Etiqueta: Tinta da China

  • O poder da ilustração

    O poder da ilustração

    Título

    Arena

    Autor

    JOÃO FAZENDA

    Editora

    Tinta da China (Novembro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Reunindo duas décadas de cartoons publicados pelo autor, inicialmente na revista Visão e, mais recentemente, no jornal Expresso, o livro ‘Arena’, de João Fazenda é uma obra que transcende a simples compilação de ilustrações; trata-se de um testemunho visual de um período marcado por acontecimentos políticos, sociais e culturais, capturados com a perspicácia de quem observou o mundo social e políticos com olhos atentos e um traço inconfundível.

    Sabe-se que, na imprensa, o título é por excelência o primeiro convite à leitura, que se insinua ao leitor, que o desafia e despertar curiosidade para a leitura. Mas, se o título é a primeira porta, as imagens – sejam fotografias ou ilustrações – são o impacto visual que pode determinar a permanência do olhar. As fotografias têm o poder de documentar, de capturar a realidade de forma imediata e emotiva. Contudo, mesmo quando uma imagem fotográfica pode valer mais do que mil palavras, há algo que frequentemente lhe escapa: a capacidade de transcender o momento captado e de oferecer uma crítica, uma reflexão ou uma síntese daquilo que se observa.

    E é aqui que entram as ilustrações, e, em especial, o trabalho de artistas como João Fazenda. As ilustrações não apenas acompanham ou embelezam; elas dialogam, desconstroem e reconstroem a realidade, conferindo-lhe novos significados. A ilustração editorial tem o poder único de condensar, num único quadro, aquilo que milhares de palavras talvez não consigam dizer com tanta clareza: a ironia, a denúncia, o absurdo ou até a esperança de uma situação. E João Fazenda é, sem dúvida, um mestre dessa arte.

    Por isso mesmo, se o objectivo inicial da ‘contratação’ de João Fazenda terá sido sobretudo ilustrar os textos de Ricardo Araújo Pereira, o humorista em muita razão, mesmo conhecendo-se a sua providencial pseudo-humildade auto-depreciativa, quando no prefácio escreve: “Como é evidente quando se abre o jornal, não é o desenho do João Fazenda que ilustra os meus textos, é o meu texto que acompanha os desenhos do João Fazenda. A primeira coisa que os leitores veem é o desenho. A seguir, tentam descobrir (os que se dão a esse trabalho) de que modo é que o texto se relaciona com ele”.

    Esta inversão de papéis sublinha, de facto, a força do traço de Fazenda, capaz de capturar a atenção e instigar uma leitura diferente, mediada pela imagem. E isso é mesmo verdade: folheando o livro, mesmo para quem leu pouco textos de Ricardo Araújo no original, se lembra de muitas das ilustrações- Até porque o traço de João Fazenda é único e marcante, com o seu estilo minimalista, satírico e profundamente simbólico, com formas simples e cores sólidas, mostra-se capaz de comunicar mensagens que combinam reflexão e leveza, evidenciando temas sociais e políticos muito abrangentes.

    Uma única nota: do ponto de vista editorial, teria sido útil, e não demasiado dificultoso, identificar, no final do livro, as datas das ilustrações, bem como dos textos originais. Em alguns casos, ajudaria a relembrar os “acontecimentos”, para quem os viveu; e para os mais jovens, seria um auxiliar para ‘identificar’ os protagonistas que eventualmente tenham saído da ‘cena política’ (que são pouco, porque são ‘perenes’, cá no burgo).

  • Uma caminhada pela alma catalã

    Uma caminhada pela alma catalã

    Título

    Viagem a pé

    Autor

    JOSEP PLA (tradução: Helena Pita)

    Editora

    Tinta da China (Agosto de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A recente edição portuguesa de ‘Viagem a Pé’, pela Tinta da China, é uma oportunidade de ouro para revisitar um dos nomes maiores da literatura catalã, Josep Pla (1897-1981), escritor prolífico e cronista perspicaz, conhecido pela sua capacidade em capturar o quotidiano com uma prosa simples, mas profundamente poética. Por isso mesmo, e pela quantidade assinalável de obras neste género, é considerado um dos mestres europeus da literatura de viagem.

    Esta obra em concreto, que inicialmente se diluía no vasto universo de textos deste autor, foi publicada apenas em 1949, e mais do que um relato de itinerância, é um exercício de contemplação.

    ‘Viagem a Pé’ reporta ao passado do autor, abordando uma caminhada do jovem Pla, ainda estudante de Direito, pelas paisagens da Baixa Empordà, sua terra natal. A Catalunha rural dos anos 1910, com as suas quintas, aldeias e gentes simples, é o pano de fundo da sua narrativa, num período de tensões políticas em Espanha, mas também de relativa estagnação económica em regiões rurais. Contudo, na viagem de Pla, não há espaço para discursos épicos sobre nações ou progresso; há apenas a terra, o céu, o vento e conversa

    No contexto da literatura de viagem, ‘Viagem a Pé’ não segue os moldes do aventureirismo em busca de espectáculo ou surpresas. Não há destinos exóticos nem episódios grandiosos. É, antes, um registo íntimo e descontraído, onde o acto de caminhar é uma forma de introspecção e de ligação à terra. Aliás, Pla tenta recuperar uma tradição literária que remonta ao filósofo Jean-Jacques Rousseau ou ao escritor Robert Louis Stevenson, para quem a caminhada não seria apenas um meio de locomoção, mas um exercício filosófico.

    Nesta breve narrativa, Josep Pla oferece-nos assim uma janela para a paisagem catalã e, sobretudo, para os seus habitantes. O leitor caminha ao lado do narrador, sente o cheiro das pastagens, ouve o silêncio das estradas poeirentas e percebe a dureza (e beleza) de uma vida simples. As descrições são feitas num estilo curto mas preciso, através de uma prosa despretensiosa que, por vezes, se assemelha a um diário. A obra destaca-se sobretudo pela capacidade de transformar o vulgar em arte, e por oferecer uma experiência literária onde o ritmo da leitura se confunde com o compasso da caminhada.

  • O (bom) regresso do escriba-mor

    O (bom) regresso do escriba-mor

    Título

    À descoberta das Ilhas Selvagens

    Autor

    JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

    Editora

    Tinta da China (Junho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    A crónica (e a literatura) de viagem constitui um género literário que explora a narrativa de experiências reais, frequentemente sob uma perspectiva pessoal e intimista, em diálogo permanente com o (futuro) leitor. Entre as diversas formas de literatura de viagem, o diário de bordo, ou ‘logbook’, destaca-se por ser um registo minucioso de uma lenta jornada marítima, mas onde se tenta sobretudo captar, na aparente monotonia da viagem, os detalhes mais ‘épicos’.

    Daí que, excepto se envolver uma pescaria (onde a ficção sobre o número e o tamanho dos peixes capturados é permitida), quem se abalança para a escrita de um diário de bordo tem de ser um observador minucioso, atento às nuances do mar, do céu, dos sons e das emoções, o que desafia o autor a buscar detalhes estimulantes tanto na oceanografia física como na meteorologia, nas variações acidentais dos humores e amores da tripulação, e tudo isto temperado, com bastante sal, em reflexões interiores, criando-se assim uma narrativa que quebre uma aparente inacção, sobretudo se em causa não estiver uma guerra, claro.

    Não sendo já possível, em pleno século XXI, ‘desbravar’ agora os mistérios dos mares – como fizeram Cristóvão Colombo, James Cook ou mesmo Richard Henry Dana –, não deixa, contudo, de haver espaço para os ‘logbooks’ mais descontraídos, que já não relatam o desconhecido e o perigoso, mas sim as peripécias divertidas de quem olha para uma viagem marítima com deleite. E é também por deleite, mais que por conhecimento, os leitores devem saber ao que vão…

    Sendo, assim, um relato (também) documental em ‘conversa’ com o leitor, o diário de bordo, pela sua estrutura, permite que se acompanhe, ‘em tempo real’, as sensações e as reflexões do viajante, daí que convenha muito que o cronista seja ‘dextro’ para que o relato não seja um ‘sinistro’.

    Ora, um diário de bordo escrito por José Pedro Castanheira, um dos mais cotados jornalistas da sua geração, agora já ‘reform(ul)ado – mas ainda com carteira profissional devidamente actualizada (CP 204) –, será, desde logo, uma garantia de qualidade literária, tanto mais que não estamos perante um ‘novato’ neste registo: em Agosto de 2022 já ele publicara ‘Volta aos Açores em quinze dias’, sobre o qual se escreveu aqui, com os mesmo companheiros de (der)rota. Este livro recebeu, aliás, o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores no ano passado.

    Recebeu-o, é certo, e atrevo-me a dizer que imerecidamente, por uma simples razão: este ‘À descoberta das Ilhas Selvagens’ é francamente superior – e, assim sendo, ficará prejudicada a probabilidade de concederem a José Pedro Castanheira um novo prémio quase em ano consecutivo.

    Seja como for, deve dizer-se que neste seu segundo diário de bordo, o escriba-mor (como é apresentado) José Pedro Castanheiro está muito melhor, mais solto, mais irónico, mais contemplativo e reflexivo, mais informativo, mais compreensivo com os azares e sortes nos fluídos terrenos dos mares, que descreve com minúcia e perícia.

    Melhor, muito melhor do que o ‘Volta aos Açores em quinze dias’, onde as maravilhas da travessia pelo arquipélago perdido no meio do Atlântico acabaram substituídas pelo omnipresente temor à pandemia, de sorte que se tornou mais um ‘diário de bordo covídico’, passado, acho, mais em terra do que no mar, porquanto uma parte subastancial desse desse livro acabou escrito em confinamento no quarto de um hotel.

    Passada essa tormenta e alcançada Trapobana, temos, portanto, um excelente regresso de José Pedro Castanheiro ao seu melhor, ao melhor do jornalismo ao serviço da arte da literatura de viagem. 

  • Em cada tia um Tarantino

    Em cada tia um Tarantino

    Título

    Você nunca mais vai ficar sozinha

    Autora

    TATI BERNARDI 

    Editora

    Tinta da China (Junho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Este é um livro fácil de ler. Se pensou que este comentário é superficial e fútil, aviso já que vai gostar menos do próximo. Este livro leva-se bem para qualquer lado. Pode parecer algo de somenos, mas o peso conta quando só queremos levar a toalha no ombro para a praia e pouco mais.

    Dito isto, desaconselho a leitura deste livro a homens. (A autora e a editora que me desculpem). Está cheio de detalhes sórdidos e crus de coisas que só acontecem mesmo a mulheres. Iriam ficar com as imagens na mente. Não seria bonito. Como quando comemos aquela folha de alface que estava murcha no fundo do pacote de salada ‘já lavada’. Só que, neste caso, algumas imagens gráficas ficariam gravadas na mente. Talvez para sempre. Não seria algo que passaria comendo outra coisa, logo a seguir, como no caso da alface podre. Ainda por cima, é narrado por uma mulher que é ‘overthinker’. Penso que apenas uma minoria de homens conseguiria ler, compreender e até apreciar (mesmo ficando traumatizado para a vida).

    Depois, também não será aconselhável a mulheres românticas e sensíveis. Nem a crentes ou religiosas. Não entra nas listas de livros aconselhados a cristãos. Em algumas das famílias que encontramos no livro, Jesus só há ao Domingo, e, e… 

    As ansiosas em relação a relacionamentos, a partos ou com traumas com a mãe, vão rever-se em muitas partes.

    Ademais, está cheio de detalhes, daqueles que conseguimos mesmo ver a acontecer, como se estivesse ali, à nossa frente.

    E tem muitas histórias e peripécias. São histórias deliciosas (outras repugnantes, algumas chocantes, muitas vulgares) dentro da ‘história’ principal do livro. Como as histórias da Tia do Gás e as da Tia Perseguida. Não vou contar para não estragar. (Mas, se tiver oportunidade, espreite a história sobre a Tia do Gás, a partir do segundo parágrafo da página 62.)

    Sendo leve no peso e fácil de ler, não quer dizer que seja fácil no mastigar e no digerir. Não é. Tem capítulos que fazem doer. Tem outros que fazem rir. Conseguimos sentir o que o personagem sentiu. Em outros, ficamos apenas boquiabertos, parados, congelados, como quando vemos algumas cenas de um filme do Tarantino, pela primeira vez.

    Sem dúvida, é um livro a ler. Não porque se leva bem com a toalha para a praia, mas por aqueles parágrafos que nos tocam. Como um verso triste e belo que se agarra a nós e já não nos larga. Nem se comermos algo logo a seguir.   

  • Uma revolução nos olhos dos outros

    Uma revolução nos olhos dos outros

    Título

    Por enquanto, o povo unido ainda não foi vencido

    Autor

    MANUEL VÁZQUEZ MONTALBÁN (tradução: Rita Luís)

    Editora

    Tinta da China (Junho de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Muitas vezes, o melhor retrato de um país é aquele visto pelos olhos de um estrangeiro. Esse tem a capacidade de nos olhar à distância, sem estar espartilhado por amizades e conveniências locais. Sem ser contaminado pela cultura local e amarras preconceituosas. E quando acontece esse estrangeiro ser um escritor do calibre do espanhol (catalão, vá lá) Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), então temos de nos sentir bastante sortudos.

    En hora buena a Tinta da China resolveu editar a recolha feita pela investigadora da Universidade Nova, Rita Luís, de 55 crónicas escritas entre 14 de Março de 1974 – dois dias antes da intentona das Caldas da Rainha – e 29 de Dezembro de 1975 – um mês após os acontecimentos de 25 de Novembro. O autor do detetive galego e gastrónomo Pepe Carvalho – sabiam que há planos para, finalmente, serem editadas todas as suas aventuras em português? –, fornece-nos uma visão de um habitante de um país que também esperava pelo seu momento de libertação. A Espanha que estava então ensanduichada entre a França democrática e um Portugal que aprendia essa nova realidade.

    Este Por enquanto, o povo unido ainda não foi vencido (título delicioso, retirado de uma crónica de 30 de Setembro de 1974, logo após a falhada manifestação da “Maioria Silenciosa”), tem o condão de 50 anos depois, trazer-nos detalhes sobre quem nós éramos e no que, entretanto, nos tornámos. E ser um espanhol a dizer-nos isto a uma distância de meio-século, é como olharmo-nos num espelho que nos leva a uma reflexão introspectiva.

    “Durante a minha breve estada em Portugal, no início de Maio, ouvi duas coisas das quais na altura duvidei e atribuí ao subjectivismo emocional dos meus informadores: 1º Costa Gomes é mais inteligente que Spínola; 2º os jovens oficiais estavam dispostos a dispensar Spínola se este colocasse obstáculos ao processo revolucionário”, escreveu Manuel Vázquez Montalbán a 1 de Outubro de 1974. Lido isto assim, como uma novidade que nos é dita 50 anos depois por umn estrangeiro, ajuda mais a explicar-nos hoje como Povo que usa e descarta os seus heróis do que qualquer tese universitária ou livro grosso escrito por um nacional.

    As 55 crónicas leem-se (muito) bem, embora se sinta que também poderia haver alguma contextualização. Como, por exemplo, lembrar que Durão Barroso, o futuro presidente da Comissão Europeia, era então um daqueles jovens do partido conhecido como “Movimento Recreativo dos Pintores de Paredes”, com “células na Faculdade de Direito, para inventar slogans, e outra na Escola de Belas-Artes, para os pintar”.

  • Retrato da mesa e da cama na Roma renascentista

    Retrato da mesa e da cama na Roma renascentista

    Título

    A Louçana Andaluza

    Autor

    FRANCISCO DELICADO (tradução: Nuno Júdice)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Agosto de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    É a partir da publicação da novela La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autor anónimo, provavelmente no ano de 1554, que se estabelece o nascimento do género literário apelidado de Picaresco, um género que fez furor em Espanha durante o Siglo de Oro e que estendeu a sua influência por vários países europeus, entre os quais Portugal, até aos dias de hoje. Porém, alguns autores consideram A Louçana Andaluza, livro “escrito em Roma por volta de 1524 e publicado de forma anónima em Veneza, provavelmente em 1530”, como sendo o percursor da novela picaresca, devido às inúmeras características que enformam o género. Não obstante tais considerações, a verdade é que esta novela curta conquistou lugar cimeiro na literatura ocidental.

    Apesar de publicada sem identificação do autor, sabe-se que o seu autor foi um clérigo de nome Francisco Delicado (1480-1535), natural de Córdova, provavelmente de origem judaica, e que, após o decreto de expulsão determinado pelos Reis Católicos, em 1492, abandonou a pátria para se exilar em Itália como cristão-novo. 

    Sabe-se também que foi um padre licencioso e assaz frequentador de bordéis onde, a dada altura, terá contraído o mal gálico ou sífilis, tendo padecido de semelhante maleita durante vinte e três anos. Quando se curou, Delicado escreveu um tratado acerca do morbo gálico e da sua cura através de um remédio originário das Índias Ocidentais. E foi devido a esse contratempo que enveredou pela escrita desta novela, como “modo de esquecer as dores provocadas”, mas também para ganhar algum dinheiro com ele, uma vez que o autor se achava num aperto financeiro.

    O livro, após a sua publicação, provocou escândalo “e a liberdade com que trata situações tão escabrosas para a moral da época, usando uma linguagem que ainda hoje não faz parte das boas convenções sociais, não permitiram que o livro fosse conhecido até ao século XIX, quando, na Biblioteca Imperial de Viena, foi descoberto por Fernando Wolf, em 1842, o único exemplar da obra que chegou até nós”, explica Nuno Júdice, tradutor da obra, no Prefácio

    Com este livro, o autor pretendeu fazer o retrato de uma certa Aldonça, mulher nascida em Córdova, na Andaluzia, que, após ficar órfã decidiu buscar melhor fortuna e ir viver para Roma que, naquele tempo, se dizia ser o “triunfo de grandes senhores, paraíso de putas, purgatório de jovens, inferno de todos, cansaço de animais, enganos de pobres, barraca de velhacos”, e onde se havia estabelecido uma forte comunidade espanhola, principalmente constituída por judeus fugidos de Espanha.

    Francisco Delicado, ao desenhar este retrato “tão natural que não há pessoa que tenha conhecido a senhora Louçana, em Roma ou fora de Roma, que não veja claramente como foi tirado de seus actos e meneios e palavras”, também nos revela a Roma renascentista nas primeira décadas do século XVI, tempos de esplendor e luxúria e a a sociedade e as instituições eclesiásticas daquele tempo, com um olhar atento e perscrutador acerca da vida nos bordéis da época, num tom irónico mas também sarcástico, mordaz.

    Uma narrativa burlesca, erótica, mas também satírica, de recorte picaresco, em jeito de paródia aos livros com cavaleiros heróis e aventurosos, composto por 66 capítulos, aqui designados pelo autor como “mamotreto”, em jeito de diálogo, uma das formas literárias mais em voga na época, carregada de eufemismos e metáforas eróticas, tanto sobre os genitais do homem como da mulher, assim como do acto sexual em si.

    Outra das grandes curiosidades do livro são as referências à culinária da época, tanto à da Andaluzia como à de Roma, a pratos típicos mas também aos muitos ingredientes que nesses locais se encontravam, evidenciando um conhecimento apurado sobre os ingredientes, os rituais e os pratos que chegavam à mesa das várias classes sociais, incluindo aquilo que se comia nas tabernas ou nos bordéis. 

    Por aqui se acham referências a pão ázimo, biscoito de manteiga com açúcar, pão de especiarias, carne estufada, peito de carneiro, guisado de beringelas, buchos de cabrito, cabidelas, cabrito salpicado com limão de Ceuta, refogados de peixe seco com rúcula ou leitão assado, “flocos, bolinhos, rosquinhas de gengibre, rodelas de cânhamo e alho, jogados, sopas, folhados, farinha de milho mexida em azeite, ervas e nabos sem toucinho e com cominho, couve marciana com alcaparra”.

    Além destas referências, Delicado alude também ao livro De voluptatibus de Platina e ao De re coquinaria de Apício, destacando que a comida confeccionada com fogo de carvão e panela de barro eram tidas como das melhores. Mas as referências não se esgotam somente na culinária, existindo também bastantes alusões aos cosméticos usados pelas mulheres e a todo o sortido de expedientes que elas usavam para se enfeitar e adornar, aos tecidos e à moda em voga por aquelas paragens, bem como a certas mezinhas para o tratamento de determinadas maleitas. 

    Um livro de leitura fácil e breve mas que deverá ser degustado com lentidão para assim ser mais gratificante a sua leitura.

  • Memórias de uma jornalista e ensaísta

    Memórias de uma jornalista e ensaísta

    Título

    Alegorizações

    Autora

    JAN MORRIS (tradução: Raquel Mouta)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Junho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Jan Morris nasceu em 1926, no Reino Unido, e morreu em Novembro de 2020, aos 94 anos. Uma vida longa, com muitas peripécias e viagens, tendo publicado sob o nome de James Morris até à década de 1970, época em que concluiu a transição para o sexo feminino (1972).

    O seu livro autobiográfico, Conundrum – história da minha mudança de sexo, também publicado pela Tinta da China, é um relato pungente sobre essa mesma experiência. Além de ser uma referência para a comunidade LGBTQI+, esta autobiografia é considerada, pelo The Times, como um dos “100 livros fundamentais do nosso tempo”. 

    Antes disso, a sua experiência no exército inglês, no qual entrou aos 17 anos, permitiu-lhe tomar contacto com outros países no contexto do pós-II Grande Guerra e do declínio do império britânico. Estas viagens, juntamente com o curso de História em Oxford, contribuíram não apenas para enriquecer a sua experiência e aumentar a sua matéria de escrita, mas também e, sobretudo, para expandir a sua mundividência – algo que se espelha na sua obra. A trilogia composta por Heaven’s Command, Pax Britannica e Farewell The Trumpets, que retrata a ascensão e queda do Império Britânico, é disso exemplo.

    Em 2008, o The Times incluiu Jan Morris entre os 15 maiores escritores britânicos do pós-guerra. Em 2018, foi distinguida com o Prémio Edward Stanford, pelo seu contributo para a literatura de viagens – a autora publicou ensaios sobre inúmeras cidades, entre as quais Oxford, Veneza, Trieste, Hong Kong e Sidney. 

    Além deste género, a escritora é autora de livros de história e ensaios, dois romances e uma coletânea de contos.

    Este Alegorizações é um livro (póstumo) onde Jan Morris escreve sem pretensões e sem quaisquer limitações, sem necessidade de provar o que quer que seja – com os riscos que daí possam advir. Claro que, para a autora, não havia nenhum depois da sua morte, mas para quem conhece a sua obra, este pode ser um livro aquém das expectativas. Sugere-se, por isso, que não se abram as páginas em busca da obra-prima. 

    É um livro que inclui diversos relatos de viagens, pessoas e lugares memoráveis e episódios mais ou menos caricatos, mais ou menos engraçados, marcados pelo subtil humor britânico. Um conjunto de ensaios escritos a partir das suas recordações enquanto jornalista, cuja ideia subjacente à redação dos diversos textos é lembrar que nem tudo o que parece é, e que a compreensão da realidade implica ir além do que está, literalmente, escrito e à vista. Como na Alegoria da Caverna de Platão, em que as sombras e os ecos são um reflexo distorcido da realidade.

    Uma das alegorias explicitamente consideradas pela autora diz respeito ao texto “O montanhista”. Jan Morris fez a reportagem da expedição de Edmund Hillary e Tenzing Norgayo ao Evereste, em 1953, acompanhando aqueles que terão alcançado, pela primeira vez, o cume da montanha mais alta do mundo. O texto é sobre o nepalês Tenzing Norgayo, e de como este é um símbolo e “personificação da própria vida: ágil, célebre, sempre cheio de entusiasmo e incansável” (p. 187). A lenda sherpa encarna, igualmente, a inevitável força da natureza, nomeadamente o declínio das capacidades físicas. Para Tenzing, a força e representação máxima da sua singularidade. Sui generis, assim o descreviam no Ocidente, na época dos descobrimentos verticais, digamos assim.

    O envelhecimento é um dos temas que vai perpassando o livro. O que talvez seja natural, dadas as circunstâncias da sua publicação e da percepção de uma morte mais próxima que longínqua. Mais em retrospectiva, do que em sensação de perda. Como se envelhecer fosse uma arte, em que a aceitação é a regra básica para uma vida mais leve e livre. 

    Também a bondade faz parte desta criação artística. Para a autora, a bondade é, aliás, um conceito sem qualquer alegoria, é “a única abstracção que pode orientar a nossa conduta enquanto aguardamos a revelação final (se houver alguma)” (p. 216). Para Jan Morris, “a bondade tem latente uma grande arma conceptual que está só à espera de ser usada: é mais grandiosa do que a simples religião” (p. 217), sendo facilmente compreendida por qualquer pessoa, independentemente da sua condição. 

    O ridículo, como matéria de reflexão, é outro dos atractivos do livro. O texto “Sonhar sonhos?” é o ponto de partida para uma viagem meditativa sobre o acto de meter e tirar o dedo do nariz. As indagações da autora conduzem-na a reflectir sobre a (in)discrição do acto:

    “Desde então que tenho de lhe dar uma mãozinha pelo processo pouco bonito de lá enfiar um dedo. É uma coisa tão feia de se fazer não é, mas acham que toda a gente o faz?”

    O mesmo tipo de questão é formulado pela autora em relação a Ulisses, de James Joyce: 

    “Será que todos eles leram o livro de uma ponta à outra? Duvido muito. A maioria das pessoas que afirmam tê-lo feito tornam-se evasivas quando pressionadas…” (p. 37). 

    E o/a leitor/a, estará pronto para sair da caverna e viajar com Jan Morris?

  • Espectros de um regime

    Espectros de um regime

    Título

    Sombras do Império: Belém – Projetos, Hesitações e Inércia, 1941-1972

    Autor

    JOÃO PAULO MARTINS (Org.)

    Editora

    Tinta da China (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    No seguimento da exposição com o mesmo nome, no Padrão dos Descobrimentos, entre 2 de Maio de 2022 e 30 de Janeiro de 2023, este livro surge como uma compilação essencial de uma equipa multidisciplinar que focou a sua investigação em Belém no contexto paradigmático das acções (ou inacções e inquietações de projecto) após a Exposição do Mundo Português de 1940.

    O primeiro artigo que nos é apresentado pertence à pena de Pedro Rito Nobre, arquitecto e investigador, que, com uma forma de expressão leve e directa, nos apresenta o necessário contexto da Exposição de 1940 e os planos de urbanização associados a esta malha urbana. A paginação, porém, pode dificultar a comunicação – algo plasmado ao longo de toda a edição – sendo que, embora elegante no seu grafismo e de uma forma bela se regularize numa continuidade plástica a apresentação do espólio fotográfico e documental – esta opção compromete a leitura de alguns desenhos e até da lógica das legendas (caso da página 26, em que a própria legenda da planta refere o uso do sistema “vermelhos e amarelos” para indicação dos elementos a demolir ou construir, não existindo porém essas cores nos desenhos, em sacrifício pela uniformidade gráfica).

    Para o público fora das disciplinas de edificação e planeamento, a descrição de eixos de implantação e acções de projecto e obra arriscam provocar um grau de opacidade considerável, porquanto um longo parágrafo explicativo do que consta na planta poderá conter jargão não tão acessível. Ainda assim, é muitas vezes necessário assumir o seu público alvo e talvez não apaparicar todos os destinatários apenas para aumentar o alcance, e arriscar, por seu turno, desprestigiar o conteúdo e as suas nuances.

    É anunciado, na proporção correcta, o modo como as perspectivas que orientavam as decisões urbanísticas, neste caso de estudo, não assentavam com a mesma intensidade no actual culto historicista de preservação integral da cidade (diria eu e até alguns outros investigadores, por vezes de forma fachadista ou disneyficada).

    O acervo fotográfico e documental é absolutamente notável, cuidadosamente curado e apresentado de forma a enlevar o leitor e, portanto, apesar da gíria académica empregue na redacção, dir-se-ia até ser possível usufruir do livro abdicando do corpo do texto, tal é o impacto que a recolha releva.

    “Quando afinal as luzes de mil cores deixarem de incidir sôbre os pavilhões, quais são os candieiros que ficam acessos na nossa freguesia?” p. 20, citando Ecos de Belém, 10 de Julho de 1940, p. I

    Como este autor contribui na sua reflexão, após uma demonstração clara das aventuras e desventuras dos projectos e seus autores que tentavam criar novos mundos, “tão vasto plano para tão pouca concretização” (p. 43) é sem dúvida a melhor síntese desta apresentação.

    Segue-se o artigo de Joana Brites, historiadora de arte, investigadora e professora universitária, onde novamente a leitura em colunas – em que os subcapítulos interrompem as mesmas dentro da mesma página – dificulta a mesma. De ressalvar também que na página 27 do autor anterior e na página 59 desta autora, encontramos uma redundância de uma cartografia; não obstante, é excelente a contextualização histórica sobre os conteúdos ideológicos e programáticos das intervenções apresentadas para os projectos desta época, mesmo à luz do panorama internacional.

    Não podemos deixar de exaltar a reflexão da página 69, nas considerações finais do artigo, sobre as relações de poder plasmadas no estudo da “não concretização” – neste caso, lusitana – não só das intenções da época em apreço, como mesmo actualmente.

    O artigo do organizador João Paulo Martins, arquitecto e professor universitário, tem um título absolutamente brilhante pelo seu carácter ilustrativo: “Espectros, fantasmas e outras assombrações (…)”.

    A anatomia temporal do projecto do Palácio do Ultramar, sempre acompanhado pelos desenhos brilhantes de Cristino da Silva permite-nos vivenciar uma narrativa muito interessante, assim como demonstrar as dinâmicas do “pequeno” poder em Portugal (página 95), ou as secas respostas do poder político (página 96).

    Na página 101 surge timidamente um modelo digital do projecto em análise, executado por Marta Orszt, infelizmente sem o destaque que poderia colmatar as lacunas de comunicação que já mencionámos. Em seguida, os restantes anteprojectos ao longo da década de 60 são-nos apresentados e, de novo, na página 111, uma vez mais o azedume político a empatar o avanço de uma visão. Para remate mais feliz, o Museu da Marinha garante-nos o alívio de, após esta saga de rezingas que impedem projectos, podermos observar obra erigida.

    O artigo seguinte pertence a Sebastião Carmo-Pereira, arquitecto paisagista, novamente com a companhia dum acervo de imagens e desenhos fantásticos. Ficamos a conhecer com muito interesse a luta dos planos de Belém até à Ermida de São Jerónimo, neste caso na sua dimensão paisagista e, como sempre, com o modo peculiar como aparentemente, em Portugal, não se gosta de árvores, e citando Ribeiro Telles na entrevista com Urbano Tavares Rodrigues:

    “A concentração da população nas cidades é um facto que se perde no tempo. A ruralidade criou e durante séculos manteve a cidade. Esta não era mais do que um elemento pontual no espaço rural onde se processava um complexo sistema de trocas. A relação entre a paisagem humanizada, a Natureza mais ou menos selvagem e a urbe era íntima. (…)” (página 145)

    Por fim, mas sem demérito pela sua posição, o artigo de Natasha Revez, historiadora de arte e investigadora, traça a crónica de costumes mais divertida do livro, com ironias no subtexto (ou então mea culpa se vislumbradas foram por predisposição mais sardónica pessoal).

    Sobre o Padrão dos Descobrimentos (curiosamente motivo de polémica recente), sobre a sua génese, sobre o seu orçamento começar em 9 mil contos e, mediante impugnação do primeiro concurso, subir para 12 mil; sobre as irregularidades do concurso e “projectos de cartaz” para se chegar até a abdicar do anonimato na segunda fase; sobre as alterações climáticas com o Infante a cair ao Tejo (página 157); e, de novo, a inépcia.

    Entretanto, a diferença entre o investimento em Sagres e em Lisboa, em que “mais um projecto «naufragou em ignotos baixios ante um terrível e inesperado cabo Não»” (página 161) com a devida homenagem a Teotónio Pereira e ao seu artigo “Não haverá ‘Mar Novo’” (talvez estes últimos parágrafos e imagens que o acompanham seja de observação essencial para os responsáveis autárquicos das encomendas de estatutária contemporânea em Portugal… talvez revejam os seus erros nuns pontos e, ao mesmo tempo, ironicamente constatem que até o atavismo do regime conseguiu – quando conseguia – produzir obras de melhor orgulho estético do que os suportes de pombos que vêm a ser erigidos ultimamente).

    “Da exposição ao livro”, a apresentação em jeito de prefácio do organizador do livro é, na nossa humilde opinião, o remate perfeito a esta recensão crítica de um conteúdo de pertinência essencial:

    “(…) ficam evidentes os confrontos entre protagonistas individuais – políticos, arquitetos, paisagistas… – a cujas diferentes formações e culturas disciplinares deram suporte a abordagens distintas e objetivos não coincidentes. Cumplicidades e disputas entre gerações ou meramente pessoais, raramente assumidas ou completamente explicitadas, percorrem as trocas de argumentos que a documentação administrativa regista. Nos jornais, a escassez de comentadores independentes baliza os limites do debate público.
    (…) Não será surpreendente reconhecermos então (como hoje, afinal) a incapacidade generalizada para o exercício do diálogo, capaz de conduzir soluções esclarecidas, convincentes e partilhadas, consensos negociados, e não apenas conquistados ou, simplesmente, impostos.” (página 9)

  • Uma errância fecunda

    Uma errância fecunda

    Título

    A vida errante

    Autor

    GUY DE MAUPASSANT (tradução: Carlos Vaz Marques)

    Editora (edição)

    Tinta da China (Maio de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Guy de Maupassant nasceu na Normandia, em 1850, e é um dos autores mais célebres da sua época. É a partir de 1880 que se dedica fervorosamente à sua paixão, a escrita, tendo publicado desde então, e até à sua morte, cerca de 300 novelas, seis romances e contos e inúmeras crónicas para jornais. 

    A sua doença e depressão levam-no a sair de Paris, uma cidade que abomina pela confusão, para passar temporadas na Costa Azul, de França, e viajar pelos países que circundam o mar Mediterrâneo. 

    Este livro, A vida errante, agora publicado pela Tinta da China, resulta dessas mesmas viagens. 

    A escrita envolvente do autor é, em muitos momentos, a de uma prosa poética, tal a sensibilidade captada e expressa por este observador contemplativo e perscrutador exímio. Os pormenores dos lugares, a descrição e análise dos gestos e comportamentos das pessoas, originados pelos seus contextos, cativam o leitor que gosta de viajar e de conhecer outros lugares, gentes e culturas.

    A arquitectura e a decoração são os elementos mais presentes nas suas descrições. As cores exuberantes são decalcadas em cada decoração, transportando o leitor para cada um dos lugares desta viagem, diríamos, pouco errante.

    Aliás, este livro pode recomendar-se aos autores de blogs de viagens e afins, e a viajantes com intenção de partilharem e publicarem as suas experiências, quer de forma escrita, quer visual. De facto, até para se captarem imagens com história, ou que pretendam contar o fragmento de uma história, é necessário alcançar a peculiaridade de um sítio vivido e habitado.

    Nesta obra, Guy de Maupassant observa e partilha as suas cogitações contemplativas durante uma viagem que começa em Paris – justificando, então, por que se tornou insuportável permanecer nessa cidade, cheia de gente.  

    Durante a viagem de barco, somos conduzidos pelo seu olhar atento, desde o anoitecer em Cannes até ao amanhecer na costa italiana, passando pela Sicília, Argel, Tunes e terminando em Cairuão, outra cidade da Tunísia.

    Os parágrafos introdutórios que o autor escreve, aquando da sua chegada à Sicília, parecem ter, como propósito, convencer o leitor, futuro viajante, a conhecer esta ilha. A arquitectura e os odores são os argumentos, em particular, quando se demora no quarto onde Richard Wagner terá vivido no último ano da sua vida, em Palermo.

    “Mas fui abrir a porta do armário espelhado e um perfume forte e delicioso evolou-se com a carícia de uma brisa que tivesse passado por um roseiral (…). Inspirei aquele hálito a flores, fechado no móvel, esquecido dentro dele, cativo; e pareceu-me, de facto, encontrar qualquer coisa de Wagner nesse sopro que ele amava, um pouco dele, um pouco do seu desejo, um pouco da sua alma, naquele quase nada dos hábitos secretos e queridos que constituem a vida íntima de um homem” (p. 53). 

    O excerto anterior é apenas um exemplo de como o autor nos conduz ao deleite, para que, também nós, possamos apreciar cada instante percepcionado e vivenciado por Guy de Maupassant.  

    Enquanto objeto, o livro é uma peça bem conseguida. A encadernação em capa dura e o separador em fio, cosido no livro, é disso demonstrativo. Só um reparo: o mapa colado na folha de guarda e contra-guarda do livro poderia estar mais bem centrado, de maneira a ter a Península Ibérica visível.

  • A melancolia da vida enquanto se envelhece

    A melancolia da vida enquanto se envelhece

    Título

    Memorial de Aires

    Autor

    MACHADO DE ASSIS

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Setembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Última obra escrita pelo grande Machado de Assis, Memorial de Aires é de uma delicadeza contemplativa, lírica mas irónica, que, ainda hoje, deslumbra quem lê este romance.

    Não tem a loucura e sarcasmo de Memórias póstumas de Brás Cubas nem o drama angustiante de Dom Casmurro, mas não lhe fica atrás, sobretudo por via de uma narrativa contemplativa mas crítica de um Brasil no último quartel do século XIX, a que acresce a forma como aborda a melancolia da vida enquanto parte do envelhecimento.

    Romance epistolar, diarístico, este memorial do conselheiro Aires, diplomata aposentado que aparecera no romance anterior, Esaú e Jacó (1904), onde era personagem e autor ficcional. consiste num vasto conjunto de cartas a um seu amigo imaginário, relatando aspectos da vida quotidiana na cidade do Rio de Janeiro, entremeadas com reflexões sobre a sociedade brasileira, ainda marcada pela escravidão e por uma forte influência europeia.

    Mas mais do que essas contemplações de um “refomado”, o romance deambula por uma série de personagens secundários, entre os quais o casal Aguiar (e a sua “orfandade às avessas”) e sobretudo a jovem viúva Fidélia – misteriosa, enigmática e supostamente inalcançável –, por quem o conselheiro Aires acaba por se apaixonar.

    A relação entre os dois transforma-se em ambiguidade e tensão, tornando-se asssim o romance numa reflexão sobre o amor e sobre as relações entre homens e mulheres naquela época.

    Sendo uma óbvia ficção, em Memorial de Aires vemos talvez a mais autobiográfica das obras de Machado de Assis, sentindo-se a envelhecer, e desse modo se encontra ali depurado toda a sua ironia e sarcasmo para, dessa forma, estabelecer uma crítica contundente à hipocrisia e ao oportunismo e aos demais vícios da natureza humana.

    Leitura imprescindível no século XXI, embora seja obrigatório ler, antes ou depois, as outras obras de Machado de Assis, incluindo os seus contos, em especial após a fase romântica.

    Destaque também para o posfácio de Abel Barros Baptista e Clara Rowland, que coordenam a colecção da Tinta da China dedicada à literatura brasileira, intitulada “Os melhores deles todos”,  e que entretanto já integra as obras Vai, Carlos!, de Carlos Drummond de Andrade, e Primeiras histórias, de João Guimarães Rosa.