Etiqueta: Tinta da China

  • A leveza de uma vida notável

    A leveza de uma vida notável

    Título

    Peste e cólera

    Autor

    PATRICK DEVILLE (tradução: José Mário Silva)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Dezembro de 2022)

    Cotação 

    15/20

    Recensão

    Alguns heróis são mais esquecidos do que outros – e não se incomodam com isso, porque nunca tiveram a pretensão de o ser. Alexandre Yersin 1863-1943, discípulo de Louis Pasteur, foi um microbiologista, polímata e cientista suíço que se encaixa nesse perfil.

    Pouco conhecido pela generalidade das pessoas, não é um dos nomes mais sonantes da História da Medicina, embora o bacilo da peste negra, Yersinia pestis, descoberto pelo cientista em Hong Kong em 1894, tenha sido nomeado em sua honra.

    Felizmente, o escritor francês Patrick Deville, escreveu um romance inspirado na intensa vida de Yersin, que foi um explorador em várias áreas da vida, e não apenas da Ciência. Intitula-se Peste e cólera, e tornou-se, no ano passado, o primeiro romancista traduzido para português do romancista, estando integrado na Colecção de Alberto Manguel,uma iniciativa da Tinta da China e da RTP. Originalmente publicado em 2012, recebeu nesse ano o prémio Femina e o Prix de Prix em França.

    O romance é abundante – talvez em demasia – em apontamentos históricos e curiosidades, ou não fosse também o seu próprio autor um aventureiro e viajante profissional.  Patrick Deville partiu para o Golfo Pérsico como adido cultural, com apenas 23 anos, e foi professor em países como a Argélia e a Nigéria, tendo publicado o seu primeiro livro em 1987. Também noutras das suas obras, Deville inspirou-se em figuras reais, conjugando as suas vidas com a ficção.

    Se Alexandre Yersin nunca obteve uma grande notoriedade, tendo ficado relegado um pouco como uma personagem secundária, neste romance o aprendiz de Pasteur é o protagonista – e em pleno direito. É justo porque, como se percebe em Peste e cólera, a sua vida é digna de ocupar estas 222 páginas, e a sua história é daquelas que vale a pena conhecer. Não sendo assim uma biografia, é um romance que retrata, contudo, com grande fidelidade a sua vida, a qual se pôde reconstruir sobretudo através das cartas que, nas suas muitas viagens, escreveu à mãe, Fanny, e à irmã, Emilie.

    Poder-se-ia chamar Alexandre Yersin um homem dos sete ofícios, multifacetado. Sedento de conhecimento, foi o arquétipo do génio eremita. Sempre nutriu uma profunda admiração por David Livingstone, um conhecido missionário e explorador escocês. E, de facto, Yersin teve essa faceta aventureira: aos 27 anos tornou-se médico de bordo da Messageries Maritimes. Em navios a vapor, percorreu a costa do sudeste asiático, região cujo centro chegou a explorar, tendo até estado de caras com a morte.

    Não mais quis voltar à Europa, que trocaria definitivamente por Nha Trang, uma província que corresponde hoje ao actual Vietname. Nesse país, Alexandre Yersin é ainda hoje venerado pela forma como altruisticamente serviu a população vietnamita ao longo do quase meio século, e onde faleceu com 79 anos. Ali, abriu um pequeno laboratório que, poucos anos mais tarde, se tornaria uma filial do Instituto Pasteur.

    O romance percorre todas as estações da longa vida de Yersin: a infância, a juventude, a idade adulta e a velhice. Não o faz, contudo, por ordem cronológica. Ao longo do livro, vai-se avançando e recuando no tempo. Não sendo obra imperdível, com Peste e cólera ninguém perde nada com a sua leitura. É um livro leve, descomprometido, que cai bem.

    É certamente uma boa adição à biblioteca de qualquer pessoa. A escrita tem beleza, e a vida do cientista suíço é deveras impressionante.

  • A derradeira viagem pelas letras esquecidas

    A derradeira viagem pelas letras esquecidas

    Título

    Roteiro afetivo de palavras perdidas

    Autor

    ANTÓNIO MEGA FERREIRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Outubro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Jornalista, escritor e gestor cultural, António Mega Ferreira, desaparecido há menos de dois meses, no final de Dezembro, nasceu na lisboeta Mouraria em 1949, e terá dito que “gostaria de ficar conhecido na História como um tipo que fez essas coisas todas na área da cultura”.

    Com mais ou menos polémica, alguma coisa ficou feita. Mega Ferreira coordenou a candidatura de Lisboa à Expo’98, da qual foi depois comissário executivo, tendo em seguida presidido ao Parque Expo, ao Oceanário e ao Pavilhão Multiusos de Lisboa.

    Além disso, dirigiu a Fundação do Centro Cultural de Belém entre 2006 e 2012, tendo também ocupado a liderança executiva da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC).

    Mas antes de tudo isto, foi jornalista, passando pelo Expresso, ocupou a chefia de redacção do Jornal de Letras e da RTP2, e fundou ainda as revistas Ler e Oceanos.

    Deixou também mais de 30 obras publicadas, entre ficção, ensaio, poesia e crónicas. E foi com Crónicas italianas, publicada em 2021, que receberia o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga.

    Na sua última obra em vida, Roteiro afetivo de palavras perdidas, Mega Ferreira desenha-nos um repositório de palavras em desuso ou “olvidadas”, para que possamos reviver ou reconhecer, com ele, aquelas que a sociedade portuguesa tende a dar “sumiço” do seu riquíssimo vocabulário. E é, em sentido metafórico também, um livro de viagens. Uma viagem no tempo por uma sociedade pouco cosmopolita e quase ignorante, a que vivia no “mundo salazarista”, com um mundo de “clichés” e de propaganda política: “Uma pavorosa ignorância de tudo o que se passava além da nossa fronteira”.

    O que provocava uma espécie de ressentimento por parte das chamadas elites que importavam e usurpavam, de forma faceciosa, palavras da língua francesa, como “galheta” ou “psiché”, e outras que foram substituídas por termos anglo-saxónicos, como seja “métier” (por especialista – tão em voga nos últimos três anos), ou mesmo “aeroplano”.

    Em cada palavra, assim temos uma viagem no tempo. Mega Ferreira conduz-nos, ora pelos caminhos obscuros da criação de palavras, ora pelas memórias da sua infância, ora pelos trilhos da História, ora pelas páginas de muitos livros, para nos apresentar de forma deliciosa e afectuosa algumas palavras que se vão perdendo e outras que se recuperam, mas com outros sentidos.

    “Geringonça” é disso exemplo, um neologismo, diz-nos o autor, já que o seu uso na política é algo inédito. “Nos longínquos anos 50 designava uma traquitana, um carro velho e desconjuntado pronto para ir para a sucata”. Mas Mega Ferreira vai mais atrás e recorre a outras obras para dar a conhecer as origens desta e de outras palavras no léxico português, para remeter “geringonça” para “algo mal contruído ou frágil”.   

    É muito provável que o leitor/a acima dos 40 anos se identifique e até emocione com uma série de “palavras perdidas”, como por exemplo, “desaustinado”, “telefonia” ou mesmo “inalador” – quantos de nós terão sentido o aroma fresco de Vicks VapoRub, com que nos “friccionavam o peito quando uma ponta de tosse infantil” nos assaltava.

    Muitas outras palavras são capazes de nos desfiarem sorrisos. Ao todo são oito dezenas, mas Mega Ferreira tinha uma lista de 250 entradas no seu roteiro inicial. Quem sabe fique o desafio para recuperar, ou pelo menos, registar e guardar algumas palavras e expressões que nos são caras, nos nossos cofres e cadernos, para que a elas recorramos sempre que nos apercebermos que alguns “famigerados” “estafermos” nos estão a “infernizar” com os seus “despautérios”.

    Por curiosidade, “padralhada” não está neste inventário, “mas bem poderia estar”, como confessou Mega Ferreira, que contava que o pai quase vociferava quando afirmava “é preciso afastar essa padralhada toda”. Mas este país, este Portugal, parece continuar preso ao “pecado” – esta, sim, uma palavra deste Roteiro afetivo de palavras perdidas que, apesar de não se ter “perdido”, talvez comece, finalmente, a ficar em desuso.

  • Conta-me como foi… a música

    Conta-me como foi… a música

    título

    Silêncio aflito

    autor

    LUÍS TRINDADE

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Março de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Em Silêncio aflito, o historiador Luís Trindade fornece um tratamento académico a uma associação bastante comum, esta que une as transformações da segunda metade do século passado e a sua efervescente banda sonora. De prever, por isso, um caminho já bastante trilhado, com pontos de passagem inevitáveis até um destino certo. Assim foi, em larga medida.

    Nestas quase quinhentas páginas (re)descobrimos um Portugal nacionalista e conservador ao som da música “ligeira”; burgueses e ocidentais dançando “ié-ié”; emancipado e esclarecido, cantando a “nova canção portuguesa”.

    Por isso, é também de prever que esta “aflição” quebraria o “silêncio” com um solene “Grândola, Vila Morena”. Felizmente, o autor acerta aqui, como noutras passagens, em eventos, pessoas e canções para iconizar a sua narrativa. Nesta, o conturbado Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu dos Recreios, em Março de 74.

    Porém, é de questionar se uma história da “sociedade portuguesa através da música popular” aflora o essencial ao acompanhar, até àquela noite, a plateia que “harmonizou a voz com a do cantor e, em uníssono, formou uma comunidade, criou um hino e desencadeou um movimento” (p.464). Por exemplo, se nos interessamos por comunidade, cantor e hino, talvez o fado e Amália não devessem ter sido tratados ortogonalmente à “grande narrativa” que o autor ensaia.

    Haveria outra forma? Será possível dizer algo de fundamentalmente novo sobre a história deste tempo? Talvez. No entanto, a forma balizada com que Trindade estabelece alguns pontos de partida obriga a que, neste estudo, muitas observações porventura imbuídas de sentido acabem na berma como inconsequentes “contradições” (que o autor tem a franqueza de sinalizar).

    Com efeito, um monolito chamado “sociedade salazarista” (p.88), na qual a opressão e imobilismo parecem ser fins em si mesmos, é um conveniente antagonista, omnipresente embora pouco definido para além do papel de António Ferro e de alguns cronistas conservadores.

    Para colher outros sentidos ainda nos falta “desmilitarizar” o pensamento e discurso sobre o passado (já não tão) recente. Não seria razoável exigir que o autor desta pesquisa profissional e financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia o fizesse espontânea e isoladamente.

    O mérito de Silêncio aflito reside afinal na sólida pesquisa documental em que se baseia, reconstruindo este velho nexo com o auxílio quase exclusivo de imprensa da época, o que nos leva a dizer que o melhor deste livro está, quase sempre, entre duas aspas. Tanto assim que fechamos o volume com a clara impressão de que uma colecção completa d’ O Século Ilustrado e da revista Flama são essenciais para entender o passado recente português!

    Entre recortes e fotografias gloriosamente empoeiradas, vamos reforçar ou ajustar a nossa intuição sobre esta época fascinante, com tempo para arrumar de vez a origem da rivalidade entre Simone de Oliveira e Madalena Iglésias. Finalmente.

    Não podemos dizer de Silêncio aflito , como se diz dos bons livros de História, que se lê como um romance: para isso precisaríamos de uma verdadeira voz a narrá-lo. Mas podemos dizer que se lê como uma partitura, fiquedo a carga do intérprete extrair o melhor sentido dos símbolos ali inscritos.

  • Um murro na mesa! E que não nos falhe a memória

    Um murro na mesa! E que não nos falhe a memória

    Título

    Cidade participada: Arquitectura e Democracia – Algarve

    Autores

    MIGUEL REIMÃO COSTA e ANA ALVES COSTA (coordenação)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Agosto de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Para o povo, sobre uma bem sucedida acção democrática, e decididamente a dedicatória merecida aos Índios da Meia Praia e a todos os algarvios, o quarto livro da colecção da editora Tinta da China sobre o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) em Portugal dedica-se ao caso de estudo das operações na região do Algarve.

    Imortalizada com amor na música de Zeca Afonso, para que sintamos o carinho que movia a revolução:

    Eram mulheres e crianças, cada um com seu tijolo, isto aqui era uma orquestra, quem diz o contrário é tolo!

    Este livro, como a sua colecção, deixa um valioso testemunho e levantamento, nesta edição compilando as intervenções para quatro bairros: o Bairro do 25 de Abril na Meia Praia, em Lagos, de José Veloso; o Bairro da Associação Progresso, em Silves (estes dois apresentados por Vítor Ribeiro); o Bairro 11 de Março, em Olhão, de José Maria Lopes da Costa (apresentado por Ana Alves Costa); e o Bairro 1.° de Maio, em Tavira, de João Moitinho (apresentado por Miguel Reimão Costa).

    Está apresentado de uma forma bela e leve, para leitores fora das disciplinas da Arquitectura e Urbanismo, com as notas de rodapé relegadas para o final do livro, para facilitar a leitura e depoimentos essenciais de José Baptista Alves (capitão da Força Aérea e director nacional do SAAL de 1975 a 1976), José Veloso (arquitecto e coordenador de 16 bairros), José Maria Lopes da Costa (arquitecto do Bairro 11 de Março), João Luís Correia (operário, sócio e director de obra da associação desse mesmo bairro), Manuel Dias (coordenador da equipa em Albufeira, Loulé e Olhão), António da Cunha Telles (realizador), e as palavras de José Afonso (quem mais poderia ser?) sobre a sua prestação lírica para o filme “Continuar a viver ou os Índios da Meia Praia” e com “(…) uma denúncia ao actual processo capitalista que se está a viver e ao crime que foi a extinção do SAAL (…)”.

    Paulo Varela Gomes apresenta-nos esta “Revolução com um grão de SAAL”, texto original do livro História da Arte Portuguesa (terceiro volume) com “Arquitectura nos últimos vinte e cinco anos” de Paulo Pereira, onde nos é dado logo de início um contexto essencial a esta curadoria centrada regionalmente mas com seu escopo nas intervenções doutras regiões de Portugal, sendo o caso algarvio o de maior sucesso.

    Com registo fotográfico e documental dos cartazes e ilustrações da época, artigos de jornal e boletins das associações de moradores, até às fichas de inscrição e inquérito às condições de alojamento dos mesmos e livros de registo de serviços prestados e, claro, o espólio documental de desenhos, maquetes, plantas, cortes e alçados dos diferentes bairros.

    Tudo a acompanhar reflexões importantes a que não falta a participação também de Alexandre Alves Costa.

    Para destaque, devo fazer menção a um subcapítulo final de Manuel Dias, intitulado “Quando a democracia representativa impôs o recolher obrigatório à democracia participativa”. É um murro na mesa, que nos relembra a todos o que foi aquela realidade, como ficou ela enterrada em papéis e política, como foi afogada e morreu na praia por ideologias.

    Pois nada apaga a nobreza dos índios da Meia-Praia.

  • Os surreais dramas de Ismael

    Os surreais dramas de Ismael

    Título

    Consumidos pelo fogo

    Autor

    JAUME CABRÉ (tradução: Maria João Teixeira Moreno)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Setembro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Autor do romance Eu confesso (2015), do livro de contos Quando a penumbra vem (2019) – também publicados pela Tinta-da-China – e de outros romances e guiões, Jaume Cabré é um dos escritores catalães mais conceituados e consagrados da atualidade. Terá sido com As vozes do rio Pamano (2004) que o autor terá ganhado maior visibilidade em Espanha e a nível internacional – já traduzido em 12 línguas.

    Neste Consumidos pelo fogo, Jaume Caubré conta-nos a história de Ismael, um professor de literatura e línguas, cuja existência rotineira e monótona é resultado de uma escolha. O enredo surrealista, e até metafísico, começa quando Ismael é despedido pela directora da escola, tão-só por ter tomado a liberdade de dar um poema catalão aos seus alunos, em vez de se limitar a abordar a literatura espanhola.

    O professor não se transforma na barata de Kafka, mas a sua condição é a de uma falena, borboleta nocturna, que paira numa existência absurda. A rotina, depois de quebrada, transforma-se numa viagem ziguezagueante entre o futuro ausente, um presente inverosímil e uma infância infeliz – o pai chegou a lançar-lhe gasolina.

    O retorno à infância acontece por intermédio de um encontro com uma antiga vizinha, Leo. Foi numa retrosaria, onde entrou para comprar um botão de camisa. Voltou à loja dois dias depois e, no seguinte, Leo já estava em sua casa. A felicidade parecia quase alcançada.

    Mas Ismael é como que sequestrado por um antigo aluno que lhe pede ajuda para uma tradução.

    O professor de literatura nem tempo teve para sentir o que lhe parecia uma nova existência. Acorda num hospital sem memória, após um acidente de carro, no qual é dado como morto. “Chamem-me Ismael”, assim responde a uma das muitas questões nesse estranho hospital.

    A história das peripécias de Ismael acontece, em paralelo, com as de uma família de javalis. A cria mais nova perde-se, como se perde Ismael, nos meandros dos sonhos e das memórias de infância. Caos, confusão, absurdo, são algumas das palavras-chave do enredo complexo que Jaume Cabré constrói, provocando o leitor, como que o “obrigando” ao exercício da reconstrução de uma narrativa fantástica, caracterizada pela velocidade dos acontecimentos.

    Ao resgatar alguns clássicos, uns mais explícitos, outros de forma mais subtil, o autor consegue algo original e, ao mesmo tempo, desconcertante.

  • Diário de bordo em tempos covídicos

    Diário de bordo em tempos covídicos

    Título

    Volta aos Açores em quinze dias

    Autor

    JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Agosto de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    José Pedro Castanheira foi – é, porque nunca se deixa de ser – um dos mais respeitados jornalistas portugueses, daqueles sérios e a sério, com vasta experiência na investigação jornalística ao longo de quase cinco décadas de actividade, de entre os quais 30 anos no Expresso.

    Além do seu trabalho na imprensa, José Pedro Castanheira é autor de diversas obras de índole biográfica e política, destacando-se a biografia de Jorge Sampaio e o relato da atribulada vida de Annie Silva Pais (filha de um façanhudo director da PIDE), em co-autoria com Valdemar Cruz, que acaba de ser transposto para o pequeno ecrã (Cuba Libre), na RTP.

    Chegado à reforma, Castanheira decidiu em 2020, aos 68 anos, concretizar um seu antigo sonho, de 40 anos: ligar por mar as ilhas açorianas. E mais: ser o “cronista”. Foi processo atribulado, o que até é bom para um relato.

    De facto, em literatura de viagem, por princípio, jamais interesse algum haverá para o leitor se nada de estranho ou mirabolante se passar, sobretudo se o cenário for o mar e um pequeno veleiro o meio de locomoção. E também se o “cronista” não for bom.

    Ora, no caso de Volta aos Açores em quinze dias: diário de bordo de uma viagem para (não) esquecer, garantido estava que o “cronista” seria bom, e isso se confirma ao longo das suas páginas. João Pedro Castanheira, sempre na terceira pessoa (mesmo quando se refere a si), mostra a mestria de um bom contador de história, aqui e ali pontuado com pequenas doses de humor. Em todo o caso, falta ali umas pitadas de sal para que o estilo à laia de cronista dos tempos dos Descobridores ficasse mais refinado, o que se pode justificar pelo pouco tempo de preparação da obra: a viagem decorreu em Maio deste ano, e o livro saiu do prelo no início de Agosto.

    Bom, na verdade, neste caso, a analogia com o sal não é bem conseguida, pois a refinação lhe retira qualidade, ao invés de o aprimorar. Fiquemo-nos então por dizer que a escrita neste curto livro, em formato de bolso, não é “flor de sal” da literatura de viagens marítimas, mas não envergonha, muito pelo contrário. Porém, confessa-se que se pode ficar com uma sensação de algum “inconseguimento”.

    De facto, lido este “diário de bordo”, conclui-se que o mar compartilha, nesta travessia pelo arquipélago dos Açores, o protagonismo tanto com a equipagem do veleiro Avanti (e suas aventuras e desventuras) como com o SARS-CoV-2.

    A pandemia está omnipresente no livro. Não apenas porque a viagem, inicialmente prevista para 2020, se inicia com dois anos de atraso, devido aos lockdowns da pandemia, mas sobretudo por um terço do livro ser quase inteiramente dedicado às contingências do confinamento obrigatório de José Pedro Castanheira no Horta Garden por força de um teste positivo à covid-19 ao 12º dia de viagem.

    E assim, as últimas 60 páginas ingloriamente transformam-se, segundo o próprio autor, em relato do “simplório quotidiano de um jornalista reformado que se arvorou em marinheiro e que, não se tendo precavido suficientemente (apesar de três vezes vacinado), foi obrigado pela ministra Marta Temido e pelo seu diligente SNS24 a um período de isolamento profilático” de cinco dias no dito Horta Garden.

    Esta parte do “diário de um covídico”, nas humoradas mas conformadas palavras de José Pedro Castanheira, tem, pelo menos, uma utilidade histórica não despicienda: tal como olhamos hoje com admiração e espanto para antigas crónicas compiladas no século XVIII na História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito – e sabendo as condições de navegação em épocas ancestrais –, no futuro, certamente, os nossos descendentes olhar-nos-ão com pasmo e espavento às experiências destes navegadores do século XXI. 

    Portanto, três vezes vacinado e depois ainda há um confinamento? Give me a break! Enfim, se os portugueses de antanho andasse com tais frescuras, nem ao forte de São Lourenço da Cabeça Seca, vulgo Bugio, chegariam com os madeiros ondulantes de então, quanto mais aos quatro cantos do Mundo.

    Nota final para o excelente prefácio de Onésimo Teotónio Pereira, distinto açoriano e professor catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, no estado norte-americano de Rhode Island.

  • Da ditadura à democracia: a revolução necessária

    Da ditadura à democracia: a revolução necessária

    Título

    Revolução portuguesa: 1974-1975

    Autores

    VÁRIOS (AAVV) – Coordenação: Fernando Rosas

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Maio de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A publicação e edição do livro Revolução Portuguesa – 1974-1975, pela Tinta da China neste ano de 2022, vem na sequência do Seminário de História Contemporânea – 2021, organizado pelo Instituto com a mesma designação, sob a coordenação de Fernando Rosas, professor emérito da Universidade Nova e catedrático jubilado pela FSCH/Nova.

    No ano em que se iniciam as comemorações dos 50 anos do fim da ditadura, o coletivo de nove autores que a obra congrega assegura, desde logo, enorme qualidade e grande rigor aos textos incluídos.

    O texto de Fernando Rosas, coordenador do seminário e da sua publicação, “Do golpe militar à revolução”, ajuda-nos a identificar e a compreender os principais acontecimentos que terão dado origem ao golpe militar de 1974.

    Maria Inácia Rezola, professora adjunta da Escola Superior de Comunicação Social e investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC), foi recentemente nomeada Comissária Executiva da Estrutura de Missão do 50.º aniversário da Revolução do 25 de Abril de 1974, em substituição do actual ministro da Cultura (Pedro Adão e Silva), é a autora do segundo capítulo. Com o texto, “Definindo o poder político-militar (do 25 de Abril ao 11 de Março)”, a autora procurou retratar as estruturas e centros de poder dos primeiros meses depois da Revolução, ajudando-nos, assim, a entender a importância e papel das Forças Armadas nas primeiras etapas da revolução.

    Com Manuel Loff, professor associado do Departamento de História e Estudos Políticos Internacionais da FLUP e investigador/coordenador do IHC, e o seu contributo, “A Revolução, do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975: Impulso, Auge e Refluxo”, compreendemos a notoriedade e a importância da revolução portuguesa no contexto internacional. Com efeito, o tardio colapso da colonização portuguesa era um estudo de caso para os cientistas políticos (do mundo ocidental), estando sob forte vigilância por parte de países como Estados Unidos e Rússia, devido às questões do armamento e da Guerra Fria.

    Albérico Afonso Costa, professor coordenador no Instituto Politécnico de Setúbal, reporta-se ao caso particular de Setúbal para discutir a “Disputa política-ideológica nas Comissões de Moradores e Trabalhadores”.

    Quem melhor para nos situar em relação à “Política Agrícola e Reforma Agrária, 1975”, do que Fernando Oliveira Baptista, então ministro da Agricultura e Pescas (IV e V Governos Provisórios, de 26 de Março a 19 de Setembro de 1975) e professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia/Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural?

    Com o capítulo, “Economia e Socialismo: o antiplano de Mário Murteira”, Ricardo Noronha, investigador do IHC, procura analisar as intervenções de diversos protagonistas no âmbito da construção de um novo modelo de desenvolvimento económico no Portugal pós-25 de Abril, “do qual ‘socialismo’ foi o nome mais frequente”.

    Hugo Castro, investigador do Instituto de Etno-Musicologia, com o texto intitulado “A canção de protesto na Revolução dos Cravos”, além de trazer uma dimensão cultural à obra, analisa a importância instrumental e repercussão de “Grândola, Vila Morena”, que lhe valeu diversos atributos, entre os quais: “senha da liberdade”, “canção da liberdade” e “hino da revolução”. A sua importância é de tal ordem, que continua a ser uma canção emotiva para a generalidade dos portugueses (com mais de 47 anos, pelos menos).

    “Descolonização: o colapso do Império” é o título da intervenção de Pezarat Correia, oficial general reformado que se doutorou aos 85 anos, com uma dissertação sobre a descolonização. A sua experiência e a sua tese de 500 páginas dão-lhe autoridade para se dedicar aos designados três ciclos do império português, focando-se, aqui, no derradeiro ciclo africano, aquele que encerraria “o próprio projeto colonial”.

    Finalmente, Pedro Aires Oliveira, professor associado no Departamento de História da FSCH/Nova e investigador integrado do IHC, fecha com o desejo de mudança veiculado à Revolução, com o texto: “A esfera do possível: política externa e diplomacia na transição para a democracia (1974-1976)”. O livro termina, assim, com a relevância e influência do contexto internacional, nas suas lutas políticas e sociais do período, na política externa do Estado democrático emergente em Portugal.

    Pelo exposto, podemos perceber a dimensão e importância que esta obra detém na compreensão da História recente de Portugal. Quase 50 anos volvidos, é possível ter um olhar um pouco mais distante e quase objectivo sobre o 25 de Abril, que, como refere Maria Inácia Rezola, recorrendo a José Medeiros Ferreira, é um acontecimento que “marca uma era e divide a sociedade em antes e depois”.

  • Uma colecção de cromos para recordar e vangloriar-se

    Uma colecção de cromos para recordar e vangloriar-se

    Título

    Eu estive lá

    Autor

    HENRIQUE AMARO (coordenador)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Junho de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Eu estive lá é um livro despretensioso – e essa característica poderá ser uma virtude, do ponto de vista comercial, mas também um defeito, como documento histórico, que bem poderia ser, porquanto fica muito aquém desse propósito.

    Retratando sobretudo os concertos musicais realizados em Portugal nas últimas quatro décadas do século XX – os primeiros 20 anos do século XXI estão escassamente retratados –, esta é uma espécie de “colecção de cromos”, de provas de orgulho pela presença em espectáculos sobretudo em épocas em que a vinda de artistas e grupos internacionais a Portugal era um acontecimento único porque raro. Até aos anos 90, a periferia do país na Europa, o seu atraso económico e a complexidade logística para a realização de grandes concertos, deixava os portugueses a carpir por concertos de grupos mainstream.

    Provar que “eu estive lá” – e sobretudo provar que se esteve lá – apenas através dos bilhetes (muitos com esmero gráfico), estropiados pelos porteiros, faz todo o sentido, uma vez que, além da memória, mais nada servia então. Antes dos anos 90 nem sequer existiam telemóveis nem se imaginariam câmaras fotográficas e de vídeo em smartphones. Aliás, convém referir que, por norma, pelo menos até aos anos 90, eram expressamente proibidas as fotografias em espectáculos musicais.

    Embora com textos de apresentação, em cada década, de Luís Pinheiro de Almeida, Ana Cristina Ferrão, Pedro Fradique e Isilda Sanches, esta obra quase se esgota na simples exposição dos bilhetes dos concertos dos diversos espectáculos, identificando a data e artista(s), alguns dos quais históricos e marcantes numa determinada época. Nesse aspecto, é uma pena.

    Talvez tivesse sido interessante um enquadramento de alguns desses espectáculos; ou uma explicação iconográfica; por exemplo, sobre alguns dos conteúdos de verso de alguns bilhetes dos anos 80, por exemplo, com piadas a gozar alentejanos ou com referências pouco politicamente correctas sobre homossexualidade.

    Também porventura pedagógica teria sido uma explicação em redor da variação dos preços dos bilhetes, cujo aumento mais se sentiu na primeira metade dos anos 80 – por causa da inflação que então chegou a ultrapassar os 30% num só ano – e agora mais recentemente.

    Em todo o caso, a inflação não explica tudo. Por exemplo, o célebre concerto de Genesis, com Peter Gabriel, em 6 e 7 de Março de 1975, custou 80 e 120 escudos, consoante o local, mas, mesmo aos dias de hoje corresponderia a 11,59 e 23,19 euros, respectivamente – uma pechincha.

    Bom, mas, na verdade, estes são detalhes, que devem ser irrelevantes para a maioria dos leitores, até porque esta é uma obra não propriamente para ser lida mas para ser (re)visitada por pais e avós juntamente com filhos e netos para, a partir daí, sim, serem contadas memórias sobre, lá está, o que significou o “eu estive lá”. O livro é, assim, um pretexto para conversas intermináveis. E aí serve um bom propósito.

    Pode o livro também ter outra utilidade, sobretudo para quem tem mais de 40 anos: rever o exacto momento, na década respectiva, em que se chegou à maioridade ou a uma situação económica mais folgada, e em que começam a aparecer no livro, de forma mais frequentes, os bilhetes dos concertos onde “eu estive lá”. No limite pode guardar os “seus” bilhetes entre as páginas deste livro,

    Essa alegria e as memórias, que surgem quando deparamos com concertos onde “eu estive lá”, não eliminam, porém, a “raiva” por não se ter estado numa mão-cheia de outros fantásticos concertos, em grande parte porque a idade, então, não o permitiu. Fica a consolação, para esses casos, de não se estar tão velho agora.

  • Navegando pelas irregularidades

    Navegando pelas irregularidades

    Título

    Divisão da alegria

    Autora

    RAQUEL NOBRE GUERRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Março de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Quando comecei a navegar nas águas frias e tempestuosas do norte de França e do Canal da Mancha costumávamos justificar tão masoquista exercício dizendo “um bom dia de mar vale nove maus”. (Hoje sei que não é inteiramente verdade. Não vale nove maus, vale muitos mais. Vale uma vida. Mas isso são outras águas.)

    Pensava nisto enquanto lia Divisão da alegria, o último livro de Raquel Nobre Guerra e – diz-nos Pedro Mexia, na pequena nota introdutória – o mais “extenso e expansivo” da autora. Não sei como eram os outros, mas este é extremamente irregular.

    Tem poemas de uma beleza siderante; muitos outros ficam aquém. Naturalmente, resisti à tentação de estabelecer um ratio: talvez a matemática seja poesia, mas a poesia não é de certeza matemática. Temos portanto – na minha opinião, claro – de nos ficar por esta espécie de baloiço que ora nos faz deparar com versos como:

    Decompor trecho a trecho a regra do dia
    os mesmos gestos, os mesmos objectos
    roupa larga, o rocegar do verso longo
    eu e tu, palavras soltas por aí

    as papoilas vão tornando raras quase supérfluas
    como se estivessem prontas para o estio

    (in Palavras Soltas, Pág. 15)

    [Os livros já não têm errata. Penso, mas não tenho a certeza, que falta um pronome a seguir a “vão”: As papoilas vão-se tornando raras, etc.]

    Umas páginas mais à frente (A tua segunda consciência, pág 22):

     …
    que o espaço aberto que percorres com os dedos
    é o meu corpo tocado pela tua segunda consciência

    Versos como estes descrevem, vestem e transformam simultaneamente a realidade e o olhar da autora. Comparem-se com:

    Todo o pensamento é uma Vénus de Milo quando
    três pernas do cavalo azul
    de porcelana chinesas se desfizeram em pó
    espalhando o rasto frágil que a beleza traz

    (In Paris num caderno, pág. 56)

    Esta última estrofe resume aquele que é para mim o pecado mortal da maioria da poesia portuguesa actual: imagens opacas, “intraduzíveis”, digitais no sentido em que ou aderimos a elas ou não aderimos. O surrealismo deixou uma pesada herança ou, se preferirem um termo náutico, uma longa esteira na poesia portuguesa. Esteira essa que só agora, hesitantemente, começa a apagar-se. Já era tempo.

    Isto dito, penso que o livro deve ser comprado e lido. Os bons poemas desequilibram claramente a balança para o lado “bom”. Há realmente momentos de prazer extático, há uma relação amorosa com as palavras,

    Desculpa se sou bruta com as palavras
    porque as amo violentamente
    e tendo a despi-las e carregá-las de frutos
    de verniz conforme a estação

    (in Frutos de verniz, pág. 42)

    A poesia de Raquel Nobre Guerra excele no último capítulo do livro, Oito poemas para o pai: as imagens tornam-se menos herméticas, o amor que as inspirou transparece e transforma-se numa poesia sensível, capaz de fazer o leitor identificar-se com essa ternura e – talvez seja esta a função da poesia – torná-la sua.

    (Nota: na página 107, in Envelope a dizer: lambi para fechar – “Espero que os dias longos sejam ideiais para ti também / apesar da clara vitória dos maus”. Impossível não pensar noutros ratios.)

  • A caricatura perfeita de um país imperfeito

    A caricatura perfeita de um país imperfeito

    Título

    Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar

    Autor

    JOÃO ABEL MANTA (Pedro Piedade Marques)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    A justiça, como forma de reconhecimento, deve ser concedida em vida. E, de facto, seja reconhecido, a multifacetada obra de João Abel Manta tem estado bem viva e bem-vinda se tem mostrado, agora que ele acaba de perfazer 94 anos.

    Formado em Arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1951, João Abel Manta tem obra feita nesta área – onde o exemplo mais emblemático é o conjunto de edifícios da Avenida Infante Santo, na capital –, mas foi sobretudo como artista plástico, no desenho e arte pública – por exemplo, o desenho em calçada portuguesa da alfacinha Praça dos Restauradores ou o painel de azulejos da Avenida Calouste Gulbenkian –, e na pintura e no cartoon político que mais se destacou.

    Para uma geração mais jovem – ou mesmo para aqueles com idade inferior aos 60 anos –, João Abel Manta pouco poderá dizer – e é pena. Mas, nas décadas de 50 e 60 – e em especial nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao 25 de Abril foi ele um dos mais proeminentes cartoonistas, primeiro no Diário de Lisboa e depois sobretudo n’O Jornal.

    Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar, obra originalmente publicada em 1978 e agora reeditada pela Tinta da China, faz jus à excepcional obra de João Abel Manta, não apenas por ser a “visão” de um cartoonista durante um período conturbado da nossa sociedade, mas sobretudo por mostrar um processo de “exorcismo” do autor perante os fantasmas do fascismo que sobrevoavam então a sua mente no pós-25 de Novembro de 1975.

    Preparados num período de auto-exílio em Londres, os cartoons de João Abel Manta, revolucionários para a época, não retratam apenas Salazar – muito pelo contrário; mostram, sim, a mentalidade do país de um ditador – de um país secular sempre pouco livre –, sempre omnipresente, sempre retrógrado, sempre lamentável.

    Num traço inconfundível, intrigante, por vezes de uma violência sádica (como nos cartoons sobre a Guerra Civil de Espanha), muitas vezes a necessitarem de reflexão para um melhor entendimento, os 139 cartoons que constituem este livro – num esmerado trabalho gráfico em papel que destaca as cores e num necessário formato oblongo – mostram-nos uma “procissão” de figuras históricas ou populares, patéticas, grotescas, tétricas, lúbricas, sinistras e, enfim, com todos os adjectivos que se queiram.

    Neste cortejo podemos assim assistir a nadadoras expondo-se ao lado de um lascivo D. Henrique; aos retratos de vice-reis congregando um passado colonial pouco edificante, à omnipresente religião católica – com a Nossa Senhora de Fátima protegendo a Selecção de futebol ou sendo a esperança de uma trupe de aleijados e frankensteins – ou ainda à veneração de um Santo António, ora famélico, ora bonacheirão, ora inquisitorial, ora sedutor.

    Todos os cartoons vivem muito das expressões, dos pormenores, das dimensões escolhidas com propósitos claros por João Abel Manta, quase nunca “normais”, explicitamente caricaturadas, porque nada surge ali por um acaso – e muito menos quando os diferentes cartoons constituem séries, como as dos cupidos no bloco Idílio, ou os diversos Camões.

    Mas, claro, o fantasma de Salazar “corporiza-se” em pleno na sequência final, em que o ditador surge, primeiro, a comandar a Universidade, depois os militares, a seguir a Igreja, homens engravatados, e por fim, crianças. Aqui, apenas um Salazar, envelhecendo-se neste percurso, tem o seu característico perfil, bem desenhado e perfeito, sempre o mesmo, estático como o país; todos os que o vão acompanhando possuem meras cabeças disformes, dir-se-ia acéfalas. Como o país.

    O esclarecedor e esclarecido posfácio de Pedro Piedade Marques – historiador, designer gráfico, tradutor e editor, e principal responsável por esta reedição – é de grande utilidade para o entendimento desta obra-prima do cartoonismo político português do século XX.