%
    • Depois, calculemos o crescimento real entre 2015 e 2019: (1+19,29%) ÷ (1+13,97%) -1 = 4,67%;
    • No final, a taxa de crescimento anual composta para o período entre 2015 e 2019: 1,15%;
    • Se aplicarmos o mesmo raciocino para o período entre 1999 e 2015, temos: (i) um crescimento nominal de 50,26% (179.713,2 milhões de Euros vs. 119.603,3 milhões de Euros) e um deflator do período de 26,68%; o que resultaria no crescimento anual composto de 1,07% ao ano.

    Em conclusão, em lugar de 6,5 vezes, já só é um ritmo de crescimento de 1,1 vezes, deitando por terra toda a exuberância do crescimento económico da Geringonça.

    timelapse photo of train

    Afinal, o ritmo de crescimento é de 10% e não de 550%.

    Seria a mesma coisa que nos dizerem que a partir de 100 euros passávamos a ter 650 euros, quando a realidade nos mostrava que só passámos a ter 110 euros. Isto é, a diferença de 540 euros são uma miragem.

    Noutra analogia, é a mesma coisa que Costa dizer-nos que andou a 700 quilómetros por hora quando os outros andavam a 100 – e a verdade mostra-nos que ele andou apenas a 110 quando antes andaram a 100. E enquanto isto, o Polígrafo diz-nos ser verdade que Costa andou mesmo a 700 quilómetros.

    O diabo está nos detalhes. E o Polígrafo vai com eles.

  • Greta Thunberg: o flop da activista pop

    Greta Thunberg: o flop da activista pop


    Dei o benefício da dúvida à sueca Greta Thunberg – ou até mais do que isso –, quando, há quatro anos, começou a dinamizar movimentos sociais de jovens para uma “emergência climática”.

    Que existem impactes atmosféricos e climatéricos das actividades humanas, não tenho já qualquer dúvida. Antes mesmo de se ter tornado uma “moda” e todos se mostrarem muitos crentes, a tal ponto que se tornou uma espécie de “profissão de fé” para muitos, que não fazem mais do que greenwashing. Há muito, desde os anos 90, acompanho este tema, escrevo sobre assuntos ambientais, e sei distinguir o trigo do joio.

    A poluição atmosférica, desde a Revolução Industrial, é uma triste realidade. O incremento da industrialização e do tráfego automóvel é, sobretudo nos grandes centros urbanos, e mesmo em Portugal, uma das principais causas de problemas respiratórias e cardíacos.

    As mortes anuais causadas pela poluição atmosférica – incluindo por partículas finas, por chumbo e outros metais pesados, e ainda por excesso de ozono troposférico como poluente secundário – estão estimadas entre os 5,9 milhões e os 7,5 milhões de pessoas. Se juntarmos a poluição da água e de outros tipos pode-se acrescentar mais dois milhões. Vale a pena ler um artigo de Maio deste ano sobre esta matéria no Lancet Planet Health.

    As alterações climáticas decorrentes das emissões de dióxido de carbono (e de outros gases com efeito de estufa) colocam questões muito mais complexas e heterogéneas, porque nem sempre quantificáveis nem sempre negativas em todos os países, e mais dependentes de vontade dos políticos (e das políticas) do que dos comportamentos individuais. Aliás, não vale a pena mexermos uma palha na Europa, nem apelar a qualquer sacrifício colectivo ou individual, se por exemplo a China (maior emissor de dióxido de carbono) não alterar o seu paradigma energético.

    Por isso, na minha opinião, tem sido contraproducente a monopolização da temática das alterações climáticas no debate científico, e sobretudo político, porque tem menorizado ou relativizado todos os outros, mesmo aqueles que lhe estão intimamente associados. Aliás, com a desculpa das alterações climáticas, enviesa-se a causa fundamental de muitos problemas ambientais, que têm um histórico, radicando especialmente em ineficiência (energética e não só) e má gestão.

    Por exemplo, a escassez de água que Portugal pode vir a atravessar no futuro não advirá apenas dos efeitos das alterações climáticas, mas sobretudo da sua crónica má gestão dos recursos hídricos. Temos o exemplo gritante da péssima gestão dos perímetros de rega em Portugal, de que o Alqueva é um paradigma. Água (quase) de borla é e continuará a ser insustentável mesmo se invertêssemos agora as alterações climáticas.

    O mesmo se aplica ao caso dos incêndios rurais. As alterações climáticas têm vindo, aliás, a servir como bode expiatório da péssima gestão florestal, de um território abandonado, de uma externalização (negativa) dos benefícios sociais concedidos pelos espaços florestais sem qualquer vantagem para os proprietários, e de uma política de status quo na prevenção e combate assente, em Portugal, num obsoleto e ineficaz sistema de pseudo-voluntariado. O nosso país arde em média mais agora do que ardia nos anos 80 do século passado; os outros países mediterrânicos ardem muito menos.

    white and black ship on sea under white clouds

    Também à conta das alterações climáticas, temos agora um lobby dos carros eléctricos, que não passa de uma estratégia de substituição de um modelo poluente por outro um pouco menos poluente (ou com outro tipo de problemas de poluição). A questão da mobilidade e do consumo energético – e da poluição atmosférica e, daí, das emissões de dióxido de carbono – coloca-se ao nível de um novo paradigma de planeamento territorial e de transporte colectivo, mais seguro, fiável e confortável; não muda passando a usar mais carros eléctricos do que a combustão. Não podemos, por exemplo, ter um autarca em Lisboa muito preocupado com as alterações climáticas e nem ser capaz de pôr a funcionar de forma minimamente decente as bicicletas eléctricas Gira.

    E temos agora também, à conta das alterações climáticas, o ressurgimento em força do lobby das centrais nucleares, apresentadas como uma (falsa) panaceia, esquecendo que este tipo de energia apenas produz electricidade, que representa somente cerca de 20% de toda a energia necessária. E que constitui, e constituirá sempre, um perigo em termos de segurança, não apenas por acidentes ou por guerras, mas também pelos resíduos e pela possibilidade dos países produzirem armamento nuclear.

    E, no meio disto, agora, deparo-me com a nossa ressurgida jovem Greta Thunberg a confirmar-se como apenas uma activista pop star, um ícone, uma flor da lapela da irreverência juvenil, sobre a qual os adultos (leia-se, políticos) até apreciam apaparicar… e manipular.

    brown wooden boat on brown sand during daytime

    Estando “apagada” desde 2020, por força da pandemia, vejo que, em dois anos, a jovem Greta cresceu mal. Há cerca de duas semanas, veio ela criticar o encerramento já há muito previsto, após amplo debate, de centrais nucleares na Alemanha.

    Torci o nariz.

    Mas pior ainda fiquei, para a manutenção de qualquer ténue esperança de estarmos perante uma jovem visionária, quando li hoje a sua entrevista no jornal Público.

    Eis ali um completo vazio de ideias, um discurso cheio de chavões e lugares-comuns, sem uma proposta concreta, um rasgo inovador – o que já não se compreende, atendível ao facto de ela ter, certamente, ao fim de alguns anos, uma boa equipa de marketing e de consultores, além de todos os contactos ao maior nível científico e técnico.

    Bem sei que é uma miúda de 19 anos, mas é descoroçoante ler uma entrevista de uma potencial Prémio Nobel da Paz (ou do que se quiser) e ver as suas duas últimas respostas:

    Público – Pensa em ir para a universidade?

    Greta Thunberg – Não sei. Gostaria, mas ainda não sei. Tenho de decidir em breve.

    Público – Seguiria alguma área específica?

    Greta Thunberg – Não sei. Sei que, independentemente do que faça, continuarei a ser uma activista, só resta saber de que forma. Porque a necessidade de termos activistas climáticos não vai abrandar, só aumentará – sobretudo tendo em conta o actual estado do mundo.

    E eu, perante isto, também não sei o que diga mais sobre Greta Thunberg…

    Há, por certo, pessoas mais válidas e com ideias concretas que deviam estar a ser ouvidas. E não estão, porque um ícone pop, um autêntico flop, lhes está a ocupar o espaço mediático. Talvez fosse mesmo bom que a nossa Greta passasse a saber se quer ir mesmo para a universidade e, se sim, qual a área específica.

    Depois sim, pode e deve regressar, com saber, para nos ajudar mesmo a salvar o Planeta – é que o activismo, por si só, é um vazio…

  • Crónica de uma vergonha anunciada: como a imprensa mainstream (se) vendeu (a)os certificados digitais

    Crónica de uma vergonha anunciada: como a imprensa mainstream (se) vendeu (a)os certificados digitais


    Em 17 de Março de 2020, no dia seguinte à primeira morte por covid-19 em Portugal, o director do Público, Manuel Carvalho, como se (já) fosse um ideólogo do regime em matéria de políticas de saúde, traçava aquilo que viria a ser uma linha orientadora do seu jornal e, talvez não por coincidência, da narrativa oficial e das medidas de mitigação da covid-19. No seu editorial, escrevia:

    “(…) E mesmo que o estado de emergência não altere significativamente o modo de vida que a maioria dos portugueses já adoptou, o simples facto de ter sido activado vai servir para convencer os mais recalcitrantes ou os que teimam em considerar que a epidemia não passa de um exagero.”

    person in black knit cap and gray sweater

    E continuava:

    “(…) Não é populismo, nem cedência aos impulsos primários dos cidadãos que se trata: é a urgência de garantir a cumplicidade das pessoas e de criar um sentimento de comunidade que precisamos mais do que nunca para derrotar a epidemia. Em momentos drásticos como o de hoje, é necessário recorrer a medidas drásticas. Essa atitude não bastará para travar as consequências da doença. Mas servirá ao menos para todos sentirem que o seu esforço, o seu desconforto e as suas ansiedades são reflectidas por quem nos governa.”

    Recordo estas palavras, supostamente de grande sentido de responsabilidade humanitária e patriótica, porque ajudam a compreender os equívocos, as falácias, os enviesamentos de semântica e a manipulação que grassaram (e nos desgraçaram) ao longo da pandemia, alimentada pela imprensa mainstream. Viu-se isso em todas as medidas de gestão da pandemia, na forma acrítica (e entusiástica) como eram aceites pelos directores dos órgãos de comunicação social.

    Isso passou-se para as vacinas, e daí para uma das suas alegadas (e mais polémicas) características, que justificou a mais infamante medida discriminatória de que há memória na nossa geração: o certificado digital.

    shallow focus photo of black corded microphone

    Mais do que um instrumento de gestão epidemiológica, o certificado digital (de vacinação e de recuperação) foi, na verdade, apenas uma arma de persuasão ou de coação em prol da vacinação, porquanto “castigava” quem não o detivesse. Ou seja, quem não se tivesse vacinado, independente do motivo ou da motivação. Invocava-se ainda por cima a Ciência, mas nada houve de científico, embora muito argumento de autoridade tivesse sido vergonhosamente usado.

    Não deveria ser necessário recordar que, numa sociedade, temos direitos e deveres, subsumindo-se daí que, existindo inúmeras vantagens da integração individual num grupo, tal não significa que o indivíduo possa ser sacrificado por ter como consequência uma vantagem para o grupo. Em concreto, mesmo que uma vacina contra a covid-19 pudesse trazer mais vantagens inequívocas globalmente se todos os indivíduos fossem vacinados – a tal imunidade de grupo –, mesmo assim não seria lícito, pelo menos eticamente, obrigar todos os indivíduos se a vantagem para si não fosse inequivocamente superior às eventuais desvantagens. E, havendo uma desvantagem potencial, é lícito que o indivíduo possa recusar.

    Ainda mais sabendo duas coisas fundamentais: o risco da covid-19 é incomensuravelmente diferente nos diversos grupos etários; e não se conhecem ainda todos os efeitos adversos das vacinas face à sua tecnologia nova e à inexistência de um histórico.

    Mas ainda se poderia colocar a hipótese de estarmos mesmo num “momento drástico”, e que as vacinas contra a covid-19 pudessem mesmo criar a “imunidade de grupo” – isto é, quebrar as cadeias de transmissão –, erradicando assim o vírus. Não seria impossível, mas pouco provável em tão curto espaço de tempo.

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    Na verdade, apenas dois vírus foram virtualmente erradicados por acção das vacinas (varíola e peste bovina), estando outra (poliomielite) em vias desse desfecho. Foram, contudo, necessárias algumas décadas neste processo. A pressa é, em Medicina, uma péssima conselheira. E nunca com uma vacina em fase inicial da sua implementação – para não dizer que se encontra numa fase experimental, tantos são os estudos de farmacovigilância em curso) –; e nunca através de um programa de vacinação maciça que pretendia abranger em apenas um ano pelo menos 70% da população mundial.

    Contudo, na verdade, em relação à covid-19, nunca estivemos sequer perto de almejar vacinas com capacidade de criar imunidade de grupo – ou seja, medicamentos que, além de reduzirem o risco de hospitalização e morte, concedessem uma menor transmissibilidade. Se tal pudesse suceder, ainda se poderia admitir a legitimidade ou de não de premiar os vacinados em detrimento dos não-vacinados – através designadamente de certificados digitais.

    Porém, essa discussão somente deveria ser colocada se, efectivamente, ficasse provada, pela Ciência, que a vacina reduzia de forma muito relevante a capacidade de um vacinado infectar outros, quer vacinados quer não-vacinados.

    E isso nunca ficou provado antes – e mesmo depois – da aprovação do certificado digital imposto pela Comissão Europeia em 14 de Junho de 2021, onde, no ponto 7 do preâmbulo, se diz o seguinte:

    man in red crew neck shirt

    As pessoas vacinadas ou as que obtiveram um resultado negativo num teste de despistagem à COVID-19 recente e as pessoas que recuperaram da COVID-19 nos seis meses anteriores parecem ter um risco reduzido de infetar outras pessoas com o SARS-CoV-2, de acordo com dados científicos atuais, ainda em evolução. A livre circulação de pessoas que não representam um risco significativo para a saúde pública de acordo com provas científicas sólidas, por exemplo porque são imunes ao SARS-CoV-2 e não o podem transmitir, não deverá ser restringida, uma vez que tais restrições não seriam necessárias para alcançar o objetivo de salvaguarda da saúde pública. Se a situação epidemiológica o permitir, estas pessoas não deverão ser sujeitas a restrições adicionais à livre circulação relacionadas com a pandemia de COVID-19, tais como testes para despistagem da infeção por SARS-CoV-2 por motivos de viagem, ou cumprimento de quarentena ou autoisolamento por motivos de viagem, a menos que essas restrições adicionais sejam, com base nos dados científicos disponíveis mais recentes e em conformidade com o princípio da precaução, necessárias e proporcionadas para o efeito de salvaguardar a saúde pública, e não sejam discriminatórias.

    Foi neste pressuposto – “dados científicos actuais, ainda em evolução” –, completamente falso, que se baseou o certificado digital, primeiro para viagens transfronteiriças, e mais tarde para segregar não-vacinados mesmo no seu país.

    Como se sabe, a Pfizer veio este mês admitir que, nos seus ensaios iniciais, nunca estudaram a questão da menor transmissibilidade dos vacinados. E, de facto, nunca houve uma assumpção clara das farmacêuticas de que as vacinas tinham esse nível de eficácia. Mas as farmacêuticas, nem que fosse por omissão, foram entrando no “jogo”, não se comprometendo e até “patrocinando” a imprensa e os políticos que iam “vendendo” as vacinas como “bóia de salvação” com efeitos milagrosos. Por isso, quando foi “vendida” ao povo a ideia de que a vacinação evitava a transmissão, as farmacêuticas sabiam que assim venderiam mais. Por omissão, pactuaram.

    person in white gloves holding white plastic bottle

    Onde esteve o jornalismo mainstream durante este processo que levou à imposição do certificado digital baseada numa falsidade?

    Denunciaram a falácia?

    Não! Esteve, como confessou um defensor do Público, a “criar consenso social em favor da vacinação”.

    E, para isso, valeu tudo.

    Até ser incongruente.

    De facto, jornais como o Público – muito antes de se discutir a aplicação do certificado digital – estiveram a fazer lobby pela vacinação, mesmo para aqueles que fossem recuperados.

    Por exemplo, em 14 de Janeiro de 2021 – ou seja, cerca de duas semanas após o início do programa de vacinação em Portugal –, o Público noticiava que até as pessoas com a chamada imunidade natural (adquirida através de uma infecção prévia) seriam capazes de transportar o SARS-CoV-2 no nariz e na garganta e transmiti-lo a outras pessoas.

    E estavam empenhadíssimos em falar da imunidade de grupo, como se fosse uma evidência. E da necessidade de promover rapidamente taxas de cobertura elevadas.

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    Por exemplo, em 26 de Janeiro de 2021, o Público divulgava nas suas páginas um artigo do Washington Post, onde surgia a seguinte passagem: “(…) embora as vacinas sejam um passo crítico para abrandar a propagação de um vírus que já causou mais de dois milhões de mortes em todo o mundo, os especialistas têm alertado repetidamente que ser vacinado não significa um regresso imediato à vida pré-pandémica.”

    E porquê?

    Porque, explicava-se, “as autoridades de saúde pública dizem que pelo menos 70% da população precisa de ser inoculada para que o país alcance a imunidade de grupo e pare a propagação do vírus”, e acrescentava-se que “com o vírus a continuar a propagar-se rapidamente por grande parte do país [e pelo mundo], muitas formas de socialização implicam algum nível de risco, incluindo reuniões entre pessoas que estão totalmente vacinadas”.

    Ninguém estranhava esta falácia: tinha de se chegar aos 70% para haver imunidade de grupo, mas até os totalmente vacinados estariam pouco seguros entre eles enquanto essa meta não fosse atingida?

    Esta notícia é, aliás, paradigmática do enviesamento da Ciência ao longo da pandemia sempre que usada pela imprensa mainstream. Apesar de diversos cientistas, entre os quais um médico de doenças infecciosas de Houston (Robert Atmar), acabarem a fazer uma declaração de fé: aqueles que receberam as suas vacinas “deram um passo para nos aproximar a todos daquela luz ao fundo do túnel e voltar a ter uma certa sensação de normalidade”.

    E continuou. Em 11 de Fevereiro de 2021, o Público titulava “CDC [agência norte-americana de controlo e prevenção de doenças] diz que as pessoas vacinadas (com as duas doses) não precisavam de cumprir quarentena após exposição de risco”. E porquê? Porque “a vacinação demonstrou prevenir quadros sintomáticos de covid-19”. Mas, e quanto à transmissão? Podiam transmitir, se novamente infectadas. O CDC dava a resposta: “o risco de transmissão do SARS-CoV-2 de pessoas vacinadas para outras ainda [era] incerto”, mas acrescentava-se na notícia que “os especialistas acreditam que as pessoas que se encontram na fase sintomática e pré-sintomática ‘têm um papel maior na transmissão’ do que as pessoas que permanecem sem sintomas”. Acreditam! Eis a fé.

    O primeiro trimestre de 2021 foi, efectivamente, o período em que a imprensa mainstream seguia, sem pestanejar nem questionar, a tese da menor transmissibilidade dos vacinados, através de declarações de “profissão fé” por parte de especialistas, mesmo se esses especialistas jamais apresentassem provas. Não precisavam: o argumento de autoridade bastava por si.

    Por exemplo, o Público divulgou um take da Lusa, nesse mesmo dia 11 de Fevereiro de 2021, sobre um suposto estudo da Universidade de Aveiro que indicava ser prioritário vacinar primeiro os chamados “super-disseminadores”, ou seja, pessoas “com contacto directo com um grande número de pessoas”. Isto porque, supostamente, vacinando-se aquele grupo se “limita[ria] muito mais a propagação do coronavírus e pode[ria] diminuir o número global de mortes do que a estratégia que está a ser seguida pelos países da União Europeia (…), de vacinar primeiros os idosos e sucessivamente os grupos etários de idades inferiores”

    stack of white yellow green and blue textiles

    É certo que, no dia seguinte, 12 de Fevereiro de 2021, até se divulgava que para a Organização Mundial da Saúde “não é claro” que os vacinados não transmitissem covid-19. Mas a responsável da OMS dava uma no cravo e outra na ferradura, não se querendo comprometer: “há relatos de que quem está vacinado, se ficar infectado, a carga viral será menor. Por isso, a hipótese de infectar os outros é menor.” Palpites!

    Mesmo assim, numa altura em que se estava já a preparar o certificado digital, a OMS foi talvez a única entidade que, inicialmente, colocou reservas. Em 3 de Março de 2021, o Público noticiava, através de um take da Lusa, que a OMS defendia que “estar vacinado contra a covid-19 não pode ser um requisito para viajar”, realçando que a “utilização de ‘certificados de imunidade’ para viajantes internacionais (tanto para os que foram vacinados como para os que possuem anticorpos após superar a doença) não é recomendável nem está sustentada actualmente por provas científicas”.

    Pouco importou. A falácia e a semântica falaram mais alto. Em 25 de Março de 2021, uma resolução do Parlamento Europeu, instava a “Comissão e os Estados-Membros a desenvolverem, com caráter prioritário, um certificado de vacinação comum e um sistema de reconhecimento mútuo dos procedimentos de vacinação para fins médicos, acrescentando que “uma vez que as vacinas tenham sido disponibilizadas ao público em geral e existam provas científicas suficientes de que as pessoas vacinadas não transmitem o vírus, o certificado pode ser considerado, para efeitos de viagem, como uma alternativa aos testes PCR e aos requisitos de quarentena (…).

    Repita-se: teriam de existir “provas científicas suficientes de que as pessoas vacinadas não transmitem o vírus”…

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    Nunca surgiram essas provas, mas também a imprensa mainstream – imbuída do espírito de missão em prol do “consenso social” para a vacinação – nada questionou quando o certificado digital foi implementado em 14 de Junho de 2021.

    Aliás, em meados do ano passado, foi dando palco a sucessivos “especialistas”, cheios de argumento de autoridade, que continuavam a falar da imunidade de grupo como a quimera para o término da pandemia, mesmo quando a vacina tinha sido desenvolvida para uma variante que não a então dominante (Delta).

    E que se deveria então fazer? Ora, fazer o absurdo: vacinar mais, como defendeu mais um “especialista” na imprensa mainstream, como no Público (20 de Junho de 2021) ou no Diário de Notícias (29 de Junho de 2021). Com efeito o médico intensivista José Artur Paiva, imbuído do seu estatuto de autoridade, acriticamente aceite pelos jornalistas, teve o desplante de dizer que com a variante Delta, a imunidade de grupo só se deverá atingir perto dos 85% de taxa de vacinação em vez de ser nos 70%.

    Mas, a esquizofrenia epidemiológica do Público continuava. No dia 21 de Junho, o diário de Manuel Carvalho divulgava a opinião de Miguel Castanho que, embora recomendando a vacinação em quase tudo o que mexesse, dizia taxativamente que “essa ideia [imunidade de grupo] está ultrapassada porque as vacinas não são 100% eficazes, por um lado, mas sobretudo porque as vacinas não protegem contra a infecção e contra a capacidade de transmissão e, portanto, qualquer pessoa mesmo vacinada em algum grau contribui para a transmissão do vírus”.

    Em 30 de Julho de 2021, o Público escrevia que “a variante Delta”, então já dominante, “se propagava tão facilmente como a varicela à medida que os casos aumentam nos Estados Unidos e novas investigações sugerem que as pessoas vacinadas podem espalhar o vírus.”

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    Escrevia ainda que vários estudos mostravam “que indivíduos vacinados que foram infectados com a variante Delta podem ser capazes de transmitir o vírus tão facilmente como aqueles que não estão vacinados”, acrescentando que “as pessoas vacinadas que ficaram infectadas com a variante Delta têm cargas virais semelhantes àquelas que, não estando vacinadas, estão infectadas com a variante.”

    Alguém da imprensa contestou que não fazia sentido continuar com o certificado digital? Claro que não: o Público, então, continuava a sua cruzada para obter o “consenso social” em torno da vacinação, em vez de fazer jornalismo.

    Tanto assim que continuou a dar palco ao mais destrambelhado clínico desde os tempos de Viriato: Gustavo Carona, que não teve pejo em escrever o seguinte na sua croniqueta de 19 de Agosto de 2021 em prol da vacinação pediátrica: “A vacina previne infecção e transmissão na ordem dos 50 a 80%, diminui a carga viral caso infectada, e diminui os dias de potencial contágio. Ou seja, as crianças têm muito menos probabilidade de levar o vírus para casa, com o que daí possa vir.”

    Em 29 de Outubro de 2021, a “machadada final” em qualquer justificação científica para a manutenção do certificado digital: um take da Lusa, também publicado pelo Público, revelava que um artigo científico na revista The Lancet Infectious Diseases concluía que “as pessoas infectadas com a variante Delta do vírus SARS-CoV-2 registaram um pico de carga viral semelhante independentemente do estado de vacinação contra a covid-19”.

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    Porém, em 25 de Novembro de 2021, a generalidade da imprensa mainstream “aplaudiu” a medida do Governo de António Costa que usou o certificado para segregar não-vacinados, obrigando que este vergonhoso passaporte sanitário passasse a ser “obrigatório no acesso a restaurantes, estabelecimentos turísticos e alojamento local, eventos com lugares marcados e ginásios” a partir do mês seguinte, e que esteve em vigor até finais de Fevereiro deste ano.

    Vergonhosamente, para branquear esta infâmia, o Público ainda deu palco a epidemiologistas que se venderam ao sistema, como Henrique Barros, como se viu numa entrevista inclassificável em 31 de Dezembro de 2021. Intitulava-se: “As vacinas são para prevenir uma doença que eu posso transmitir aos outros. Não são um tratamento individual”. De uma forma surpreendente, dizia ele, nessa altura, que “quando eu decido vacinar-me, eu estou a fazer um contrato entre mim e os outros em que beneficio eu porque me protejo e em que beneficiam os outros porque eu, ao proteger-me, também os estou a proteger. A vacina, como medida de saúde pública, é diferente de um tratamento que uma pessoa queira ou não queira fazer para a sua doença. Não é um tratamento, é um esforço de prevenção. Por outro lado, previne uma doença que eu posso transmitir aos outros; e transmito aos outros no lado mais indispensável do ser vivo, que é respirar.”

    Balelas. O essencial não era dito: as vacinas nunca provaram os pressupostos subjacentes ao certificado digital e, por maioria de razão, às medidas segregacionistas a si associadas.

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    Além disso, se prova ainda fosse necessária de que a vacina jamais teve a capacidade de evitar a infecção e a transmissão, basta observar o que sucedeu após o surgimento da variante Ómicron a partir de Novembro de 2021. Em menos de um ano, com uma taxa de vacinação de cerca de 85%, mais de 40% dos portugueses foram infectados (casos positivos). Ou seja, grosso modo, metade da população vacinada “alegremente” foi infectada e infectou-se…

    Nunca mais se ouviu alguém defender a capacidade das vacinas em evitar a infecção ou a transmissão do SARS-CoV-2. Só a Direcção-Geral da Saúde e o Instituto Nacional da Saúde, nos seus habituais relatórios de monitorização, a dizerem, sem se rir, que a malvada variante Ómocron (que, na verdade, foi uma “bênção” face às outras variantes, muito mais letais) tem “uma capacidade de evasão à resposta imunitária”… concedida pela vacina… e também concedida pelo soro fisiológico… ou pela água da torneira….

    Mas mais vergonhoso ainda foi ver o desprezo com que a comunicação social mainstream (não) acompanhou a consulta pública da renovação do certificado digital na primeira metade deste ano. Foi, de muito longe, o mais participado diploma legislativo em discussão na União Europeia, como o PÁGINA UM foi salientando durante o período de consulta pública, entre 3 de Fevereiro e 8 de Abril deste ano. Foram 385.463 comentários de cidadãos e entidades.

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    Não houve nenhum debate. Nenhum órgão de comunicação mainstream fez uma só notícia sobre a validade da renovação, e, sem isso, pouca ou nenhuma relevância deram ao tema os nossos partidos políticos.

    Mas já deram notícia sobre a aprovação da renovação do certificado digital em Junho passado, por mais um ano.

    E continua em vigor, embora caduco, porque nenhum país já o usa, pela sua própria inutilidade.

    Mas não o devemos esquecer. Nunca. Nem esquecer que o papel da imprensa mainstream, da qual o Público é um paradigma, num dos momentos de discriminação mais torpes que se possa imaginar, porque colocou no papel de odioso as pessoas que, legitimamente, não se quiseram vacinar pelos mais diferentes motivos.


    Nota final: Como é do conhecimento público, não me vacinei, porque, com base na Ciência, confiei nos estudos que foram confirmando e reforçando os dados sobre a imunidade natural, após ter ficado doente, e em estado bastante grave, em Junho do ano passado.

    Tenho acompanhado os meus níveis de imunidade natural realizando, desde Dezembro passado, análises serológicas (IgG) com periodicidade trimestral. No passado mês de Julho, testei positivo e com sintomas bastante ligeiros compatíveis com a variante Ómicron, confirmando assim a forte e duradoura imunidade natural, que prescinde a toma de vacina em condições normais, mesmo por pessoas que tiveram em estado grave numa primeira infecção.

    Poucos dias depois desta reinfecção, fiz novo teste serológico com um resultado de 846 BAU/ml, que confronta com os 331 BAU/ml que obtivera em finais de Junho, pouco antes da infecção. Estava, portanto, com imunidade natural antes dessa nova infecção; reforcei a imunidade natural com a nova infecção. Estou, portanto, com a imunidade reforçada porque não andei a fugir do vírus.

    Considero que, com base nos estudos e dados disponíveis, a Ómicron apresenta, independentemente da eficácia das vacinas, uma muitíssima menor taxa de letalidade face às anteriores variantes, sem prejuízo de continuar a ser uma infecção respiratória eventualmente relevante para pessoas vulneráveis. A Ciência deve prevalecer; não uma estúpida e incompreensível burocracia.

    Nunca usei nem usarei o certificado digital, mesmo tendo tido “direito”. Constitui um factor de discriminação sem qualquer justificação epidemiológica.

  • Os fact-checkers e o suicídio da Ciência: os mosquitos agora andam sempre por cordas

    Os fact-checkers e o suicídio da Ciência: os mosquitos agora andam sempre por cordas


    Antes, os debates científicos faziam-se na academia e nas revistas científicas. Sempre. Era modo lento, mas eficaz. A Ciência não evolui segundo a espuma dos dias. Outros tempos. Agora, a Ciência impõe-se na Internet, consolida-se nas redes sociais. O debate científico ganha-se no imediato, elimina-se uma tese em meia dúzia de dias, bastando para a vitória que se tenha a possibilidade de decretar um veredicto, geralmente através de um popular fact-checking reconhecido, por exemplo, pelo Facebook.

    Isto a pretexto de um artigo científico do cardiologista Aseem Malhotra, publicado em 26 de Setembro passado no Journal of Insulin Resistance, e da sua validade científica.

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    O PÁGINA UM divulgou-o três dias mais tarde, pela relevância da temática, e porque começam a surgir cada vez mais estudos independentes sobre os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19. A restante imprensa mainstream ignorou completamente. Se juntarmos a postura obscurantista das farmacêuticas e das entidades de regulação – veja-se o exemplo do Infarmed –, dar destaque a este tipo de estudos visa sobretudo lançar o debate.

    Porém, não pode ser tolerável a manutenção do modus operandi dos dois primeiros anos da pandemia que impuseram um unanimismo e uma ausência de debate, através da ostracização e mesmo perseguição de todos aqueles que, muitas vezes com argumentos sólidos, procuraram “dar luz” a um problema.

    Sobre o artigo de Malhotra – e até mais ainda o da autoria de um grupo de investigadores italianos, que o PÁGINA UM divulgou no passado dia 6 de Outubro –, esperar-se-ia um amplo debate. Mas tal não sucedeu.

    Aquilo que ocorreu foi um veredicto na Science Feedback feito por Iria Carballo-Carbajal, uma reputada especialista catalã… em doença de Parkinson, que determinou que o artigo de de Aseem Malhotra não tem “suporte científico” (Unsupported), acusando-o também de cometer cherry-picking.

    A análise do artigo de Aseeem Malhotra no Science Feedback (secção Health Feedback) foi feita apenas oito dias após a sua publicação original.

    Este tipo de veredictos fulminantes (nas palavras e na rapidez) supostamente científicos são, na verdade, a anti-Ciência no seu máximo esplendor, porque não são isentos nem ingénuos.

    A análise académica de um artigo científico não se faz em meia dúzia de dias nem é publicado num site de fact-checking. Até porque o site em causa, embora seja se apresentado como “uma organização apartidária e sem fins lucrativos dedicada à educação científica”, está longe de provar a sua independência.

    Com efeito, a Science Feedback, além de fazer recrutamento de cientistas para que ali escrevam, é membro da denominada Vacine Safety Net, promovida pela Organização Mundial da Saúde, e que tem como membros (financiadores) diversas entidades governamentais (como o CDC) ou dos lobbies associados ao sector farmacêutico, como a GAVI, ligada à Fundação Bill e Melinda Gates.

    Além disso, apesar de compor uns bonitos Communuty Standards, não revela quem são especificamente os seus responsáveis (apenas os editores), nem sequer tem um contacto físico ou um endereço de correio electrónico directo. A comunicação faz-se por mero formulário. Anda-se, enfim, a brincar com coisas sérias. A Ciência não se pode basear em coisas destas.

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    Pode até o estudo de Malhotra – e tantos outros – serem uma fraude, tal como foram muitos outros que apresentaram as vacinas como contribuindo para a imunidade de grupo – e que levaram à iníqua segregação de não-vacinados em Estados democráticos durante meses – ou que cantaram loas a absurdas medidas não-farmacológicas.

    Porém, uma coisa me parece evidente: para se “derrotar” uma tese ou um artigo científico dever-se-ia sempre seguir a “velha escola”, ser feita através de um debate na academia, e não através das redes sociais, onde fact-checkers, de mãos não completamente impolutas, sentenciam que determinado “herege” não merece falar e deve ser silenciado.

    A Ciência não pode continuar a portar-se assim. Será o seu suicídio.

  • As formigas de Boliqueime são térmitas a corroer a nossa democracia

    As formigas de Boliqueime são térmitas a corroer a nossa democracia


    Em três décadas, entre 1991 e 2020, Portugal passou a ter mais cerca de 348 mil habitantes, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, mas aumentou o número de muito idosos (acima dos 80 anos) em quase 413 mil. Em 1991, por cada 1.000 portugueses, havia apenas 27 pessoas com mais de 80 anos; no início do século passou para 36; agora, o número é quase o dobro, tendo subido para 67 em cada mil.

    Aquilo que poderia ser um motivo de alegria social e prova de um sucesso civilizacional – viver mais, aumentar o número de gerações em vida, permitir ser usual crianças crescerem até bem adultos com os avós vivos e até conviverem muitos anos com bisavós –, acabou, porém, em Portugal por se estar a transformar em filmes de horrores, em cenas deploráveis, em quadros que mostram a triste natureza humana.

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    O caso da idosa num lar de Boliqueime, pejada de formigas, onde supostamente a provedora até mandava tirar rótulos de iogurtes fora do prazo, não é caso único. Nunca foi. E piorou a olhos vistos nos últimos dois anos com a pandemia, onde um manto de segredo paira em redor das chamadas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI). Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram por ou com covid-19 desde Março de 2020, nem qual foi a letalidade de outras doenças.

    O PÁGINA UM tem tentado conhecer esses números desde Janeiro deste ano. Portugal é um dos poucos países europeus que nunca divulgou qualquer relatório. Mas, apesar de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), em Abril passado, o Ministério da Saúde “luta” no Tribunal Administrativo de Lisboa para não ceder essa informação.  

    A situação deplorável dos lares deve-se, em grande medida, à demissão do Estado – e dos sucessivos Governos – em olhar para a Terceira Idade com uma visão humanista. Para o Estado – e para os sucessivos Governos –, os idosos não são pessoas a quem a sociedade – toda e não apenas os familiares directos – paga um tributo e presta uma justa homenagem pelos seus contributos durante a “vida activa”. São empecilhos, sugadores de recursos económicos.

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    Na bitola de um ministro das Finanças, um pensionista – e ainda mais aquele que não tem recursos financeiros próprios para seguir para um lar privado, pagando-o integralmente – é sempre um encargo, uma despesa a ser rapidamente transformada em zero só e quando morrer.

    E, por isso, o Estado – e os sucessivos Governos – fazem de conta que se preocupam com os idosos. Numa população crescente de velhos, o Estado prefere manter um status quo assente num caduco e anacrónico pseudo-voluntarismo – como são as IPSS –, em vez de criar um sistema profissional e exigente, com regras e regulação apertada. Deixa à iniciativa das IPSS – ou de empresas privadas, quando em zonas “lucrativas” –, a implementação de oferta em vez de ser o Estado a satisfazer as necessidades da procura, muito diferenciada em função da região.

    Por isso, quando se olha para os relatórios da Carta Social – da responsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social – só se pode antever uma desgraça social. Fora e dentro dos lares. Com efeito, se considerarmos toda a oferta disponível dos chamados lares de idosos (ERPI), de acordo com a mais recente Carta Social de Dezembro de 2021, verifica-se que a capacidade evoluiu de um pouco menos de 60 mil camas no ano 2000 para pouco mais de 100 mil em 2020, ou seja, mais 40 mil camas. Ora, nesse período, só considerando a população com mais 85 anos, tivemos um aumento de mais de 174 mil.

    Evolução da população portuguesa com mais de 80 anos. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Se no ano 2000 existiam 265 idosos com mais de 85 anos por cada 100 camas em ERPI; em 2020 esse rácio passou para 333 idosos por cada 100 camas. Estão a ver no que isto dá, certo? Numa espécie de jogo da cadeira… cada vez há mais jogadores e menos cadeiras.

    Tudo isto inclina o jogo para os aventureiros e pessoas menos escrupulosas – independentemente de muitas estarem travestidas de IPSS ou de Santas Casas da Misericórdia –, que se aproveitam da fragilidade do Estado – e dos sucessivos Governos – que não querem publicamente que se olhe por debaixo do tapete e se observe os horrores que se foram chutando (nem sequer é varrer, porque nem sequer se é meigo).

    Assim, tendo em conta que a única preocupação do Estado – e dos sucessivos Governos – é não se ver publicamente, em demasia, as lástimas sociais, permite-se assim, alegremente, que muitos lares se transformem em depósitos de velhos, antecâmaras da morte, purgatórios perpétuos, onde se fecham os olhos aos excessos de ocupação, se negoceiam vagas ao melhor preço (ou à melhor herança para a IPSS), à qualidade da comida, à frequência de cuidados médicos e de enfermagem, aos mínimos das equipas operacionais, etc., etc., etc..

    Chega-se, inclusive, a fechar os olhos aos lares ilegais (englobando aqueles em fase de licenciamento, mas a funcionarem já), cujos endereços o próprio Estado conhece, porque perante tantas carências (face à demissão do Estado), julga-se que tudo é melhor do que nada.

    Fiscalizações, então – esqueçam. Nunca em tempo algum uma vistoria a um lar encontraria sequer um ácaro microscópico debaixo do travesseiro de uma idosa acamada. Por uma simples razão: por regra, os serviços da Segurança Social avisam com um mês de antecedência os lares que vão fiscalizar. Está certo: convém não chocar os inspectores com imagens, enfim, “desagradáveis”. Não queremos funcionários do Estado traumatizados. Nem com formigas. Mesmo se estas revelam, afinal, uma Democracia a ser roída por térmitas.

  • Até as derrotas me dão esperança

    Até as derrotas me dão esperança


    Esta madrugada, eram cinco horas e eu ainda estava a escrever, mas não era nenhuma notícia. Deveria ser, mas não era.

    Estava a escrever “argumentos jurídicos”, para “auxiliar” o advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, a contra-alegar no Tribunal Administrativo em dois dos processos de intimação que interpusemos para acesso a documentos administrativos.

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    São já 12, como será do conhecimento público, todos devido à falta de transparência de entidades públicas. Talvez sejam mais em breve, incluindo contra a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), cujo Secretariado veio, na semana passado, recusar-me o acesso a informações, em alguns casos relacionados com notícias que escrevi, alegando que, além de “constitu[ír]em documentos nominativos, sujeitos à proteção de dados pessoais”, eu não tenho “um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”.

    Já estamos na fase em que jornalistas da CCPJ defendem e promovem a tese de que os jornalistas, pela sua condição, não têm interesse em matérias que investigam. E que, basicamente, não devem chatear.

    Não nos surpreendamos: o próprio Conselho Superior da Magistratura (CSM) já defende essa linha (não por acaso, é vê-la agora em estreita colaboração com a CCPJ). E mesmo tendo o CSM perdido um processo de intimação em primeira instância no Tribunal Administrativo de Lisboa, recorreu, pelo que o acesso continua ainda impossível.

    Mas vejam então como dediquei esta noite “jurídica”, que só há pouco terminou com a escrita deste Editorial.

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    O primeiro processo, no qual estive a “alegar”, é recente – começou no mês passado. Tem como ré a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – que, aliás, tem estado a criar regulamentos internos ad hominem (voltarei ao tema!) – e deve-se à recusa no acesso aos pedidos de confidencialidade de empresas de media para que fiquem secretos determinados fluxos financeiros. A transparência é a regra, mas há uns “amigos” que podem ser excluídos dessa obrigação. A ERC quer decidir… secretamente.

    O segundo processo é mais antigo (iniciou-se em finais de Maio), e refere-se à recusa das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos em ceder documentos operacionais e contabilísticos da campanha Todos Por Quem Cuida, que envolveu 1,4 milhões de euros, e o apoio financeiro da indústria farmacêutica. Embora considerado urgente, esta intimação já caminha para o quarto mês, tendo já 46 registos (movimentos) processuais. Tem sido interessante ver como as duas Ordens, mais as respectivas sociedades de advogados, lutam abnegadamente para não cederem os documentos requeridos para se avaliar como ganharam e como gastaram o dinheiro dos donativos.

    Pormenor dos movimentos processuais da intimação sobre o acesso aos documentos da campanha Todos por Quem Cuida

    Enfim, nos últimos tempos, uma parte dos meus dias de trabalho no PÁGINA UM não se mostra visível, sob a forma de notícias; são estas “burocracias”, as pequenas “batalhas” em prol da transparência, do acesso a documentos, apresentando requerimentos, reiterando pedidos de informação, compondo queixas. É desgastante, mas necessário. Os leitores não vêem este trabalho de formiga – e, por vezes, sinto que o menor fluxo de notícias, patente nas últimas semanas, pode influenciar a avaliação que se faz ao PÁGINA UM.

    Mas sempre assumi que o PÁGINA UM, além de um projecto de jornalismo independente, seria um projecto de cidadania. O leitmotiv do PÁGINA UM é a Democracia, a defesa dos princípios democráticos, assumindo que a Imprensa é um dos instrumentos.

    Nesta linha, os processos em Tribunal Administrativo – perante o inculcado e bem enraizado obscurantismo da Administração Pública – estão a servir também de teste à Democracia; servem para perceber se ainda existe uma entidade externa ao Poder, e às decisões arbitrárias deste em recusar o acesso à informação por parte dos cidadãos, que defenda a Democracia.

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    Sinto, por isso, cada um dos processos de intimação no Tribunal Administrativo como um teste à vitalidade da Democracia portuguesa.

    Uma vitória – e tivemos duas embora ainda sem efeitos práticos, porque o Conselho Superior da Magistratura e a Ordem dos Médicos (um outro processos, sobre pareceres técnicos) recorreram – é sempre uma esperança.

    Mas mesmo quando também há uma derrota, paradoxalmente, nasce uma esperança – mas por outros motivos.

    Por exemplo, esta madrugada, no meio da consulta da plataforma dos meus processos, constatei que tive uma derrota. Foi ontem concluída a sentença da intimação para o Ministério da Saúde abrir o seu arquivo – para conhecer a gestão durante os anos da pandemia.

    Ora, tendo eu pedido acesso integral do arquivo do Ministério da Saúde desde 2020, identificando as entidades a quem se dirigiam e recebiam ofícios e relatórios, a juíza entendeu, mesmo assim, que “atendendo à forma como o pedido foi formulado, a Entidade Requerida [Ministério da Saúde] não consegue satisfazer a pretensão, por não ser possível identificar, em concreto, a que documentos e informações o Requerente [eu] pretende o acesso, nem mesmo para perceber se estão em causa dados pessoais ou nominativos.”

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    E acrescenta, dando na ferradura, que “importa salientar que não se trata de negar o acesso aos arquivos e registos administrativos, que conforme acima se expôs, constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, todavia, impõe-se aos requerentes dessa informação que concretizem o que pretendem, caso contrário, a entidade administrativa não consegue satisfazer o pedido.”

    Esta decisão é surpreendente, porque a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos diz taxativamente que “se o pedido não for suficientemente preciso, a entidade requerida deve, no prazo de cinco dias a partir da data da sua receção, indicar ao requerente a deficiência e convidá-lo a supri-la em prazo fixado para o efeito, devendo procurar assisti-lo na sua formulação, ao fornecer designadamente informações sobre a utilização dos seus arquivos e registos.” Algo que o Ministério da Saúde nunca fez nem propôs. Aliás, o Ministério classificou logo o pedido do PÁGINA UM de “manifestamente abusivo“.

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    Mas, mesmo assim, a juíza achou que como não consegui identificar em concreto os documentos – talvez o número dos ofícios ou o título de relatórios, que só poderia saber se fosse adivinho –, mesmo se identifiquei as entidades envolvidas e o intervalo de datas, “não se impõe à Entidade Requerida que entregue ao Requerente a informação e documentos requeridos.”

    E, pronto, improcedente, e pague-se as custas… Ou recorra-se para o tribunal superior, com mais custas, que é aquilo que se fará enquanto houver dinheiro do FUNDO JURÍDICO. E esperança…

    E, então, perguntam os leitores: onde está afinal a esperança nesta derrota?

    Está em poder contribuir para muitos acordarem do torpor (quase) colectivo que deixou a nossa Democracia apodrecer.


    Embora com meios incomensuravelmente menores do que as entidades públicas, o PÁGINA UM não vergará facilmente na sua luta em prol da transparência e do acesso à informação. No caso dos processos judiciais, que podem envolver custos acrescidos em caso de derrota, os apoios podem ser concedidos ao FUNDO JURÍDICO. Para o apoio ao trabalho jornalístico, podem apoiar através de várias modalidades.

  • Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro

    Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro


    Muitas vezes – ainda hoje, por sinal –, detecto pequenos erros ou imprecisões naquilo que escrevo. Por exemplo, constatei que há uma semana escrevi um artigo intitulado: “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior de sempre”. Errado. E o artigo foi corrigido passando agora a intitular-se “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980”. Está 100% correcto – e, aliás, acertarei a minha previsão. E está um título escrito com prudência, porque, na verdade, talvez seja desde 1970 ou até desde um ano anterior, mas assim excluo o “sempre”, porque não era verdade.

    De facto, é sempre arriscado escrever “sempre” num artigo; por mais aliciante que seja, é um perigo.

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    Embora os meus detractores não me desculpem – embora tenha sido eu a apanhar o erro –, confesso que este adveio de um excesso de confiança nos meus conhecimentos. Por vezes, dá maus resultados, mesmo se não estamos perante uma situação que altere a gravidade daquilo que se denunciou: um excesso de mortalidade desde Fevereiro de 2022, inexplicável e intolerável nos tempos modernos.

    Com efeito, para escrever “sempre”, baseei-me nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Pordata desde 1980 (o ano a partir do qual existe uma base de dados de fácil consulta). Ora, sabendo eu que, nos tempos modernos, os Verões são muito menos mortíferos do que os meses de Inverno, extrapolei abusivamente que, para uma população menor em décadas passadas, não encontraria tanta mortandade em meses estivais, como Agosto.

    Não é bem assim. Ou melhor, não era bem assim. Deu-me para procurar dados nos relatórios da Estatística do Movimento Fisiológico de Portugal do INE dos anos 20 e 30. Trabalho árduo e demorado, mas que acabou por ser a merecida penitência para os meus erros.

    De facto, embora sejamos agora uma população mais envelhecida e maior do que nas primeiras décadas do século passado, houve vários anos em que se morreu mais. Por exemplo, em 1918 – o ano da gripe espanhola – morreram cerca de 248 mil pessoas, o que dá uma média mensal de 20 mil pessoas. Diga-se, contudo, que “apenas” cerca de 9% foram por gripe espanhola – voltarei, aliás, a este tema muito em breve.

    Portanto, embora não tenha encontrado valores mensais disponíveis para aquele ano, de certeza absoluta que na Primavera e Verão de 1918 terão morrido muito mais do que 10 mil pessoas em cada mês.

    Mas mesmo depois da gripe espanhola – que atacou Portugal quase em exclusivo no ano de 1918 – houve anos de maior mortalidade. Verifico agora a raiz do meu erro: não considerei a dimensão da mortalidade infantil sobretudo até à primeira metade do século XX.

    De facto, a mortalidade total estava muitíssimo dependente da taxa de mortalidade infantil, que atingia proporções inauditas, completamente assombrosas, sobretudo por diarreias, enterites e outras doenças profundamente letais nos primeiros anos de vida. Além disso, a mortalidade por malformações era também elevadíssima. Natural, na verdade – ao contrário do que se diz agora – era ver-se pais a enterrar filhos.

    person holding clear glass ball

    Acresce que, nas décadas de 20 e 30, a fertilidade era elevada. Por ano, era habitual nascerem cerca de 200 mil crianças numa população de 6 milhões de habitantes. Agora, que somos 10 milhões de habitantes, nascem cerca de 80 mil crianças por ano.

    Porém, nas primeiras décadas do século XX, as doenças até aos cinco anos de idade dizimavam uma grande parte dessas esperanças de vida. Para se ter uma ideia, em 1918 morreram 77.550 crianças com menos de cinco anos. Destas, estão incluídas 11.370 falecidas antes de completarem dois anos por causa de diarreias e enterites, e mais 5.862 por “debilidade congénitas”.

    Meia década mais tarde, em 1923, num ano já sem resquícios da gripe espanhola – a gripe endémica causou então “apenas” 2.000 (exactos) óbitos –, a mortalidade infantil cifrou-se em 56.933 óbitos, sendo que 12.719 se deveram a diarreias e enterites, enquanto as “debilidades congénitas” causaram 5.764 mortes infantis.

    Se considerarmos, que em 1923, a mortalidade total foi de 141.775 óbitos, conclui-se então que a morte de crianças com menos de cinco anos representou 40% do total!

    grayscale photo of woman hugging baby

    Nos anos antecedentes e posteriores, durante algumas décadas, este foi o peso relativo das fatalidades infantis, que tinham um maior peso nos meses de Verão, período onde certas doenças infecciosas – muito por via da falta de saneamento – incidiam.

    Portanto, o meu erro foi subestimar a elevadíssima mortalidade infantil nos primórdios do século XX. O “sempre” estava ali a mais, porque bastaria, para aquilatar da gravidade do que se está a passar agora, dizer que a situação é a pior dos últimos 10 ou 20 anos, porque é esse o contexto histórico que nos deve guiar sempre.

    Ora, mas daqui quero passar – e não é por acaso que se faz referência ao ano de 1923 – para um outro tipo de erros, muitíssimo mais grave, cometido pela comunicação social mainstream, sobretudo aquela que se presta ao fact-checking.

    Neste aspecto, peguemos então no paradigmático exemplo de um fact-checking do Observador sobre se “estamos perante a maior mortalidade de sempre em Portugal”. A “análise” conclui, entre outros aspectos, que a “mortalidade geral não é maior de sempre em Portugal: houve mais óbitos em 1923, revelam dados do INE”.

    Fact-check do Observador sobre se 2022 apresenta a maior mortalidade de sempre e a falta de contextualização

    Ora, na linha do que disse anteriormente, um fact checking desta natureza não pode jamais olhar para os números de forma estática. Há um “dinamismo” social que deve entrar na equação. Temos de saber o que estamos a comparar e como devemos comparar. E sobretudo qual o objectivo dessa comparação.

    Um fact-checking não deve ser uma mera análise quantitativa. Na verdade, saber se a mortalidade de um Verão assume ou não o valor mais elevado de sempre – desde que Portugal é um país – mostra-se irrelevante. É uma curiosidade histórica.  

    Em Saúde Pública devemos olhar sim para uma série longa de indicadores apenas aferir as melhorias tecnológicas e dos cuidados médicos. Mas não serve para identificar, numa perspectiva de uma ou duas ou três décadas, anomalias graves num sistema de Saúde.

    Por isso, não faz sentido algum andar à procura de um ano como o de 1923, tão para trás, para mostrar que a situação de 2022 não está a ser assim tão má. Para concluir que, afinal, houve um ano pior do que o presente está a ser. É um disparate. É uma irresponsabilidade. Não é jornalismo. É um péssimo trabalho de fact-checking.

    Este é o caso do fact-checking do Observador no caso em apreço. Diz isso quem acabou de confessar um erro, que se penitenciou e que o explicou.

    E digo isto do fact-checking do Observador, e de tantos outros, porque, neste caso, desde logo é uma rotunda aselhice comparar um ano (1923) em que a mortalidade infantil representava 40% da mortalidade total com outro ano (2022) em que a mortalidade infantil representa apenas 0,23% (até 27 de Agosto houve 194 mortes de menores de cinco anos, entre os 82.868 óbitos registados)

    Não podemos comparar dois anos (1923 e 2022) – e os anos intermédios – sem enquadrar a evolução na esperança média de vida, no tratamento de doenças, em tudo e mais alguma coisa.

    Se um jornalista não souber sequer fazer uma contextualização, daqui a nada ficaremos satisfeitos por nos tirarem todos os direitos conquistados em 25 de Abril de 1974, porque afinal um fact-checking surge a concluir que, mesmo assim, estamos melhor com o regresso aos tempos da Outra Senhora do que estavam os nossos antepassados no tempo do Feudalismo.

  • Faltam obstetras no Verão? Ora, proíba-se o “truca-truca” entre Outubro e Janeiro

    Faltam obstetras no Verão? Ora, proíba-se o “truca-truca” entre Outubro e Janeiro


    Durante a pandemia, os apelos directos para desopilar dos hospitais, de sorte a salvar os doentes-covid, tiveram consequências ainda hoje não mensuradas. Só em 2020, foram suprimidas 700 mil cirurgias programadas e 50 mil urgentes, de acordo com o Conselho Nacional da Saúde, que só acordou para o assunto este ano.

    Embora não tenha havido uma proibição expressa, a censura social e o medo levaram também muitas pessoas a fugirem dos únicos locais que lhes poderiam salvar a vida em casos mais extremos.

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    Mas houve muitas proibições desde 2020. Lockdowns, restrições às actividades económicas sociais, permissões após com base num documento administrativo, tudo imposto à generalidade da população sem critério científico. Tudo se endossou, em termos de responsabilidades e “culpas”, aos cidadãos, obrigando-os a pagar a fava: era o povo que deveria salvar o SNS da pandemia; não o SNS a salvar o povo dos efeitos da pandemia.

    Esta postura, entre o paternalista – em que disciplina o menino mal-comportado – e o indolente – o Estado esquece-se de que serve a sociedade, e não é a sociedade a servir os políticos –, foi ganhando escola. Está tão enraizada, que já se encontra quase universalmente aceite. Numa democracia, veja-se.

    Agora, proíbe-se genérica e cegamente, sem sequer ser necessário uma justificação técnica e política. Basta comunicar, decretar, uma Resolução de Conselho de Ministros serve perfeitamente, que a acrítica imprensa mainstream facilita a tarefa.

    Neste momento, uma proibição – que passe pela retirada de direitos adquiridos – constitui uma eficaz “arma política” de desresponsabilização.

    Por um lado, o Governo assume que só proíbe porque está em causa o bem comum – logo, ele é o lado bom.

    stack of jigsaw puzzle pieces

    Por outro, coloca o “problema” num patamar de nível gigantesco, sobre-humano; logo, se falhar, falha apenas porque… exacto, o problema era de nível gigantesco.

    Além disso, a proibição é sempre entendida como uma acção: o Governo age. E, com a proibição, mostra o “músculo”: coerção e censura social, pelo menos.

    Mostra-se autoritário contra os “faltosos” e contra aqueles que os criticam. Melhor ainda assim. Se houver contestatários, tanto melhor: serão transformados em “óptimos” bodes expiatórios. Lembrem-se dos tão “úteis negacionistas” (para onde se “chutaram” até as vozes incómodas e sensatas para forçar o unanimismo). E lembrem-se da epidemia dos não-vacinados…

    Passada a pandemia (será?), temos agora nova onda de proibições com o intuito de resolver problemas políticos do Governo.

    A floresta está mal gerida e o sistema de combate é obsoleto, e à conta disso os incêndios podem assumir um risco catastrófico? Cria-se uma “onda de calor” (antes mesmo de se assumir que se está perante uma), decreta-se uma situação de alerta (ou quejanda) para todo o país e generaliza-se uma proibição até ao absurdo, incluindo encerramento de monumentos. Depois inventa-se um algoritmo para dizer o impensável: podia ser pior se não fosse o Governo.

    people walking near fire

    Os Governos europeus geriram estupidamente a “guerra financeira” contra a Rússia em consequência da Guerra da Ucrânia? Pois bem, imponha-se “proibições e limitações na climatização e iluminação de espaços comerciais e públicos”, sem critério nem análise de benefícios (antecipar fecho de lojas para poupar energia terá um balanço positivo, tendo em conta que as pessoas assim vão para casa?). E não se fale na ineficaz política de eficiência energética em Portugal, nem na crónica fraca aposta na ferrovia nem nos projectos de mobilidade de fazer de conta.

    Temo que o Governo não pare por aqui na arte do proibicionismo endossando culpas para a sociedade, que assim merece castigo.

    Por exemplo, para “solucionar” a falta de obstetras em Julho, Agosto e Setembro, a arte do proibicionismo pode ser aplicada. Bem sei que, antes da pandemia, já havia queixas nesta época do ano. Em 2019. Em 2018. Em 2017. Em 2016. E por aí fora.

    Ora, mas o Governo pode bem convencer-nos que a culpa não é das fracas condições dadas aos obstetras e ginecologistas no Serviço Nacional de Saúde – e que migram assim para os privados. Nem se deve ao facto de ser habitual que se concentrem as férias no período estival, levando a uma redução no número de médicos disponíveis em todas as especialidades (bem nos avisa a Dra. Graça Freitas).

    Número médio de nascimentos por mês (período: Janeiro de 2011 a Maio de 2022). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Na verdade, o Governo pode agora “culpar” as grávidas, que, enfim, concentram os partos no Verão e no início do Outono. Podem culpar o timing dos casais que, sem noção das consequências nove meses depois, engravidam entre Outubro e Janeiro.

    Donde, na nova “escola de fazer política”, a solução está à mão: proíba-se o truca-truca em Outubro, Novembro, Dezembro e Janeiro. E, com esse singelo acto, em Resolução de Conselho de Ministros eficazmente transmitida pela Lusa e “viralizada” pela imprensa mainstream, conseguir-se-á a paz absoluta durante o Verão em todas as maternidades e urgências de Obstetrícia.

    Ah!, e temos bodes expiatórios. Quem não tiver espírito de missão, pelo bem comum, saiba que o “objecto” do crime será detectado. E sem contemplações, os agentes nocivos da sociedade serão multados convenientemente pelo Estado (por antipatrióticos e egoístas) e censurados e ostracizados pela sociedade como párias. Amen.

  • Reuters, Roche & Público: a mulher de César que não parece séria, e talvez não seja

    Reuters, Roche & Público: a mulher de César que não parece séria, e talvez não seja


    Regresso ao tema. O Jornalismo não é credível apenas porque grita que é sério e independente. Tem de mostrar, demonstrar, estar acima de qualquer suspeita. Significa isto que, no quotidiano, quando um leitor folheia um jornal, um ouvinte sintoniza o noticiário, um telespectador se senta perante um telejornal, ou um internauta passa os olhos pelo ecrã, não pode jamais desconfiar dos propósitos (directos e indirectos) de um artigo noticioso.

    Aliás, para começar, as pessoas não podem sequer ter a mínima dúvida de que uma notícia feita por um jornalista seja mais do que uma notícia feita por um jornalista.

    Só que começaram. E têm motivos para que a “mínima dúvida” se transmute em “mínima certeza”.

    two people shaking hands

    Para mal dos pecados do Jornalismo, tenho andado cada vez mais a desconfiar do Jornalismo. Não há mal nenhum na desconfiança. Na verdade, é uma das maiores virtudes de um jornalista: olhar para a verdade que se (nos) apresenta(m) e colocar sempre a hipótese de não ser a realidade. Bem sei que um jornalista que coloca dúvidas, que exige comprovativos, que necessita de olhar para os dados em bruto não seja muito popular. Mas, mesmo assim tem de desconfiar.

    Porém, o meu “drama” não é duvidar: é confirmar que tinha motivos para desconfiar, e ainda bem que desconfiei. Lamentavelmente, desconfiar de jornalistas e acertar na desconfiança é péssimo para o Jornalismo.

    Ora, vem isto a propósito de uma notícia publicada no Público na quarta-feira passada intitulada “Porque se tem detectado poliomielite em Londres, Nova Iorque e Jerusalém? E quão perigosa é?”. A notícia destaca os 230 casos de poliomielite no Mundo, explicando as causas e a relevância da vacina.

    Ponto prévio: não há qualquer dúvida, nos dias que correm, que a vacina contra a poliomielite – uma doença incapacitante e letal em crianças, considerada um horror até há meio século – tem contribuído decididamente para a erradicação do vírus, que está quase.

    Notícia do Público não informa os leitores em que circunstâncias o artigo original da Reuters foi produzido.

    Sendo eu um adepto da vacinação em sentido genérico, tal como sou de todos os outros medicamentos, acabo agora sempre a desconfiar dos timings de certas notícias sobre vacinas (já perfeitamente estabilizadas quanto ao perfil de eficácia e de segurança) e das suas encapotadas motivações.

    É certo que a notícia publicada pelo Público sobre a poliomielite está genericamente bem construída, didáctica, rigorosa.

    Mas, tendo já reparado que nas últimas semanas se tem noticiado várias vezes supostos surtos de poliomielite (2.300 casos a nível mundial, o que não é nada), começa sempre a parecer-me que querem vestir o “hábito” de vacinas bem-sucedidas a todas as outras.

    Aliás, todos nós sabemos que o marketing político e das farmacêuticas (arrigementando “peritos”) procurou, ao longo da pandemia, usar a boa fama de outras vacinas – com décadas e décadas de existência, na maior parte dos casos – para a colar às vacinas contra a covid-19, sobre as quais cada vez surgem mais dúvidas relativamente à eficácia e aos efeitos secundários [esconder a informação, como faz o Infarmed em Portugal, convenhamos, não ajuda].

    E, por isso mesmo, quando li a notícia no Público – e a referência à Reuters –, desconfiei. E fui à procura da notícia original daquela agência noticiosa.

    E voilà: o artigo original da Reuters (copiado pelo Público) não é uma notícia “tradicional”; é um conteúdo explicitamente patrocinado [Sponsored] pela farmacêutica Roche.

    É certo que a Roche nem produz vacinas contra a poliomielite. As farmacêuticas que a produzem são a Sanofi Pasteur, a GlaxoSmithKline, a Bilthoven Biologicals e o Staten Serum Institute. É também certo que no artigo patrocinado na Reuters surge o seguinte aviso: “Sponsors are not involved in the creation of this or any other Reuters news articles”.

    Mas é isto música para os ouvidos: temos aqui a mulher de César a gritar que é séria para evitar que a acusem, pelo seu patente comportamento, que não é séria.

    Caramba!, custa-me a entender por que tem a Roche ou outra qualquer farmacêutica ou outra qualquer empresa de outro qualquer ramo de actividade a necessidade de sponsorizar jornalismo, e depois garantir que jamais influencia, jamais mete um dedo sequer em nada do que seja a linha editorial de um órgão de comunicação social.

    Não lhes bastaria fazer anúncios separados claramente das notícias? Como antigamente?

    Porque têm agora as marcas cada vez maior necessidade de estarem associadas a notícias? Exigem que tal seja feito.

    E qual o motivo de os órgãos de comunicação aceitarem as “novas regras” em que os anunciantes passaram a ser patrocinadores de jornalistas?

    Ninguém entende o perigo para a credibilidade disto para os órgãos de comunicação social?

    Ninguém quer perceber como, de forma, subliminar (ou até explícita) funcionará a prazo este tipo de sponsorizações para a liberdade editorial dos órgãos de comunicação social?

    Ninguém percebe o risco para a independência real e percepcionada dos jornalistas por parte dos cidadãos?

    black and silver stethoscope on brown wooden table

    E como se explica que um artigo da Reuters patrocinado por uma farmacêutica possa viralizar em outros órgãos de comunicação social “transformando-se” num artigo noticioso banal? O Público não sabia que estava a publicar um artigo sponsorizado? Sabia, mas optou por não avisar os seus leitores?

    Não está aqui, repito, o caso concreto do conteúdo deste artigo (poliomielite) patrocinado pela Roche à Reuters, e que acaba como notícia normal no Público, mas sim o actual modus operandi da feitura de muitas notícias sem que os consumidores de notícias se apercebam.

    A dependência económica do Jornalismo perante os seus anunciantes – agora patrocinadores – está a dar cabo da sua credibilidade e independência. E isto, no futuro, não será bom nem para o Jornalismo nem para as empresas.

    Se todos, na imprensa mainstream, continuarem a assobiar para o ar e a bater no peito clamando serem muito independentes, a confiança dos cidadãos continuará a ser minada. E atingirá um nível tão elevado que, um dia, pouco valerá à mulher de César gritar e esbracejar que é séria e que parece séria. Ninguém já nela acreditará, porque, no passado, não pareceu séria, e talvez não tivesse mesmo sido.