Etiqueta: Vértebras

  • Em Lisboa, só o Papa merece ruas limpas

    Em Lisboa, só o Papa merece ruas limpas


    Confessando que a amostra não cumpre o nível de rigor, por exemplo, das sondagens da Aximage para para os periódicos da Global Media – como aquela que, em Agosto de 2021, a quatro semanas das eleições autárquicas, dava 51% a Medina e uns míseros 27% a Moedas… –, as ruas de Lisboa neste primeiro ano da graça de dois mil e vinte e quatro da era de Cristo estão uma imundície. Uma porcaria. Uma estrebaria, que só se mostrará “fermosa”, parafraseando o Cavaleiro de Oliveira, se morarmos a cidade, de cima para baixo, com miopia, de um miradouro, como por exemplo o da Graça, bairro de onde tirei as fotografias que aqui apresento.

    Não são diferentes de outros dias, e de outros bairros, como é o caso do Bairro Alto e Santa Catarina, por onde mais perambulo, exemplos tristes de falta de higiene e asseio, apesar dos recursos dos impostos dos contribuintes e das taxas de turismo. Não é dinheiro que falta.

    Mas todos os anos, que me recorde, Lisboa anuncia-se ao primeiro dia de Janeiro, sempre com a mesma cara: suja. Começa a ser uma tradição. Uma péssima tradição.

    Já escrevia o médico e escritor português Guiilherme Centazzi, em meados do século XIX, que “Lisboa, que todos nós estamos vendo, e que os estrangeiros e os vindouros hão-de julgar pelo que lerem… Lisboa (não se faça do preto branco, nem se queira embutir gato por lebre), examinada em globo é uma coisa; em detalhe, é outra. Em globo, ninguém lhe negará aparato, beleza, opulência, grandeza, etc., etc.. Em detalhe, de fora para dentro, é tal e qual como esse famigerado siciliano que, no domingo, se paramentava com luzentes vestiduras, sem despir a camisa com que tinha andado a mariscar os anzóis durante a semana. Lisboa, em síntese, é majestosa; em análise, é um covil lastimoso de miséria e lama.“

    E cá temos Lisboa no primeiro dia do Novo Ano igual ao ano anterior. Feriado que haja em Lisboa, é dia santo na loja, o que significa lixo a transbordar em tudo o que é canto, e em tudo aquilo que não é canto.

    Aguentamos um dia com lixo? Claro que sim.

    Aguenta-se, se a compreensão for desmesurada. Aí aguenta-se tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos que, por exemplo, Carlos Moedas, o edil de Lisboa, gaste dinheiro público com um vídeo de promoção pessoal ao estilo de estrela pop norte-americana, mangas de camisa branca arregaçadas, a subir a escadaria dos Paços do Concelho como um ‘salvador’ – aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos ver Carlos Moedas prometer, no Twitter, que “em 2024 vamos continuar a construir memórias, a alcançar vitórias, mas sobretudo a fazer Lisboa”, mas logo no primeiro dia temos um “Feliz 2024” com ruas imundas, e não há problema – aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos ver Carlos Moedas, no dito vídeo promocional, sugerir (porque está ele sempre presente) que quem deu as casas a carenciados, concedeu transportes públicos gratuitos, pagou as obras de drenagem e mais uma série de outras coisas, foi ele e não os dinheiros públicos (e todos nós) – então aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos ter pagado mais de 614 mil euros a uma empresa de trabalho temporário para suposto reforço da limpeza de ruas durante a estadia do Papa na Jornada Mundial da Juventude por duas semanas, mesmo se não houve qualquer necessidade, mas aceitamos que todos os anos comecem com as ruas imundas – de facto, então, aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    A gestão de uma Câmara, sobretudo de Lisboa, não pode continuar a servir somente como trampolim político, como a história recente nos tem demonstrado, de que são exemplos Jorge Sampaio, Santana Lopes e António Costa, que atingiram depois lugares de topo no poder.

    Moedas tem legitimidade para aspirar a outros voos, se assim desejar e fizer por isso. Mas, até lá, faça também o básico: e o básico é ter as ruas de Liosboa decentes todos os dias do ano. E se não houver funcionários públicos para o primeiro dia de cada ano, então aí sim justifica-se a contratação de empresas de trabalho temporário por um dia. Afinal, como munícipes, não somos menos do que o Papa.

    Ou para Moedas seremos?


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  • Carta aberta: vamos a jogo, com Lei & Ordem, não com palhaçadas

    Carta aberta: vamos a jogo, com Lei & Ordem, não com palhaçadas

    Carta enviada hoje à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, com conhecimento ao Sindicato dos Jornalistas e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas a pretexto de um parecer desta última entidade contra o director do PÁGINA UM em consequência de uma queixa da presidente da própria Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e simultaneamente conselheira do Conselho Geral do Sindicato dos Jornalistas.


    Lisboa, 23 de Julho de 2023

    Exmos. Senhores Membros do Plenário da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista:

    O Aviso nº 23504/2008, publicado no Diário da República, 2º série, de 17 de Setembro de 2008, aprovou o Estatuto Disciplinar dos Jornalistas.

    De acordo com o nº 2 do artigo 1º do referido diploma, “sempre que da prática da actividade de jornalismo resulte a violação de normas de natureza deontológica, é reconhecida à CCPJ a possibilidade de instaurar inquérito ou processo disciplinar ao abrigo do presente Estatuto”, estabelecendo-se também, no nº 2, que “comete infracção disciplinar profissional o jornalista e os restantes indicados no nº 1 do artigo 1º que, por acção ou omissão, violarem dolosa ou negligentemente algum dos deveres mencionados no nº 2 do artigo 14º do Estatuto do Jornalista.”

    Ora, como V. Exas. terão conhecimento, a Dra. Licínia Girão, presidente da CCPJ, apresentou queixa contra mim junto do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Ignoro os motivos para, tendo ela suspeitas de eu ter violado dolosa ou negligentemente os deveres mencionados no nº 2 do artigo 14º do Estatuto do Jornalista, não ter como queixosa e presidente da CCPJ (e simultaneamente membro do Secretariado da CCPJ) proposto a abertura imediata de um procedimento disciplinar contra mim, atendível o artigo 12º do referido diploma.

    Aliás, deveria tê-lo feito logo em Agosto de 2022, e não em Maio de 2023.

    Ademais, eu nem consideraria esse acto desapropriado, desde que houvesse o decoro de explorar as alternativas colocadas no nº 4 do artigo 12º do referido Estatuto Disciplinar dos Jornalistas, ou seja, em vez de o processo ser distribuído a um dos três elementos da Secção Disciplinar (Anabela Natário, Miguel Alexandre Ganhão ou Isabel Magalhães), “ser delegada em pessoa com habilitação idónea ao desempenho da função, preferencialmente jornalista com um mínimo de dez anos de exercício da profissão de jornalista ou licenciado em Direito, devidamente mandatado pela Comissão [CCPJ]”.

    Tudo seria mais adequado e justo para todas as partes – e teríamos evitado o lamentável espectáculo de um Conselho Deontológico que, interpretando e criando normas regulamentares ad hoc, nem sequer considerou a minha defesa. Convenhamos que a Dra. Licínia Girão gostaria de “vencer” uma queixa sem ser por falta de comparência do denunciado por imposição na “secretaria” por parte do “árbitro”, isto é, do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, entidade onde ela integra o Conselho Geral.

    Portanto, deduzo que teria sido melhor para a queixosa (Dra. Licínia Girão) ter optado por usar a CCPJ para a abertura de um procedimento disciplinar, porquanto, ao invés de ela conseguir apenas um “parecer” sem consequência formal, poderia ver ser-me aplicada uma das sanções disciplinares previstas no artigo 8º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas.

    E para mim também seria melhor, porquanto, além de assim evitar assistir ao triste espectáculo de um organismo que já integrei (Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas), através do parecer relativo à Queixa nº 16/Q/2023, teria os meus direitos efectivamente defendidos.

    Isto é, obrigatoria e escrupulosamente, num procedimento disciplinar ao abrigo do já referido Estatuto, serão seguidos os procedimentos legais, designadamente a fase de instrução, o eventual despacho de acusação, a notificação da acusação, o prazo para defesa, a apresentação da defesa, a indicação de testemunhas, o eventual pedido de realização de novas diligências, as alegações e mesmo o recurso ao Tribunal Administrativo de uma decisão desfavorável. Algo que esteve muito longe de suceder no decurso do “processo” absurdo instaurado pelo Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, que nos deve envergonhar a todos, porquanto nem sequer foram consideradas as minhas respostas escritas, mesmo após um parecer jurídico solicitado pelo próprio Conselho Deontológico ao gabinete jurídico do Sindicato dos Jornalistas.

    Em todo o caso, se alguma utilidade tem aquela peça, parida por quatro jornalistas conjunturalmente membros do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, é a de apontar, até pelas “certezas” que aparentemente dali derivam, que eu cometi um sem-número de infracções graves aos deveres mencionados no nº 2 do artigo 14º do Estatuto do Jornalista em relação às notícias que publiquei sobre a Dra. Licínia Girão e sobre a própria CCPJ.

    Obviamente, discordo dessa visão.

    Portanto, posto isto, considero que a CCPJ tem a obrigação, legal e moral, de me instaurar um procedimento disciplinar sobre estas matérias, sem o qual se poderá, legitimamente, interpretar que o recurso ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas por parte da Dra. Licínia Girão serviu apenas para obter uma “condenação” num determinado “ambiente amigo”, desconfiando que tal “condenação” dificilmente seria conseguida se, ao invés de se andar a “brincar aos pareceres” ao arrepio da Lei e da Ética – como se mostra evidente pela acção do Conselho Deontológico – se recorresse ao Estatuto Disciplinar dos Jornalistas.

    Nessa medida, serve esta Carta Aberta, para instar V. Exas. para que, considerando o previsto na alínea a) do n º 2 do artigo 12º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas, seja decidida a abertura de procedimento disciplinar contra mim relativamente às matérias sobre as quais a Dra. Licínia Girão se queixa.

    Isto, claro, se a Dra. Licínia Girão, como pessoa “devidamente identificada” e “directamente afectada pelo facto susceptível de consubstanciar uma infracção disciplinar” não se tenha já antecipado – ou, enfim, se venha, cronologicamente, a antecipar, com o devido carimbo comprovativo desse justo acto de antecipação –, pedindo a instauração deste procedimento disciplinar, de acordo com a alínea b) do artigo 12º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas.

    O efeito, em qualquer dos dois casos, resultará em colocar-me à mercê de um julgamento com Leis. Somente assim, como sói dizer-se, se fará Justiça. E somente assim poderá haver respeito pela classe dos Jornalistas, que devem constituir um bastião da Democracia, e não um grupo corporativista que a corrói.

    Cumprimentos.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

  • Brincar com o fogo: um texto que não envelheceu

    Brincar com o fogo: um texto que não envelheceu


    Este texto, com pequenos acertos de edição, como rescaldo do incêndio de Pedrógão Grande há seis anos, foi originalmente publicado na edição de 22 de Junho de 2017 da revista Visão. Convém recordar que, em Outubro daquele ano, uma nova vaga de incêndios causou mais 49 mortes. Oficialmente, foram declaradas 115 mortes pelos incêndios rurais em 2017, que destruíram 540.754 hectares.


    No passado sábado [17 de Junho de 2017], numa das suas já voluntariosas sessões de confortos e alentos, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, desferiu a derradeira machadada na credibilidade do Estado. Não falo da credibilidade do Governo, que é um fluxo. Falo sim do Estado, aqui visto como uma espécie de stock, de reserva de confiança dos cidadãos, uma espécie de Deus ex machina, ao qual nos dispomos em oferendas – vulgo impostos – e em submissão às suas/ nossas leis, em troca de protecção, de harmonia. Para enfim não andarmos homens feitos lobos em guerra contínua, evitando que, como lamentava Thomas Hobbes no século XVIII, a vida nos seja solitária, pobre, suja, brutal e curta.

    Note-se que a dita machadada do Presidente da República, embora possa ter sido involuntária, não tem nenhuma mácula. É inteiramente verdadeira. De facto, também eu acredito, e há já demasiado tempo, que “o que se fez, foi o máximo que se podia fazer”, que “não era possível fazer mais”, citando as suas palavras.

    bare trees on rocky hill under white sky during daytime

    De facto, o Estado – através dos sucessivos Governos, pois não lhes encontro diferenças substanciais em política florestal e de protecção civil – tem mostrado à saciedade por estes dias; mostrará ao longo deste Verão, como mostrou em anos anteriores, que se faz sempre o que se pode, o que é pouco e, muitas vezes, mal. E dando os resultados tristes, tenebrosos que a comunicação social agora expõe. Os presentes e os passados. E muitos esquece, porquanto somos lestos em acordar estremunhados e com vontade de mudar o mundo nos dias de tragédia, para em seguida serenarmos quase tudo no olvido até ser uma fugaz ocorrência histórica.

    A nossa memória é, de facto, curta. A minha ainda não é.

    Quem se recorda do incêndio da Madeira do ano passado [2016]? Um desastre ambiental e três mortes. Ou o de Arouca? 22 mil hectares destruídos. Acham pouco ou muito?

    Assim a frio, muitos nem sabem dizer. Direi que já nem está no top 10 dos mais destrutivos de sempre – o de Pedrogão Grande já o suplantou – mas se tivesse ocorrido nos anos 90 seria considerado catastrófico. De facto, quanto maiores são os dramas, mais depressa se esquecem os anteriores. Hoje, um Governo lança metaforicamente foguetes se não se ultrapassam os 100 mil hectares de área ardida num ano.

    full moon in the sky

    Há duas décadas, em Espanha – que tem um território cinco vezes maior – nuestros hermanos mudaram toda a estratégia de gestão florestal e montaram um combate assente no profissionalismo. Os efeitos positivos foram imediatos.

    Nós por cá damo-nos ao amadorismo, que é uma mistura de amor com laxismo. Tem efeitos catastróficos, porque em qualquer sistema profissional que premeia o mérito, seria difícil observar, sem melhor escrutínio, na cúpula de uma estrutura como a Liga dos Bombeiros Portugueses, alguém que, durante duas décadas, foi comandante da corporação de Vila Nova de Poiares – um município onde em, entre 1990 e 2005, foi consumida uma área acumulada de 113% (não é engano). Aqui, no combate aos fogos, é o contrário do futebol: ascendem aos lugares cimeiros os goleiros frangueiros.

    Não há milagres com o fogo. Embora tudo me pareça um déjà vu, os números recordam-me que estamos sempre a piorar, e quando um ano não é mau, o futuro cobrará com juros. Sempre. Nos anos 90 um fogo com mais de 5.000 hectares fazia manchetes, abria telejornais. O maior incêndio até ao final dessa década foi em Arganil, com 10.076 hectares. O último do top 10 foi em Arganil, em 1995, com cerca de 4.000 hectares. Isto é, cerca de 10% da área ardida do mais destrutivo incêndio em território português, o de Nisa de 2003, que dizimou 41 mil hectares, aproximadamente quatro vezes a cidade de Lisboa. É um valor inimaginável, mas poderá vir a ser ultrapassado pelo de Pedrógão, porque em Portugal, neste sector, até agora pode sempre ser-se pior.

    brown and black helicopter flying in the sky

    E enquanto tudo isto acontecia, fomos sendo embalados com promessas, novas promessas, mais promessas, mais legislação reinventando a roda – nem imaginam, por exemplo, as revisões de leis, desde o Estado Novo, que sucessivamente proíbem o uso de fogo em zonas florestais no Verão –, mais as ideias estapafúrdias, outras mais que ainda agravam o problema – conforme se verificou com uma recente abertura à eucaliptização –, etc., etc., etc..

    Nesta mescla de acontecimentos recentes, as fortuitas declarações da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, são chocantes. Pressenti um déjà vu, intolerável porque desta vez subimos um patamar tétrico: 64 mortes num sopro de chamas, algo que eu, que acompanho estas desgraças ano após ano, não imaginei sequer poder acontecer com esta dimensão. Apelou ela ser tempo para «a dor e o pesar». A avaliação ficava para mais tarde; e eu sei no que dão as avaliações. Dão em nada; dão em aumentos da dimensão das catástrofes, até que uma maior faça esquecer a anterior. E uma maior que 64 mortes é, para mim, uma morte. Uma só morte deve considerar-se, a partir de agora, intolerável.

    Na verdade, perante este cenário, perante o nosso histórico, acho que a hora é para revolta, para indignação, porque esta, como dizia Santo Agostinho, é uma das filhas da esperança, sendo irmã da coragem. A indignação hoje é a melhor forma de dignificar as vítimas mortais – se é que isso é possível; e se é, bem que prescindia do acto em troca do retorno daquelas vidas –; mais do que a solidariedade e a caridade.

    people walking near fire

    Não havendo jamais mortes úteis – cada morte é uma tragédia multiplicada –, aquilo que sucedeu em Pedrógão Grande tem de valer mais do que lamentos, mais do que os dois milhões de hectares ardidos em cerca de duas décadas (e que, aliás, ceifaram a vida de várias dezenas de pessoas). Têm de valer. Porque se 64 mortes não fizerem agora mudar a atitude de um Estado insuportavelmente incapaz na protecção civil e na gestão florestal, nada mais fará.

    E isso para mim é insuportável; deveria por todos ser considerado insuportável. Não apenas por aqueles que vivem em zonas rurais – que ficam agora a saber que estarão sujeitos a tragédias que os possam fazer figurar em dias de luto e cadeias de solidariedade –, mas mesmo para todos. Para os lisboetas, por exemplo, como eu, que têm agora a absoluta certeza que, havendo um terramoto, nada mais obterão, perante um inexistente sistema de protecção civil do Estado, do que palavras de comiseração e de luto.

    A actual ministra – que como assessora de António Costa, que ocupava essa pasta em 2005 – não é leiga nestas matérias. António Costa muito menos. Ambos apanharam em 2005 um dos mais violentos anos de fogos florestais (325 mil hectares dizimados). Esta será, para eles, a segunda oportunidade. A partir de agora só podem agir de forma diferente. Não podem optar, como sucedeu em 2006, por pacotes legislativos perfeitos na forma e ocos na aplicação. Aliás, um deles, assinado então por António Costa como titular da Administração Interna, determinando exactamente o encerramento de estradas em períodos críticos (vd. Decreto-lei 124/2006).

    burning building during night time

    Enfim, parafraseando Almada Negreiros, já existem todas as frases, todas as medidas essenciais para salvar a floresta, salvar vidas humanas deste flagelo dos incêndios; estão todas escritas e sabidas; só faltando executá-las. Mudando o status quo: apostando na prevenção e na gestão florestal economicamente sustentável; alterando o obsoleto modelo de combate assente num pseudo-voluntarismo, heróico mas ineficaz; reforçando um sistema de protecção civil pro-activo e preventivo; etc., etc., etc.. Sabe-se tudo.

    A ladainha é tão longa como a desgraça Só falta mesmo fazer. Tem de se fazer. Para não chegarem novas vítimas, novos lamentos, novas reportagens, novos artigos de opinião. Já cansa. Já tudo é demasiado trágico. Até a própria tragédia.

  • Duas canelas para três canídeos, ou a história da perseguição ao suposto pior jornalista português

    Duas canelas para três canídeos, ou a história da perseguição ao suposto pior jornalista português


    Se o Jornalismo português fosse Roma, estaria agora a arder por mor de uma cáfila de Neros. Cáfila no sentido de caravana de mercadores; não de camelos, embora haja muitos por aí, mas sobre os quais não convém os chamar pelos nomes que mereceriam, para evitar difamações, porque são gente que, embora sem escrúpulos comete as maiores manigâncias, se acomete em público dos maiores do pundonores.

    A Roma do Jornalismo arde pelas conivências políticas, pelos fretes empresarias, pelas relações promíscuas, por escribas de conteúdos comerciais vendendo artigos noticiosos, por consultores sem carteira a passarem-se por jornalistas, por entrevistas compradas (e as que não são, parecem, ou legitimamente ficam sob suspeita), por uma liberdade de imprensa cada vez mais ameaçada com as redes sociais a determinarem o que é lícito ou não escrever e ver.

    E, enquanto a Roma do Jornalismo arde, que fazem as três entidades com um teórico papel regulador e moralizadora? Assistem à fogueira, tocando harpa? Não: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ) jamais poderiam estar quietos enquanto a Roma do Jornalismo arde.

    choir in room with turned on lights

    Estas excelsas defensoras do rigor, isenção e independência da Imprensa estão muto activas.

    Mas elas não estás atrás de entrevistas pagas na rádio a ministros por ex-jornalistas que se assumem como jornalistas, apesar de deterem uma empresa de assessoria política. Ou também a presidentes de Câmara.

    Elas não estão a investigar os jornais que criam secções editoriais dedicadas ao Ambiente mas onde se pode comprar notícias como quem compra roupa num pronto-a-vestir.

    Elas não questionam empresas de comunicação social que vendem publicidade travestida de notícias.

    Elas não incomodam empresas de comunicação social que angariam parcerias a troco de dineiro para prémios mas onde se contratualiza com o “parceiro” a realização de entrevistas, feitas até pela directora da revista dessa empresa, e de artigos de opinião.

    Elas não chateiam jornalistas que se vendem no LinkedIn como relações públicas e consultores de marketing nem jornalistas-escribas-de-conteúdos que tanto escrevem notícias para jornais como peças de marketing para empresas privadas numa completa promiscuidade.

    two black and white dogs near link fence

    Elas não questiona, sequer jornalistas, sobretudo se forem simpáticos, por assinarem contratos com o Governo, mantendo à mesma a carteira profissional.

    Elas não vão saber dos compromissos assumidos por directores editoriais e jornalistas de cara laroca quando estes se pavoneiam em moderações e apresentação de eventos de cunho comercial, que servem ademais para criar lobby político e institucional.

    Eles não aceleram processos que ponham em causa a rentabilidade de empresas de comunicação social que vão acumulando contratos promíscuos às dezenas, uns atrás dos outros. E isto com entidades públicas, porque com empresas privadas não há rastro dos contratos.

    Não, eles estão agora preocupados, num projecto crucial, e por isso uniram esforços: identificaram e querem castigar o pior jornalista português.

    E quem ele será?

    Ora: EU.

    Assim mesmo. Porque só pode mesmo ser o pior jornalismo português aquele jornalista que consegue, em simultâneo, e de uma só assentada, apanhar com três processos, um por cada uma destas três entidades.

    Em minha defesa pública, em vez de zurzir, mais uma vez, nos métodos destas três entidades, através de um artigo de opinião munido da carteira profissional de jornalistas – porque, daqui a nada, até a opinião merece censura, e em vez de três, tenho seis processo –, opto então por vestir a pele de escritor, no pressuposto de não constar, ainda, que ande a Sociedade Portuguesa de Autores (da qual sou sócio) a inquirir estilos.

    Além disso, a um escritor – tal como a um morto, segundo Florbela Espanca – nada se recusa, podendo assim usufruir, aqui, de uma outra aura, de uma persona, mesmo se catalogada de doido, para desta sorte poder chamar os bois pelos nomes a quem me quer dar marradas.

    No caso, sói melhor dizer-se canídeos a quererem morder canelas.

    Contemos então assim a história da perseguição às minhas canelas por três esfaimados canídeos.

    black short coated dog in blue and brown wooden box

    Num dos cantos temos então o mastim da 24 de Julho, canídeo com nobres funções constitucionais de guardião da Liberdade de Imprensa, mas que, como é obediente e bom de ouvido (ouve bem as vozes do dono), incomoda quem incomoda os donos e compadres, e vai daí pode morder até quem não deve, e quando morde sabe esconder quem o manda morder. O mastim da 24 de Julho não protege a Imprensa; protege sim os denunciantes que se queixam de jornalistas incómodos. Não dá a cara nem nome ao denunciantes, podendo assim aqueles fazer denúncias caluniosas à vontade do freguês, mesmo se as notícias são rigorosas e indicam todos os passos para a obtenção da informação.

    Aliás, mesmo quando dão caras às denúncias, pouco importa: veja-se que já se viu uma certa entidade reguladora da comunicação social aprovar actos de censura a um jornalista, sob a forma de deliberações, por notícias que resultaram na abertura de processos pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Noutras notícias, o jornalismo de investigação ganha prémios; aqui censuras.

    Portanto, eis-nos agora num jogo de adivinhação, mas sem prémio final. Mesmo se, por desfastio, o mastim da 24 de Julho não queira, de quando em vez, morder mesmo a canela, e até arquive a queixa, ao esconder quem lhe dá ordens para morder canelas, está a convidá-lo ad nauseam a repetir queixas. E assim se bloqueia o trabalho jornalístico independente.

    Agora, falemos no mastim dos Restauradores, com cadeado em certo palácio com a nominata correspondente à parte mais extrema da nascente, diz-se a jusante, e que há muito afiam dentipontiagudos, como escreveria Joyce. Ali, amealham-se emolumentos por carteiras (que já são apenas cartões), mandam-se umas bocas e bitates sobre bons princípios deontológicos e independências (ou pendências sempre adiadas), mas na hora da verdade, quando surgem denúncias concretas sobre graúdos e compinchas, moita carrasco, ou, na melhor das hipótese, o rato caga uma caganita, e depois ainda se apressa a enterrá-la. Ali, está-se para servir o corporativismo, isto é, os compinchas, e portanto mate-se o mensageiro que ande a espalhar mensagens comprometedoras.

    Mas, ali, os mastins de mérito. Tão de mérito que se pode imaginar a fazerem alas, pela escadaria do palácio, de sorte a recepcionarem uma queixa das mãos de Sua Excelência o Chefe de Estado-Maior da Armada Almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, antigo Director de Faróis, alcandorado a herói por mor de anunciar que “vencemos o vírus” em Setembro de 2021 (apesar de todas as restrições só terem terminado em Abril de 2023).

    Mais uma vez, o mastim dos Restauradores quer “premiar” um jornalista com um processo disciplinar, uma repreensão escrita como estratégia para lhe retirar a carteira. Pouco importa se, na base da notícia, estão documentos administrativos que só foram disponibilizados pela Ordem dos Médicos após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Pouco se lhes importa se a notícia se baseia em despachos governamentais e normas sanitárias, acrescido de conhecimentos contabilísticos. Pouco importa se o putativo candidato a Belém, e o ai-Jesus de muita imprensa, meteu efectivamente a pata na poça. Há que abrir sim, um processo disciplinar a toda a força, e seguir a linha de actuação do mastim da 24 de Julho que há uns meses já fez um frete, para satisfazer uma denúncia, hélas, anónima, metendo-se até em interpretações contabilísticas absurdas. Nisto, vale tudo.

    Na raiva de se afiambrar à canela, o mastim dos Restauradores nem reparou, no meio da sua sapiência de mérito que abriu processo disciplinar por via do porta-voz da Armada, mesmo sem procuração nem mandato de Sua Excelência o Almirante (que incutiu tanto pavor a pais, que correram para vacinar os filhos saudáveis que, a bem dizer, para a doença em causa, tinham um risco de morte menor do que o da picada de um mosquito).

    Ah, essas formalidades!, para que servem elas para o mastim dos Restauradores, todos “de mérito”. Se Sua Excelência o Chefe de Estado-Maior da Armada pode usar recursos técnicos e humanos da Armada para tratar de assuntos de casa, também o mastim dos Restauradores pode bem borrifar-se para detalhes legais. Preciso mesmo é repreender publicamente o pior jornalista de Portugal, manchar-lhe a credibilidade, para assim se escafederem as denúncias que ousa fazer.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Aliás, neste momento, o mastim dos Restauradores até capaz, sagaz, seria de aceitar abrir um processo contra um jornalista se Sua Excelência o Almirante apanhasse um resfriado.

    E, por fim, temos no terceiro extremo deste triângulo os mastins dos Duques de Bragança, da rua, não de D. Duarte Nuno, que também quiseram participar da festa, recebendo de braços abertos uma queixa para censurar o pior jornalista português.

    Já é a segunda vez. A primeira foi feita com tamanha desavergonha, em Janeiro do ano passado, por um editor da CNN Portugal de membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Na altura, o mastim dos Duques de Bragança, meteu o rabinho entre as pernas, e o senhor Caetano deverá já estar a tratar da sua vidinha noutra perrera.

    Agora, regressaram ao ataque. Por queixa de quem?

    Ora… do mastim-mor dos Restauradores. Parece mentira, mas não é.

    Aliás, se formos a ver, os três mastins articulam-se muito bem. Por exemplo, os mastins da 24 de Julho e dos Restauradores já me quiseram morder as canelas por duas vezes com estratégia similar. O denunciante vai primeiro bater à porta da 24 de Julho, fazem-lhe o frete, e depois corre a seguir para a porta dos Restauradores para nova censura. Nas duas, as notícias resultaram em investigação pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Em ambas, a censura dos mastins veio sem se preocuparem em saber o resultado dessas investigações.

    Desta vez, o mastim-mor dos Restauradores ficou chateado por lhe porem em causa o mérito, que objectivamente não tem, e vai daí acha que dizerem e provarem que não o tem é um crime de lesa-majestade. O mastim-mor dos Restauradores até poderia abrir um processo disciplinar para morder mesmo as canelas do malvado jornalista, mas, chatice, teria de lhe abrir um processo segundo mandam as regras do Código do Procedimento Administrativo, e o jornalista podia defender-se arrolar testemunhas, solicitar audiência prévia e recorrer ao tribunal.

    Nanja. Isso dava muito trabalho e o desfecho poderia ser desfavorável.

    Daí preferiu o mastim-mor dos Restauradores preferiu passar a tarefa aos colegas mastins dos Duques de Bragança, porque ali a única regra é o livre arbítrio, e o juiz é o acusador, que é o receptor da queixa. Assim sendo, os mastins dos Duques de Bragança abrem processos por e-mail, sem se identificarem nem identificar o relator, limitam os meios de defesa e impõem resposta a quesitos feitos ao melhor estilo de um Torquemada, onde cada pergunta contém a acusação e a sentença. É um jogo viciado; uma perda de tempo por evidente mancomunação dos dois mastins, do queixoso e do inquiridor.

    Tudo isto se tem vindo a passar nas últimas semanas enquanto o PÁGINA UM, além de denunciar as promiscuidades de jornalistas e imprensa, mostra ser o único órgão de comunicação social com uma estratégia consistente de luta em prol da transparência e contra o obscurantismo da Administração Pública, buscando documentos escondidos.

    O PÁGINA UM tem, se a memória não me atraiçoa, 18 processos de intimação para a obtenção de documentos administrativos nos tribunais. Tivemos a coragem de contrariar os caprichos do Conselho Superior da Magistratura, do Infarmed, do Ministério da Saúde, da Ordem dos Médicos, da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, do Instituto Superior Técnico, da própria Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Parque Escolar e do próprio Governo.

    Ainda há dias o PÁGINA UM teve uma vitória histórica retumbante, conseguindo, depois de uma sentença e um acórdão já favoráveis, que o Supremo Tribunal lhe concedesse o direito de acesso à mais importante base de dados que permitirá uma verdadeira avaliação independente ao desempenho dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde e aos indicadores de saúde da população portuguesa. Nem uma linha a imprensa dita mainstream dedicou ao assunto, continuando a preferir veicular a narrativa do Governo de que não há informação.

    Fizemos tudo isso – as intimações nos tribunais administrativos – não por desejo de conflito, mas porque nos últimos anos, enquanto nos aproximamos do meio centenário do 25 de Abril, verificámos que o obscurantismo, a manipulação e a mentira grassavam e desgraçavam a nossa democracia. E era confrangedor assistir à passividade da imprensa, da velha imprensa.

    Passividade, não – conivência. Nos últimos anos, passámos a ter uma imprensa acrítica, seguidista de narrativas, que nada questionou, e que, pelo contrário, rapidamente estende a mão ao Estado e às empresas, vendendo-se, enquanto perdiam alegremente a qualidade e a independência, os únicos atributos legítimos, os únicos activos legítimos, a serem vendidos… aos leitores.

    Mas que interessa isso, não é? Para os mastins é, sim, fundamental morder as canelas de quem lhes coloca um peso nas consciências. E mostra-se mais fácil e cómodo eleger quem os denuncia como o pior crápula do jornalismo português.

    Será que pensam mesmo que, descredibilizando-me, os seus deméritos se tornam virtudes?

    Enfim, há algo de irónico nestes processos.  Enquanto o PÁGINA UM, um projecto jornalístico independente e disruptivo que deveria ser acarinhado entre os pares (estou à espera do convite da organização do 5º Congresso dos Jornalista para falar sobre os 18 processos de intimação nos tribunais para acesso a documentos administrativos, por exemplo), se destaca, com os parcos meios que possui, na luta contra o obscurantismo do Estado, revelando escândalos e questionando as relações perigosas entre poder e imprensa, temos as instituições responsáveis pela regulação e ética no jornalismo a morder-lhes as canelas desde o nascimento.

    Em vez de investigar a fundo as denúncias apresentadas por mim, preferem direccionar os seus esforços para me silenciar por mensageiro incómodo, colocando a minha cabeça a prémio.

    Desde que li o Elogio da Loucura, escrito por Erasmo de Roterdão em 1509, fixei esta passagem: “Procede imprudentemente aquele que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes, que esquece aquela lei dos banquetes: ‘Bebe ou retira-te’; enfim, que quer que a farsa não seja farsa. Pelo contrário, serás verdadeiramente prudente, vendo que és mortal, não querendo saber mais do que os outros, convivendo ou errando de boa vontade com a universidade dos homens. Dirão que isto é tolice. Não o nego, mas concordai que é essa a maneira de agir na farsa da vida.”

    Bem sei que os mastins da 24 de Julho, dos Restauradores e dos Duques de Bragança seguem a lei do banquete, mas eu recuso-me a agir segundo eles nesta farsa da vida.

    clear wine glasses on table

    Entretanto, contando a história de três canídeos que se esforçam por morder-me as duas canelas, peço a opinião ao ChatGPT. Juro que me respondeu, em bom português do Brasil: “É quase como se estivéssemos presenciando um espetáculo de circo, onde os canídeos saltitam ao redor do jornalista, mordiscando suas canelas, enquanto o público assiste perplexo a essa encenação bizarra. Mas vamos ser honestos, essa não é uma comédia divertida; é uma triste realidade que expõe a fragilidade da liberdade de imprensa em nosso país.”

    E depois, pergunto-lhe se acha o uso das metáforas das canelas e dos canídeos demasiado agressivo. Responde-me: “Em um país onde jornalistas são perseguidos por órgãos reguladores, a liberdade de imprensa está ameaçada. Com ironia e sátira, expomos as contradições e absurdos desse cenário. É hora de defendermos a liberdade de expressão e a verdadeira função do jornalismo: informar, questionar e desafiar o poder. Afinal, só temos duas canelas para enfrentar três canídeos famintos”.

    Afinal, começo a gostar mesmo muito do ChatGPT. E cada vez menos deste país.

  • Somos racistas quando queremos parecer não-racistas

    Somos racistas quando queremos parecer não-racistas


    Em Portugal, a cor da pele – ou a raça ou etnia, termos que, em si mesmo, devem ser usados sempre com a máxima prudência, porque o wokismo está ao virar da esquina para tachar epítetos – é considerada um dado nominativo e, por esse motivo, quase nunca é recolhido para efeitos de estudos sociológicos, económicos, sociais ou sanitários.

    Ora, mas como grande parte de toda a informação relevante para a elaboração de diagnósticos e de avaliação de políticas económicas, sociais e de saúde pública somente fazem sentido se a componente étnica e racial constituir uma variável com informação fiável, ficamos sempre às cegas.

    selective focus photography of woman and boy

    Por exemplo, não conseguimos em Portugal comparar, com uma base minimamente rigorosa, qual o rendimento médio da população negra em comparação com a população de origem caucasiana; não conseguimos comparar o grau de qualificação da população de etnia cigana; e não conseguimos sequer saber qual a esperança média de vida e o impacte de determinadas doenças – por exemplo, a letalidade da covid-19, hélas – nas diferentes etnias que vivem no nosso país.

    Não se sabe porque, ai Jesus!, seria uma promoção do racismo recolher essa informação sensível. E assim protegida a intimidade dos negros, assim ignoramos as carências da população negra. Assim protegida a intimidade da população cigana, assim a ignoramos e a estigmatizamos, com mitos e preconceitos.

    O racismo é, na verdade, o reflexo da ignorância, de um medo tantas vezes infundado ao desconhecido. O racismo alimenta-se do desconhecimento, da congeminação de preconceitos, da alimentação de estigmas, de mitos, do boato.

    woman dancing on seashore

    Esta reflexão sobre a forma como em Portugal se colocam sempre mil obstáculos em incluir a variável étnica em estudos – e de isso ser, para mim, um acto de perpetuação do racismo e da discriminação –, surge a propósito de dados divulgados na sexta-feira passada no The New York Times sobre o impacte da pandemia – covid-19 e outras doenças – naquele Estado norte-americano.

    Ora, como se sabe, o sistema de saúde norte-americano não é universal, estando muito dependente do tipo de seguro individual e, obviamente, dos rendimentos. E existem enormes diferenças em função das etnias, que não está associada a questões genéticas.

    No Estado de Nova Iorque, mesmo antes da pandemia, a esperança média de vida da população negra não chegava sequer aos 79 anos, sendo três anos inferior à da população branca e hispânica.

    people walking on street during daytime

    Em 2020, com o impacte da covid-19 e de toda a desestabilização dos serviços de saúde nos Estados Unidos, sendo certo que a queda da esperança média de vida foi substancial e generalizada em todas as etnias – muito pela elevada mortalidade na população idosa –, a população negra e hispânica foram as mais afectadas comparando com a (mais rica) população branca.

    Enquanto a “perda” no primeiro ano na população hispânica – que pela alimentação mais saudável era até superior à população branca em 2019 – e na população negra foi de seis anos (passando de cerca de 83 anos para 77,3; e de um pouco menos de 79 para 73 anos –, a “queda” na população branca foi de três anos, passando para 80,1 anos.

    Evolução da esperança média de vida no Estado de Nova Iorque. Fonte: NYT

    Este indicador demonstra não apenas um impacte das políticas económicas, sociais e de saúde antes como durante a pandemia, mostrando que o impacte das doenças não atinge todos por igual.

    E em Portugal, o que sucedeu?

    Não se sabe, porque não se pode saber. Saber seria ser-se racista.

    Mas conhecerem-se esses dados permitiria que os políticos não tivessem a desculpa da ignorância para não actuarem, para não corrigirem essas desigualdades absurdas. E não corrigirem as desigualdades, supostamente evidentes mas não quantificáveis, logo não “avaliáveis” (em termos de diagnóstico e de avaliação de medidas), isso sim, é que é um acto de perpétuo racismo.

    woman wearing leotard sketch

    Por isso, quando se defende em Portugal que a recolha de dados étnicos se mostrará sempre uma atitude intolerável, discriminatória e mesmo racista, eu acho exactamente o contrário: racismo é a manutenção desta ignorância sobre dados fundamentais para se definirem políticas sociais que combatam as desigualdades, a discriminação e o “negócio da lamúria”.

    Para deixar de se ser racista, convém conhecermos como vive cada uma das nossas etnias. Somente assim se eliminam os preconceitos e se ganha empatia e se promove a equidade, e por fim a igualdade de oportunidades.

  • Salvar o coiro do almirante Gouveia e Melo: eis a nova atribuição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social… e vale tudo!

    Salvar o coiro do almirante Gouveia e Melo: eis a nova atribuição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social… e vale tudo!


    Sem necessidade de qualquer alteração legislativa por iniciativa da Assembleia da República ou do Governo, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tem agora uma nova atribuição: salvar o coiro do (vice-)almirante Gouveia e Melo, antigo coordenador da task force da vacinação contra a covid alcandorado “herói nacional”, actual Chefe do Estado-Maior da Armada e putativo candidato a Presidente da República.

    Todas as outras atribuições legais da ERC – entre as quais a de assegurar o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa; a de zelar pela independência das entidades que prosseguem actividades de comunicação social perante os poderes político e económico; e a de garantir a efectiva expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial de cada órgão de comunicação social – ficam secundarizadas perante esta nova atribuição quando se “belisca” o senhor almirante.

    Sede da ERC

    Ou então talvez esteja a ser injusto. Na verdade, se calhar, a ERC só serve para fazer fretes e atacar o jornalismo independente.

    Enfim, certo é que a ERC foi extraordinariamente diligente em “despachar” uma deliberação – a segunda – contra o PÁGINA UM por mor de investigações jornalísticas na área da Saúde. No primeiro caso, como se sabe, abordou a investigação em redor da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, que foi “censurada”, apesar de se ter revelado que tudo o que escrevemos era factual e verdadeiro, tanto assim que o presidente desta associação foi multado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e “enxotado” pelo Infarmed como consultor.

    E agora temos o caso Gouveia e Melo – onde a ERC quis meter o bedelho –, que no início de 2021 andou com o ex-bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, a mercadejar vacinas covid-19, para serem administradas em médicos do sector privado (que não estavam em contacto com doentes) a troco de cerca de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, de sorte a se ultrapassar a norma da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que estabelecia as prioridades de vacinação. Gouveia e Melo não tinha, como líder da task force, competências para autorizar excepções à norma nem negociar coisa nenhuma. Curiosamente, também aqui, a ERC crítica o rigor do PÁGINA UM enquanto decorrem diligências da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Esta pressa da ERC em julgar o trabalho do PÁGINA UM pareceria amor se fosse para dizer bem… Como é para dizer mal…

    Já agora, sobre o caso da vacinação dos médicos não-prioritarios, e para compor o ramalhete, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas veio da conta conjunta de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins (actual presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte) e Eurico Castro Alves (actual presidente da secção do Norte da Ordem dos Médicos), que eram os gestores ad hoc (em nome individual) do fundo Todos por Quem Cuida, cujas verbas totais (cerca de 1,4 milhões de euros) vieram quase na sua totalidade das farmacêuticas.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS

    Porém, em vez de a factura do Hospital das Forças Armadas ter sido passado em nome da campanha Todos por Quem Cuida, acabou por ser emitida em nome da Ordem dos Médicos – ou seja, uma factura falsa, porque não houve fluxo financeiro entre a Ordem dos Médicos e o Hospital das Forças Armadas. Depois, ainda tivemos quatro farmacêuticas a receber facturas, também falsas, para justificar donativos nunca efectivamente recebidos pela Ordem dos Médicos – e, já agora, sem declaração no Portal da Transparência do Infarmed – de quatro farmacêuticas (Ipsen Portugal, Bial, Laboratório Atral e Gilead, onde então trabalhava Ana Paula Martins). Também mais uma vez não houve fluxo financeiro associado – das farmacêuticas para a Ordem dos Médicos –, pelo que existem aqui mais quatro facturas falsas.

    Na verdade, os únicos fluxos financeiros que existiram foram entre as farmacêuticas e a conta da campanha Todos por Quem Cuida (gerida a título pessoal por Guimarães, Martins e Alves) e depois entre a conta da campanha Todos por Quem Cuida e o Hospital das Forças Armadas. Em suma, onde houve fluxos financeiros não houve facturas; onde houve facturas não houve fluxos financeiros que as justificassem.

    Mas, perante tudo isto – e ademais, profusamente documentado e explicado no artigo de investigação jornalística do PÁGINA UM, e após o acesso aos documentos ter sido possível somente depois de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, que faz a ERC com uma queixa de um “anónimo de rabo de fora”?

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães, ex-bastonários das Ordens dos Farmacêuticos e dos Médicos, geriram, em parceria com o actual presidente da secção do Norte da Ordem dos Médicos, um fundo de 1,4 milhões de euros, quase todo proveniente de farmacêuticas, com diversas ilegalidades e promiscuidades à mistura.

    Trata a ERC de abrir um processo que questiona o rigor informativo do PÁGINA UM (sem explicitar em concreto onde existiam as falhas) e acelera uma “deliberação” em tempo recorde (há processos que demoram no regulador mais de dois anos; este, contra o PÁGINA UM, demorou pouco mais de um mês).

    O almirante agradece. O ex-bastonário, idem. E as farmacêuticas, idem. E todos os outros envolvidos numa gigantesca falcatrua com 1,4 milhões de euros travestida de acções de beneficiência, idem.

    E não esqueçamos também que a ERC perdeu em primeira instância uma intimação do Tribunal Administrativo de Lisboa interposta pelo PÁGINA UM sobre transparência dos media. E não esqueçamos que a ERC está a adiar desde já há quase um ano uma solicitação do PÁGINA UM sobre estranhos contratos comerciais entre grupos de media e diversas empresas e entidades públicas. E que a ERC andou a ameaçar o PÁGINA UM quase de actos de vandalismo, até que pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos a acalmasse e fizesse cumprir os normativos legais…

    Mas passemos à frente os oito pontos da deliberação em causa em defesa de Gouveia e Melo (e contra o PÁGINA UM) – que ocupam as duas últimas páginas das 20 que foram paridas e divulgadas no seu site, sem sequer terem sido enviadas previamente ao PÁGINA UM nem ter sido concedida qualquer audiência prévia de interessados (isso é só para a “imprensa amiga”).

    Segunda página da Norma 002/2021, de 31 de Janeiro de 2021, onde se definem os grupos prioritários. Documentos confirmam que Gouveia e Melo desrespeitou a norma e negociou a vacinação de médicos não-prioritários, que só deveriam ser vacinados na Fase 2 e 3 em função das comorbilidades e idade.

    E analisemos sim alguns aspectos  da deliberação, para saber, enfim, do rigor de análise dos membros do Conselho Regulador da ERC – e também do seu departamento de análise de media liderado por Tânia de Morais Soares, até porque foram feita profusas considerações sobre aspectos operacionais e contabilísticos em redor do tema abordado pelo PÁGINA UM.

    E nem precisam de ser todos; basta alguns para não se ser demasiado exaustivos.

    Peguemos então num aspecto essencial: a ERC tem a lata de omitir na sua deliberação – e em particular quando genérica e hipocritamente elogia o jornalismo de investigação – que o trabalho do PÁGINA UM decorreu num cenário de obscurantismo.

    Os documentos a que o PÁGINA UM teve acesso vieram apenas após uma sentença em Tribunal Administrativo contra a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, uma vez que o bastonário da Ordem dos Médicos recusou até cumprir dois pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    A ERC, na sua deliberação, farta-se de fazer referências àquilo que era do “conhecimento público” – e aquilo que a investigação do PÁGINA UM revelou vai muito além do conhecimento público. Que os médicos em causa foram vacinados, era do conhecimento público, e aí não havia novidade. Mas não era sobre isso que versava o trabalho de investigação do PÁGINA UM. A ERC confundiu, e quer confundir-nos, que conhecimento público – e suposta transparência – não significa que um acto seja legal. Se eu anunciar aos sete ventos que vou “fugir ao fisco”, esta minha postura de transparência, do conhecimento público, não altera a ilegalidade do meu acto se alguém o investigar.

    Em suma, uma coisa é saber-se que houve médicos vacinados por influência da Ordem dos Médicos; outra bem diferente é questionar a legalidade do processo. Infelizmente, durante a pandemia fecharam-se os olhos a muitos atropelos legais e éticos sob a justificação que era para o “nosso bem”.

    Na procura de encontrar supostas falhas de rigor, a ERC chega mesmo a acusar o PÁGINA UM de omitir partes da “história”, que na verdade, estão escaparrapachadas no artigo, incluindo referências, com ligação, para notícias da época dos factos.

    Na sua fúria persecutória, a ERC até chega a acusar o PÁGINA UM de omitir uma entrevista do bastonário da Ordem ao Diário de Notícias que garantiria a lisura do processo. E até cita, extensamente, essa entrevista de Miguel Guimarães ao Diário de Notícias: “O último momento que considera marcante destes seis anos tem a ver com o facto de ter sido a Ordem a assumir o processo de vacinação de todos os médicos que não estavam integrados no SNS, porque os do serviço público foram os primeiros a serem vacinados, eram profissionais de risco, mas “os outros estavam a ser esquecidos e a Ordem fez uma coisa que vai ficar para a história: planeou e organizou o processo de vacinação a nível nacional de todos os médicos que estavam a ficar para trás. Obviamente, que tudo foi autorizado pela Task Force, liderada pelo vice-almirante Gouveia e Melo, que nos deu vacinas, que nos ajudou a criar quatro centros de vacinação, três em unidades militares e um no hospital do Algarve, para vacinarmos sete mil médicos no país. Foi um processo em que tínhamos também todos os holofotes virados para nós, mas que correu bem e nos trouxe grande satisfação“.

    ERC acusa o PÁGINA UM de omitir informação de conhecimento público, citando longamente uma entrevista de Miguel Guimarães ao Diário de Notícias que… foi publicada um mês e meio depois do artigo do PÁGINA UM.

    Aliás, esta é a mais patética e asquerosa lavagem de imagem – patrocinada pela ERC – que se pode conceber, por uma simples razão: o artigo do PÁGINA UM que denuncia a ilegalidade dos procedimentos foi publicado em 15 de Dezembro de 2022, enquanto a entrevista de Miguel Guimarães foi concedida ao Diário de Notícias em 30 de Janeiro de 2023. Na verdade, estas afirmações até justificam uma parte das denúncias do PÁGINA UM: o líder da task force “autorizou” quando não tinha competências para tal, e se “autorizou” foi porque ultrapassou o que estava na norma da DGS.

    Mas gargalhemos: então não é que a notícia do PÁGINA UM omitiu, segundo a ERC, uma entrevista de Miguel Guimarães que apenas viria a ser dada um mês e meio depois? Lamentável, não é? Que falta de rigor! Inadmissível! O PÁGINA UM vai pedir uma bola de cristal à ERC para evitar mais omissões deste quilate.

    Mas vamos ser claros.

    O caso denunciado pelo PÁGINA UM baseia-se em factos e documentos: houve pessoas vacinadas por indicação da Ordem dos Médicos, em conluio com Gouveia e Melo, que não constavam na lista de prioridades no contexto da norma da DGS em vigor. A norma não foi mudada; foi sim combinado por duas pessoas (Miguel Guimarães e Gouveia e Melo), a troco de dinheiro para o Hospital das Forças Armadas, um desvio de vacinas (então destinadas a grupos de risco, sobretudo idosos) para um grupo específico de pessoas escolhidas não em função da sua actividade profissional (em contacto com doentes) mas sim por estarem inscritas numa associação profissional (Ordem dos Médicos). Miguel Guimarães e o então vice-almirante Gouveia e Melo não cumpriram a norma da DGS – basta saber ler para confirmar isso –, e sabiam disso.

    Se eles achavam errada a norma deveriam influenciar a sua alteração pela DGS ou pelo Governo. E não mancomunarem-se, envolvendo pagamento de serviços ao Hospital das Forças Armadas. E note-se que Gouveia e Melo nunca deteve poderes legais para uma autorização daquela natureza – podia achar que tinha, mas não tinha por força do Despacho 11737/2020 de criação da task force –, pelo que extravasou as suas competências.

    Mais evidente não pode ser.

    Aliás, por 11 vezes – repita-se: 11 vezes – a ERC acusa, na sua deliberação, o PÁGINA UM de lançar “suspeições” sobre este expediente entre Miguel Guimarães e Gouveia e Melo!

    Quais suspeições?! São evidências, caramba: a norma era clara; não foi alterada por quem de direito (DGS); e houve uma combinação para excepções à margem da tutela da task force. Tudo está explicado, com documentos, com a ligação à norma da DGS em vigor e com a ligação ao Despacho 11737/2020 de criação da task force. E ainda dizem que são “suspeições”? Eu chamo-lhe factos e evidências.

    Mas a ERC ainda foi mais longe no labéu, e meteu-se a defender a operação contabilística dos procedimentos de vacinação entre os envolvidos, não percebendo – ou não querendo perceber – que em causa está a existência de quatro “entidades”: farmacêuticas (que concederam os donativos), os gestores da campanha Todos por Quem Cuida (que receberam os donativos e pagaram ao Hospital das Forças Armadas), o Hospital das Forças Armadas (que prestou um serviço) e a Ordem dos Médicos (que apenas coordenou a vacinação).

    Numa situação normal (e legal), tudo seria simples, com dois fluxos financeiros e correspondentes documentos associados, com os seguintes passos: as farmacêuticas concediam o donativo aos gestores da campanha Todos por Quem Cuida (primeiro fluxo financeiro) contra entrega da correspondente emissão de factura (necessária para justificar a saída de dinheiro), e em consequência os gestores da campanha pagavam o serviço de vacinação ao Hospital das Forças Armadas (segundo fluxo financeiro) contra entrega de factura de prestação de serviços.

    Factura para pagamento da vacinação de médicos não-prioritários. Apesar do pagamento ter sido feito por uma compra titulada por três pessoas, a factura foi emitida para a Ordem dos Médicos, que por sua vez emitiu quatro facturas falsas para justificar donativos que, na verdade, nunca recebeu.

    Certinho e limpinho, certo?

    Mas o que é que aconteceu?

    Mantiveram-se os dois fluxos financeiros e dois documentos que os justificaram, mas não de forma correcta, por não coincidirem entre entidades.

    Na verdade, aquilo que se fez foi o seguinte:

    1. As farmacêuticas deram um donativo aos gestores da campanha Todos por Quem Cuida – que, aliás, a título individual se furtaram a pagar imposto de selo de 10% para os donativos superiores a 500 euros (e a campanha recebeu 1,4 milhões de euros), não havendo também registo no Portal da Transparência do Infarmed, portanto, só aqui são duas ilegalidades –, mas sem emissão de qualquer factura, pelo que não foi por aqui, como devia ser, que as farmacêuticas justificaram a saída de dinheiro.
    2. A campanha Todos por Quem Cuida pagou a vacinação dos médicos não-prioritários ao Hospital das Forças Armadas (não sendo este pagamento do conhecimento público antes da notícia do PÁGINA UM), mas este fluxo financeiro não teve a correspondente emissão de factura em nome dos gestores da dita campanha.
    3. Em alternativa à legalidade, o Hospital das Forças Armadas teve sim indicações para emitir a factura em nome de uma entidade que, efectivamente, não lhe tinha pagado nada: a Ordem dos Médicos.
    4. Por fim, a Ordem dos Médicos passou (largos meses depois) quatro facturas a quatro farmacêuticas, como se estas tivessem transferido para si alguma verba. Falso, porque os donativos tinham sido enviados para a conta bancária que tinha Miguel Guimarães como principal titular (e que não entrava na contabilidade da Ordem dos Médicos).
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    No meio disto, a ERC põe-se a especular sobre possíveis causas ou hipotéticos documentos perdidos ou serviços distintos – enfim, uma embrulhada –, esquecendo vários detalhes fundamentais. Primeiro, o PÁGINA UM, para a preparação deste artigo, baseou-se em TODA a documentação operacional e contabilística que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos foram obrigadas a disponibilizar pelo Tribunal Administrativo de Lisboa. Assume-se assim que não existem documentos perdidos, até porque nos três dias de análise, e posteriormente, se pediram todos os esclarecimentos (e muitos foram transmitidos pelos técnicos que acompanharam atentamente todas as horas de consulta). Segundo, a análise contabilística foi feita por um jornalista com licenciaturas em Economia e Gestão, e que, em duas das visitas à Ordem dos Médicos, foi ainda coadjuvado por uma outra pessoa com formação académica e elevados conhecimentos de Gestão e de Contabilidade.

    Sejamos claros: do ponto de vista contabilístico, há cinco facturas falsas. Cinco! Há a factura emitida pelo Hospital das Forças Armadas à Ordem dos Médicos, porque não foi esta entidade que lhe pagou nem existe referência de que houvera um terceiro a proceder ao pagamento (alternative payer). E há quatro facturas emitidas pela Ordem dos Médicos a quatro farmacêuticas, com datas “fictícias” (algumas sem correspondência com os fluxos de caixa do período), para justificar donativos que, na verdade, nunca entraram nos cofres da Ordem dos Médicos, uma vez que as saídas de dinheiro (donativos) dessas farmacêuticas se destinaram à conta de Miguel Guimarães (e companhia), integrando indiscriminadamente o “bolo” de cerca de 1,4 milhões de euros da campanha Todos por Quem Cuida. A Ordem dos Médicos emitiu assim quatro facturas falsas para aquelas farmacêuticas como podia ter passado a outras quaisquer.

    Portanto, temos cinco facturas falsas, e a ERC ainda acha que está tudo bem, e o trabalho de PÁGINA UM todo mau?

    O pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi feito por uma conta que geria a campanha, mas que não pertencia nem à Ordem dos Médicos nem à Ordem dos Farmacêuticos, e portanto sob contabilidade paralela e ilegal. Os titulares das contas (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) nunca cumpriram as exigências fiscais nem de transparência, e nunca emitiram qualquer factura de recepção dos donativos, promovendo uma “corrente de facturas falsas”.

    Há dinheiros a circular entre farmacêuticas e médicos sem sequer serem registados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Há fuga aos impostos cometidos pelos gestores da campanha Todos por Quem Cuida, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Há normas não cumpridas e acordos ad hoc para contornar prioridades na vacinação (com desvio de vacinas destinadas a grupos mais vulneráveis), por actos de Gouveia e Melo, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Enfim, toda a análise feita pela ERC – numa tentativa de denegrir o trabalho do PÁGINA UM e salvar a face das duas Ordens, dos gestores da campanha Tudo por Quem Cuida e de Gouveia e Melo – é ridícula e absurda. Mas muito, muito grave.

    E a argumentação técnica chega a ser risível. Atente-se, por exemplo, ao ponto 78 da deliberação da ERC: “Por outro lado, todas as faturas em questão se encontram descritas como ‘donativo sem contrapartida’, o que é inconsistente com o argumento do Página Um de se tratar de despesas para efeito fiscal.”

    Sonora gargalhada! Ó senhores da ERC: qualquer factura, incluindo as de donativos, tem sempre um efeito fiscal associado, no pressuposto que justificam gastos e/ou servem para se assumirem despesas, sem as quais estaremos, em última análise, perante saídas de dinheiro indocumentadas, que se assim for também terão consequências fiscais. E isto independentemente de existirem benefícios fiscais em donativos a determinadas entidades – que, aliás, também se verificou na gestão da campanha Todos por Quem Cuida, através da emissão de largas centenas de outras facturas falsas, como o PÁGINA UM denunciou num outro artigo.

    Os pontos seguintes da deliberação da ERC, abordando outras questões contabilísticas e fiscais, para acusarem o PÁGINA UM de “especulações abusivas, sem a devida e necessária sustentação factual nos documentos apresentados”, deveriam merecer, como reacção da minha parte, chamar azémolas a esta gente.

    Mas como no ano passado eu já acusara os membros do Conselho Regulador da ERC de analisarem processos “por um prisma tão redutor, tipo antolhos de equídeos” – e levei um processo-crime por isso, entretanto abandonado, não sei ainda se por terem acabado por concordar comigo – não me apetece ser repetitivo. Ou redundante.


    Nota final: Não é função de um jornal fazer denúncias directas para o Ministério Público investigar eventuais crimes em redor das suas notícias, embora em muitos casos se espere que haja iniciativa própria da Justiça quando tal se justifica. Mas, neste caso em concreto – e face a esta vergonhosa deliberação da ERC –, o PÁGINA UM, em prol da defesa do rigor do seu trabalho, vai comunicar ao Ministério Público as notícias que produziu em Dezembro passado sobre estas matérias, e manifestar a disponibilizade para facultar cópia de diversos documentos operacionais e contabilísticos extraídos da consulta aos dossiers da campanha Todos por Quem Cuida. Em todo o caso, os originais estarão na Ordem dos Médicos, para consulta ou buscas da PJ. E às tantas estará lá também uma auditoria que, durante o processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, as duas Ordens juravam estar em conclusão…

  • Instituto Superior Técnico: Atenção!, acho que tens aí um covil de burlões da Ciência…

    Instituto Superior Técnico: Atenção!, acho que tens aí um covil de burlões da Ciência…


    Esqueçam a pandemia. Centrem-se nas revelações que ontem aqui apresentámos. Isto tem já apenas a ver com Ciência. Com prática científica. Com ética. Pelo menos, a pandemia per si deixou de ser a questão central da luta do PÁGINA UM sobre um infame relatório do Instituto Superior Técnico (IST) de finais de Julho do ano passado que atribuiu, quantificando, mortes directas às festas populares e festivais musicais no mês anterior.

    Foi por ser tão evidente o desfasamento entre aquilo que os investigadores do IST tinham concluído e os dados reais da incidência e da mortalidade que me levaram a solicitar o relatório daquela instituição universitária – que hoje sabemos ser o Relatório Rápido nº 52 –, bem como a metodologia e os dados numéricos usados, tanto para esse relatório como para todos os anteriores, desde Julho de 2021.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. A ignorância com honra é preferível à inteligência sem ética.

    Num cenário habitual em meio científico – onde os investigadores têm confiança absoluta no rigor e boa-fé do seu trabalho –, haveria completa abertura para se disponibilizarem relatórios, metodologias e dados numéricos. Para ser possível a um terceiro replicar os resultados. Isto não é desconfiança; pelo contrário: é confiança. Isto é a base da Ciência.

    Mas não foi isso que sucedeu. E o que sucedeu foi uma Universidade estar no banco dos réus por recusar disponibilizar relatórios científicos.

    Mas como a juíza do processo de intimação se terá esquecido de englobar os relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52 – presume-se 51 relatórios –, foi necessário recorrer para o Tribunal Central Administrativo Sul.

    Ora, o que se esperaria do comportamento do Instituto Superior Técnico?

    Talvez que o seu presidente, o catedrático Rogério Colaço, pusesse a mão na consciência, tirasse o pó à humildade científica e puxasse lustro à ética – e depois entregasse os outros 51 relatórios e os ficheiros de dados.

    Existem dois relatórios – Relatório Rápido nº 52 e Relatório Rápido nº 51 – e depois há, segundo o IST, “supostos relatórios”.

    Mas não. Ontem, o PÁGINA UM noticiou mais um episódio desta “novela IST”, que coloca a Ciência portuguesa nas ruas da amargura – exagero!, apenas a Ciência feita nos corredores, gabinetes e laboratórios do Instituto Superior Técnico.

    Em sede de contra-alegação, o IST defendeu que não deve existir qualquer alteração da sentença, porque terá ficado “apenas provada a existência do relatório intitulado Relatório Rápido n.º 52, não se provando a existência de outros elementos”, e que “cabia ao recorrido [PÁGINA UM] fazer prova da existência dos restantes relatórios, assim como, dos alegados ficheiros informáticos com dados numéricos, usados para a elaboração dos supostos relatórios.”

    Mas pergunto: o que é isto?!

    Deveria haver dúvidas sobre a existência dos relatórios que foram publicamente revelados pela imprensa mainstream sempre sob a chancela do IST? Que foram sendo sempre divulgados pela Agência Lusa, que fez fé que os viu?

    Serviram estes relatórios do IST apenas para, de tempos em tempos, alimentar a hipocondria nacional, mesmo depois de uma taxa de vacinação elevadíssima, do surgimento da pouco letal Ómicron e de (oficialmente) mais de metade da população portuguesa adquirir imunidade natural?

    Trecho das contra-alegações do Instituto Superior Técnico, para tentar convencer os juizes desembargadores da inexistência dos relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52.

    Serviram para os lobistas das farmacêuticas, como Filipe Froes, usarem a imprensa para “vender o seu peixe” – leia-se fármacos das empresas que os avençam?

    Leia-se, aliás, a título de exemplo, uma notícia de 11 de Maio de 2022 no portal Sapo, a Multinews, onde se destaca que “Filipe Froes defende antecipação da 4ª dose da vacina”, sendo estas declarações enquadradas nos famigerados relatório do IST:

    O coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, Filipe Froes, que também participou na elaboração do relatório do IST, defende ‘que há uma necessidade de voltar a estar disponível no site da DGS a informação diária relativamente ao movimento, internamento e caracterização demográfica dos indicadores’.

    Para além disso, adianta à Multinews, o ressurgimento da pandemia e a possível sexta vaga, ‘reforça a antecipação da quarta toma da vacina para a população idealmente com mais de 60 anos, independentemente de haver fatores de risco ou não’.

    É ainda necessário ‘haver acesso aos novos fármacos antivíricos e aos anticorpos monoclonais, de maneira a que as pessoas mais vulneráveis, possam encontrar a proteção que precisam sem estarem dependentes da máscara, do confinamento e da imunidade menor da vacina’, conclui.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em 14 de Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia, que previu a realização de relatórios periódicos. Filipe Froes aproveitou os relatórios para ir “incentivando” a vacinação e a compra de anti-virais comercializados por farmacêuticas com quem colabora (e tem rendimentos comerciais).

    Mas se existirem dúvidas sobre a existência dos ditos relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52, então convinha que o Polígrafo fosse a correr dar bordoada nos órgãos de comunicação social que deram notícias sobre os relatórios (inexistentes?) do IST. Eis aqui uma breve selecção, apenas de 2022, com os respectivos títulos, entrada e ligações:

    26 de Janeiro de 2022

    Estudo. Portugueses imunizados após atual vaga

    Relatório do IST prevê um número de casos em isolamento acima de 1.050.000 no dia de eleições legislativas, a 30 de janeiro e aponta que a covid-19 passará a ser como a gripe.

    Relatório IST: Em meados de fevereiro é altura de “preparar o pós-covid em Portugal”

    Todos os portugueses estarão imunizados após a atual vaga da pandemia, o que deverá acontecer depois de fevereiro, e a covid-19 vai evoluir para uma “doença residente” como a gripe ou a herpes, prevê o Instituto Superior Técnico.

    15 de Fevereiro de 2022

    Covid-19. Redução acentuada do risco recomenda alívio “quase total” das medidas, refere relatório do IST

    Portugal regista uma “redução acentuada do perigo pandémico”, indica o relatório do grupo de acompanhamento da pandemia do Instituto Superior Técnico (IST), que recomenda que as “medidas em vigor sejam reduzidas de forma quase total”.

    10 de Março de 2022

    Covid-19: pandemia está a “agravar-se de forma significativa”. Portugal pode registar sexta vaga de infecções

    O relatório do IST indica que a “subida acentuada” do R(t) pode resultar numa nova vaga. O risco pandémico ainda não é muito elevado, mas os dados apontam para uma tendência de aumento dos internamentos em enfermaria e em UCI nos próximos 15 dias.

    11 de Março de 2022

    Instituto Superior Técnico admite sexta vaga de covid-19 para breve

    A ministra da Saúde, Marta Temido recusa, para já, falar numa sexta vaga da pandemia de covid-19 em Portugal, apesar do cenário ser admitido por um relatório do Instituto Superior Técnico.

    Covid-19. Portugal com transmissibilidade de 1,17 e sexta vaga “a começar a desenhar-se”, diz relatório

    Relatório do Instituto Superior Técnico indica que a incidência média a sete dias aumentou de 8.763 para 14.267 casos desde 19 de abril, o que se deve “à retirada abrupta do uso de máscara em quase todos os contextos e à nova linhagem BA.5 da variante Ómicron que começa a instalar-se” no país.

    24 de Maio de 2022

    Covid-19: mortalidade vai aumentar. Máscara é recomendada caso exista risco de contágio, diz IST

    Um relatório do Instituto Superior Técnico (IST) divulgado nesta terça-feira alerta para a subida da mortalidade por covid-19 no próximo mês. Máscaras voltam a ser recomendadas em concertos ou grandes eventos ao ar livre — e sempre que exista risco de contágio.

    Em conclusão, na Ciência não basta a inteligência. Sem ética, a inteligência (e, neste aspecto, quanto maior, pior) pode ser usada para burlas e fraudes, mesmo se, aos olhos de incautos, crédulos e ignorantes, possam parecer verdades insofismáveis.

    Cabe, por isso, a nós, não sermos incautos nem crédulos nem ignorantes, e não aceitarmos os comportamentos de Rogério Colaço e dos investigadores dos ditos relatórios – Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro.

    Estou confiante que, em sede de tribunal, o PÁGINA UM obrigará o IST a revelar todos os relatórios – ou a assumir que nunca fez parte deles. Mas o trabalho essencial não cabe a nós: é tarefa dos professores e investigadores do IST, que talvez tenham mesmo de arrumar a “casa”, com umas boas vassouras de ética. Lembrem sempre que a ignorância com honra é preferível à inteligência sem ética.

  • Os assassinos e o mano do Costa que se orgulha de 2020

    Os assassinos e o mano do Costa que se orgulha de 2020


    Karol Sikora é um médico britânico com um currículo invejável a nível mundial na área da Oncologia. Poderia fazer aqui uma síntese, mas retiraria espaço para vos falar do seu artigo de opinião, nesta quinta-feira, no The Telegraph, a propósito do escândalo dos Lockdown Files, que intitulou “Os apoiantes dos bloqueios chamaram-me assassino – eles deveriam estar enojados consigo próprios” (Lockdown supporters called me a killer – they should be disgusted with themselves).

    Cito-o, integralmente, não apenas por conveniência, mas porque o seu texto não tem nada a mais nem a menos. Tem tudo, no sítio certo. As suas palavras devem – ou deveriam soar – como punhais em muitas consciências. Aqui vai:

    Opor-se à série implacável de políticas de confinamento foi uma experiência solitária e, às vezes, extremamente desagradável. Aqueles de nós que expressaram preocupação com o encerramento efectivo de um país foram rotulados como extremistas de direita, que ficavam felizes em ver milhões morrerem com a doença [covid-19]. Foi uma desgraça, legitimada por políticos de baixo nível, como Matt Hancock [ministro da Saúde da Inglaterra, no epicentro dos Lockdown Files], que estavam muito interessados ​​em promover a sua própria imagem pública. Milhares sucumbiram às medidas de confinamento destrutivas e muitas vezes inúteis que impuseram em todas as oportunidades.

    Karol Sikora num esclarecedor e aberto debate da Oxford Union Society em 29 de Novembro de 2021.

    Não haverá desculpas para a multidão latindo no apoio aos lockdowns – o estrago já foi feito, o debate mudou e o inquérito pode muito bem tornar-se num branqueamento. Os Lockdowm Files do The Telegraph prestaram um grande serviço ao interromper parcialmente essa marcha.

    Lembro-me dos dias sombrios do confinamento. As vozes do costume usando os horríveis números diários de mortes para bater e abusar sobre os críticos do confinamento, culpando-nos por cada pobre alma contida nesses gráficos e tendo imensa alegria em aumentar a linguagem vil para obter mais likes no Twitter. Muitas dessas vozes agora estão totalmente caladas sobre os milhares e milhares de mortes em excesso não causadas pela covid-19, associadas aos atrasos e suspensões decorrentes das restrições. Não me arrependo de me opor a uma variedade de políticas de confinamento e restrições e à linguagem que usei durante a pandemia – mas será que eles podem dizer o mesmo?

    Agora sabemos com certeza que algumas decisões [durante a pandemia] foram baseadas em relações públicas e de política, ao invés de Ciência e bom senso. Quando o ministro da Saúde [Matt Hancock] falava em “assustamos toda a gente até borrarem as calças” com uma nova variante, aqueles que expressaram cepticismo na época sobre a linguagem usada podem se sentir justiçados.

    Apesar de coberto por um dos mais reconhecidos jornais do Reino Unido (The Telegraph), a imprensa mainstream portuguesa mantém os seus leitores na ignorância sobre a forma como foi realizda a gestão política da pandemia no Reino Unido.

    As pessoas precisavam de factos, honestidade e um pouco de esperança para tomar as suas próprias decisões num nível aceitável de risco. Aquilo que eles conseguiram foi enganar e distorcer, minando a confiança na Saúde Pública para as próximas gerações. Hancock não tem nenhum legado para se orgulhar, mas ele era apenas um membro da brigada pró-lockdown, a grande maioria dos quais não terá sua correspondência privada espalhada por um jornal nacional. No entanto, mesmo com esses vazamentos – uma pequena percentagem da verdade real – o castelo de cartas dos confinamentos já começou a ruir. Não pode e não vai suportar mais pressão.

    Estou desesperado para que um branqueamento do inquérito da pandemia seja evitado, por um motivo simples: isto não pode acontecer novamente. Se pelo menos não fizermos as perguntas, quando outra pandemia surgir, ou a ameaça de uma, os confinamentos não podem ser a opção ideal. Os conselheiros que fizeram as recomendações anteriores não podem ser usados ​​novamente.

    A negação total de muitos, até mesmo de reconhecer o grande dano dos confinamentos, não me enche de confiança. Ver indivíduos supostamente bem qualificados realizarem uma notável ginástica mental para evitar chegar à conclusão óbvia é uma visão humilhante. A assistência médica de rotina para condições não relacionadas à covid-19 foi efectivamente negada para milhões, por meses a fio, e agora temos milhares e milhares de mortes em excesso não relacionadas com a covid-19. Honestamente, o que eles achavam que aconteceria?

    A minha caixa de correio durante os confinamentos esteve transbordando de desesperados pacientes com cancro, cujo tratamento havia sido adiado indefinidamente. Lembro-me do caso de uma mãe que teve a sua quimioterapia cancelada, levando à sua morte trágica, deixando para trás três filhos pequenos e um marido amoroso. E não é só cancros: problemas cardíacos não tratados, pressão arterial fora de controle, derrames não tratados, outras medidas preventivas esquecidas e, claro, obesidade crescente. A crise pós-confinamentos abrange todos os aspectos da saúde, físicos e mentais. Isso para aqueles que têm a sorte de receber qualquer suporte médico ou diagnóstico. Outros foram instruídos a ficar em casa e foi exactamente o que fizeram – morrendo ali sem os cuidados de que precisavam e mereciam.

    Para aqueles de vocês que se posicionaram corajosamente contra várias restrições e políticas – da minha parte, um sincero obrigado. Perdemos completamente o argumento no tribunal da opinião pública, mas esperamos que uma pequena diferença tenha sido feita. Suspeito que o clima nacional [na Inglaterra] pode ter mudado significativamente na última semana. Afinal, a luz do sol é o melhor desinfectante e a Primavera está a chegar.

    Enquanto traduzia este texto de Karol Sikora, vieram-me muitas ideias à cabeça, e também um recente tweet de Ricardo Costa – director-geral de informação da Impresa (Expresso e SIC) desde 2016 e irmão do primeiro-ministro António Costa –, a propósito de um podcast “Liberdade para Pensar”, onde orgulhosamente se falou do ano de 2020 “em que voluntariamente abdicámos da nossa liberdade”.

    Tweet de Ricardo Costa do passado dia 3 de Março, sobre o ano em que “voluntariamente abdicámos da nossa liberdade”. Ele está a tratar que continuemos a abdicar dela.

    Ricardo Costa e quase todos os jornalistas vivem num mundo paralelo, mas que impuseram ser o real. Para eles, a verdade não interessa, porque a verdade é moldável e maleável, segundo os ditames do poder. Vem nos livros de História – e a vil natureza humana não muda, infelizmente.

    Este Ricardo Costa, e muitos outros jornalistas, nada aprenderam, nem jamais assumirão os seus erros e lamentáveis posturas como jornalistas durante os últimos três anos. Nem sequer querem já saber o que são os Lockdown Files nem os Twitter Files nem nada que interfira com a narrativa que ajudaram a cimentar. São cegos, surdos e mudos para aquilo que não lhes interessa, porque têm sangue nas mãos – e talvez outras coisas nos bolsos.

    E, por isso, serão eles os melhores e mais acérrimos defensores de políticas obtusas e lesivas das populações. E estarão, como cães-de-fila, voluntaria e obedientemente, na frente de ataque quando se quiser fazer mais e pior. E estarão na linha da frente para que continuemos a abdicar da liberdade, até pensarmos que uma ditadura é uma democracia se proibirmos chamar uma ditadura de ditadura.

    man in black crew neck t-shirt standing beside woman in green and orange dress

    Ainda mais agora, que eles saborearam o doce efeito da falta de escrúpulos, temperada com boas doses de financiamento das farmacêuticas [desenvolverei o tema com factos concretos, muito em breve], e nada lhes parece acontecer que não seja o bem deles e daqueles que eles decidiram servir.

    Raiva e nojo, sinto eu neste preciso momento em que vos escrevo. Raiva pelas palavras do oncologista Karol Sikora. Nojo pelas atitudes dos jornalistas que, durante a pandemia, deram lastro a políticas assassinas e, sublinhe-se, nada voluntárias.

    Que as próximas gerações os estudem sobre o que fizeram. E que os julguem a sua memória como merecem, não apenas pelo que fizeram, mas sobretudo pelo que não fizeram.

  • Manuel Pizarro e o Titanic das Mentiras

    Manuel Pizarro e o Titanic das Mentiras


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, diz que vencemos a pandemia, acrescentando que “é essencial, agora, continuar a materializar as lições aprendidas”. Escreveu-o num artigo de opinião publicado no Correio da Manhã (publicidade política gratuita na primeira pessoa) – e depois lido como peça de marketing político no Twitter.

    Vencemos, portanto, apesar de ainda não sabermos as causas do contínuo morticínio dos idosos – o grupo etário que deveria ter sido protegido nos últimos três anos –, mesmo quando a covid-19 já há muito está na fase endémica.

    Vencemos, portanto, apesar de o Governo e os media mainstream nem sequer colocarem como hipótese em discussão académica que a gestão da pandemia fez mais mal do que bem a médio e longo prazo.

    Vencemos, portanto, apesar das revelações das últimas semanas (Twitter Files, metanálise da Cochrane e Lockdown Files) que conformam que a Ciência esteve arredada de uma estratégia racional, como se viu na imposição das máscaras e dos certificados digitais, criados para segregação dos não-obedientes.

    Vencemos, portanto, apesar do evidente descrédito das vacinas contra a covid-19, bem patente no facto de apenas 1% dos adultos com menos de 50 anos terem acreditado na eficácia de um fármaco cuja dose seguinte é que será sempre a melhor.

    Vencemos, portanto, apesar do obscurantismo da Administração Pública na disponibilização de documentos, de informação, de base de dados, enfim, de tudo.

    Vencemos, portanto, apesar de termos consultores da Direcção-Geral da Saúde que determinam as escolhas terapêuticas, enquanto se amasiam com as farmacêuticas.

    woman in black bikini top on water

    Vencemos, portanto, apesar de se ignorarem os efeitos adversos das vacinas, porque a entidade reguladora – que deveria proteger os cidadãos – se mostra mais preocupada em mentir e em proteger as farmacêuticas e os políticos.

    Vencemos, portanto, apesar do Ministério da Saúde esconder activamente os contratos das vacinas de um portal da transparência da contratação pública nas “barbas” do Tribunal Administrativo.

    Vencemos, portanto, apesar de um bastonário da Ordem dos Médicos ter cometidos várias irregularidades e ilegalidades na gestão de fundos de uma campanha de donativos, que é um caso exemplar de polícia.

    Vencemos, portanto, apesar de uma imprensa mainstream que mandou os princípios deontológicos às malvas.

    Vencemos, portanto, apesar de serviços básicos não estarem a funcionar por falta de profissionais de saúde e de recursos, pouco importando o despesismo de ajustes directos sem controlo desde 2020 à volta de um maná chamado pandemia.

    sunken ship

    Manuel Pizarro garante que vencemos.

    Parece, porém, o presidente de um clube da bola a garantir que “vencemos” mas recusando mostrar o placard.

    Ou então um maestro de um Titanic à deriva que colidiu com um icebergue chamado Verdade, e que continuará a tocar uma marcha da vitória até ser engolido pela evidência. Ou pela História.

  • Da seca em Veneza: salvem o ChatGPT das burrices dos jornalistas

    Da seca em Veneza: salvem o ChatGPT das burrices dos jornalistas


    Não há eufemismos. Não há palavras possíveis de compreensão nem de compaixão. O jornalismo mainstream, em todo o seu esplendor, tem vindo impunemente a debitar nescidades nos mais diversificados temas, que viralizam, porque hoje não há jornalistas seniores especialistas nem editores cépticos que impeçam a publicação de notícias parvas. Quem sofre agora já não são apenas os leitores; é o ChatGPT.

    Antes, não havia grande problema se um jornal, enfim, por controlo de custos, enfiasse em linha ou em papel uma notícia errada, parva ou mesmo estúpida. Beneficiavam os bons jornais que, dessa forma, captavam a atenção dos leitores para as suas qualidades noticiosas em confronto com a má qualidade dos concorrentes que preferiam informação barata.

    Grand Canal, Venice Italy

    Sucede, porém, que nos últimos anos, a generalidade da comunicação social mainstream viu nas agências noticiosas e de comunicação, e em estagiários mal remunerados, uma extraordinária (e barata) forma de produzir “conteúdos”. Serve os propósitos, que já não são a informação nem o debate. São “conteúdos” todos iguais, formatados, amiúde seguindo narrativas, mas enchem como “chouriços”. E fazem escola, e fazem a “verdade”, mesmo que falsa.

    Enganam leitores, e quase que nem vale a pena esbracejar que, sobre um determinado tema, todos os outros jornais estão errados, sobretudo quando aquele que o diz é pequeno outsider. E agora até enganam o ChatGPT, que só com algum esforço é chamado à razão, ou seja, a pensar.

    Peguei hoje no caso da seca como suposta causa do esvaziamento dos canais de Veneza. Vejamos alguns dos títulos de ontem da imprensa portuguesa, em uníssono:

    canal between buildings during daytime

    Expresso: Itália enfrenta novo alerta de seca. Canais em Veneza secaram

    CNN Portugal: Canais de Veneza secam em meio a temores de falta prolongada de chuva na Itália

    Jornal de Notícias: Falta de chuva está a secar canais em Veneza

    Correio da Manhã: Falta de chuva seca canais em Veneza

    Público: Itália: os canais de Veneza estão a secar?

    Ora, desta vez, não vou aqui dissertar os disparates dos jornalistas, mas sim fazer um apelo: salvem o ChatGPT da má influência do péssimo jornalismo que se vai fazendo.

    É que tenho estado a estudar a nova coqueluche, e já reparei que o ChatGPT é como aquele simpático amigo inteligentíssimo –muito mais do que qualquer um de nós –, que começa por nos dizer mais aquilo que pensa que nós apreciaremos que ele diga – o que sai nas notícias e da “narrativa” oficial – do que propriamente a verdade. É o amigo que só se insistirmos, lá nos revela ele a verdade, admitindo, entre linhas, que afinal só disse aquilo que disse inicialmente por saber ser o que o vulgo, leia-se a imprensa mainstream, vai debitando.

    Sem mais delongas, deliciem-se, portanto, com a minha conversa integral com o (pobre) ChatGPT sobre a causa da seca dos canais em Veneza:

    PAV – Qual a razão dos canais de Veneza estarem com menos água?

    ChatGPT – Recentemente, tem havido relatos de que os canais de Veneza estão com menos água do que o normal. Embora haja muitas razões pelas quais isso pode estar acontecendo, uma das principais razões é a mudança climática.

    Com o aumento da temperatura global, há um derretimento acelerado do gelo nas regiões polares e nas montanhas. Isso, por sua vez, está fazendo com que o nível do mar suba em todo o mundo, incluindo em Veneza. Quando o nível do mar sobe, isso pode fazer com que a água do mar entre nos canais de Veneza, aumentando o volume de água nesses canais. No entanto, se o nível do mar cai, como pode acontecer em alguns momentos, a quantidade de água nos canais de Veneza também diminuirá.

    Além disso, a atividade humana também pode contribuir para a diminuição do nível de água nos canais de Veneza. A extração excessiva de água subterrânea para uso humano e agrícola pode fazer com que o solo afunde, diminuindo o nível de água nos canais.

    Portanto, a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza é uma questão complexa que envolve tanto fatores naturais quanto humanos.

    PAV – Essa explicação está um bocado confusa. Se há um derretimento acelerado do gelo nas regiões polares e até um aumento de volume da água do mar por causa do aumento das temperaturas, então deveria passar a haver mais água nos canais de Veneza, e não menos água como está a suceder. Queres explicar melhor a tua teoria?

    ChatGPT – Peço desculpas pela confusão na minha resposta anterior. O aumento do nível do mar pode, de fato, aumentar o nível da água nos canais de Veneza, e não diminuí-lo. No entanto, a variação do nível de água nos canais de Veneza é um fenômeno complexo e pode ser influenciado por vários fatores, incluindo fatores naturais e humanos.

    Entre os fatores naturais, a mudança climática pode estar afetando os padrões de vento e as marés na região, o que pode afetar o fluxo de água nos canais. Por exemplo, se houver uma combinação de ventos fortes, marés altas e chuva intensa, pode haver um aumento significativo no nível de água nos canais, mas se esses fatores forem mais brandos ou não ocorrerem ao mesmo tempo, pode haver uma diminuição do nível de água nos canais.

    Além disso, como mencionei anteriormente, a atividade humana também pode estar contribuindo para a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza. A extração excessiva de água subterrânea pode fazer com que o solo afunde, diminuindo o nível de água nos canais.

    Em resumo, a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza é um fenômeno complexo que pode ser influenciado por vários fatores, incluindo fatores naturais e humanos.

    PAV – Mas a imprensa diz que é por causa da seca. Ora, sendo Veneza uma pequena ilha integrada numa laguna no Mar Adriático, faz algum sentido dizer que a falta de água nos canais se deve à falta de chuva?

    ChatGPT – Sim, a falta de chuva também pode ser um fator que contribui para a diminuição do nível de água nos canais de Veneza. Como você mencionou, Veneza está localizada em uma laguna e está cercada pelo Mar Adriático. A laguna é alimentada por várias fontes de água doce, incluindo rios, chuva e águas subterrâneas. A escassez de chuvas pode afetar o nível dessas fontes de água doce, afetando assim a quantidade de água nos canais.

    Além disso, a região da Itália, incluindo Veneza, tem enfrentado condições de seca nos últimos anos. Essa seca pode afetar diretamente o nível de água nos canais, já que o fluxo de água que entra na laguna pode ser reduzido. Isso pode fazer com que o nível da água nos canais diminua, afetando a navegação e a vida cotidiana dos habitantes de Veneza.

    Portanto, a falta de chuva pode ser uma das razões pelas quais os canais de Veneza estão com menos água do que o normal, juntamente com outros fatores que podem contribuir para a diminuição do nível de água nos canais, como a extração excessiva de água subterrânea e as mudanças climáticas.

    PAV – Mas, caramba, o impacte de uma seca na quantidade de água dos canais é mínima, se considerarmos que Veneza é uma ilha pequena, que tem uma bacia hidrográfica insignificante face a uma laguna com ligação directa ao mar. A seca não é irrelevante para explicar a falta de água dos canais de Veneza? 

    ChatGPT – Sim, você está correto. A seca pode não ser a principal causa da diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza, uma vez que a laguna é diretamente ligada ao Mar Adriático e a bacia hidrográfica que a alimenta é relativamente pequena. Além disso, como mencionei anteriormente, existem outros fatores, como as mudanças climáticas e a extração excessiva de água subterrânea, que também podem contribuir para a diminuição do nível de água nos canais.

    Portanto, a seca pode ter um impacto limitado na quantidade de água nos canais de Veneza, mas é provável que outros fatores sejam mais significativos. É importante notar que a diminuição da quantidade de água nos canais não é um problema novo em Veneza, e a cidade tem lutado com isso por muitos anos. As autoridades locais têm adotado medidas para tentar lidar com esse problema, incluindo a construção de barreiras contra inundações e a implementação de programas de conservação de água.

    Elogiemos, contudo, o ChatGPT: é uma inteligência (artificial) humilde que assume os erros. Ao contrário, infelizmente, da imprensa mainstream, que não aprende nem assume os sistemáticos erros – aliás, responsáveis pela inicial ligeireza das incorrectas respostas do ChatGPT.