Etiqueta: Tinta da China

  • Um divertimento literário cheio de fantasia culinária

    Um divertimento literário cheio de fantasia culinária

    Título

    Livro de receitas dos lugares imaginários

    Autor

    ALBERTO MANGUEL (tradução: Rita Almeida Simões)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Novembro de 2021)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    “Só na má literatura é que as personagens não comem”, afirmou Alberto Manguel (n. 1948) em Dezembro do ano passado, numa entrevista ao Ípsilon (Público).

    Pegando nesta ideia, poderemos afirmar igualmente que só os maus leitores não pensam no que as personagens comem. Numa ou outra leitura, seguramente que alguns leitores já deram por si a imaginar como seriam as iguarias que as suas personagens estariam a degustar em determinando momento da narrativa e o que fariam se elas à sua frente se materializassem.

    Quem nunca desejou partilhar a mesa e as pitanças com Sancho Pança, mais dado à comezaina do que o seu escanzelado cavaleiro andante? Quem nunca imaginou os petiscos que Phileas Fogg e Passepartout comeram na sua volta ao mundo? Que dizer dos repastos com os Três Mosqueteiros? Ou mesmo nas farsas de Gil Vicente?

    Neste Livro de receitas dos lugares imaginários, o prazer da leitura prolonga-se num verdadeiro êxtase pelo prazer de cozinhar e, sobretudo, o prazer de comer e partilhar, tanto a mesa como os livros. Além de ler e escrever, o ensaísta argentino e autor de vários best-sellers internacionais também gosta de imaginar quais as iguarias que as personagens que vai lendo mais apreciam trincar.

    É na cozinha, entre tachos e panelas, que o escritor se entretém a inventar receitas, segundo ele, desde a adolescência, e agora as apresenta pela primeira vez em livro. «Sempre me senti atraído por histórias sobre comida, ou melhor, histórias em que as personagens se detêm a comer, passam tempo a cozinhar ou se reúnem à volta de uma mesa», confessa o autor na sua Introdução. “A comida realça a realidade da ficção […] porque, para mim, a simples menção de comida humaniza uma história», acrescentando que «toda a comida (diz-nos a literatura) é, na sua essência, uma prova da nossa humanidade comum”.

    Para compor estas receitas, Alberto Manguel dedicou-se à “comida de lugares que não existem senão na imaginação”, seleccionando lugares imaginados por Homero, Júlio Verne, Cervantes, Platão, Boccaccio, Melville, Gabriel García Márquez, Italo Calvino, Thomas Bernhard, Rabelais ou Tolkien, entre tantos outros. Um verdadeiro festim literário e pantagruélico.

    O livro congrega 74 receitas e encontra-se dividido em Entradas e sopas (11), Pratos principais e molhos (37), Sobremesas (21) e Bebidas (5). A maior parte das receitas são de fácil execução, com os passos necessários bem explicados. Na lista de ingredientes, salienta-se o uso da malagueta, que aparece em onze receitas, ou os coentros em nove receitas, uma delas para sobremesa. Destaque também para o uso de variadas especiarias e ervas aromáticas, que conferem grande personalidade aos pratos.

    Aqueles ingredientes imaginários, quando difíceis de encontrar, podem ser facilmente substituídos por outros mais comuns, como por exemplo, ovo de aepyornis (p. 37) que pode ser substituído por ovos de galinha, assim como o ovo de dragão (p. 74); a carne de roc (p. 100) substituída por carne de cordeiro; a salsicha de elefante (p. 102) por salsicha merguez ou o albatroz negro de Tsalal (p. 115) facilmente substituído por frango. Só a falta de imaginação impossibilita qualquer confecção gastro-literária. A receita mais dispendiosa talvez seja o Risotto de Trufa à Moda de Marina (p. 83), pois requer uma trufa negra fresca.

    Numa ou noutra receita, os leitores facilmente reconhecem alguns pratos bastante familiares, como o caso da nossa tradicional canja, aqui proposta como Sopa de Letras de Babel (p. 22), com as massinhas de letras, as mesmas com que na nossa infância nos divertíamos a formar palavras no prato, ou os crepes na receita dos Achatados (p. 138).

    Há algo de lúdico, prazeroso e nostálgico nestas receitas propostas pelo autor pois, como escreve Manguel, “a literatura não é apenas alimento da alma”, é também uma maneira de nos identificarmos «com os livros que amamos; de certa maneira, tornamo-nos a personagem cuja vida seguimos na página.”

  • Crónicas de um pioneiro (esquecido) da condição negra

    Crónicas de um pioneiro (esquecido) da condição negra

    Título

    A afirmação negra e a questão colonial

    Autor

    MÁRIO DOMINGUES (ensaio e selecção de José Luís Garcia)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Janeiro de 2022)

    Cotação

    17/20 

    Recensão

    Quem percorrer qualquer alfarrabista ou feira de livros velhos, o nome de Mário Domingues (1899-1977) é incontornável. As biografias da série Lusíada – retratando, entre outras, as vidas do Padre António Vieira, do Marquês de Pombal, de reis como D. Afonso Henriques, D. Manuel I ou D. Inês de Castro, do Infante D. Henrique, e até de Moisés – tiveram, durante quase duas décadas, um retumbante sucesso editorial, daí aparecerem agora amiúde.

    Mas Mário Domingues fez muito mais do que isso, mesmo no mundo literário português. Além de jornalista, sobretudo antes da instituição do Estado Novo, foi crítico de pintura – grande defensor dos modernistas, como Almada Negreiros, numa altura em que estes não eram ainda apreciados – e sobretudo prolixo escritor. Não necessariamente de elevadíssima qualidade, mas certamente em quantidade foi quase inexcedível: sobretudo nos anos 50 terá escrito cerca de 150 livros de aventuras, policiais e até de literatura cor-de-rosa, cumprindo assim o seu sonho de viver em exclusivo da escrita.

    Porém, também tinha fito para o marketing. Para evitar a saturação do seu nome, e para dar “credibilidade” aos livros de aventuras, que se passam nos mais recônditos ambientes, este Emílio Salgari português usou e abusou de dezenas de pseudónimos estrangeiros, por vezes em dupla – como Henry Dalton e Philip Gray, “autores” de mais de uma dezena de livros –, por vezes femininos. Em diversas situações, ostentou o seu nome como suposto tradutor de uma obra alegadamente escrita por um estrangeiro, mas em muitos casos optou até por usar pseudónimo como tradutor.

    Também publicou diversos romances em nome próprio, entre 1923 e 1960, além de traduzir obras de escritores consagrados (estes sim, verdadeiros) como Walter Scott, Charles Dickens, George Elliot e Stefan Zweig.

    Não é, contudo, sobre estas questões – embora referenciadas num interessante ensaio introdutório do sociólogo José Luís Garcia, investigador do Instituto de Ciências Sociais – o tema central de A afirmação negra e a questão colonial, uma criteriosa selecção de textos publicados pelo jovem Mário Domingues, no jornal A Batalha, um diário anarcossindicalista, entre 1919 e 1928.

    Nascido numa roça de São Tomé e Príncipe de uma mãe negra que nunca conheceu – o país trouxe-o para Portugal aos 14 meses –, Mário Domingues foi dos primeiros a defender abertamente, em Lisboa, a independência das colónias africanas de Portugal, adoptando nos seus escritos n’A Batalha a causa libertária, manifestando-se contra a exploração dos trabalhadores, a dominação colonial, o racismo, a opressão sobre as mulheres e a tirania política do colonialismo moderno, em defesa da dignidade, da cultura e das organizações da população negra e africana.

    A forma desassombrada como o jovem Mário Domingues, então com 20 anos acabados de fazer, escreve o seu primeiro texto sobre esta temática, acaba por ser surpreendente quando se lêem os seus textos, sobretudo tendo em conta a época e o contexto em que ele se inseria.

    Retratando incidentes raciais nos Estados Unidos em 1919, conhecidos por Red Summer, logo no seu primeiro texto, Mário Domingues não se poupou em críticas: “(…) A imprensa burguesa da Europa não se referiu com mais largueza de vistas a esta questão, dando-lhe o aspecto de simples incidente, porque falar-se de pretos e de brancos implica falar-se de colonização, e colonização, até hoje, ainda não se pode traduzir senão por uma palavra – crime (…)”.

    Embora a chegada do Estado Novo e a sua opção pela profissão de escritor – que ele ambicionava, como confessou em conversa na RTP em 1970, nas vésperas de ser condecorado –, o tenha esmorecido nestas lutas pela condição negra, a leitura de alguns destes seus textos de juventude – que se aconselha vivamente – mostram uma faceta pioneira de um homem de valor inexcedível, infelizmente pouco evocada.

    Num dos seus 62 textos, seleccionados por José Luís Garcia, e agrupados em quatro grupos temáticos, encontramos mesmo um Mário Domingues percursor de Martin Luther King e do seus famoso discurso proferido em 1963. Mais de quatro décadas antes, em 11 de Julho de 1922, nas páginas d’A Batalha, Domingues chega também a relatar o seu “sonho encantador”, mas lamentando ser então o que ainda era: um mero sonho, que se esboroava na realidade.

    Vale a pena, e muito, expor breves passagens:

    Tive um sonho belo, um sonho delicioso, cor-de-rosa, como costumam ter as crianças ternas. Vivia feliz, uma felicidade de oiro, uma felicidade jamais gozada, toda feita de serenidade de espírito, daquela serenidade que nasce da consciência sossegada, sobre a qual não pesa a menor sombra de crime, nem nosso nem alheio (…).

     Recordo-me também de ter percorrido esse país imenso, numa velocidade fantástica, numa velocidade de sonho, e de que essa velocidade não me impediu de o ver todo, desde os desertos infinitos, amarelos, monotonamente amarelos, até os recônditos das cidades; desde as multidões aglomeradas nos campos, fechando a abundância e o bem-estar, até aos homens solitários que, escondidos nos seus lares recatados, meditam e são filósofos, estudam e são inventores (…).

     Não vi nos portais, à chuva e ao vento, velhos e doentes, leprosos como Lázaros, estendendo a mão descarnada a caridade de quem passava; não ouvi tão-pouco os gemidos dos encarcerados – que não havia –, nem dos oprimidos chicoteados; os homens não se tratavam de chicote em punho, nem se insultavam violentamente. Havia bondade e tolerância, afabilidade e simpatia nas suas relações (…).

    Onde julgava ir encontrar cadeias sombrias, deparavam-se-me escolas encantadoras, construções higiénicas, e as crianças, longe de apresentar um aspecto miserável, eram sorridentes, cativantes na sua ingenuidade; o seu olhar, em vez de possuir a expressão medrosa dos pequenos torturados, dos precocemente infelizes, tinha franqueza e audácia (…).

    – Diz-me, jovem, que mundo é este, tão atraente como os teus olhos negros, tão belo como o teu rosto fascinante, tão perfeito como o teu corpo de deusa?

    Sorriram nos seus lábios sensuais os seus dentes alvíssimos e a sua voz – cântico harmonioso e embalador – murmurou:

    – É África, continente emancipado.

    Pleno de uma emoção inexplicável, a respiração opressa, o coração perturbado pela novidade feliz, interroguei ainda:

    – E os brancos, os déspotas, onde estão eles?

    Cintilou de novo um sorriso sedutor nos seus dentes alvos:

     – Déspotas, já não há, meu amigo; vai longe o seu tempo. Os bancos compreenderam que não deviam manter o seu predomínio iníquo e os negros conquistaram com a sua fé numa humanidade melhor a sua Independência. Agora, brancos e negros vivem em paz, trabalham juntos e tanto uns como outros têm o mesmo direito à abundância e à alegria que são comuns.

    O sonho terminou aqui. E a visão rápida que de corpos segmentados que baqueiam, de mulheres prostituídas, de povoações incendiadas, de velhos queimados pelas chamas destruidoras, de amantes ultrajados, avolumou-se de súbito, tomou proporções gigantescas, empanou o brilho rutilante do sol e estendeu sobre este mundo ideal a sua asa negra, abafadiça, eliminando da minha alma a impressão radiosa da paz e da bondade – deixando nela gravada apenas a dor de viver numa cidade injusta!”

    Se outro mérito não tivesse esta obra produzida por José Luís Garcia – e tem, e muitos –, já valeria pelo resgatar do esquecimento da figura de Mário Domingues, pouco conhecida e muito menos ainda reconhecida. Leitura recomendava, sobretudo para quem julgar que o sonho da completa emancipação negra e a desejada harmonia racial é “coisa” recente.

    Nota: Até dia 28 de Março encontra-se patente na Biblioteca Nacional uma mostra sobre Mário Domingues na Sala de Referência, sendo a entrada livre.