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  • Câmara de Cascais pagou 233 mil euros em almoços numa única factura, em tempo recorde, sem discriminação nem guias de entrega

    Câmara de Cascais pagou 233 mil euros em almoços numa única factura, em tempo recorde, sem discriminação nem guias de entrega

    A Câmara Municipal de Cascais aceitou pagar, em tempo recorde, uma factura de cerca de 233 mil euros de uma empresa fornecedora de refeições para refugiados ucranianos numa altura em que os seus centros estavam quase vazios. Ainda mais estranho, e contrariando mesmo o caderno de encargos, a autarquia liderada pelo social democrata Carlos Carreiras fez a transferência ainda durante a vigência do contrato, que decorreu desde 26 de Setembro do ano passado e o dia a seguir ao mais recente Natal, sem sequer se apurar o número de refeições supostamente distribuídas. A autarquia quer agora, num processo de intimação protagonizado pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Sintra, que o caso seja encerrado sem sequer explicar os motivos para não se revelarem guias de remessa e de recepção das refeições. Um caso que, na verdade, merecia mais ser tratado num tribunal penal do que administrativo, até porque em outro estranho ajuste directo com preços hiperinflacionados, envolvendo o Modelo Continente, a Câmara Municipal de Cascais – que fez contratos para apoio aos refugiados da Ucrânia de quase dois milhões de euros – diz que, afinal, não comprou nada à cadeia de supermercados. Mas diz isto sem apresentar provas, e apenas depois de ter sido obrigada pelo Trbunal Administrativo de Sintra a pronunciar-se.


    Um contrato com um preço estimado de 250 mil euros para fornecimento de alimentação ao centro de refugiados da Ucrânia em Cascais foi facturado quase na íntegra à autarquia apenas dois dias após o ajuste directo e o pagamento concretizou-se ainda no prazo de vigência, sem sequer especificar sequer número de refeições entregues. Esta situação ocorreu num momento em que os centros de refugiados naquele município estavam já com um número reduzido de ucranianos, segundo apurou o PÁGINA UM, e existem fortes suspeitas de não terem sido entregues grande parte das refeições, apesar do pagamento feito. A autarquia de Cascais sempre recusou divulgar ao PÁGINA UM elementos sobre os refugiados que apoiou desde a invasão da Rússia à Ucrânia.

    A factura deste contrato – o terceiro em cerca de dois anos, para o mesmo fim – foi enviada pela ICA – Indústria e Comércio Alimentar em 28 de Setembro do ano passado à Câmara Municipal de Cascais, com um valor total de 232.799,69 euros, mas sem explicitar o número de refeições nem a sua tipologia nem o número de beneficiários nem as condições de entrega. Na referida factura surge apenas a referência “Serviço Refeição – Almoços aos Refugiados” com a quantidade de “1 UN” [uma unidade], com um “Preço Unitário” de 189.268,04 euros, a que acresceu IVA a 23%. Se foram apenas almoços a serem fornecidos, e se se estipulasse um preço unitário de 10 euros, estaríamos perante mais de 23.000 refeições, o que, distribuídas pelo prazo do contrato, daria quase 260 refeições por dia.

    Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais. É possível pagar facturas de 233 mil euros com indicação de 1 unidade? Em Cascais, sim.

    Como revelou o PÁGINA UM, em Setembro do ano passado, este terceiro ajuste directo à empresa ICA estabelecia “a prestação de serviços de fornecimento de refeições conforme as necessidades até ao valor contratual máximo de 250.000,00 euros, pelo período estimado de 3 meses”, que incluía o “fornecimento diário até 4 refeições completas (pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar)” com entregas “nos centros de acolhimento a refugiados”, cujas “localizações e quantidades” deveriam ser acordadas com “o gestor do contrato”.

    Porém, ao longo do ano passado, a autarquia liderada por Carlos Carreiras – que foi de longe a entidade pública que despendeu mais dinheiros públicos alegadamente para apoio aos ucranianos após a invasão pela Rússia – nunca mostrou disponibilidade para facultar acesso ao PÁGINA UM aos centros de refugiados nem aos registos das pessoas apoiadas, obrigando assim à instauração de um processo de intimação no Tribunal Administrativo.

    Foi no decurso deste processo no Tribunal Administrativo de Sintra que o município de Cascais acabou por enviar cópia da factura, bem como a ordem de pagamento emitida em 7 de Novembro do ano passado, ou seja, a autarquia até pagou antes do fim do contrato, incumprindo, logo aqui, o caderno de encargos que a impedia de conceder adiantamentos.

    Factura da empresa ICA emitida em 28 de Setembro de 2023, dois dias após o ajuste directo e quando ainda faltavam 89 dias para o fim da vigência do contrato. Não consta a discriminação das refeições a entregar. Ver AQUI a cópia da factura(em melhor qualidade) e a ordem de pagamento.

    Mas o mais suspeito neste estranho contrato de alimentação está relacionado com a assumpção, agora, por parte da própria Câmara Municipal de Cascais, junto do Tribunal Administrativo de Sintra, de que não existirão quaisquer documentos que comprovem o número de refeições efectivamente entregues em cada um dos 91 dias do contrato.

    Relembre-se que numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado , Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”. Ou seja, perante a postura da Câmara de Cascais ignora-se quem comeu, e sobretudo quantas pessoas comeram, refeições no valor de 232.799,69 euros supostamente entregues pela ICA entre 26 de Setembro e 26 de Dezembro de 2023. E ignora-se sobretudo quem entregou e quem recebeu, porque a autarquia não quer revelar guias de remessa e de recepção, e quer mesmo que o Tribunal Administrativo de Sintra não a obriga a revelar dando por encerrada a lide com a simples entrega de uma factura e de uma ordem de pagamento.

    Ora, não é nada expectável – pelo contrário, a sua falta configura ilegalidades graves – que os serviços associados a uma facturação de um valor tão elevado, que se desenvolvia ao longo de 91 dias, se tenham feito sem qualquer requisição, sem qualquer guia de recepção, sem qualquer outra comunicação entre adjudicante e adjudicatária.

    Repasto em Junho do ano passado em Cascais aquando da visita do presidente da autarquia russa de Irpin a um dos centros de acolhimento de refugiados, mas onde estiveram a almoçar muitos portugueses. O contrato suspeito com a ICA foi celebrado em Setembro de 2023.

    Acresce também que a emissão da factura apenas dois dias após a celebração do contrato, e com o pagamento a ocorrer em 7 de Novembro, consubstancia uma irregularidade contratual, uma vez que na cláusula 13ª do Caderno de Encargos refere-se que “os pagamentos são efectuados no prazo de 60 dias após a entrega das respectivas facturas, as quais só podem ser emitidas após o vencimento das obrigações a que se referem, devendo conter a menção do número de compromisso e do número de requisição externa […].” Mais se adiantava, que “podem ser propostos pagamentos parcelares, não havendo, contudo, lugar a adiantamentos […]”, conforme é reiterado na cláusula 14ª.

    Para além de terem sido feitos pagamentos claramente antecipados – a transferência foi realizada pelo município 20 dias antes da data de vencimento da factura –, ignora-se nos documentos entregues entretanto  pela autarquia de Carlos Carreiras qual o motivo para o valor final ter sido de 189.268,04 euros sem IVA (232.799,69 euros com IVA) – e não de 250.000 euros sem IVA estabelecido em contrato – e quantas refeições afinal foram contratadas, uma vez que supostamente não existem documentos onde se indique o número total de refeições, a sua tipologia e o preço unitário.

    Na intimação junto do Tribunal Administrativo de Sintra, o PÁGINA UM tinha requerido que a Câmara Municipal de Cascais entregasse, entre outros elementos, a totalidade dos documentos que comprovassem a execução diária do fornecimento de refeições, com o número (em cada dia) de refeições (por tipologia) e o custo respectivo.

    Quanto ao ajuste directo para a compra de diversos produtos alimentares e não-alimentares ao Modelo Continente no valor de 166.124,88 (sem IVA) para a entrega em períodos mensais, durante um ano – a acabar em Junho próximo –, de cerca de uma centena de produtos, a autarquia de Cascais diz que, afinal, não comprou nada. O ‘problema’ deste contrato estava sobretudo no facto de as quantidades constantes no caderno de encargos, aos preços unitários então praticados pelos supermercados do Grupo Sonae, totalizarem pouco mais de 14 mil euros. Ou seja, o valor dos bens previstos no contrato era mais de 10 vezes superior ao valor de mercado desses produtos, havendo uma diferença de mais de 160 mil euros, se se considerar o IVA.

    green wheat field under blue sky during daytime
    Autarquia de Cascais celebrou contratos públicos de quase dois milhões de euros para apoio aos refugiados da Ucrânia, destacando-se entre as entidades públicas portuguesas. Mas, no momento de mostrar ‘contas’, fechou-se em copas.

    Somente com a intimação junto do Tribunal Administrativo de Sintra, a autarquia de Cascais veio agora revelar que este estranho contrato, denunciado em Outubro passado pelo PÁGINA UM,  afinal terá ficado “em águas de bacalhau”. Ao Tribunal Administrativo de Sintra, a autarquia diz que “até à presente data não foi efectuada qualquer encomenda àquela entidade [Modelo Continente] e por conseguinte não foi emitida qualquer guia de remessa, não foram emitidas quaisquer determinações ou comunicações por parte do gestor do contrato, não foram emitidas facturas por parte daquela empresa, nem existem ordens de pagamento no âmbito do referido contrato”. Informações que que, perante o histórico e comportamento da edilidade liderada por Carlos Carreiras, deveria necessitar de uma confirmação por parte de um entidade judicial com capacidades de investigação para aferir da sua veracidade.

    Recorde-se que, desde Junho de 2022, o PÁGINA UM tem-se debruçado nos estranhos contratos da autarquia de Cascais em em redor do apoio aos refugiados ucranianos, que chagaram quase aos dois milhões de euros (com IVA), e mesmo com a intervenção do Tribunal Administrativo tem feito finca-pé para manter o obscurantismo e evitar que se afira a legalidade dos seus procedimentos. A sentença deste processo ainda não foi declarada, estando o PÁGINA UM em fase de resposta jurídica aos argumentos da autarquia de Cascais durante a presente semana. Este é um dos 20 processos de intimação do PÁGINA UM para a obtenção de documentos administrativos financiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO.


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  • Refugiados ucranianos: Câmara de Cascais paga 180 mil euros ao Continente por produtos que custam 14 mil

    Refugiados ucranianos: Câmara de Cascais paga 180 mil euros ao Continente por produtos que custam 14 mil


    O PÁGINA UM pegou numa calculadora e no “cabaz de compras” de um ajuste directo celebrado entre a autarquia de Carlos Carreiras e o Modelo Continente, e foi saber se era mesmo preciso gastar-se os cerca de 180 mil euros previstos num contrato assinado em Julho passado. E não era: contas feitas a cerca de uma centena de itens, um a um, de mercearia, frescos, congelados e produtos de higiene e drogaria, o total dava pouco mais de 14 mil euros, e já com IVA incluído. A autarquia não quis reagir e o Modelo Continente remete as perguntas do PÁGINA UM para o município. Recorde-se que a edilidade de Cascais já terá gastado mais de 925 mil euros só em alimentação para refugiados ucranianos, incluindo três ajustes directos à mesma empresa (ICA), com periodicidade aleatória, mas recusa mostrar elementos sobre esta actividade.


    Em Julho passado, mesmo tendo contratos de ajuste directo para fornecimento de refeições aos refugiados ucranianos, em número que não quer divulgar, o município de Cascais decidiu estabelecer um estranho contrato com a Modelo Continente no valor previsto de 166.124,88 euros, sem IVA incluído, para a entrega em períodos mensais, durante um ano, de cerca de uma centena de produtos. Com IVA, o contrato deverá aproximar-se dos 180 mil euros.

    No contrato exposto no Portal Base inclui-se, neste caso, o caderno de encargos com as especificações para a aquisição de bens essenciais para o Centro de Refugiados de Cascais, onde consta uma extensa lista de produtos alimentares e de higiene que a autarquia liderada por Carlos Carreiras devia receber do Modelo Continente.

    Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais.

    Nos produtos de mercearia surgem 35 itens, que vão desde 300 embalagens de leite UHT até 100 embalagens de chá de cidreira e camomila, passando por quantidades distintas de açúcar, massas e cereais diversos, feijão e o incontornável atum, cogumelos em lata, azeite e óleo, café diverso e 30 quilogramas de sal, entre grosso e fino.

    Na parte de produtos frescos – que, de acordo com as peças do contrato, deveriam ser entregues, tal como os outros produtos, com uma frequência semanal ao longo de 12 meses – encontram-se 25 itens, começando a lista por 500 embalagens de 600 gramas de jardineira de bovino para guisar e terminando em 60 quilogramas de beterraba sem rama. Pelo meio desta lista consta ainda carne picada, bifanas, salsichas frescas e costeletas de porco e outros produtos de frango e peru, tudo em doses de 50 quilogramas. No caso dos peixes – em quantidade de 10 quilogramas – estão listadas diversas espécies: carapau, cavala, pargo, dourada, robalo, salmão, truta, pota e choco. E depois ainda verduras, como batatas, cenoura, couve e cebola, além de ovos e manteiga.

    Acresciam ainda 13 produtos congelados em embalagens de pesos distintos, abrangendo quer peixes quer legumes. Nestes destacavam-se as 100 embalagens de 200 gramas de corvina e ainda as 48 embalagens de 210 gramas de garoupa.

    bunch of vegetables

    Por fim, no sector dos produtos de higiene, o caderno de encargos listava 25 itens – desde champôs e gel de banho até desodorizantes, sabonetes, tampões e lâminas –, e no sector da drogaria ficaram previstos nove itens, entre detergentes, esfregonas, baldes e vassouras.

    Enfim, a lista é extensa, mas mais do que as quatro páginas – e mais umas linhas de uma outra – com a listagem de produtos e quantidades, aquilo que verdadeiramente surpreende é que, mesmo assim, parece pouco para aquilo que foi combinado na parte financeira entre a Câmara Municipal de Cascais e o Modelo Continente.

    Com efeito, como contrapartida das quantidades listadas no caderno de encargos, a autarquia de Cascais comprometeu-se a pagar a pagar 166.980 euros, sem incluir IVA. Pareceu ao PÁGINA UM ‘fruta a mais’ – embora, curiosamente, só tenha ficado previsto a entrega de 150 embalagens de pêssego em calda com peso escorrido de 480 gramas e ainda 30 latas de polpa de maracujá de 565 gramas. E por isso “fomos às compras” – ou, melhor dizendo, conferimos os preços praticados na loja online do Continente para saber quanto se pagaria por aquele cabaz de compras.

    A pesquisa do PÁGINA UM realizou-se nos primeiros dias deste mês de Outubro. Apesar de nem todos os produtos constantes no caderno de encargos para o centro de refugiados da Ucrânia não se encontrarem à venda na loja online do Continente, procurou-se produtos similares ou os preços em outros hipermercados semelhantes.

    a pile of fish sitting on top of a pile of ice

    E assim, “conseguimos” o cabaz de compras de produtos de mercearia, já com IVA incluído, por 4.078,70 euros. Os produtos frescos ficaram por 5.052,60 euros. Os produtos congelados por 1.256,45 euros, os produtos de higiene por 3.201,86 euros e, por fim, os produtos de drogaria por 770,70 euros.

    Contas feitas, para uma lista de produtos para a qual a Câmara de Cascais assinou um contrato de 166.980 euros, sem incluir IVA (com IVA aproximar-se-á dos 180 mil euros), o PÁGINA UM – e qualquer outra pessoa, incluindo funcionários dos serviços da autarquia liderada por Carlos Carreiras – “faria a festa” por 14.360,37 euros. Ou, noutra perspectiva, compraria um cabaz mais de 10 vezes aquele que foi adquirido pelo município.

    O PÁGINA UM tentou obter comentários da autarquia de Cascais e do Modelo Continente sobre esta contrato pouco ortodoxo de solidariedade com os refugiados ucranianos com evidentes sinais de desperdício de dinheiros públicos. Não conseguiu sequer entrar em contacto com o gestor do contrato, obrigatório por lei, porque no documento constante no Portal o seu nome e função foi apagado. Este procedimento de rasurar nomes de funcionários públicos em exercício de funções públicas é profundamente ilegal, constituindo uma forma de obscurantismo.

    Parte inicial das especificações técnicas dos produtos a entregar pelo Modelo Continente à autarquia de Cascais para cumprimento do contrato.

    No caso da Câmara Municipal de Cascais solicitou-se mesmo a entrega de facturas das remessas de dois meses para conferir as quantidades entregadas e os preços unitários praticados.

    Por sua vez, o Modelo Continente reagiu através de uma agência de comunicação, indicando que as respostas deveriam ser dadas pelo município. Mas mesmo com insistência, a empresa do universo da Sonae não respondeu se foi ponderada a venda daqueles produtos, atendíveis os fins, sem a aplicação de margem de lucro ou uma doação de bens.

  • Refugiados ucranianos: Câmara de Cascais compra alimentação sem nexo em contratos obscuros

    Refugiados ucranianos: Câmara de Cascais compra alimentação sem nexo em contratos obscuros


    Carlos Carreiras, presidente da autarquia de Cascais, não pára de apoiar os refugiados ucranianos, e destaca-se da “concorrência”: dos cerca de 2,2 milhões de euros em apoios de entidades públicas desde Março do ano passado, o seu município justifica mais de 1,6 milhões de euros. Mas analisando, em detalhe, os fins nobres mostram, afinal, uma suspeitosa falta de transparência. Além de diversas empreitadas por ajuste directo, a autarquia já gastou mais de 925 mil euros em alimentação, incluindo três ajustes directos à mesma empresa (ICA), com periodicidade aleatória, e um “cabaz de compras” de compras de 166 mil euros ao Modelo Continente. A autarquia não diz quantos refugiados ainda apoia nem se disponibiliza a indicar um dia para conferir a distribuição alimentar. Anteontem, o novo contrato de 250 mil euros assinado com a ICA nem sequer quantifica o número de refeições a distribuir no próximo trimestre. Serão combinadas com um alto quadro da autarquia, cujo nome é secreto. Quantas destas entrarão em bocas ucranianas, não se sabe; apenas se sabe que saíram mais 250 mil euros do erário público.


    A causa pode ser nobre, mas há muita coisa que, há mais de um ano, não bate certo nos alegados apoios da Câmara Municipal de Cascais aos refugiados da Ucrânia. Mais de um ano e meio depois da invasão da Rússia com a consequente debandada de ucranianos para diversos países europeus, incluindo Portugal, a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras tem-se destacado sobremaneira em gastos por ajuste directo, sobretudo através de contratos para remodelação de edifícios e para alimentação.

    Para já, analisando no Portal Base todos os contratos públicos desde Março do ano passado para apoio aos refugiados ucranianos – e em alguns casos, em simultâneo, de apoio humanitário ao Afeganistão –, a autarquia de Cascais agrega 73% do total dos gastos contratualizados. Num total de 50 contratos de 21 entidades, entre as quais 16 autarquias, o município de Cascais assinou já 19, todos por ajuste directo, envolvendo um montante total de 1.602.911 euros, excluindo IVA. Uma parte substancial foi gasto no ano passado, mas este ano a factura está já acima dos 416 mil euros.

    Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais.

    Para se ter uma verdadeira dimensão deste apoio no contexto nacional, a segunda entidade com maiores gastos é a Câmara Municipal de Ourém, que já despendeu 166.055 euros. Todas as outras entidades, incluindo da Administração Pública, gastaram, cada uma, menos de 100 mil euros. Por exemplo, a Secretaria-Geral do Ministério da Defesa Nacional assumiu um encargo de 79.850 euros em Dezembro do ano passado para aquisição de geradores a enviar para a Ucrânia. O contrato foi assinado com a empresa Efaflu após concurso público.

    Mas no caso concreto da autarquia de Cascais, mais do que o inusitado montante, no contexto nacional, aquilo que mais surpreende é a tipologia dos gastos e sobretudo a falta de transparência nos processos de aquisição.

    O mais recente contrato assinado pela autarquia de Cascais relacionado com os refugiados da Ucrânia ocorreu anteontem, beneficiando, pela terceira vez, por ajuste directo, a empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar. Todos os três contratos foram de 250.000 euros, o que já totaliza os 750.000 euros. O primeiro contrato foi assinado em 7 Abril de 2022, por 91 dias, pelo que durou até à segunda semana de Julho. Mas só houve novo contrato, com a mesma empresa alimentar, em 13 de Outubro do ano passado, por um prazo de 92 dias, o que significaria que expiraria em Janeiro deste ano. Desconhece-se o que terão comido os supostos refugiados ucranianos nos meses seguintes, porque, antes do contrato deste mês de Setembro, só em Julho passado se identifica um contrato de índole alimentar envolvendo a autarquia de Cascais e, neste caso, o Modelo Continente.

    Gastos totais de entidades públicas em apoio explícito aos refugiados da Ucrânia.

    Ao contrário dos dois contratos com a ICA, nesta compra ao Modelo Continente, no valor total de 166.124,88 euros, consta no Portal Base o caderno de encargos com a discriminação de todos os produtos adquiridos, tanto alimentares como de higiene. E é aqui que – ainda mais perante o silêncio da autarquia de Cascais face ao pedido de esclarecimento do PÁGINA UM – mais se adensam as suspeitas sobre se há tantos refugiados para apoiar que justifiquem sucessivos contratos de 250.000 euros de periodicidade aleatória intercalados por uma compra avultada de bens que aparenta ser mais próprio de um cabaz de compras, mas que, no caso da componente alimentar, necessitam de ser confeccionados, tanto mais que muitos são perecíveis.

    Mas no meio destas aquisições de produtos e serviços alimentares ressalta uma questão: afinal, quantos ucranianos estão ainda a ser verdadeiramente apoiados pelo município de Cascais, e se estão mesmo a ser apoiados ou se estamos perante contratos fictícios. A autarquia de Cascais acha que não tem de dar respostas e os contratos também não ajudam, pelo contrário.

    O recente contrato com a ICA, tal como os outros dois, não traz qualquer indicação do número de refeições – e, portanto, ignora-se o número de refugiados apoiados – nem tão-pouco as suas tipologias ou variedade, sabendo-se apenas que se referem a pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar. No caderno de encargos deste terceiro contrato – que, neste caso, surge no Portal Base – diz-se apenas, nas especificações técnicas, que as entregas deverão ser feitas nos centros de acolhimento a refugiados, e que quanto a localizações e quantidades serão a “acordar com o gestor do contrato” na autarquia de Cascais.

    Repasto em Junho do ano passado em Cascais aquando da visita do presidente da autarquia russa de Irpin a um dos centros de acolhimento de refugiados.

    Neste terceiro contrato com a ICA disponibilizado no Portal Base, a autarquia decidiu abusiva e ilegalmente rasurar o nome do gestor do contrato, ficando apenas a saber-se que será o chefe do Gabinete de Intervenção Socioprofissional. Ou seja, fica tudo em combinações entre um funcionário autárquico e a empresa alimentar. Tudo no segredo dos deuses.

    Numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro passado, Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento então existentes estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”.

    Mas não é apenas em alimentação que a Câmara de Cascais tem feito gastos suspeitos envolvendo apoio aos refugiados ucranianos. Em Junho do ano passado, o PÁGINA UM já revelara duas empreitadas extraordinárias para a execução de obras de alojamento – algo que mais nenhuma outra autarquia portuguesa que acolheu ucranianos fez.

    O primeiro contrato foi celebrado em 11 de Abril de 2022 com a Ediperfil, para adaptação da antiga creche de São José, entretanto alocada à Santa Casa da Misericórdia de Cascais, tendo um valor de 157.274,84 euros (IVA incluído).

    Fachada da antiga creche de São José, na Avenida de Sintra, em Cascais, entretanto reabilitada para receber refugiados ucranianos. A autarquia nunca mostrou caderno de encargos da empreitada. Foto: Google Street.

    Uma dezena de dias mais tarde foi assinado outro contrato, desta vez, com a empresa Valente & Carreiras para remodelação urgente de habitações num antigo bairro operário perto da creche, na Avenida de Sintra. O custo deste contrato: 321.052,80 euros, com o fito de criar 40 quartos, segundo informações do gabinete de imprensa da autarquia.

    Porém, informações detalhadas sobre as obras destes dois contratos são escassas. O PÁGINA UM procurou então obter junto da autarquia cascalense os dois cadernos de encargos relativos a estas empreitadas, que deveriam constar do Portal Base. No entanto, a autarquia nunca os disponibilizou, optando apenas por elencar referências meramente descritivas das obras realizadas sem qualquer custo associado. Uma situação que se repetiu em relação a similares pedidos de outros contratos.

    Sobre o facto de ambas as empresas terem sido contratadas por ajuste directo e também ambas serem do concelho da Batalha, o gabinete de imprensa de Carlos Carreiras foi então lacónico; “Não havendo motivo, não há nada a acrescentar”.

    Mas mesmo depois destes gastos em empreitadas, o município de Cascais ter-se-á visto ainda na necessidade de fazer mais dois contratos com uma empresa de alojamento local, a Juicycategory. Custo total: 108.120 euros. Nos contratos com esta empresa – sobre os quais a autarquia nada quis revelar ao PÁGINA UM –, presentes no Portal Base, ignora-se até o objecto em concreto.

    green wheat field under blue sky during daytime

    Com efeito, no primeiro contrato, assinado em 11 de Maio do ano passado, no valor de 36.040 euros, surge referência a “uma proposta apresentada em 29 de março de 2022, que aqui se dá como reproduzida e que fica a fazer parte integrante deste contrato”, mas depois nada é incluído no Portal Base. Apenas se sabe, pela descrição nesta plataforma de suposta transparência relativa à contratação pública, que este contrato teve um prazo de execução de 61 dias.

    O PÁGINA UM, além de solicitar esclarecimentos sobre os contratos de alimentação, pediu que a Câmara Municipal de Cascais indicasse uma ou várias datas para se poder acompanhar in loco o fornecimento aos refugiados ucranianos das refeições trazidas pela empresa ICA, com um valor diário superior a 2.750 euros. Não se obteve (ainda) resposta.

  • “As crianças querem fugir. Mas não têm para onde ir”

    “As crianças querem fugir. Mas não têm para onde ir”

    Leia em exclusivo em Portugal, esta reportagem do premiado jornalista de guerra Boštjan Videmšek, também publicada esta semana no Boston Globe e no jornal esloveno DELO.

    Antes da invasão pela Rússia, a Ucrânia já era o país da Europa com o maior número de crianças institucionalizadas. Mais de 100.000 crianças viviam em orfanatos. A guerra veio piorar ainda mais a situação. Boštjan Videmšek deslocou-se à Ucrânia para relatar a situação que se vive nos orfanatos. Encontrou instituições sem meios, escassos recursos humanos e crianças sedentas de afecto, num país devastado pela guerra que dura há um ano. Nesta reportagem, o jornalista esloveno, que cobriu todos os grandes conflitos e guerras desde 1998 e se tem dedicado ao tema dos refugiados e do ambiente, mostra as dificuldades e os desafios que enfrentam os orfanatos num país dilacerado.


    Quando Halyna Bondaruk, líder da instituição de caridade Small Wins, entrou no orfanato na periferia sul de Lviv, um grupo de crianças correu imediatamente na sua direção. As crianças agarraram-se a Halyna como enfeites a uma árvore de Natal.

    O pequeno orfanato abriga actualmente 30 crianças, que foram evacuadas das regiões mais ameaçadas da Ucrânia. Nem todas estavam sem pais, uma particularidade do sistema de orfanatos estatal ucraniano. Antes do início da guerra, este sistema oferecia abrigo a 105 mil crianças, aproximadamente 1% da população infantil da Ucrânia – a maior taxa de institucionalização na Europa.

    Antes da invasão russa, uma média de 250 novas crianças entravam no sistema diariamente. De acordo com a UNICEF, cerca de metade de todas as crianças nos orfanatos da Ucrânia antes da guerra eram deficientes.

    Nem todos eram órfãos “clássicos”. Os chamados “órfãos sociais” também estavam massivamente representados. De acordo com a lei ucraniana, as crianças podem ser retiradas de pais com dependências crónicas ou antecedentes criminais, ou de pais cujos filhos não recebem educação adequada. A principal razão para as crianças serem enviadas para lá era a pobreza.

    Em 2021, a Ucrânia tinha cerca de 750 orfanatos, empregando 68 mil pessoas.

    Após o início da guerra, o sistema de orfanatos do país foi lançado no caos. Algumas das instituições enfrentaram uma grave escassez de pessoal. Dezenas de orfanatos das regiões leste e sul foram realocados em áreas mais seguras. Muitas crianças ficaram presas nos territórios ocupados pela Rússia. Segundo a UNICEF, o exército invasor deportou cerca de 26 mil crianças ucranianas para o território russo ou para a Crimeia ocupada.

    Diana, uma menina de 10 anos, foi evacuada do leste da Ucrânia. Junto com seus dois irmãos mais novos, foi levada para Lviv, onde o trio acabou separado. Sem os irmãos, Diana não consegue parar de chorar. A sua mãe alcoólatra não prestava os devidos cuidados a nenhum dos seus três filhos, e o pai simplesmente desapareceu. Mesmo assim, Diana ainda espera que a sua mãe possa um dia aparecer para a reivindicar.

    “Essas crianças são as que mais sofrem, dada a forma como estão a construir falsas esperanças”, disse Andrii Mudrak, 24 anos, psicólogo que trabalha com crianças traumatizadas em Lviv.

    “A chave é ajudar a acalmar e estabilizar as crianças novas que ficam sob a nossa custódia”, explicou Mudrak. “A maior parte chega aqui em mau estado. Na maioria, chegam traumatizadas. Para uma criança, cada mudança pode ser uma grande tragédia. De vez em quando, uma das crianças escapa. Mas o problema é que estas crianças não têm para onde fugir!”

    Mudrak foi trazido para o orfanato de Lviv, severamente subdotado de pessoal e subfinanciado, com a ajuda de uma instituição de caridade local. “A maior parte do meu tempo é gasto a lidar com as consequências causadas por abusos e/ ou perdas profundas”, relatou o futuro psicoterapeuta. “Todas estas crianças precisam desesperadamente de amor e atenção.”

    Num dos quartos do orfanato, Andrii Mudrak e as crianças que acompanha viam um filme. No dormitório, um grupo de meninas disputava agressivamente a atenção dos visitantes. Um menino estava a perseguir um cão velho malhado pelo corredor. As paredes das salas sufocantes estavam cobertas de rabiscos e desenhos. Assim como em outros lugares da Ucrânia, o orfanato foi muito afectado, em termos de electricidade e de aquecimento, dados os constantes ataques russos à infraestrutura energética.

    “Em 1991, após a dissolução da União Soviética, a Ucrânia tinha um milhão de crianças a viver nas ruas. A maioria deles tinha sido abandonada pelos pais alcoólicos e desempregados. As crianças tiveram de recorrer à mendicidade. Alguns viviam nos sistemas de esgotos. As autoridades decidiram abrir várias centenas de instituições como a nossa”, diz Helena Malenchuk, vice-diretora do Abrigo para Crianças de Lviv.

    Malenchuk continuou, explicando como, no último ano, as condições nos orfanatos ucranianos se deterioraram gravemente. Parte do motivo deveu-se ao facto de, no segundo dia da guerra, as autoridades terem optado por suspender todas as adopções.

    “Não havia outra escolha. Era a única forma realista de limitar as manipulações possíveis e proteger as crianças. Hoje em dia, muito mais crianças são colocadas em lares adoptivos”, explicou Halyna Bodnaruk, que lidera a instituição de caridade Small Wins.

    Há 37 anos que Miroslava Lipitska gere um internato para crianças com necessidades especiais no centro de Lviv. A escola, NRC Oberig, também funciona como um orfanato – ainda mais durante o ano passado, quando a situação forçou as autoridades a misturar ainda mais as crianças deficientes com os órfãos. Dada a escassez crónica de pessoal, os cuidados recebidos pelas crianças estão a tornar-se cada vez menos frequentes.

    “Estamos a fazer tudo o que podemos. Estamos realmente a lutar por estas crianças. Precisamos perceber que aqui, na instituição, estamos a ter uma vida muito mais fácil do que as pessoas nos campos de batalha”, comentou Lipitska no antigo palácio aristocrático, agora cedendo lentamente sobre si mesmo.

    Actualmente, 113 crianças estão alojadas no orfanato escolar, que parece um portal para os tempos do império austro-húngaro. Alguns dos residentes são permanentes, alguns estão apenas temporariamente aqui. Muitos deles vieram das regiões de Donetsk e Lugansk. Os voluntários estão a ir buscá-los às ruas e à estação ferroviária local. Algumas das crianças tinham perdido o pai para a linha da frente sem nunca terem conhecido as mães.

    Entre os últimos a chegarem estavam Max, da cidade ocupada de Melitopol, e um menino sombrio com uniforme militar, vindo da cidade de Pokrovskyi, na região de Donetsk, localizada bem ao lado da linha de frente. No dia da nossa visita, Lviv estava sob alarme aéreo constante. O menino sombrio desceu, correndo as escadas para garantir de que estava seguro.

    “Quero ir para casa”, exclamou Karina, de 18 anos, enquanto fazia os trabalhos de Matemática. Em Março passado, foi evacuada da cidade de Enerhodar, na região de Zaporizhzhia, localizada nas imediações da maior central nuclear da Europa. Após meses de intensos combates, a cidade é agora controlada pelas forças russas.

    Karina sofre de várias deficiências. Logo depois de nascer, a sua mãe alcoólatra deixou-a no orfanato. No entanto, a doce menina logo se acostumou à sua nova situação. De vez em quando, ela até era visitada por parentes. Tinha o seu próprio pequeno mundo. Mas, praticamente da noite para o dia, a guerra até isso lhe tirou.

    Agora, está visivelmente a sofrer no orfanato de Lviv. A adolescente abandonada tem muitas saudades do seu antigo orfanato. Os seus cuidadores disseram-nos que ela estava o tempo todo a ligar para os seus parentes, pedindo que a viessem buscar.

    Mas, neste momento, as suas esperanças têm precisamente zero de probabilidade de se tornarem uma realidade…

    N.D. Caso deseje ajudar os órfãos na Ucrânia, pode fazê-lo efectuando o seu donativo para a organização Small Wins Charity Foundation.

  • Cascais gasta mais de um milhão de euros no apoio a refugiados ucranianos, mas sempre por ajuste directo e em contratos nebulosos

    Cascais gasta mais de um milhão de euros no apoio a refugiados ucranianos, mas sempre por ajuste directo e em contratos nebulosos

    Não houve político que não tivesse querido ficar bem na fotografia da solidariedade internacional com o povo ucraniano. Mas no município de Cascais, a edilidade afanou-se e não tem deixado “secar a caneta”, despachando contratos atrás de contratos, tudo por ajuste directo, em prol dos refugiados. Mais de um milhão de euros já foram gastos, mas grande parte em contratos pouco claros, que a autarquia liderada por Carlos Carreiras não está muito disposta a divulgar na sua plenitude. Para a Câmara de Cascais parece que basta dizer que o dinheiro público serve “uma boa causa” para se colocar uma pedra sobre o assunto .


    Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, nenhum outro município se equipara ao de Cascais, que tem gasto sem parança para alegadamente apoiar os refugiados daquele país de Leste. Numa consulta detalhada ao Portal Base sobre contratos públicos relacionados com a Ucrânia, confirma-se que a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras já investiu, sempre em contratos por ajuste directo, e na esmagadora maioria dos casos sem se conhecerem grandes detalhes, quase 930 mil euros, excluindo IVA. Incluindo este imposto – variável em função do contrato – já se ultrapassou um milhão de euros.

    Este montante representa cerca de 85% do total dos gastos em contratação pública pelos municípios portugueses no apoio à Ucrânia – ou seja, para prestações de serviços externos com vista a suprir necessidades sem resposta imediata pelos serviços da Administração Pública.

    Cascais destaca-se dos municípios portugueses no apoio aos refugiados ucranianos, mas na hora de analisar as contas há contratos pouco claros.

    À cabeça dos gastos do município de Cascais surgem duas empreitadas extraordinárias para a execução de obras de alojamento – algo que mais nenhuma outra autarquia portuguesa que acolheu ucranianos fez.

    O primeiro contrato foi celebrado em 11 de Abril passado com a Ediperfil, para adaptação da antiga creche de São José, entretanto alocada à Santa Casa da Misericórdia de Cascais, tendo um valor de 157.274,84 euros (IVA incluído).

    Uma dezena de dias mais tarde foi assinado outro contrato, desta vez, com a empresa Valente & Carreira para remodelação urgente de habitações num antigo bairro operário perto da creche, na Avenida de Sintra. O custo deste contrato: 321.052,80 euros, com o fito de criar 40 quartos, segundo informações do gabinete de imprensa da autarquia.

    Porém, informações detalhadas sobre as obras destes dois contratos são escassas. O PÁGINA UM procurou, desde 6 de Maio, obter junto da autarquia cascalense os dois cadernos de encargos relativos a estas empreitadas, que deveriam constar do Portal Base. No entanto, a autarquia nunca os disponibilizou, optando apenas por elencar referências meramente descritivas das obras realizadas sem qualquer custo associado. Uma situação que se repetiu em relação a similares pedidos de outros contratos.

    Sobre o facto de ambas as empresas terem sido contratadas por ajuste directo e também ambas serem do concelho da Batalha, o gabinete de imprensa de Carlos Carreiras foi lacónico; “Não havendo motivo, não há nada a acrescentar”.

    Fachada da antiga creche de São José, na Avenida de Sintra, em Cascais, entretanto reabilitada para receber refugiados ucranianos. Foto: Google Street.

    Certo é que as duas empresas da Batalha têm estado particularmente activas nos últimos anos no concelho de Cascais, somando contratos atrás de contratos. Desde 2018, a Ediperfil conta cinco, no valor total de cerca de 800 mil euros. Já a Valente & Carreira acumula quatro contratos desde 2020 e com valores substancialmente superiores: um pouco mais de 4,6 milhões de euros, dos quais se destacam duas empreitadas em edifícios da Cruz Vermelha, no âmbito da pandemia, também por ajuste directo, no valor de quase três milhões de euros.  

    Entretanto, e apesar de todos estes elevadíssimos encargos supostamente para acomodar refugiados ucranianos, a Câmara Municipal de Cascais ter-se-á visto ainda na necessidade de fazer mais dois contratos com uma empresa de alojamento local, a Juicycategory. Custo total, para já: 108.120 euros. Nos contratos com esta empresa – sobre os quais a autarquia nada quis relevar ao PÁGINA UM –, presentes no Portal Base, ignora-se até o objecto em concreto.

    Com efeito, no primeiro contrato, assinado em 11 de Maio e no valor de 36.040 euros, surge referência a “uma proposta apresentada em 29 de março de 2022, que aqui se dá como reproduzida e que fica a fazer parte integrante deste contrato”, mas depois nada é incluído no Portal Base. Apenas se sabe, pela descrição nesta plataforma de suposta transparência relativa à contratação pública, que este contrato tem um prazo de execução de 61 dias.

    Carlos Carreiras é presidente da autarquia de Cascais desde 2011.

    Similar situação ocorre no segundo contrato com a Juicycategory, assinado no dia 17 deste mês e por um prazo de 122 dias. Com um valor de 72.080 euros, o contrato faz também menção à existência de “uma proposta apresentada”, esta em 8 de Junho, mas depois não surge absolutamente nada mais no Portal Base. Não se sabe assim quantos ucranianos estarão a ser alojados no âmbito deste contrato, onde pernoitam, se dormem no chão ou em lençóis de cetim. A primeira vez que o PÁGINA UM questionou a autarquia de Cascais sobre estes contratos foi em 30 de Maio e reiterou o pedido no passado dia 22 de Junho.

    Embora estes sejam os montantes mais elevados dos gastos da autarquia de Cascais no apoio ao povo ucraniano, esta edilidade também se salientou por ter alugado 10 camiões TIR, com um custo de cerca de 50 mil euros, para transportar 223 toneladas de “vestuário, alimentação (incluindo comida e leite para bebé), produtos farmacêuticos, produtos de higiene e alimentação para animais”, de acordo com o gabinete de imprensa de Carlos Carreiras.

    O PÁGINA UM pediu, contudo, as guias de transporte ao município, mas obteve apenas como resposta que “a esmagadora parte dos produtos recolhidos (…) foram doados por cascalenses e empresas sedeadas em Cascais e noutros pontos do país”. O gabinete de imprensa do município preferiu destacar que o movimento inusitado de solidariedade se deveu ao facto de este município possuir “um grande centro de recolha que é uma referência para vários pontos do país e que possibilita o armazenamento de várias toneladas em simultâneo, para além de uma equipa muito competente no envio de ajuda humanitária à Ucrânia.”

    A edilidade de Cascais acrescentou ainda, a este respeito, que “quatro TIR destinaram-se especificamente a Bucha [onde alegadamente terão sido cometidos crimes de guerra pelas tropas russas], cujo presidente da Câmara pediu ajuda directamente ao presidente da Câmara de Cascais em vídeo conferência no dia 25 de Abril.”

    green wheat field under blue sky during daytime

    Além destas despesas, a autarquia de Cascais também pagou cerca de 28 mil euros para fretar um voo da TAP que transportou 226 ucranianos para Portugal. Este contrato não consta no Portal Base.

    Saliente-se que, também no transporte de mercadorias e refugiados, a autarquia de Cascais se destacou dos demais municípios. De acordo com o Portal Base, apenas os municípios de Portimão (5.800 euros), de Gouveia (5.919 euros), de Gondomar (29.250 euro) e de Olhão (20.283 euros), para além da Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo (29.425 euros), registaram gastos no transporte de mantimentos e/ ou de refugiados ucranianos.

    Por fim, nos contratos assinados pela autarquia de Cascais ainda se incluem fornecimentos de alimentação para os refugiados, incluindo um de 250 mil euros com a empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar, mas a autarquia diz que aquele montante constitui o valor máximo. Até 30 de Maio, segundo o gabinete de Carlos Carreiras, tinham sido gastos 37 mil euros.

    Num outro contrato, com a Panisol, destinado ao fornecimento diário de pão aos refugiados, foi assinado um contrato de até 10 mil euros. Contudo, a autarquia diz que, até ao final de Maio, tinham sido gastos apenas 350 euros, o que significa menos de 2.500 carcaças, se for essa a referência, indicando assim que a procura alimentar por parte dos refugiados tem ficado muito aquém das expectativas iniciais.

    De acordo com a autarquia de Cascais, pelos centros de acolhimento daquele município tinham passado, até finais de Maio, 1.714 ucranianos, integrando 658 famílias, na sua maioria mulheres e crianças. Nessa altura estariam então a ser apoiadas, segundos os números da autarquia, 253 famílias e a taxa de ocupação média das unidades de alojamento situava-se nos 75%. O PÁGINA UM não obteve resposta na passada semana para uma actualização destes números.

  • Senhor administrador, pode dizer-nos quanto doou?

    Senhor administrador, pode dizer-nos quanto doou?

    A guerra da Ucrânia mobilizou cidadãos e empresas para ajuda aos refugiados. Mas será que os empresários portugueses estão dispostos a revelar quanto deram do seu bolso, como fazem muitos estrangeiros? O PÁGINA UM foi perguntar a seis empresas portuguesas que apelaram aos seus clientes para ajudarem o povo ucraniano com bens e dinheiro.


    Em crises humanitárias, quem anda por “passadeiras vermelhas” quase sempre aproveita o seu mediatismo, influência social e mesmo o cofre pessoal para ajudar os mais necessitados. Celebridades e empresários, muitas vezes os mais ricos do Mundo, avançam rapidamente para os holofotes, anunciando apoios de muitos milhares ou milhões de euros e dólares. Na verdade, alguns deles chegam aos milhares de milhões.

    Por exemplo, segundo uma compilação da Forbes feita em Janeiro passado, Warren Buffet estava no topo do filantropos norte-americanos com donativos, sobretudo nos sectores da saúde e apoio à pobreza, que totalizavam já os 46,1 mil milhões de dólares.

    person holding silver round coins

    Um pouco mais atrás, surgiam Bill Gates e a sua ex-mulher Melinda, com 33,4 mil milhões. George Soros, Michael Bloomberg, Mackenzie Scott (ex-mulher do fundador da Amazon Jeff Bezos), Charles Feeney (co-fundador do Duty Free Shoppers) e Betty e o seu marido Gordon (co-fundadores da Intel) também já doaram ao longo da vida, pessoalmente ou através das suas fundações, mais de cinco mil milhões de euros.

    Embora com valores mais modestos – mas em níveis estratosféricos para o comum dos mortais –, desportistas, artistas e influencers têm contribuído para muitas campanhas de apoio social.

    No caso da guerra da Ucrânia, essa mobilização tem-se intensificado nas últimas semanas. Por exemplo, a actriz Mila Kunis, nascida na Ucrânia, e o seu marido Ashton Kutcher, doaram já três milhões de dólares, mas conseguiram ainda, através dos seus fãs, ultrapassar os 35,7 milhões em donativos, que envolveram quase 75 mil pessoas numa campanha no GoFundMe.

    Também o casal de actores Blake Lively e Ryan Reynolds prometeu doar até um milhão de dólares. A modelo Gigi Hadid comprometeu-se, por sua vez, a doar um mês de salário. E o tenista suíço Roger Federer deu 500 mil euros para apoiar crianças ucranianas. A lista é quase infindável.

    A invasão da Ucrânia também impulsionou uma forte onda de solidariedade na sociedade portuguesa, pouco vista nas últimas décadas, tanto a nível individual como empresarial. Mas em duas coisas a realidade nacional parece distinguir-se de outros países com uma cultura mais anglo-saxónica.

    A primeira decorre da nossa dimensão: os donativos reflectem a escala da economia portuguesa, e não se encontra em Portugal verdadeiros filantropos, daqueles que concedem em vida uma parte substancial da sua riqueza em benfeitorias sociais.

    A segunda tem a ver com a forma como empresas e empresários em muitos países mostram uma atitude mais proactiva na divulgação das suas acções de beneficência, aproveitando-as mesmo como marketing corporativo e pessoal. Em Portugal, raramente essa atitude se tem visto.

    Assim, o PÁGINA UM decidiu contactar seis das maiores empresas nacionais que desenvolveram campanhas de angariação de fundos e donativos para o povo ucraniano, a saber: Sonae, CTT, Jerónimo Martins, Galp Energia, EDP e a sua subsidiária EDP Renováveis.

    Em geral, essas campanhas consistiram sobretudo em apelos para os clientes entregarem bens nas lojas dessas empresas, que depois as encaminharam para as fronteiras ucranianas, embora algumas tenham também prometido donativos directos.

    Porém, o PÁGINA UM quis saber mais. Além de perguntar, em concreto, como correram as suas campanhas, quisemos conhecer os montantes doados por cada um dos membros dos respectivos conselhos de administração.

    É tema tabu.

    Apenas os CTT, a Jerónimo Martins e a EDP Renováveis responderam, mas todas descartando fornecer elementos sobre os donativos dos seus responsáveis máximos.

    Fonte oficial dos CTT disse ao PÁGINA UM que a empresa já fez chegar à Ucrânia “40 toneladas de donativos [bens], na sua maioria alimentação e roupa, mas também calçado, artigos para crianças, produtos de higiene e primeiros socorros”, tendo o último camião descarregado essas ofertas de clientes no passado dia 29 de Março. Sobre eventuais contribuições do Conselho de Administração, a mesma fonte diz que os CTT “não divulgam essas informações”, acrescentando somente que esta campanha contou com uma “participação muito activa de todos os colaboradores”.

    Já a EDP e o Grupo Jerónimo Martins – que anunciou a alocação de cinco milhões de euros em apoio aos refugiados ucranianos na Polónia, onde detém a cadeia de supermercados Biedronka – também não quiseram revelar se os administradores deram donativos a título pessoal.

    Ambas as empresas limitaram-se a “encaminhar” o PÁGINA UM para os comunicados de imprensa nos respectivos sites oficiais.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira

  • Não sei ainda dizer qual o sabor da morte

    Não sei ainda dizer qual o sabor da morte

    Cometo, neste texto, um pecado capital. Como jornalista, não soube distanciar-me do objeto da notícia. Estou, em simultâneo, a fazer trabalho humanitário. Envolvi-me demasiado para estar agora a escrever notícias “objectivas”.


    Antes de partir, sentei-me no sofá, desliguei a televisão, pedi inspiração para um pequeno texto para publicar nas redes sociais. Ocorreu-me uma pergunta: a que saberá a morte?

    Sem resposta, comecei a arrumar a mala: duas camisolas, um casaco, dois pares de calças, dois pares de meias, um par de botas e um gorro, e outras coisas habituais e íntimas para um viajante. Bagageira e lugares preenchidos com mantimentos: além de alimentos, medicamentos e material de socorrismo, material logístico.

    A família, os amigos e os conhecidos rapidamente espalharam a novidade.

    Um dia depois, chegaram os primeiros donativos. A esposa, as amigas dela, os meus amigos ajudaram a separar e embalar os produtos. No dia seguinte já não tinha lugar em casa, nem na garagem, nem no jardim.

    Entretanto, não escrevi o texto. Apenas tive tempo para avisar os meus alunos e colegas que não daria as próximas aulas. Avisar o Pedro que, afinal, não tivera oportunidade de escrever o texto sobre as guerras que continuaram a pulular pelo Mundo nos últimos dois anos sem terem capacidade de “estancar” a pandemia.

    Em Lviv, a carrinha com mantimentos que me transportou desde Portugal.

    Parti. Julgava seguir sozinho, mas afinal saí na companhia de dois recém conhecidos, Mykola e Nazar. O primeiro ofereceu-se para ser tradutor, porque desejava buscar três familiares. O segundo queria boleia para se alistar no exército e combater russos.

    Percorremos em dois dias e meio a Europa. Espanha, França, Alemanha. Polónia, finalmente. Chegámos à vizinhança da Ucrânia. Fomos abordados pela polícia uma única vez, na fronteira francesa. Na Alemanha começámos a ver carros carregados, e algumas bandeiras ucranianas. Na Polónia, caravanas já organizadas.

    Mykola Sydor e Nazar Khamulyak, portugueses de ascendência ucraniana, que me acompanham.

    Na fronteira Polónia-Ucrânia não vimos sinais de covid-19, mesmo se, antes da invasão russa, aquele país estava ainda sob um surto, com 1,5% da sua população considerada infectada, apenas 35% vacinada.

    Aliás, se houver covid-19 por aqui, anda desmascarada! Não há máscaras em lado algum, nem certificados. Não há gente isolada nem de quarentena. Não há sintomas gripais nem gente doente.

    Há “apenas” guerra, e desde que há guerra não há máscaras – gente destemida. Dizem-me que por aí, em Portugal, há muita gente temida pela possibilidade de a chegada de ucranianos fazer ressurgir a pandemia. Quer-se vacinar tudo e todos.

    Centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, na fronteira polaca.

    Pelo caminho, Mykola conseguira resgatar a família sem se encontrar com ela. O “guerrilheiro” Nazar ficou tão absorvido pela multidão que encontrou que esta lhe sugou as forças com pedidos de ajuda. Trocou a frente de fogo pelas chamas do humanismo.

    Valeu-lhes, e valeu-me, o facto de serem portugueses de origem ucraniana; dominam as duas línguas na perfeição.

    Durante os primeiros dias foram-nos chegando camiões carregados. As ofertas vindas de Portugal eram rapidamente guardadas em armazéns improvisados. Na fronteira, uma correria de camionetas e de carros, num vaivém. Gratuitamente, levam os refugiados de uma fronteira para a outra. No meio do caos, alguma ordem.

    Há vida nos carregadores.

    Do lado da Ucrânia, filas de quarenta quilómetros de espera, para passar. Maridos que vêem partir a mulher e os filhos, mulheres e crianças assustadas.

    Somente as crianças aparentam felicidade. Há internet gratuita e fichas para carregar os telefones. Para muitos, isso é a ligação aos familiares, à vida. Há vida assim.

    Poucos quilómetros depois da fronteira, nas entranhas da Ucrânia, encontramos uma rotina diferente. Lviv é, apesar de tudo, uma cidade onde reina a normalidade. O comércio funciona, as pessoas circulam, vão para o trabalho, às compras, passeiam. Uma rotina.

    Mas essas são os habitantes. Para quem chega de outras cidades, como Kiev, fugindo mesmo da guerra, e pernoita em escolas e armazéns, aguarda-se apenas com ânsias a oportunidade de seguir para a fronteira.

    As estradas ucranianas na região oeste estão fortemente ocupadas por militares em postos de controlo de poucos em poucos quilómetros. Militares que não falam inglês, de pouca simpatia, mesmo para quem vem fazer serviço humanitário. São necessários alguns minutos até que nos olhem com outros olhos. Qualquer um de nós pode ser um infiltrado…

    Vídeos e fotografias são proibidos. Revistam tudo. Fazem um excelente trabalho.

    Um dos postos de controlo, anteontem à noite, no coração da Ucrânia.

    Ao distribuir alguns mantimentos pelas escolas, conforme as necessidades de cada uma, fui recebendo outros pedidos, outras moradas. Gente para transportar. Cada uma mais perto de Kiev, cada vez com maior presença militar. Até agora, estão em falta super-guerrilheiras, modelos de perfeição, que nos chegam a Portugal pelas redes sociais.

    Há gasóleo nas bombas, há gente que mantém rotinas. Em falta, mais ajuda humanitária. Mais meios, mais mãos para ajudar.

    Depois de ganhar confiança com a população local, levam-nos aos seus pontos de encontro. Um deles é uma biblioteca transformada em fábrica de construção de redes para camuflar tanques. Ali, jovens, crianças e adultos cortam panos e vestem as redes, ao som de piano, guitarra. E cantos. Nunca vi biblioteca com tantos jovens. Há destes momentos deliciosos em tempos difíceis, onde se encontra a Humanidade.

    Biblioteca em Lviv, onde se lê, canta e se costuram camuflados para tanques ucranianos.

    Sabendo que me aproximo de Lviv, pedem-me para levar mantimentos, fazem-me entregas, abraçam-me. Por instantes esqueço os quatro graus negativos.

    Recordo a minha família.

    No Lviv International Media Center encontram-se os jornalistas que requisitam as credenciais, como eu, para o PÁGINA UM. Internet, computadores, casa de banho e bebidas quentes. Um luxo nestas paragens, e nestes tempos.

    Para muitos enviados especiais, um lugar fantástico para apresentar directos, para copiar ou reescrever as notícias das agências internacionais. Estou grato a este centro, permitiu-me internet gratuita por instantes.

    No centro de imprensa de Lviv.

    Entretanto, um mea culpa.

    Cometo, neste texto, um pecado capital. Como jornalista, não soube distanciar-me do objeto da notícia. Estou, em simultâneo, a fazer trabalho humanitário. Envolvi-me demasiado para estar agora a escrever notícias “objectivas”.

    E também não sei ainda dizer qual o sabor da morte. Mas sei dizer-vos que a vida é deliciosa. Mesmo aqui, na Ucrânia.