Etiqueta: Transparência

  • Concorrência: Tribunais ‘perdoaram’ 25 milhões de euros em multas aplicadas nos últimos dois anos

    Concorrência: Tribunais ‘perdoaram’ 25 milhões de euros em multas aplicadas nos últimos dois anos

    Nos últimos dois anos, quatro de seis grandes processos que foram parar aos tribunais para deliberar sobre condenações da Autoridade da Concorrência resultaram em ‘perdões’ parciais das coimas decididas pelo regulador. As reduções das coimas oscilaram entre os 16% e os 94% e beneficiaram empresas e indivíduos condenados pela Concorrência. Só nestes quatro processos, são 25 milhões de euros que já não têm de ser pagos. Mas, além destes ‘perdões’ aplicados a quem foi ‘apanhado’ a cometer infracções à lei, saltam à vista as muitas tentativas das entidades condenadas em arrastar os casos na Justiça, muitas vezes até à prescrição, como está a suceder com o ‘cartel’ da banca.


    No dia 6 de Setembro de 2022, a Autoridade da Concorrência (AdC) aplicou uma coima de 2,5 milhões de euros à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) por esta ter realizado a compra da CVP – Sociedade de Gestão Hospitalar, S.A sem ter pedido a devida não oposição do regulador, uma prática conhecida como ‘gun jumping‘. Na sua decisão, a AdC levou em conta o facto de a SCML ter demonstrado “uma colaboração adequada” durante “a fase de análise da operação de concentração notificada” e também “no decurso do processo contra-ordenacional”.

    Contudo, já em 2023, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), apesar de ter confirmado a infracção de ‘gun jumping‘, reduziu o montante da coima a pagar pela SCML para 160 mil euros. O Tribunal justificou a redução de 94% da coima por ” entre outras circunstâncias, ter afastado o dolo imputado pela AdC e concluído pela mera negligência da SCML, bem como por ter concluído que a atuação ilícita da SCML era reconduzível a uma única contra-ordenação”, segundo informação que consta no processo no site da AdC.

    Este é um dos casos recentes em que empresas condenadas pela AdC beneficiam de redução nas coimas graças a decisões na Justiça. No entanto, não é caso único. Outros processos mediáticos investigados pela AdC resultaram na aplicação de coimas aos infractores que, depois, viram os tribunais a reduzir o valor da sanção a pagar.

    Foto: D.R.

    No total, em quatro processos, a ‘poupança’ para as entidades condenadas chegou aos 24,9 milhões de euros, com a redução de coimas a oscilar entre os 16% do montante inicial aplicado pela AdC e os 93,4%.

    O maior ‘perdão’, no valor de 14 milhões de euros, beneficiou a MEO. A empresa de telecomunicações tinha sido condenada pela AdC ao pagamento de uma coima de 84 milhões de euros. Isto porque a empresa realizou e implementou um acordo com a NOWO, “visando a fixação de preços e a repartição do mercado, no mercado retalhista de serviços de comunicações móveis vendidos de forma isolada (‘standalone‘) no território 37 nacional e no mercado retalhista de serviços de comunicações oferecidos em pacotes convergentes (que incluem serviços de comunicações móveis e fixas) nas áreas geográficas em que a NOWO dispõe de uma rede de comunicações fixas (distritos de Aveiro, Castelo Branco, Évora, Leiria e Setúbal), com o objeto de restringir, de forma sensível”.

    O TCRS confirmou a condenação bem como a coima. Mas a MEO recorreu para o Tribunal da Relação, o qual, num acórdão em 2023, confirmou igualmente a infracção, mas reduziu a coima para 70 milhões de euros. Apesar desta redução, a AdC destacou, no seu relatório de Actividades de 2023, que ” tratou-se da coima mais elevada alguma vez fixada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de apreciação de decisões da AdC”.

    person standing near the stairs

    Outro caso mediático foi o processo dos CMEC, no qual foi condenada a EDP – Gestão da Produção de Energia, S.A por sentença proferida em 10 de agosto de 2022. Nesse acórdão, o TCRS confirmou a decisão da AdC, de 17 de setembro de 2019, por prática de abuso de posição dominante. A infracção consistiu “na limitação das ofertas do serviço de sistema de regulação secundária pelas centrais CMEC, de modo a transferir atividade e receitas para as suas centrais de mercado e, assim, elevar artificialmente os preços deste serviço e a remuneração das centrais CMEC, entre janeiro de 2009 a dezembro de 2013”, segundo a AdC.

    A EDP foi ainda condenada na sanção acessória de publicação de extrato da presente sentença na II série do Diário da República e em jornal de expansão nacional, no prazo de 20 dias úteis após trânsito em julgado. Contudo, a eléctrica recorreu da condenação. A 20 de fevereiro de 2023, o TRL confirmou a infracção mas reduziu a coima aplicada para 70 milhões de euros.

    Também num processo mediático que envolveu empresas do sector da ferrovia, a Justiça baixou o valor das coimas a pagar. As visadas neste caso são a Fergrupo e Somafel, acusadas de celebrar e executar dois acordos entre empresas, visando a fixação do nível dos preços e a repartição do mercado, no âmbito dos concursos lançados pela REFER/IP para a prestação dos serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga, para o período 2015-2017. O objectivo das empresas era “impedir, falsear ou restringir, de forma sensível, a concorrência, cometeram, cada uma, duas infrações”.

    Coimas pagas à Autoridade da Concorrência nos últimos cinco anos, em milhares de euros. Dados de 2024 até ao dia 1 de Dezembro)
    Fonte: AdC

    Neste caso, o TCRS baixou em cerca de 30% o montante das coimas aplicadas pela AdC às empresas visadas e em cerca de 40% às pessoas singulares. A Somafel, por exemplo, viu a sua coima descer de 925 mil euros para 640 mil euros enquanto a coima do Fergrupo baixou de 870 mil euros para 600 mil euros. O TRL manteve a decisão do TCRS mas o acórdão não transitou em julgado, por ter havido recursos para o Tribunal Constitucional.

    Num outro processo mediático, em que a visada foi a Super Bock, em 24 de julho de 2019, a AdC condenou a empresa e um administrador e um diretor da empresa ao pagamento de coimas de valor global superior a 24 milhões de euros por fixação de preços de revenda e de outras condições de transacção. Mas este caso encontra-se “pendente recurso de impugnação judicial da decisão final”.

    Outro caso muito mediático, cuja investigação pela AdC teve início em 2012, o regulador condenou 14 bancos a pagar um total de 225 milhões de euros em coimas. A denúncia partiu do Barclays e, posteriormente, a AdC concluiu que os bancos “trocaram entre si informação sensível, durante um período superior a dez anos, relativamente ao crédito habitação, crédito ao consumo e crédito a empresas, o que consubstancia uma prática concertada entre concorrentes”. Também neste caso encontra-se pendente recurso de impugnação judicial da decisão final, havendo mesmo bancos a invocar a prescrição da condenação.

    Coimas aplicadas pela Autoridade da Concorrência nos últimos cinco anos. (Valores em milhares de euros / Dados de 2024 até ao dia 1 de Dezembro) / Fonte: AdC

    Apesar de haver em vários processos lugar a redução das coimas por parte dos tribunais, segundo o relatório anual da AdC referente a 2023, considerando um universo de 28 decisões judiciais que envolveram directamente as leis da concorrência, 20 foram favoráveis à AdC, quatro foram parcialmente favoráveis e quatro foram desfavoráveis, o que, segundo o regulador “determina uma taxa de sucesso de cerca de 72% ou de 85% se forem igualmente consideradas as decisões parcialmente favoráveis”.

    Mas a realidade que a AdC enfrenta é a de processos quase eternos na Justiça. “O recurso a meios processuais dilatórios – relativamente recorrente nos processos judiciais da concorrência por parte das empresas – conjugado com a morosidade dos tribunais potencia a prescrição de processos que é geradora de uma impunidade sistémica grave”, afirmou uma porta-voz da AdC ao PÁGINA UM. Frisou que, “quando há situações de prescrição há uma denegação de justiça que põe a aplicação do direito da concorrência e de uma cultura de concorrência”. A mesma fonte destacou que, “para acautelar e regular estas situações, a última revisão à Lei da Concorrência (que transpôs a diretiva ECN+) prevê a suspensão do prazo prescricional durante toda a fase judicial”. Uma medida que pode empurrar mais empresas para colaborarem com a AdC e aceitarem pagar as coimas em vez de avançar para a Justiça.


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  • ERC anula a sua própria deliberação que acusava o PÁGINA UM de falta de rigor informativo

    ERC anula a sua própria deliberação que acusava o PÁGINA UM de falta de rigor informativo

    Foi por um formalismo, mas é um caso paradigmático: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) viu-se obrigada a anular a sua própria deliberação de Fevereiro passado onde acusava o PÁGINA UM de “falta de rigor informativo”, afirmando falsamente que o jornal nem sequer tinha respondido a uma notificação sobre uma das duas queixas formuladas, sob anonimato, pelo pneumologista Filipe Froes – um dos medicos com mais relações comerciais com a indústria farmacêutica. As duas notícias foram publicadas em Maio e Agosto do ano passado, usando informação oficial da Agência Europeia do Medicamento, mas numa altura em que ainda era tabu apelar para uma maior transparência e rigor no conhecimento dos perfis de segurança contra a covid-19. Perante suspeitas de que este e outros processos estejam a ser ser tratados pelo regulador de forma discriminatória ou sem que tenha conhecimento na área em causa para aferir do rigor informativo, o PÁGINA UM tem visto o regulador recusar a identificação dos técnicos envolvidos, razão pela qual seguiu queixa para a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) anulou a sua própria deliberação de Fevereiro passado contra o PÁGINA UM por causa da publicação de notícias sobre os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19. Aquela deliberação, surgida de duas queixas, sob anonimato, do pneumologista Filipe Froes – um dos médicos portugueses com maiores relações comerciais com a indústria farmacêutica – acusava o jornal de “falta de rigor informativo, sobretudo pela insuficiência na demostração de um nexo de causalidade entre a toma das vacinas e as mortes e na ausência de fontes de informação diversificadas”. Saliente-se que Filipe Froes tem em curso um processo de averiguações em curso, ,as parado há meses, no Infarmed sobre as suas relações com as farmacêuticas.

    A razão formal para o Conselho Regulador da ERC anular a sua própria deliberação, aprovada no passado dia 7 de Fevereiro, prende-se com o facto de em uma das queixas de Filipe Froes os serviços deste regulador não ter, por alegado lapso, notificado o director do PÁGINA UM para apresentar defesa. Contudo, no próprio texto da deliberação de Fevereiro diz-se que “segunda participação” tinha sido remetida ao PÁGINA UM, “não tendo respondido”. Ou seja, a ERC assumiu que o PÁGINA UM, que demorara vários dias a investigar os temas sobre os quais escreveu, não respondia por desinteresse.

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    Note-se que esta anulação enquadra-se também numa contenda que o PÁGINA UM tem tido com a ERC sobre a credibilidade do regulador e dos seus funcionários em analisar o rigor informativo de temas científicos, ainda mais sobre matérias sensíveis ainda não ‘consolidadas’ na comunidade científica. Contudo, até agora, a ERC tem recusado as diligências do PÁGINA UM no sentido de identificar os funcionários do regulador que têm estado envolvidos na análise da queixa, de modo a ter uma melhor percepção dos seus conhecimentos em Ciência para ajuizar da respectiva capacidade de concluírem pela “falta de rigor informativo, sobretudo pela insuficiência na demostração de um nexo de causalidade entre a toma das vacinas e as mortes e na ausência de fontes de informação diversificadas”, como se referiu na deliberação agora anulada.

    Hoje, seguiu uma queixa para a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) no sentido de obter um parecer sobre a obrigatoriedade da ERC ceder os documentos onde constem quem tem estado ennvolido na análise das queixas de Filipe Froes e quem foi responsável pela falha que resultou numa deliberação com falsidade e lesiva dos direiros de defesa do PÁGINA UM.

    Recorde-se que em causa estão sobretudo dois artigos do PÁGINA UM, publicados em Maio e Agosto do ano passado, que se basearam sobretudo em informação pública registada na base de dados da EudraVigilance, que compila informação individual anonimizada sobre efeitos adversos de medicamentos, incluindo as vacinas contra a covid-19. Essa informação é remetida pelas próprias farmacêuticas ou pelos reguladores dos diversos países que integram o Espaço Económico Europeu, passando assim por um crivo técnico e científico.

    Aliás, na primeira das notícias, publicada em Maio do ano passado, intitulada “Efeitos adversos: este ano, há quase nove mortes por dia associadas às vacinas da covid-19 na Europa” destacava-se que “embora a inclusão dos casos letais notificados na EudraVigilance não signifique inapelavelmente que as vacinas sejam a causa de morte, as suspeitas são muito relevantes, tanto mais que, em grande parte das situações, são as próprias farmacêuticas que enviam os registos individuais anonimizados”.

    Em 7 de Fevereiro passado, o pneumologista Filipe Froes, o queixoso, fez gala da deliberação da ERC antes mesmo de esta ter sido enviada ao PÁGINA UM. A deliberação foi agora anulada.

    Esse primeiro artigo, além de elencar as mortes associadas na própria Eudravigilance às vacinas contra a covid-19, bem como as reacções adversas totais e graves por marca, criticava a inexistência de dados que permitisse aferir a incidência. O artigo destacava também que “a OMS [Organização Mundial de Saúde] e os mais distintos Governos, incluindo o português, invocam as vacinas contra a covid-19 como o grande contribuidor para que o SARS-CoV-2 se tornasse endémico, menorizando o papel da variante Ómicron e a imunidade natural (dos infectados), mas esquecem de debater um dado sombrio: os efeitos adversos das vacinas”.

    Relativamente a esta notícia – sobre a qual o PÁGINA UM teve oportunidade de remeter um vídeo explicativo sobre a consulta da base de dados (que não é sequer referida na deliberação) –, a ERC preferiu até criticar a escolha das fotografias, achando mal que se tivesse colocado o director-geral da Saúde a sorrir.

    Já sobre a segunda notícia – a tal cuja mentira dos serviços da ERC levou à sua anulação –, estava em causa um levantamento sobre as mortes súbitas constantes nos registos das reacções adversas das vacinas contra a covid-19. E tinha subjacente sobretudo um apelo, que enobrece o jornalismo: a necessidade de estudar, com transparência, a segurança das vacinas, apresentando exemplo desse debate a ser iniciado na comunidade científica. E, por fim, apresentava um levantamento exaustivo – único na imprensa nacional – à base de dados da EudraVigilance para apurar os casos suspeitos de morte súbita associados às vacinas contra a covid19, porque, enfim, constavam nos registos destes fármacos na base de dados da Agência Europeia do Medicamento.

    Na deliberação agora anulada, a ERC até chega a elencar que o artigo em causa usa seis diferentes fontes de informação – não relevando sequer a maior, que é a base de dados – e nem sequer aponta qualquer erro ou manipulação. Porém, enviesa a análise: onde o artigo destaca a necessidade de estudos sobre segurança das vacinas com maior transparência, a ERC olha para isso como um ataque às vacinas. E chega mesmo a dizer que a escolha da fotografia de uma avestruz com a cabeça enfiada na terra “indicia uma conduta em que se deixa de lado qualquer dever de isenção”, esquecendo que um dos papéis fundamentais do jornalismo é exactamente denunciar a inércia e o obscurantismo das autoridades, que são formas de manipulação e de desinfirmação.

    A ERC é constituída sobretudo por juristas e outros profissionais na área da Comunicação e das Ciências Sociais, mas arvora-se de analisar o rigor informativo nas áreas da Epidemiologia ou da Saúde Pública que ainda se encontram em fase de consolidação na comunidade científica. E acha mal que se coloque fotos de avestruzes de cabela enfiada na terra.

    Com a anulação da deliberação, o processo iniciado com a queixa do pneumologista Fllipe Froes – que em Fevereiro passado tivera acesso á decisão da ERC em primeira-mão, antes mesmo do PÁGINA UM, divulgando-a nas redes sociais como uma suposta prova de descredibilização do jornal – volta ao início.

    O PÁGINA UM vai, por isso, enviar agora à ERC um conjunto de artigos científicos recentes sobre estudos referentes a reacções adversas, que já são agora debatidas livremente. E é bom recordar que existem processos judiciais em curso no Reino Unido sobre reacções adversas, por uma simples razão: um fármaco, mesmo que possa ser favorável a uma determinada doença, não ‘recebe imunidade’ para evitar ver escrutinados os seus efeitos adversos. E mesmo só se pode determinar se são aceitáveis em termos de saúde pública – e saúde individual – se não houver obscurantismo e manipulação. E mais: não é aceitável sequer que jornalistas procurem, contra-a-corrente, aflorar estes temas sejam ‘perseguidos’ por lobistas associados à indústria farmacêutica e por entidades reguladoras que constitucionalmente foram criadas para defender a liberdade de imprensa.


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  • Câmara de Cascais apresenta comprovativos de refeições no valor de 233 mil euros como se fosse ‘uma tasca no meio do monte’

    Câmara de Cascais apresenta comprovativos de refeições no valor de 233 mil euros como se fosse ‘uma tasca no meio do monte’

    Eis o resultado de uma investigação do PÁGINA UM que foi ‘até ao osso’, para servir de exemplo, sobre um caso que não será único no pouco escrutinado mundo autárquico. Perante a recusa da Câmara Municipal de Cascais em dar esclarecimentos sobre um estranho contrato de fornecimento de refeições a refugiados ucranianos – quando os seus centros de acolhimento já estariam ‘às moscas’ –, o PÁGINA UM recorreu ao Tribunal Administrativo, que acabou por obrigar a autarquia liderada pelo social-demicrata Carlos Carreiras a libertar as provas do cumprimento de um contrato de quase 233 mil euros. E as provas são.. uma ‘planilha de Excel’ (ou folha de cálculo) e um conjunto de supostas requisições manuscrias pela mesma ignota pessoa, sem qualquer timbre nem assinatura de um qualquer responsável autárquico, cheias de discrepâncias de números e sinais de manipulação. Estas ‘provas’ não são válidas, garante Paulo de Morais, líder da Frente Cívica e antigo vice-presidente da autarquia do Porto, que compara esta forma de contabilidade da Câmara de Cascais à de “uma tasca no meio do monte”.


    Adensam-se as suspeitas sobre o efectivo fornecimento de refeições destinadas aos centros de refugiados ucranianos através de um contrato celebrado pela Câmara de Cascais e a empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar, que acabou por custar 232.799,69 euros ao erário público.

    Depois de uma sentença da juíza Mafalda Andrade, do Tribunal Fiscal e Administrativo de Sintra, determinar a obrigatoriedade do município liderado pelo social-democrata Carlos Carreira – que sempre recusara ao PÁGINA UM o acesso aos documentos -, o município acabou por enviar uma simples impressão de uma ‘planilha de Excel‘ – com os cálculos dos itens pagos no decurso dos dias de contrato – e um rol de papéis manuscritas pela mesma pessoa, mas sem qualquer assinatura nem timbre de qualquer serviço ou departamento municipal.

    a pile of fish sitting on top of a pile of ice

    Em causa, recorde-se, estão os moldes de execução de um contrato por ajuste directo no valor de 250 mil euros – o terceiro em dois anos para o mesmo fim – que a autarquia de Cascais assinou com a ICA, uma empresa de refeições, em 26 de Setembro do ano passado, para fornecimento de refeições aos refugiados ucranianos durante um prazo previsto de 91 dias, ou seja, até final de 2023. Ou então “até se esgotar o valor contratual máximo”, de acordo com o contrato, que com IVA seria de 307.500 euros.

    A necessidade do fornecimento de refeições para cidadãos ucranianos nessa altura era já mais do que duvidosa. Numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado, Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”.

    O PÁGINA UM também teve conhecimento de que, no último trimestre de 2023 – ou seja, mais de ano e meio após a chegada de refugiados provenientes da Ucrânia por causa da invasão russa à região do Donbass -, era diminuto o número de utentes dos dois centros de acolhimento do município de Cascais.

    Uma das ‘provas’ do fornecimento de quase 233 mil euros em refeições que ninguém viu é uma ‘planilha de Excel’ (ou folha de cálculo) que nem sequer bate certo com supostas requisições manuscritas sem qualquer assinatura.

    Para adensar a estranheza neste processo, acresceu a celeridade com que foi passada a factura pela ICA pelos alegados serviços de fornecimento de alimentação e também o rápido pagamento pelos serviços da Câmara Municipal de Cascais, ainda no decurso do prazo inicialmente previsto da execução do contrato. Com efeito. apenas dois dias depois da assinatura do contrato, ou seja, no passado dia 28 de Setembro, a ICA passou uma factura no valor total de 232.799,69 euros, desconhecendo-se, porque não foram apresentados quaisquer documentos oficiais, as razões para este novo valor. Nem tão-pouco se sabe a razão para o contrato ter decorrido durante 41 dias – e não 91 dias -, pois o contrato estabelecia um ‘tecto máximo’ de 307.500 euros. Além disso, no caderno de encargos nem sequer eram definidos os preços por unidade de refeição, ou seja, não se sabia sequer a quantidade total de pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares.

    A factura da ICA, aceite pelos serviços municipais, possui também outras particularidades. Primeiro, porque indica apenas um unidade (1 UN) para “Serviço Refeição – Almoços Refugiados” – onde surge o tal valor de 232.799,69 euros com IVA, sendo que o valor antes deste imposto era de 189.268,75 euros -, quando foram servidos pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares, em números distintos ao longo dos dias e em cada refeição. Segunda particularidade da factura: a ICA conseguiu adivinhar em 28 de Setembro do ano passado, com um ‘erro’ de apenas 0,71 cêntimos, o valor total das refeições que supostamente acabou por fornecer até ao dia 30 de Outubro, uma segunda-feira, dando assim por terminado ao fim de 41 dias um contrato que deveria durar mais 50 dias.

    E não se diga que essa previsão – ou ‘adivinhação’ – era fácil de fazer, porque, de acordo com a tal planilha de Excel’, fornecida pela Câmara Municipal de Cascais após a intervenção do Tribunal Administrativo, constata-se que existem variações entre refeições ao longo do mesmo dia e variações ao longo dos dias. Por exemplo, foram fornecidos pequenos almoços entre 270 e 315 utentes ao longo do período. Já almoços tiveram ‘saídas’ entre os 285 e os 300 utentes, com a particularidade de, com excepção de dois dias, serem sempre em unidade redondas terminadas em zero. Quanto aos lanches e aos jantares, foram servidos, em cada caso, refeições a entre 270 e 320 utentes. Além disso, ainda se contabilizaram diariamente o formeciumento de mais de seis centenas de unidades de água, além de descartáveis e ainda despesas com pessoal de cozinha aos fins-de-semana.

    Autarquia de Cascais apresentou requisições mauscritas de refeições supostamente fornecidas pela ICA, sem qualquer assinatura, acompanhada por uma ‘planilha de Excel’. Além do arcaismo, e não ser uma prova válida, nem sempre existe coincidência nos números, e as suspeitas de manipulação são flagrantes.

    Sendo certo que os preços unitários das refeições eram bastante distintos – pequeno-almoço (1,95 por unidade sem IVA), lanche (2,25 euros por unidade), almoço e jantar (4,55 euros por unidade, em ambas as refeições), água (40 cêntimos por unidade), além dos descartáveis (55 cêntimos por unidade) -, e em função das quantidades fornecidas, certo é que se esgotou mintante da factura em 30 de Outubro. Ainda terá dado, miraculosamente para as refeições habituais, mas não deu sequer para o dia seguinte. Acabou ao 41º dia aquilo que se esperaria durar 91 dias.

    Mas aí então coloca-se uma questão humanitária: se, com efeito, terá havido 300 pessoas a comer o pequeno almoço ainda fornecido pela ICA no dia 30 de Outubro do ano passado – e pago pela autarquia de Cascais – e ainda 290 pessoas a almoçarem nas mesmas circunatâncias, e mais 282 pessoas a lancharem, e mais 290 a jantarem, e mais 630 águas a serem fornecidas e 580 descartáveis a serem ‘consumidos’, que sucedeu no dia seguinte, no 31 de Outubro? E nos dias seguintes, tendo em conta que o contrato previa uma duração de 91 dias? As cerca de três centenas de ucranianos que supostamente existiam nos centros, e que foram alimentados entre 20 de Setembro e 30 de Outubro, passaram a nada comer? Havia mesmo cerca de três centenas de ucranianos nessa altura? Alguma prova fotográfica? Nada mais foi enviado pela autarquia em cumprimento da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

    Além disto, os documentos enviados pela autarquia de Cascais – repita-se, sem estarem sequerem papel timbrado nem terem assinaturas – sofrem de ‘desconformidades’ quando se confrontam os números de refeições que surgem na ‘planilha do Excel’ e os supostos registos das requisições. Por exemplo, logo no primeiro dia de fornecimento de refeições são indicados 300 almoços na ‘planilha’, mas na suposta requisição surgem 290.

    blue and brown hand painting

    Por ser análise fastidiosa, o PÁGINA UM somente analisou em detalhe os 10 primeiros dias de fornecimento, constando uma dezena de discrepâncias, que envolvem mais de uma centena de refeições, entre os números que constam na planilha e nas requisições. Mais do que o valor em causa, estas discrepâncias suscitam legístimas suspeitas de uma manipulação malfeita.

    Para uma análise independente aos documentos do contratos entre a autarquia de Cascais e a ICA, o PÁGINA UM enviou-os a Paulo de Morais, docente universitário e presidente da Frente Cívica, que ocupou o cargo de vice-presidente da Câmara Municipal do Porto entre 2002 e 2006. Manifestando a sua estupefacção pela ausência de assinaturas e registos formais, Paulo de Morais diz ser “patético que os serviços jurídicos da autarquia de Cascais apresentem este tipo de provas sobre um contrato de valor tão elevado”.

    O líder da Frente Cívica deefnde que, em circunstâncias especiais – que já não se aplicariam, no último trimestre do ano passado, a refugiados ucranianos que tinham chgado nos primeiros meses de 2022 – “até seria aceitável que houvesse registos mais informais em momentos de crise ou urgência, mas que fossem depois formalizados em documentos oficiais. A Câmara de Cascais não é uma tasca no meio do monte”, diz. Salientando que este caso suscita “legítimas suspeitas” por estar assente em documentos que não têm qualquer validade legal, Paulo de Morais defende que, atendendo ter este modus operandi sido detectado pelo PÁGINA UM apenas por intervenção do Tribunal Administrativo, as autarquias devem mostar disponibilidade para “serem escrutinadas”.

    Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais: somente mostrou documentos ao PÁGINA UM após ser obrigado pelo TrIbunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

    O PÁGINA UM vai remeter todos os elementos deste contrato entre a autarquia de Cascais e a ICA – possível com uma intimação no Tribunal Administrativo, bem sucedida através do FUNDO JURÍDICO apoiado pelos leitores – ao Tribunal de Contas, uma vez que, por norma, esta entidade não faz comentários sobre casos que não abordou formalmente. Ou seja, só se pronuncia em consequência de actos de fiscalização ordinária ou após tomar conhecimento de suspeitas de irregularidades ou ilegalidades.

    Note-se que, no âmbito desta intimação, o PÁGINA UM também pedira elementos sobre um contrato entre a Câmara de Cascais e o Modelo Continente também para o fornecimento de alimentos e de bens de higiene para os centros de refugiados, cujos preços no caderno de encargos estavam hiperinflacionados, ou seja, o contrato previa a compra de produtos no valor de 180 mil euros mas que custavam, de facto, apenas 14 mil. Neste caso, e na sequência de uma notícia do PÁGINA UM em Outubro do ano passado, a autarquia admitiu no Tribunal Administrativo de Sintra que afinal nunca houve qualquer compra.


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  • IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    Em Janeiro do ano passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriu formalmente um “processo de esclarecimento” sobre a vacinação contra a covid-19 de quase quatro mil médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021, no decurso de uma combinação, ao arrepio das normas da Direcção-Geral da Saúde, entre o almirante Gouveia e Melo e o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. O acordo envolveu também um pagamento de mais de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas, mas apesar da factura ter sido emitida em nome da Ordem dos Médicos, o pagamento saiu de uma conta pessoal co-titulada por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, que geriram, numa contabilidade paralela e pejada de ilegalidades, cerca de 1,4 milhões de euros doados sobretudo de farmacêuticas. Catorze meses depois do início do “processo de esclarecimento”, aproximando-se uma prescrição, e face ao silêncio do inspector-geral Carlos Carapeto, o PÁGINA UM entrou com uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para saber que ‘investigação’ a IGAS andou a fazer. Ou a não fazer.


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está a esconder as conclusões de um “processo de esclarecimento”, aberto há 14 meses, sobre a forma pouco ortodoxa como Miguel Guimarães – antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado do PSD – e o agora almirante Gouveia e Melo – antigo líder da task force durante a pandemia e actual Chefe de Estado-Maior da Armada – combinaram a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários desrespeitando as normas em vigor da Direcção-Geral da Saúde. E o caso também envolve indirectamente a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, uma vez que foi ela que, no âmbito de uma campanha de solidariedade, concedeu autorização para um pagamento às Forças Armadas para compensar pela ajuda na administração das vacinas fora dos procedimentos legais.

    O processo de esclarecimento é uma das quatro tipologias inspectivas da IGAS, sendo a fase prévia que pode avançar, consoante os casos, para processo disciplinar, processo de inquérito ou processo de inspecção. No ano passado, segundo o mais recente relatório da IGAS, foram abertos 28 processos de esclarecimentos, que têm um prazo de 18 meses para conclusão, de contrário beneficiam de uma prescrição automática. Deste modo, o processo de esclarecimento às vacinas prescreverá, se não for arquivado ou avançar para outra fase, no próximo mês de Julho.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force e permitiu vacinações em Fevereiro de 2021 ao arrepio de uma norma da DGS. O Hospital das Forças Armadas beneficiou do esquema.

    O desbloqueio de mais uma obstrução à transparência por parte da IGAS está agora nas mãos do Tribunal Administrativo de Lisboa, por via de uma nova intimação do PÁGINA UM com vista a obrigar o inspector-geral Carlos Carapeto a libertar todos os documentos produzidos sobre esta matéria desde 15 de Janeiro do ano passado, data em que “foi determinada a abertura de um processo de esclarecimento, com o objectivo de avaliar se existe matéria que deva e possa ser avaliada”. Saliente-se que é a terceira vez que o PÁGINA UM tem de recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que a IGAS faculte documentos administrativos em assuntos politicamente comprometedores.

    De acordo com a lei, mesmo em processos não concluídos, como será este o caso, o acesso por terceiros ” acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos “pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”. Ora, muitas das diligências já terão mais de um ano, se é que foram feitas.

    O anúncio em Janeiro do ano passado deste processo de esclarecimento por parte da IGAS surgiu após a investigação do PÁGINA UM à gestão de uma campanha de solidariedade publicamente dinamizada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, mas minada de ilegalidades, que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros da indústria farmacêutica, sendo a contabilidade feita de forma paralela, com facturas falsas e outras ilegalidades fiscais, através de uma conta pessoal co-detida por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde. Foi no decurso dessa investigação que o PÁGINA UM detectou na documentação – cuja consulta foi possível somente após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa – que, em Fevereiro de 2021, Miguel Guimarães e Gouveia e Melo reuniram e conversaram várias vezes para contornar a Norma 002/2021 da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram os co-titulares de uma conta pessoal que geriu 1,4 milhões de euros de uma campanha de solidariedade pejada de irregularidades e ilegalidades, incluindo facturas falsas e fuga ao Fisco. Também serviu para pagar ao Hospital das Forças Armadas uma factura passada em nome da Ordem dos Médicos pelo serviço de vacinação.

    Esta norma, publicada em 30 de Janeiro de 2021, determinava então que na Fase 1 deveriam ser vacinados apenas os “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados a doentes”, os profissionais de lares (ERPI) ou de instituições similares e da rede de cuidados continuados, as pessoas com 80 ou mais anos, as pessoas de mais de 50 anos com determinadas comorbilidades e ainda “os profissionais das forças armadas, forças de segurança, serviços críticos e titulares de órgãos de soberania e altas entidades públicas”. Para a Fase 2, que então não estava ainda a decorrer em Fevereiro de 2021, estava prevista a vacinação do grupo etário dos 65 aos 79 anos e pessoas dos 50 aos 64 anos com determinadas comorbilidades. Somente no final da Primavera de 2021 começaram a ser vacinados os menores de 50 anos, quando já não se colocavam problemas de escassez de doses. Essa ‘hierarquia’ não agradava ao actual deputado do PSD que, não conseguindo como bastonário convencer a DGS a alterar a norma, encontrou em Gouveia e Melo, que geria a disponibilização das vacinas, alguém mais prestimoso. Aliás, meses mais tarde, Gouveia e Melo seria homenageado pela Ordem dos Médicos pelo “novo fôlego” que deu à campanha de vacinação que, obviamente, incluiu a violação da norma da DGS para benefício dos médicos não-prioritários.

    Assim, no seguimento dessas conversações em Fevereiro de 2021 – para as quais Gouveia e Melo não detinha então sequer competências para as fazer – , acabou por se acordar a disponibilização de vacinas (entregues por ordem do agora almirante) e a sua administração em instalações militares para cerca de quatro mil médicos não-prioritárias, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas do processo de vacinação destes médicos não-prioritários – e que deveriam aguardar pela vacina em função da idade –, Miguel Guimarães até quis que a comunicação social acompanhasse toda a operação, mas esta acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial num período então de grande escassez.

    Este processo paralelo, e perfeitamente irregular – uma repetição de situações ocorridas no Hospital da Cruz Vermelha, que causara a demissão de Francisco Ramos, substituído em Gouveia e Melo –, teve ainda contrapartidas financeiras que beneficiaram as Forças Armadas. Apesar das vacinas serem gratuitas, e a sua administração ser assegurada pelo Serviço Nacional de Saúde, somente foram disponibilizadas contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos. Recorde-se que, apesar de liderar a task force, Gouveia e Melo continuava com altas funções na hierarquia das Forças Armadas – e não na Marinha, de onde provinha –, uma vez que acumulava então as funções de Adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas, mostrando-se tecnicamente improvável desconhecer as contrapartidas financeiras envolvidas nesta vacinação à margem das normas da DGS.  

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde. Pela terceira vez, o PÁGINA UM recorre ao Tribunal Administrativo para consultar documentação.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos, e a forma como este pagamento foi processado e pago tem contornos de ilegalidade, neste caso envolvendo mesmo a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins. De facto, a Ordem dos Médicos quis ficar com os louros de vacinar associados não-prioritários, mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril de 2021, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo e titulares da conta bancária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação aos médicos não-prioritários. Era expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser uma das três pessoas que decidia se era concedido –, e assim sucedeu.

    Porém, como a factura passada pelo Hospital das Forças Armadas pelas operações de administração estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros da conta solidária. Porém, não foi isso que sucedeu.

    Na verdade, apesar de a factura se manter na Ordem dos Médicos, e em seu nome, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas proveio do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e por Eurico Castro Alves, como co-titulares da conta pessoal (e não institucional). Mais tarde, a Ordem dos Médicos tratou de passar declarações a quatro farmacêuticas, entre as quais a Gilead – onde então já trabalhava Ana Paula Martins – como se estas tivessem feito donativos directos para a vacinação. Estas declarações são absolutamente falsas, porque nunca houve qualquer transferência bancária das quatro farmacêuticas para uma conta titulada pela Ordem dos Médicos.

    Uma vez que ao fim de mais de 14 meses desde o anúncio do início do processo de esclarecimento, a IGAS nada comunicou ao PÁGINA UM – e ignorou um pedido formal no mês passado –, a intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa visa a libertação dos documentos para conhecer as diligências tomadas por esta entidade agora tutelada por Ana Paula Martins. Tal como sucedeu com um processo disciplinar ao pneumologista Filipe Froes – que acabou arquivado em vésperas de prescrição, com diligência medíocres ao longo de quase ano e meio –, a probabilidade de este “processo de esclarecimento” ter ficado em ‘banho-maria’ desde Janeiro de 2023 é bastante elevada.

    Na verdade, o incómodo político e judicial sobre esta matéria tem-se mostrado patente também no facto de, ao longo de mais de um ano, a Procuradoria-Geral da República não ter jamais respondido às solicitações do PÁGINA UM sobre esta matéria e sobretudo sobre a gestão da campanha ‘Todos por uma Causa’, pejada de facturas falsas, fuga ao fisco, abuso de benefícios fiscais e contabilidade paralela.  


    N.D. Amanhã comemora-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, que concedeu, antes de mais, a Liberdade e, por consequência, a liberdade de imprensa (e de expressão), ao qual estaria também associado o acesso à informação. Pode-se comemorar uma efeméride, em números redondos ou quadrados, ou de outra configuração geométrica, mas não existem muitos motivos para festejar uma efectiva liberdade de acesso à informação quando um jornal tem, para aceder a documentos detidos por entidades públicas, de recorrer mais de duas dezenas de vezes nos últimos dois anos ao Tribunal Administrativo, que ainda por cima é lento nas decisões. O caso da IGAS é um paradigma: é a terceira vez que o PÁGINA UM apresenta uma intimação para obter documentos. Não é admissível que tal suceda numa democracia. Talvez o objectivo seja cansar o PÁGINA UM (que é o único órgão de comunicação social que recorre por sistema aos tribunais face a uma recusa no acesso à informação), mas não nos cansaremos enquanto, do lado dos nossos leitores, nos derem força e apoios financeiros através do FUNDO JURÍDICO.


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  • A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    Poucas autarquias quiseram ficar arredadas das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, e por isso houve uma ‘corrida’ aos ‘músicos de intervenção’ ainda no activo, como Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Fernando Tordo, Vitorino, Janita Salomé e Brigada Vitor Jara. Mas, visto em detalhe mais de uma centena de contratos, constata-se que quem recebe os maiores cachets são os ‘do costume’. O PÁGINA UM decidiu percorrer mais de uma centena de contratações já celebradas e inseridas no Portal Base associadas aos espectáculos que marcam os 50 anos de uma revolução que nos concedeu a Liberdade, hoje algo limitada. E mostra que, apesar de todos os eventos promovidos por autarquias serem ‘vendidos’ como gratuitos, a conta pública já está acima dos 2,4 milhões de euros. E ainda só lá cantam alguns dos contratos de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


    Além das comemorações de Estado, protagonizadas por uma comissão específica, quase não vai haver autarca que queira passar à margem das festividades do meio centenário do 25 de Abril de 1974. Em cada município, pelas redes sociais, pela imprensa, de norte a sul, de este a oeste, surgem apetitosas agendas culturais com debates, exposições, teatro, música e pirotecnia. Praticamente todo oferecido aos cidadãos para lembrá-los que a Liberdade não tem preço, e deve ser mantida como o mais valioso dos bens pessoais e colectivos.

    Porém, em abono da verdade, tal como nunca há almoços de borla, também não há comemorações sem custos – neste caso, monetários. E beneficiários – neste caso, os músicos, embora alguns, admita-se, ate o sejam muitos justamente.

    A Revolução dos Cravos está intimamente associada à música – e, em especial, nas fases posteriores à música de intervenção. Zeca Afonso a e a sua (nossa) ‘Grândola Vila Morena’ tornou-se um Hino da Liberdade, mesmo mais do que “E depois do adeus’, de Paulo de Carvalho, que serviu de primeira senha para o início do golpe que fez cair a ditadura do Estado Novo.

    Não surpreende assim que abundem agora os concertos ‘saudosistas’ (no bom sentido do termo) – e, felizmente, com uma parte daqueles que foram intervenientes nessa esperançosa fase em que se cantavam os amanhãs – ou que os amanhãs cantavam. Os portugueses já há muito não contam com a presença de Zeca Afonso, que partiu em 1987, cinco anos depois de Adriano Correia de Oliveira. Também a pena de Ary dos Santos se perdeu cedo, e já não está entre nós um dos ‘príncipes da canção de intervenção’, José Mário Branco, falecido em 2019.

    Mas ainda estão no activo, e bem no activo, um bom punhado de cantores de intervenção, já todos septuagenários – e talvez já algo acomodados, diga-se. Aos 76 anos, Paulo de Carvalho é um deles. No próximo dia 26 dará um concerto em Vizela, com músicos convidados, pelo qual o município pagará 21 mil euros, mas tem estado particularmente activo este ano com espectáculos associados ao 25 de Abril contratados por autarquias, nomeadamente as de Gondomar (21.702 euros), de Grândola (109.705 euros, neste caso também por causa do cachet do seu filho Agir), de Loures (63.850 euros) e de São João da Madeira (7.000 euros).

    Paulo de Carvalho, em 1974, cantando ‘E depois do adeus’, que se transformaria na primeira senha para o avanço da Revolução dos Cravos.

    Fernando Tordo – autor de ‘Tourada’ e ‘Adeus tristeza’ – , com a mesma idade de Paulo de Carvalho, ainda aparenta estar mais activo, embora com cachets mais baixos. Não vai parar de amanhã até sábado em concertos, um por dia. Primeiro na Sertã (8.500 euros), segue-se Moimenta da Beira (10.420 euros), depois Coruche (9.465 euros) e finaliza na Azambuja (7.00 euros). O cantor parece ter recuperado nos últimos anos um certo élan – desde o início de 2023 conta 12 contratos públicos no Portal Base com autarquia que já ultrapassam os 100 mil euros –, tendo chegado a emigrar para o Brasil em 2014 durante o Governo de Passos Coelho. Regressou poucos anos depois, mas em 2022 ameaçou sair de novo se a direito ganhasse as eleições. Não aconteceu nesse ano, sucedeu agora.

    O ‘decano’ Vitorino (81 anos) e o seu irmão Janita Salomé (76 anos), em registo com raízes alentejanas, também cantarão Abril nos próximos dias, sobretudo o primeiro e, pelo menos numa ocasião, em conjunto. Amanhã, no Teatro José Lúcio da Silva, na cidade de Leiria, o concerto dois irmãos, acompanhados de Filipe Raposo e pela Orquestra Filarmónica das Beiras, vai custar ao erário público 25 mil euros. No sábado passado, os dois irmãos estiveram na Marinha Grande num concerto de antecipação ao 25 de Abril, pelo qual a autarquia não pagou muito: apenas 5.950 euros, ainda por cima por incluir orquestra. Aliás, segundo os contratos já inseridos no Portal Base, Vitorino vai dar mais dois concertos nos próximos dias com cachets mais apreciáveis: na Sertã (amanhã) por 12 mil euros e no dia 26 em Castelo de Paiva por 23 mil euros.

    Quem também se mostra imparável nesta fase é Sérgio Godinho que, aos 78 anos, tem estado na estrada com o seu projecto musical Liberdade 25, que já o levou duas noites em Março passado ao Coliseu de Lisboa, estando agora a aproveitar o interesse de muitos municípios para abrilhantar as comemorações do meio centenário do 25 de Abril. Amanhã, o autor do célebre ‘Liberdade’ e ‘Com um brilhozinho nos olhos’ vai estar na eborense Praça do Giraldo num concerto com “entrada livre”, porque a Câmara Municipal de Évora desembolsou 18.200 euros. No dia 25 vai estar em Loulé e depois no Auditório Municipal de Lousada no sábado, regressando a Lisboa no domingo. Estes três últimos concertos, que terão sido pagos por municípios, deverão ter custado valores entre os 10 mil e os 18 mil euros, intervalo que, por regra, o músico pratica, o que nem se pode considerar demasiado elevado tendo em conta os músicos que o acompanham.

    Sérgio Godinho continua a ser um dos músicos mais associados ao 25 de Abril.

    Aliás, ao nível dos cachets, os músicos e grupos associados directamente ao 25 de Abril até se mostram como os mais baratos. Por exemplo, os Brigada Vítor Jara levam á autarquia local pelo concerto de amanhã na Marinha Grande menos de 32 mil euros – e convém referir que este histórico grupo fundado em 1975 tem nove membros. Talvez por serem de Coimbra, fizeram um preço mais em conta para o concerto no próprio dia 25 de Abril, cobrando apenas 7.100 euros ao município.

    Também Carlos Alberto Moniz não cobra em demasia. Os dois contratos associados ao 25 de Abril, na Chamusca (amanhã) em Castelo Branco (na quinta-feira) custaram, respectivamente, 6.175 e 7.000 euros aos municípios, de acordo com os contratos publicitados no Portal Base. Um outro histórico, Jorge Palma, que vai estar em Pombal no próximo sábado, irá cobrar, por sua vez, 12 mil euros.

    Na verdade, independentemente de ainda estarem no activo muitos dos músicos e cantores que vivenciaram a passagem da Ditadura para a Liberdade, os tempos são como são, e quem tem os maiores cachets são aqueles com maior popularidade actual.

    De acordo com a pesquisa feita hoje pelo PÁGINA UM aos contratos já celebrados e inseridos no Portal Base – e nos últimos dias têm-se somado muitos –, o espectáculo com o maior orçamento realizar-se-á em Lisboa e tem como cabeça de cartaz Rodrigo Leão, embora de forma virtual. Produzido pela empresa Idade das Ideias, e tendo como adjudicante a empresa municipal EGEAC, a Praça do Comércio será o palco para a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, o Coro de Santo Amaro de Oeiras, o Coro da Escola Artística do Instituto Gregoriano de Lisboa e vários solistas interpretarem canções de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Fernando Lopes Graça e Carlos Paredes. Além de um videomapping composto por fotografias de Alfredo Cunha e música de Rodrigo Leão, haverá ainda um espectáculo piromusical. Tudo gratuito, apesar de a empresa do município liderado por Carlos Moedas ter de pagar, com dinheiros públicos, um total de 271 mil euros.

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    Praça do Comércio onde esta quarta-feira se pagará a maior factura por uma noite de comemorações.

    Sem especificar em concreto os gastos de forma discriminada, a factura das comemorações em Almada também não fica barata: 146 mil euros para um conjunto de eventos culturais que tem o apogeu amanhã à noite com um concerto de Dino d’Santiago. O músico algarvio de ascendência cabo-verdiana levará, porém, uma pequena parte deste montante, uma vez que os seus cachets em concertos individuais situam-se entre os nove mil e 13 mil euros.

    Bem mais elevados são os cachets de Rodrigo Leão, que amanhã se apresentará ao vivo num concerto em Matosinhos. A autarquia socialista fez dois contratos para este espectáculo: um para pagar directamente a actuação do ex-membro dos Madredeus, no valor de 51.297 euros, e outro para pagar um espectáculo multimédia em si mesmo, no valor de 66 mil euros. Ou seja, uma noite de comemorações em Matosinhos a custar mais de 117 mil euros. Se somarmos o concerto no dia 26 de Salvador Sobral com a Orquestra Jazz de Matosinhos, a conta pública alimenta mais 47.614 euros.

    Em todo o caso, e talvez sem surpresa, os nomes grandes da música portuguesa levam os maiores cachets, independentemente de se tratar de comemorações em redor da liberdade ou não. Na lista de concertos nos próximos dias, os Xutos & Pontapés são reis & senhores na hora de desembolsar dinheiros públicos. Para o seu concerto de amanhã em Santiago do Cacém cobram 57.650 euros; no dia seguinte, descendo para a vizinha Odemira, levam um pouco menos: 42.385 euros. O município de Odemira, apesar de contar menos de 30 mil habitantes, ainda vai pagar 28 mil euros pelo concerto de amanhã de Richie Campbell, e mais 25.500 euros à banda de hip hop Wet Bed Gang, que foi escolhida em votação pela população local, e 12.500 euros aos Capitão Fausto.

    Xutos & Pontapés: são os mais bem pagos, sempre.

    Por sua vez, Pedro Abrunhosa também não se pode queixar de Abril. Nem de Isaltino de Morais. A autarquia de Oeiras já celebrou o contrato de 40 mil euros para o seu concerto da noite desta quinta-feira. Também aqui o concerto é considerado “gratuito”. Para contratar Mariza Liz, António Zambujo e os Wet Bed Gang a autarquia de Setúbal teve de desembolar, em pacote, cerca de 104 mil euros.

    Na lista entretanto inventariada pelo PÁGINA UM constam mais nomes de peso com cachets relevantes, destacando-se Rui Veloso (32 mil euros pelo concerto de amanhã em Alcácer do Sal) e José Cid (30.100 euros pelo concerto de amanhã no Portimão Arena). Abaixo dos 30 mil euros, D.A.M.A. e Bandidos do Cante repartem os 28.250 euros que a Câmara de Beja vai gastar num concerto na noite de quinta-feira, enquanto Luís Represas, que se notabilizou nos finais do século passado como vocalista dos Trovante, vai receber 23.250 euros por um concerto na Moita, um pouco mais do que os 18.675 euros que cobrará por similar apresentação em Moura. Pelo concerto em Arronches, no próximo sábado, Represas receberá um cachet de um pouco menos de 16 mil euros. Por sua vez, os Anjos levam para casa 20 mil euros depois de actuarem em Aljustrel na noite de amanhã.

    Já abaixo da fasquia dos 20 mil euros estão outros músicos ou grupos conhecidos como os GNR (concerto em Odivelas por 19.500 euros), The Gift (concerto em Alcochete por 18 mil euros), Quinta do Bill (concerto na alentejana vila de Cuba por 17 mil euros), Carminho (concerto em Sernacelhe por 16 mil euros), David Fonseca (concerto em Leiria por 13.250 euros). Gisela João (concerto em Amarante por 12.500 euros), João Gil (concerto em Carnide por 12.425 euros), Ana Bacalhau (concerto em Silves por 12.000 euros), Sofia Escobar (concerto em Montalegre por 11.900 euros. em parceria com o cantor FF), Cristina Branco (concerto na Póvoa de Varzim por 11.500 euros, a que acresce outro, no valor de 10 mil euros, na Covilhã), Camané (concerto em Castro Verde por 11.000 euros) e os históricos Taxi (concerto nos Olivais por 10.500 euros, a que acresce outro, no valor de 9.250 euros, em Castelo Branco).

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    Além destes espectáculos musicais, o PÁGINA UM detectou outros eventos culturais – onde se destaca uma estranha ópera para jovens escrita pelo humorista Diogo Faro, pela qual a autarquia de Palmela pagou quase 37 mil euros – e também um vasto conjunto de contratos para serviços exclusivamente de pirotecnia, isto é, fogo de artifício. Para já, são oito – Setúbal, Almada, Oeiras, Moura, Beja, Castro Verde, Cuba, Vila Viçosa – que totalizam quase 185 mil euros. Na parte da logística são, por agora, uma dezena, que chegam aos 116 mil euros.

    Assim, estando ainda a procissão no adro – ou seja, ainda haverá muitos contratos em falta no Portal Base –, a conta das comemorações apurada até hoje á noite pelo PÁGINA UM para eventos sobretudo musicais das comemorações do meio centenário da Revolução dos Cravos ultrapassa os 2,4 milhões de euros, estando apenas contabilizadas despesas de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


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  • Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Durante a pandemia, para agilizar procedimentos – e ‘salvar vidas’ – foi criado um regime de excepção para as compras urgentes por entidades públicas no sector da Saúde: bastava uma factura e pagava-se sem haver um tecto. Ficou, porém, prometida a publicação de todos os contratos no Portal Base – algo que não é garantido ter acontecido – e a realização de um relatório a publicar no site da empresa pública Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Mas o relatório acabou por não ser feito, até agora, graças a um ‘truque jurídico’. Apesar de a SPMS prometer que o vai fazer, adianta já que só tem conhecimento de um ajuste directo em regime simplificado… Um caso anedótico, se não fosse grave, pois, na verdade, um levantamento do PÁGINA UM aos contratos em regime de excepção inscritos no Portal Base revelam – e podem faltar muitos – largos milhares de compras por ajuste directo em regime simplificado, totalizando mais de 90 milhões de euros. Só em quase mil ventiladores comprados gastou-se cerca de 27 milhões de euros. Alguns destes contratos estão feridos de evidentes ilegalidades, incluindo o maior: quase 20 milhões de euros do polémico antiviral Paxlovid foram comprados pela Direcção-Geral da Saúde à Pfizer quando este regime de excepção já não podia ser usado por o Governo o ter revogado há três meses. Esse contrato esteve escondido do Portal Base durante cerca de 11 meses. Mas há mais… para daqui a uns tempos o Tribunal de Contas se entreter depois a fazer um relatório crítico que dará em nada.


    Milhões e milhões de euros gastos sem controlo. Ou descontrolo absoluto. Quase um ano depois da declaração sobre o fim da pandemia (como emergência global) pela Organização Mundial da Saúde, em Portugal ninguém sabe quanto se gastou e quem gastou em aquisições de bens e serviços usando um regime simplificado de ajuste directo, porque nunca foi elaborado e publicado um relatório conjunto a ser elaborado por entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde por via de um ‘truque legislativo’.

    A obrigação deste relatório estava consignada num diploma inicialmente publicado em Março de 2020 – e sistematicamente alterado nos meses seguintes – que possibilitava a aquisição de ajuste directos independentemente do montante sem necessidade de quaisquer procedimentos formais, ou seja, sem contrato escrito e com uma simples factura e ordem de pagamento, sem sequer especificar em concreto, em diversos casos, os bens e serviços adquiridos. E sobretudo sem fiscalização prévia do Tribunal de Contas. Foi enquadrado nesta simplificação que se compraram, sobretudo nas primeiras fases da pandemia, os famigerados ventiladores a empresas chinesas – alguns que nunca funcionaram –, e também muito equipamentos de protecção individual e alguns fármacos.

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    Independentemente da obrigação de colocar estas compras no Portal Base, as entidades autorizadas a fazerem estas compras – entre as quais a Direção-Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e a Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) – tinham também de comunicar estas adjudicações aos ministros das Finanças e da Saúde. E mais: ficou expressamente estabelecido que estas entidades deveriam elaborar um relatório conjunto a ser publicado no prazo de 60 dias após o período de vigência do decreto-lei.

    E é aqui que começa o imbróglio legislativo que, na verdade, implica, na interpretação da SPMS, a desobrigação legal de elaboração e conhecimento público cabal destes gastos sem controlo.

    Com efeito, apesar de 83 dos 91 artigos desse diploma terem sido revogados, grande parte dos quais a partir de Setembro de 2022, significa assim que algumas normas de pormenor ainda o colocam como estando em vigor. De entre os poucos artigos que ainda se aplicam está a prorrogação dos vistos de permanência em território nacional que tenham perdido a validade desde Março de 20200, que se genericamente se manterá até 30 de Junho deste ano. Ou seja, em concreto, estando-se em Abril de 2024, não se poderia sequer dizer que havia legalmente um atraso na elaboração do relatório e a sua publicação no site da SPMS, como previsto na primeira metade de 2020.

    Porém, houve um ‘truque jurídico’ cometido pelo anterior Governo, e mesmo que entretanto o Governo Montenegro ‘encerre’ a vigência da totalidade do diploma – ou seja, que o revogue na íntegra –, a exigência da elaboração do relatório deixou de ter cabimento legal, porque o artigo que o previa foi primeiro, deixando de estar em vigor desde 1 de Outubro de 2022. Ou seja, a norma que exigia a elaboração do relatório já não existe quando o diploma onde essa norma esteve inicialmente integrada for ‘eliminado’. Uma ‘eficácia jurídica’ absoluta.

    man doing BMX bike stunts

    Esta é, aliás, a interpretação da presidente da SPMS, Sandra Cavaca, que em resposta a um pedido de documentação administrativa pelo PAGINA UM diz que “a elaboração e a publicação daquele relatório conjunto inicia a sua contagem apenas após o período de vigência do decreto-Lei nº 10-A/2020”, mas tal prazo ainda não se aplica porque “o diploma globalmente considerado permanece vigente”. Mas acrescenta que como o artigo 2º-A, aquele que previa o relatório, foi expressamente revogado, “verdadeiramente não se mantém essa obrigação”.

    Em todo o caso, Sandra Cavaca diz que a SPMS “encetou antecipadamente  diligências no sentido da elaboração do relatório em questão, cuja preparação já se encontra em curso”, não revelando a datada sua conclusão. Porém, esta responsável adianta, desde já, que se “apurou apenas uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado”.

    Ora, é aqui que surge mais uma estranheza – ou estupefacção – neste processo de ‘compras à Lagardère’, porque no Portal Base encontram-se alguns milhares de contratos por ajuste directo simplificado celebrados ao abrigo do diploma de excepção – e podem estar muitos casos em falta. Num rápido levantamento do PÁGINA UM, contabilizam-se 1.436 contratos desta natureza com valor superior a 18.000 euros. Note-se que, em situações normais, o regime simplificado para aquisição de bens e serviços só é possível em aquisições até 5.000 euros.

    Sandra Cavaca, presidente da Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS).

    De acordo com este levantamento, o montante destas compras durante a pandemia acima de 18.000 euros totalizam mais de 91 milhões de euros, destacando-se nove compras acima de um milhão de euros e mais 15 ajustes directos em regime simplificado com montantes entre 250 mil e um milhão de euros.

    No topo dos contratos está, na verdade, um contrato ferido de ilegalidade, já desvendado pelo PÁGINA UM em Novembro passado: a Direcção-Geral da Saúde celebrou um contrato no valor de 19,95 milhões de euros do antiviral Paxlovid em 31 de Dezembro de 2022, ou seja, quase três meses após a revogação da possibilidade de fazer uma compra desta ordem de grandeza através de regime simplificado. Ainda por cima, a DGS escondeu esse contrato do Portal Base durante cerca de 11 meses. O Tribunal de Contas ainda não se pronunciou sobre esta evidente ilegalidade.

    Outra compra polémica no sector da farmacologia, feita ao abrigo deste regime de excepção, beneficiou a farmacêutica Merck Sharpe & Dohme que conseguiu convencer a Direcção-Geral da Saúde gastar 3,05 milhões de euros de mulnopiravir em 22 de Setembro de 2022, poucos dias antes da revogação da norma que permitia ajustes directos em regime simplificado, daí que nem sequer se saiba o número de unidades adquiridas. Relembre-se que o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.

    Porém, o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho do ano passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só em 2022. Recentemente, este fármaco foi mesmo considerado, num artigo científico, como promotor de mutações do SARS-CoV-2

    O segundo maior contrato por ajuste directo simplificado ultrapassou os 10,8 milhões de euros para aquisição de 243 ventiladores à empresa chinesa Guangdong H&P. Comprados em Agosto de 2020, casa unidade ficou a 44.500 euros. O terceiro maior foi também para comprar mais ventiladores: neste caso em Maio de 2020 à empresa chinesa WinWin Machinery no valor de quase 5,2 milhõe4s de euros. Como a compra foi de 300 unidades, o custo unitário pouco ultrapassou os 17 mil euros. Os preços especulativos dos ventiladores foram uma imagem de marca nos primórdios da pandemia: houve um contrato de Março de 2020 com um preço unitário de apenas 10 mil euros.

    Os ventiladores foram, na verdade, os itens mais ‘valiosos’: de entre os 25 maiores contratos por ajuste directo em regime simplificado, 11 estão associados a ventiladores. Somando os contratos que discriminam o número de ventiladores, Portugal terá adquirido através de uma simples factura pelo menos 976 ventiladores que custaram quase 27 milhões de euros, com um preço médio unitário de cerca de 27.570 euros.

    doctor and nurses inside operating room

    Nesta análise preliminar do PÁGINA UM também se mostra evidente que houve abusos no uso do regime de excepção, não controlados sequer pelo Tribunal de Contas. Com efeito, este procedimento “só pode[ria] ser promovido pela Direção-Geral da Saúde, pela Administração Central do Sistema de Saúde, I. P., pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I. P., e pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E. P. E. (SPMS, E. P. E.), relativamente a bens que se destinem a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde”.

    No entanto, houve outras entidades de âmbito público que o usaram sem sequer deterem competências específicas no sector da saúde. Por exemplo, em Agosto de 2020 o município de Cascais vendeu ao município de Mafra “equipamento (vestuário) de protecção, no âmbito do COVID [sic]” no valor de 400.842 euros. Não existe informação sobre qual o equipamento e quantas unidades.

    Mais estranho ainda foi o contrato por ajuste directo em regime simplificado no valor de 158.800 euros entre a Leque – Associação de Pais e Amigos com Necessidades Especiais e a Casa da Música. Sem prejuízo de se poder considerar necessária, durante a pandemia, a “aquisição de serviços de componente artística de inclusão social”, não se consegue entender como este contrato pôde beneficiar de uma norma de um diploma de Março de 2020 quando, de acordo com a informação no Portal Base, foi celebrado em 5 de Setembro de 2019, ou seja, seis meses antes da chegada oficial do SARS-CoV-2 em território português. Note-se que este contrato irregular seria divulgado apenas em Setembro de 2021, isto é, dois anos após a data do contrato. Como se está perante um ajuste directo em regime simplificado nem sequer se sabe qual foi o prazo de execução.

    Ofício da presidente da SPMS adianta ter conhecimento de apenas “uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado” previsto no Decreto-Lei nº 10-A/2020. Numa consulta no Portal Base, podendo faltar muitos, listam-se vários milhares.

    Há ainda outros dois contratos em regime simplificado um pouco acima dos 100 mil euros, ambos a beneficiarem a MEO, que foram celebrados por entidades não ligadas ao sector da saúde: a autarquia de Odivelas e a Autoridade para as Condições do Trabalho. Neste caso, o abuso é duplo, porque estas duas entidades recorreram ao regime de excepção para a aquisição de computadores.

    Ora, o diploma, saliente-se, somente era permitido para a “aquisição de equipamentos, bens e serviços necessários à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ou com estas relacionados, designadamente equipamentos de proteção individual; bens necessários à realização de testes à covid-19; equipamentos e material para unidades de cuidados intensivos; medicamentos, incluindo gases medicinais; outros dispositivos médicos; [e] serviços de logística e transporte, incluindo aéreo, relacionados com as aquisições, a título oneroso ou gratuito, dos bens referidos” anteriormente, “bem como com a sua distribuição a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde ou a outras entidades públicas ou de interesse público às quais se destinem”.


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  • Em tempos de crise, Global Media paga luxos e usa ‘expedientes’ para beneficiar administradores

    Em tempos de crise, Global Media paga luxos e usa ‘expedientes’ para beneficiar administradores

    Apesar de ainda há poucas semanas ter havido ordenados em falta e com as contas anuais a baterem bem no vermelho (serão mais 7,2 milhões de euros de prejuízos em 2023), e sem se vislumbrar futuro para alguns dos seus títulos da imprensa, a Global Media vai fazendo ‘vida de rica’. Para pagar ordenados de 14.700 euros aos membros da sua Comissão Executiva, o grupo de media concedeu que aqueles usassem as respectivas empresas, de modo a não pagar directamente IRS e Segurança Social. A empresa do CEO, Vítor Coutinho – ex-vice-reitor do Santuário de Fátima – foi criada em Julho do ano passado sobretudo para comercializar produtos não-alimentares e alimentares, incluindo compotas, e outros artigos, como loiças de porcelana. Também polémicas, por se estar em tempos de ‘vacas magras’ – que já duram mais do que os bíblicos sete anos neste grupo de media –, têm sido algumas despesas pessoais assumidas pela empresa em nome dos accionistas. Um dos casos é o pagamento de quase 11 mil euros de uma longa estadia em hotel de luxo em Lisboa e de uma viagem ao Dubai a um dos accionistas e agora administrador, José Pedro Soeiro.


    Os três membros da Comissão Executiva da Global Media, o topo do Conselho de Administração deste grupo de media, estão afinal a ser pagos como consultores através das suas próprias empresas. O expediente, embora legal, permite assim poupanças fiscais em IRS e no pagamento de taxas à Segurança Social, mas também um regime mais flexível em caso de dispensa de funções desses administradores por parte dos accionistas. Como prestadores de serviço, à factura mensal, não haverá indemnizações em caso de serem demitidos.

    De acordo com facturas de pagamento a que o PÁGINA UM teve acesso, cada um destes membros da Comissão Executiva está a cobrar por mês 14.760 euros, um valor substancialmente superior ao que era praticado nas anteriores administrações, incluindo a de José Paulo Fafe durante o curto controlo da Global Media pela World Opportunity Fund. Contas feitas, a Comissão Executiva custará cerca de meio milhão de euros por ano, numa empresa que apresentará um prejuízo de 7,2 milhões de euros em 2023. No entanto, por via de se optar por pagamentos de consultoria, a ‘factura’ para a Global Media reduzir-se-á, em princípio, em cerca de 100 mil euros, a verba de IVA que poderá ser deduzida.

    Global Media: depois da crise supostamente causada por um fundo das Bahmas, regressam as mordomias da administração, apesar dos prejuízos de 7,2 milhões de euros em 2023.

    O caso dos pagamentos ao presidente da Comissão Executiva, Vítor Coutinho, é muito sui generis. Antigo vice-reitor do Santuário de Fátima, Coutinho pediu a dispensa das obrigações do estado clerical e do celibato que lhe foi concedido em 19 de Março de 2021. Entretanto, casou com Aline Jorge Venâncio, com quem criou, em Julho do ano passado, a empresa Sunbow, com divisão de quotas. É através desta empresa que Vítor Coutinho está a ser pago. De início, a Sunbow tinha no seu objecto social previstas “actividades de consultoria para os negócios e a gestão” e também “actividades de relações públicas e comunicação”, mas estas partes encontravam-se no fim de uma vasta lista.

    No topo das actividades do objecto social da empresa sedeada em Leiria estava o comércio a retalho por correspondência, via internet ou em banca de bebidas, tabaco e produtos não-alimentares e alimentares, entre os quais, explicitamente, “conservas, mel, doces, compotas, sobremesas, chocolates, pastelaria, queijo, produtos preparados à base de carne, temperos e condimentos, chá, café, pão, fruta e produtos hortícolas, frescos e conservados”, bem como “suplementos alimentares e outros produtos naturais e dietéticos com fins alimentares”, não esquecendo também “ artigos em louça em porcelana, barro, vidro, metal e outros artigos para uso doméstico”. Também está prevista a venda a “retalho de produtos cosméticos e de higiene”, e a gestão de livrarias, cafés, pastelarias e casas de chá.

    Somente numa alteração ao contrato de sociedade em Outubro do ano passado se mudou completamente o foco da Sunbow, passando a dar destaque à “consultoria, orientação e assistência operacional a empresas, a organismos ou pessoas em matérias muito diversas, tais como: planeamento, organização, controlo, informação e gestão; reorganização de empresas e instituições; gestão documental; documentação de conformidade (políticas, normas, procedimentos); gestão de recursos humanos; relações públicas; comunicação e assessoria de imprensa”, além de “consultoria científica na área das ciências humanas, nomeadamente em bioética, ética empresarial e diversos âmbitos da ética aplicada”, entre outras actividades congéneres. A parte do comércio a retalho por internet, correspondência ou outros meios não físicos passou para uma parte secundária. Por ser bastante recente, ignora-se ainda a sua facturação, sendo que o seu capital social é de apenas 2.000 euros.

    O ex-reitor do Santuário de Fátima, Vítor Coutinho, actual CEO da Global Media, pensou em Julho entrar no negócio de venda de produtos alimentares e não-alimentares, e criou com a mulher a Sunbow. Agora, usa esta empresa para receber como mero consultor, cobrando 12 mil euros mais IVA.

    Em relação a Diogo Queiroz de Andrade – que mantém a sua carteira profissional de jornalista activa, apesar de exercer exclusivamente funções de administração –, as facturas como administrador da Global Media estão a ser passada em nome da sua empresa Vitri Unipessoal, criada em 2009. Neste caso, o objecto social é a   “prestação de serviços, consultoria, produção de informação e entretenimento na área da comunicação social; conteúdos multimédia portais web e produção televisiva”. Queiroz de Andrade, que chegou a ser director-adjunto do Público – e demitido em 2018 pela administração, o que fez cair o então director David Dinis – ocupava, antes da sua ascensão à Comissão Executiva da Global Media, o cargo de director de inovação, facturando também, segundo documento consultado pelo PÁGINA UM, através da Vitri Unipessoal, mas o valor era substancialmente inferior (6.150 euros com IVA). Agora, Queiroz de Andrade mais que duplicou o seu salário.

    Por fim, a factura mensal também de 14.760 euros (com IVA) para pagamento ao terceiro membro da Comissão Executiva, Rui Rodrigues, tem sido passada pela empresa Add On – Digital Media. Com a Mol 2 – que recentemente viu a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa conceder-lhe um contrato de 600 mil euros –, a Add On teve origem numa sociedade em que Rui Rodrigues entrou como sócio em parceria com uma empresa por ele detida que entretanto foi encerrada e se dissolveu. No caso da Mol 2, a empresa extinta era a Mol. No caso da Add On, a empresa extinta era a Mobbit Systems.

    Além deste expediente de pagamento à Comissão Executiva da Global Media em época de grande crise – e num grupo de media com mais de 8 milhões de euros ao Estado –, também questionáveis têm sido alguns dos gastos dos accionistas e dos administradores na época pós-fundo das Bahamas.

    Incerteza quanto ao futuro de alguns dos títulos da Global Media mantém-se.

    Um dos exemplos mais flagrantes foi o pagamento por parte da Global Media de uma longa estadia do accionista José Pedro Soeiro num hotel de luxo no centro de Lisboa, para além de uma passagem aérea de ida e volta para o Dubai. Com ligações e residência a Angola, José Pedro Soeiro tem 20,4% do capital social da Global Media – que acumula prejuízos de quase 50 milhões de euros desde 2017 – e decidiu que a sua permanência no Hotel Martinhal Lisboa entre 22 de Janeiro e 28 de Fevereiro desta ano fosse integralmente paga pela empresa de media.

    Não foram meia dúzia de tostões que custou esta estadia em pleno Chiado com vista para o Tejo: pelas 37 noites no hotel de 5 estrelas, a Global Media desembolsou 9.259,73 euros, ou seja, tendo a factura subido para quase 11 mil euros por via da viagem ao Dubai que custou quase 1.700 euros. O PÁGINA UM sabe que havia uma opção mais em conta, uma vez que, segundo se apurou, existe uma parceria entre este grupo de media e os hotéis Vila Galé. A aprovação para este pagamento da conta de José Pedro Soeiro foi feita depois de este accionista ter reocupado o cargo de administrador da Global Media em 19 de Fevereiro.


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  • Cascais: Carlos Carreiras vai ter de provar que refeições de 233 mil euros foram entregues aos refugiados ucranianos

    Cascais: Carlos Carreiras vai ter de provar que refeições de 233 mil euros foram entregues aos refugiados ucranianos

    Mais uma recusa, mais um processo em tribunal administrativo, mais uma vitória. Após a recusa da autarquia de Cascais em facultar detalhes sobre o fornecimento de refeições aos centros de refugiados, numa altura em que já quase estava inactivo, o PÁGINA UM recorreu ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra. No processo, o município liderado por Carlos Carreiras acabou por enviar uma única factura sem referência ao número de refeições, adensando ainda mais suspeitas num pagamento a uma empresa de 233 mil euros. A sentença do Tribunal, agora revelada, determina à Câmara a entrega de toda a documentação ou a assumpção da sua inexistência. Neste último caso, se não houver provas, revelar-se-á então uma situação de ainda maior gravidade: a possibilidade de fazer ajustes directos de centenas de milhares de euros em alimentação sem guardar qualquer prova da sua entrega e consumo.


    A Câmara Municipal de Cascais foi intimada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a entregar ao PÁGINA UM as cópias de todas as requisições e provas diárias de entrega de alimentos fornecidos pela empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar nos centros de refugiados ucranianos no último trimestre do ano passado.

    A sentença da juíza Mafalda Andrade concede um prazo de 10 dias para o cumprimento dessa obrigação. Esta é mais uma vitória do PÁGINA UM em prol da transparência da Administração Pública, uma das bandeira do jornal desde a sua criação, contando com o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO.

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    Em causa está os moldes de execução e um contrato por ajuste directo no valor de 250 mil euros – o terceiro em dois anos para o mesmo fim – que a autarquia de Cascais sempre recusou dar informações ao PÁGINA UM, obrigando assim a mais uma intervenção junto dos tribunais administrativos para quebrar o manto de obscurantismo.

    Durante o processo de intimação, e por pressão do Tribunal a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras acabou por enviar ao PÁGINA UM apenas uma única factura e ordem de pagamento respectivo que mais adensa ainda as suspeitas sobre o efectivo cumprimento do contrato, ou seja, se houve ou não entrega de alimentos nos centros de refugiados ucranianos, que estavam, soube o PÁGINA UM, praticamente desactivados.

    Com efeito, ao invés daquilo que seria expectável num contrato deste género – e contrariando o clausulado que impedia pagamentos antecipados –, a Câmara de Cascais aceitou da ICA, com que já teve outras relações comerciais, uma factura com o valor contratual quase na íntegra  apenas dois dias após o ajuste directo, tendo o pagamento sido concretizado ainda no prazo de vigência.

    green trees under white clouds and blue sky during daytime

    A factura tinha um valor total de 232.799,69 euros, mas sem explicitar o número de refeições nem a sua tipologia nem o número de beneficiários nem as condições de entrega. Na referida factura surge apenas a referência “Serviço Refeição – Almoços aos Refugiados” com a quantidade de “1 UN” [uma unidade], com um “Preço Unitário” de 189.268,04 euros, a que acresceu IVA a 23%. Se foram apenas almoços a serem fornecidos, e se se estipulasse um preço unitário de 10 euros, estaríamos perante mais de 23.000 refeições, o que, distribuídas pelo prazo do contrato, daria quase 260 refeições por dia.

    Relembre-se que numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado , Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”. Ou seja, perante a postura da Câmara de Cascais ignora-se quem comeu, e sobretudo quantas pessoas comeram refeições no valor de 232.799,69 euros supostamente entregues pela ICA entre 26 de Setembro e 26 de Dezembro de 2023. E ignora-se sobretudo quem entregou e quem recebeu, porque a autarquia não quer revelar guias de remessa e de recepção, e quis mesmo que o Tribunal Administrativo de Sintra não a obrigasse a revelar dando por encerrada a lide com a simples entrega de uma factura e de uma ordem de pagamento.

    Porém, como a inexistência de guias de remessa ou outros documentos que provem a entrega diária constituiria uma violação grave na gestão autárquica, o PÁGINA UM insistiu no desejo de ter acesso a esses documentos, bem como todas as comunicações de situações imprevistas e de todas as intervenções do gestor do contrato, direito que foi assegurado na sentença.

    A juíza esclarece também que se algum dos documentos efectivamente não existir, a autarquia de Carlos Carreiras terá de explicitar esse facto, o que a ocorrer levantaria questões legais de enorme gravidade: o pagamento de uma prestação de serviços sem quaisquer provas da execução.

    Note-se que, no âmbito desta intimação, o PÁGINA UM também pedira elementos sobre um contrato entre a Câmara de Cascais e o Modelo Continente também para o fornecimento de alimentos e de bens de higiene para os centros de refugiados, cujos preços no caderno de encargos estavam hiperinflacionados, ou seja, o contrato previa a compra de produtos no valor de 180 mil euros mas que custavam, de facto, apenas 14 mil. Neste caso, e na sequência de uma notícia do PÁGINA UM em Outubro do ano passado, a autarquia admitiu no Tribunal Administrativo de Sintra que afinal nunca houve qualquer compra.


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  • Tribunal Administrativo ‘mostra’ ao Governo como fugir à transparência

    Tribunal Administrativo ‘mostra’ ao Governo como fugir à transparência

    Se um Governo quiser impedir o acesso a documentos da sua função político-administrativa tem agora um bom argumento ‘fornecido’ por um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS): basta que diga que possuem natureza política. No decurso de uma intimação do PÁGINA UM para acesso ao inquérito sobre incompatibilidades preenchido por Caleia Rodrigues antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em Fevereiro do ano passado – o único que o fez ainda durante o Governo Costa –, três desembargadores do TCAS, entre os quais um ex-inspector-geral da Administração Interna, vieram agora confirmar uma sentença de há um ano do Tribunal Administrativo de Lisboa. Para os desembargadores, aqueles inquéritos – que terão sido agora também preenchidos pelos membros do Governo Montenegro – são de natureza política, o que implica o seu imediato secretismo. Como a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, criada em 1993, se mostra ambígua sobre os documentos que não são administrativos, significa que esta tese do TCAS, a fazer jurisprudência, concede o direito a qualquer membro do Governo alegar que todos os ofícios, estudos, relatórios e pareceres têm um cunho político, evitando assim a sua divugação. E mesmo o acesso a jornalistas.


    Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), aprovado no final do mês passado, concede, de forma indirecta, a receita para qualquer Governo, no contexto da actual Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), fugir à transparência: alegar que relatórios, inquéritos ou outras quaisquer decisões escritas ou em formato digital são documentos políticos. Esse ‘truque’ transforma-os em documentos secretos, independentemente de qualquer classificação.

    Em causa estava um processo de intimação do PÁGINA UM para o acesso aos inquéritos dos convidados a integrarem os Governos, designadamente ministros e secretários de Estado, uma prática introduzida por uma Resolução de Conselho de Ministros no início do ano passado, mas que foi apenas usada no Governo de António Costa uma única vez. Gonçalo Caleia Rodrigues, antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em 15 de Fevereiro de 2023, foi o único que preencheu o inquérito, ao qual o PÁGINA UM pedira o acesso, que foi recusado pelo Governo de António Costa. Com a entrada em funções dos novos ministros e secretários de Estado do Governo de Luís Montenegro, terão sido, eventualmente, preenchidos novos inquéritos, embora com este acórdão não seja possível sequer conseguir confirmar documentalmente a sua existência.

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    Aprovado por unanimidade, o acórdão do TCAS assinado por três desembargadores, o primeiro dos quais é Pedro Figueiredo, inspector-geral da Administração Interna entre 2015 e 2019, tendo recebido um louvor do então ministro Eduardo Cabrita aquando da sua saída daquelas funções. Os outros dois desembargadores foram Marcelo Mendonça e Carlos Araújo.

    A decisão do tribunal é muito lacónica e nem se perde sequer em grandes considerações. Ocupa pouco mais de duas páginas e confirma uma sentença de Abril do ano passado do Tribunal Administrativo de Lisboa com 10 páginas. O PÁGINA UM alegara que, embora se estivesse perante acto preparatório de uma decisão política – a posterior nomeação de governantes –, o inquérito (o documento em si) constituía o cumprimento de um requisito administrativo, emanado de uma lei, tanto mais que era preenchido por alguém que não exercia ainda funções governativas, sendo antes um pré-requisito de um cidadão para ser nomeado pelo primeiro-ministro ou por um ministro. Além disso, o PÁGINA UM salientava que, tendo a dita Resolução do Conselho de Ministros, justificado o inquérito pela “importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, o secretismo em redor do seu conteúdo era incongruente para esse propósito.

    Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros estipula que “uma vez preenchido, o questionário [pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.” A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.

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    Contudo, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”

    Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.

    Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”

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    Em todo o caso, esta justificação nem sequer seria necessária, na interpretação dos juízes e desembargadores do Tribunal Administrativo. No acórdão, que confirma a linha de uma primeira sentença, conclui-se que “o preenchimento do dito ‘questionário de apreciação prévia’ insere-se no processo de escolha dos membros do Governo, pelo Primeiro-Ministro, tal actividade é política, não administrativa e visará salvaguardar o prestígio do Governo”. E dizem ainda os desembargadores que “as restantes preocupações referidas pelo recorrente [PÁGINA UM], nomeadamente o desejo de averiguar se o Governo deu cumprimento à Resolução Fundamentada referida nos autos, não são susceptíveis de alterar o decidido, porquanto a LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos] não o permite”.

    Este acórdão abre, deste modo, uma panóplia de possibilidades a qualquer Governo em considerar político todos os pareceres, relatórios ou mesmo troca de comunicações elaborados para a posterior tomada de uma decisão ministerial ou do Conselho de Ministros, prejudicando assim a transparência tão propagandeada na teoria mas pouco evidente na prática. Aliás, ao contrário do que sucede em diversos países europeus, a legislação portuguesa na transparência nas decisões políticas é pouca.

    Nesse âmbito, a LADA é, intencionalmente ambígua, permitindo interpretações à la carte como as do acórdão do TCAS, na definição do que não é documento administrativo. Nesse diploma, cuja primeira versão tem 31 anos, salienta-se que estão excluído do acesso “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – ou seja, não são, em princípios, acessivos mensagem de e-mail ou de WhatsApp –, ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português” e também “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação”.

    a black and white photo of a black surface

    Ora, este “designadamente” permite ambiguidades, porque não exclui outras actividades para além das que se referem às reuniões formais de governantes. No limite, se um qualquer governante assim desejar pode, a partir de agora, se a interpretação dos desembargadores fizer jurisprudência, alegar que todos os documentos, mesmo que aparentem ser de índole administrativa, constituem actividade política, até porque um Governo tanto administra como exerce funções políticas sendo a fronteiras entre estas funções bastante ténue ou mesmo inexistente.

    Saliente-se que o PÁGINA UM, conhecendo à partida a possibilidade de insucesso desta intimação, avançou mesmo assim para que, em caso de indeferimento – como se confirmou agora –, pelo menos ficasse patente a hipocrisia de uma medida política de evidente populismo: decretou-se um inquérito prévio, em prol da transparência, para averiguar da idoneidade de futuros governantes, mas depois publicamente fica tudo secreto. No limite, pode nem sequer haver inquéritos preenchidos. E mesmo que existam, no fim das funções dos governantes, ou se os candidatos não forem aceites, a Resolução do Conselho de Ministros determina a sua destruição. Nem para os historiadores ficam. Na verdade, existirem ou não existirem os ditos inquéritos é ‘igual ao litro’. Nem servem ‘para inglês ver’.


    As iniciativas do PÁGINA UM junto do Tribunal Administrativo são financiadas pelo FUNDO JURÍDICO, com apoios dos nossos leitores. Em situações como a desta intimação, desfavorável ao PÁGINA UM, os encargos acabam por ser maiores por ser impostas as custas. Para manter a possibilidade de continuar as iniciativas em prol de uma maior transparência administrativa e política, apoie o FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM. Neste momento, está em preparação a entrada de mais três intimações por recusa de documentação administrativa.


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  • Recorde: Fisco vai gastar 35 milhões de euros por três anos de licenças e hardware

    Recorde: Fisco vai gastar 35 milhões de euros por três anos de licenças e hardware


    A Autoridade Tributária e Aduaneira vai pagar 35,2 milhões de euros em licenças de software e manutenção de hardware para os seus serviços durante os próximos três anos. O montante a pagar está distribuído em dois contratos assinados este mês com a IBM e a Timestamp, depois de concurso público, e foram ontem divulgados no Portal Base.

    No caso da sucursal portuguesa da IBM, o contrato agora celebrado, para vigorar até 2026, no valor total de quase 26,9 milhões de euros com IVA, vem no seguimento de um outro que decorreu entre 2021 e 2023, que incluía o licenciamento e manutenção do software usados pelos funcionários do Fisco. Tanto para a IBM como para a Autoridade Tributária e Aduaneira, este é o maior contrato público de sempre, ultrapassando o anterior para serviços quase similares estabelecido em Fevereiro de 2021 no valor de cerca de 21,4 milhões de euros.

    IBM logo

    Um segundo contrato, sobretudo para serviços de melhoria e manutenção do hardware, foi assinado com a Tiemestamp – uma empresa portuguesa de sistemas e tecnologias de informação com ligações comerciais à gigante tecnológica norte-americana Oracle – e o seu valor é consideravelmente mais baixo, embora num montante relevante: quase 8,4 milhões de euros. Esta empresa esteve associada ao caso das viagens pagas pela Oracle em 2017 a altos quadros do Estado.

    Os encargos associados à informática e automatização de processos pela Autoridade Tributária e Aduaneira têm vindo a aumentando consideravelmente nos últimos anos, e os contratos públicos que celebra atingem montantes cada vez mais elevados.

    Na lista ordenada dos 25 maiores contratos públicos da Autoridade Tributária Aduaneira – com valores que vão desde os 2,5 milhões até aos 21,9 milhões de euros (sem IVA), 19 são com empresas de tecnologia de informação, com a IBM a destacar-se, arrecadando os três maiores. Esta empresa tem ainda o 11º maior contrato. Nos últimos cinco anos, só com serviços ao Fisco, sobretudo venda de licenças de software, a gigante norte-americana facturou cerca de 72,4 milhões de euros desde 2019. Nos seis anos anteriores, apenas vendera ao Fisco pouco mais de 10,2 milhões de euros

    Apesar de a IBM bater a concorrência na facturação, a Timestamp segue próxima, porque conta larga dezenas de contratos, umas vezes sozinha e outra integrada com outras empresas. Contabilizando somente os contratos sem parceria, a Timestamp tem sete contratos no top 25 da Autoridade Tributária e Aduaneira, e facturou a esta entidade pública cerca de 55 milhões de euros (IVA incluído) desde 2019.

    Helena Borges, directora-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira.

    Fora do sector informático, os contratos mais elevados abrangem os sectores das limpezas (dois) e energético (quatro), com a Endesa a atingir o acordo comercial mais elevado: quase 9,5 milhões de euros por fornecimento de electricidade em Abril do ano passado por um período de apenas um ano. Com a excepção do contrato que ocupa a 25ª posição – um ajuste directo com a Samsic no valor de 2,5 milhões de euros –, todos estes contratos foram celebrados ao abrigo de um acordo-quadro ou após um concurso público.

    Os contratos celebrados entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e a IBM e a Timestamp integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados nos dia 26 de Março de 2024. Desde Setembro de 2023, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

    PAV


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    Ontem, dia 26 de Março, no Portal Base foram divulgados 1179 contratos públicos, com preços entre os 4,90 euros – para aquisição de papel térmico, pelo Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, através de ajuste directo – e os 21.845.466,00 euros – para aquisição de modelo de licenciamento empresarial, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, através de concurso público.

    Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 25 contratos, dos quais 15 por concurso público, oito ao abrigo de acordo-quadro e dois por ajuste-directo.

    Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados 10 contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (com a Novartis Farma, no valor de 3.905.560,00 euros); Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (com a Alexion Pharma Spain, no valor de 819.523,20 euros); três da Unidade Local de Saúde de Santa Maria (um com a Medtronic Portugal, no valor de 202.292,00 euros, outro com a Johnson & Johnson, no valor de 135.908,44 euros, e outro com a Biotronik Portugal, no valor de 104.532,90 euros); Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (com a Kyowa Kirinfarmacêutica, no valor de 151.845,00 euros); Município de Caldas da Rainha (com a GIS – Segurança Privada, no valor de 147.019,65 euros); Unidade Local de Saúde do Médio Tejo (com a Siemens Healthcare, no valor de 113.840,43 euros); Agência Nacional para a Gestão do Programa Erasmus+ Educação e Formação (com a SoftwareOne Denmark Aps, no valor de 108.000,00 euros); e a Infraestruturas de Portugal (com a Efacec Energia – Máquinas e Equipamentos Eléctricos, no valor de 105.860,00 euros).


    TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 26 de Março

    1Aquisição de modelo de licenciamento empresarial

    Adjudicante: Autoridade Tributária e Aduaneira

    Adjudicatário: Companhia I.B.M. Portuguesa

    Preço contratual: 21.845.466,00 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    2Execução de empreitada denominada “Variante a Aljustrel na EN 263”

    Adjudicante: Infraestruturas de Portugal

    Adjudicatário: Tecnovia – Sociedade de Empreitadas

    Preço contratual: 8.496.000,00 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    3Aquisição de modelo de licenciamento empresarial

    Adjudicante: Autoridade Tributária e Aduaneira

    Adjudicatário: Timestamp – Sistemas de Informação

    Preço contratual: 6.811.753,00 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    4Aquisição de serviços de disponibilização e locação de meios aéreos (DECIR 2024) – Lote 3

    Adjudicante: Estado Maior da Força Aérea

    Adjudicatário: Gestifly, S.A.

    Preço contratual: 5.519.778,00 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    5Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central

    Adjudicatário: Novartis Farma

    Preço contratual: 3.905.560,00 euros

    Tipo de procedimento: Ajuste directo


    TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 26 de Março

    1 Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central

    Adjudicatário: Novartis Farma

    Preço contratual: 3.905.560,00 euros


    2Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca

    Adjudicatário: Alexion Pharma Spain

    Preço contratual: 819.523,20 euros


    3Aquisição de consumíveis de pacing e próteses intracoronárias

    Adjudicante: Unidade Local de Saúde de Santa Maria

    Adjudicatário: Medtronic Portugal

    Preço contratual: 202.292,00 euros


    4Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte

    Adjudicatário: Kyowa Kirinfarmacêutica

    Preço contratual: 151.845,00 euros


    5Prestação de serviços de segurança e vigilância de instalações municipais

    Adjudicante: Município de Caldas da Rainha

    Adjudicatário: GIS – Segurança Privada

    Preço contratual: 147.019,65 euros


    MAP