Etiqueta: Tiago Franco

  • O Aleluia e a chiclete

    O Aleluia e a chiclete


    Não sei bem a que sociedade de consumo imediato se referiam os Táxi, no seu álbum de estreia com o mesmo nome, no longínquo ano de 1981, a década que representou o boom do rock português. 

    Não tenho assim tantas memórias desses tempos, embora já por cá andasse, mas pergunto-me se não estaria a banda de João Grande a antecipar a mudança de século e a sociedade em que nos tornámos.

    Drama, escândalo, miséria e destruição. Tudo consumido ao minuto em doses insuportáveis de sofrimento alheio a que nos tornámos indiferentes. 

    Pensei nisto a propósito de Luis Aleluia, o eterno menino Tonecas como lhe chamaram os jornais no dia em que se soube da sua morte.

    Gosto pouco de abordar dramas alheios sobre os quais, em regra, sabemos ou percebemos uma ínfima parte. Mas parece que Luís Aleluia deixou uma mensagem de despedida, o que me levou a pensar que não tinha mais vontade de andar por cá.

    Este caso é notícia de jornal porque o actor era uma cara conhecida dos portugueses, tal como outros actores, jornalistas, músicos e personagens que nos habituámos a ver, e que, por uma ou outra razão, acharam que era chegada a hora de acabar com o sofrimento.

    Penso, em alturas semelhantes, quantas vezes deve este homem ter pedido ajuda sem dizer muito. Quantas vezes deve ter dado a entender que precisava de algo mais.

    É um traço desta sociedade, a tal de consumo imediato, de já não conseguir ouvir. Não há tempo, não há paciência. Estamos fechados nas nossas rotinas, nos nossos problemas, sem espaço na agenda para quem está ali ao lado.

    Os nossos problemas, as lutas diárias, são o nosso grande drama. Pode ser ir buscar o filho à escola no meio do trânsito da tarde ou discutir a vida da amiga que, entretanto, se afastou. A nossa realidade, por muito simples e corriqueira, não nos permite levantar a cabeça do umbigo e olhar um pouco para o lado.

    man standing in front of the window

    Luís Aleluia disse, numa entrevista há poucos anos, que tinha sofrido maus-tratos e violência em criança. Acrescentou que encontrava amor e felicidade nos amigos e nos palcos. Tal como ele, há um infindável número de anónimos que sofre sem falar, que timidamente assume uma dificuldade, que dá indicações de que o desencanto pela vida vai aumentando. 

    Mas não ouvimos. Não temos tempo. Passamos o dia a consumir qualquer coisa, sem sabor, muitas vezes sem importância, para no dia seguinte começarmos o processo novamente. 

    Mascamos. Deitamos fora. E nunca olhamos em redor.

    A depressão existe e, tal como a sociedade de consumo imediato, mata.

    Sejam simpáticos uns com os outros. Não fechem os olhos aos avisos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os meus 6339 dias

    Os meus 6339 dias


    Passam hoje 6.339 dias desde o momento em que aterrei na Suécia para dar início a uma vida de emigrante. Ou, por outras palavras, passam hoje 6.339 dias desde o dia em que perguntei quando voltaria. Como quase todos, saí de Portugal com a teoria dos dois anos bem presente.

    O que é a teoria dos dois anos, pergunta o leitor? É uma mentira que contamos à família no momento da despedida. “Vamos apenas por dois anos para ter a experiência… e depois voltamos”. É uma mentira tão boa que até nós, os que embarcamos para um país diferente, acreditamos nela.

    Os dias foram passando e, como é fácil de perceber, ao fim de 730, dois anos portanto, não regressei. E por cada 365 que passavam, mais difícil era esse regresso.

    luggage, suitcases, baggage

    Uma das coisas que sempre achei estranho foi a ligação a Portugal, que teimava em desaparecer. É normal que, ao fim de algum tempo, o emigrante se vá desligando da realidade que deixou para trás e se vá inteirando daquela que, entretanto, conheceu. Não foi o meu caso.

    Quer dizer, embrulhei-me na realidade sueca e na forma como a sociedade funciona, mas não deixei de ouvir notícias de Portugal por um dia que fosse. Percorri o país de norte a sul, fiz questão que conhecer toda a Escandinávia, subi montanhas e experimentei mares diferentes. Votei sempre nas eleições locais e procurei entender a base social em que assenta este país. Mas os acontecimentos que me incomodavam, as notícias mais marcantes, as fontes de preocupação vinham sempre da realidade portuguesa.

    Ia para o trabalho com a TSF ligada, limpava a cozinha com o jornal da noite no ar e pedalava com um podcast qualquer de debate. A cada regresso, em conversas com familiares e amigos, notei, por vezes, que sabia mais do que por ali se passava do que eles que nunca tinham saído do mesmo bairro. Essa necessidade de saber a realidade lusa fez-me perceber que não conseguiria desligar-me de Portugal. 

    train passing in between buildings

    Ao contrário do que se possa pensar, manter este laço com o país de origem não torna a emigração mais fácil. Faz-nos pensar, repetidas vezes, afinal o que fazemos aqui.

    No caso da Escandinávia é mais ou menos fácil perceber a dificuldade de aceitar o regresso. Basta consultar qualquer tabela de desenvolvimento social para compreender que esta zona do globo está naquilo a que convencionámos chamar o mundo civilizado.

    A base social assente em impostos progressivos permite que o país seja dotado de um sistema público de saúde e uma educação verdadeiramente universal. Gratuita desde o primeiro dia na creche até ao último dia da universidade. Classes profissionais separadas por pequenos degraus onde, por exemplo, o fosso entre um gestor de empresa e um canalizador não permite que algum deles viva na pobreza. Uma Economia assente num sector produtivo tão grande que nunca há gente suficiente para preencher as vagas.

    baked breads

    Atravessei duas crises mundiais por aqui, com milhares de despedimentos. Lembro-me de ao fim de seis meses já estar tudo em ritmo de “business as usual” enquanto mais a sul demoraram anos a reerguer.

    É, de facto, difícil largar uma realidade onde a sociedade civil funciona, as regras são cumpridas e as oportunidades são mais do que muitas. Ninguém enriquece a trabalhar por aqui, mas também ninguém volta a olhar para o saldo. É uma realidade que ouço de vez em quando na boca de outros emigrantes.

    O problema é a outra parte. Os afectos, as relações, a proximidade, o contacto. Aquele calor humano, a espontaneidade, o improviso, a alegria não planeada. Todos os ingredientes que nos fazem latinos. O sol, o céu azul, o mar com ondas, a gastronomia. Enfim, não ter que pensar no que se diz quando se misturam três línguas diariamente.

    white ceramic mug with brown liquid on white ceramic saucer

    Num destes dias, disse-me o meu filho, nascido aqui, que depois de acabar a escola queria sair da Suécia. Perguntei porquê, afinal, esta é a realidade que ele conhece e de onde nunca pareceu interessado em sair. Disse-me que quando a vida académica o separasse dos amigos que o acompanham desde a creche, qual seria o sentido de passar a vida num sítio gelado?

    Realmente… Para ele isto é um sítio gelado onde tem os amigos. Não é um país de primeiro mundo que por acaso também é gelado.

    Ele não tem termo de comparação e, ainda assim, todos estes anos com meses passados em Portugal, já o fizeram perceber que a vida pode ser mais simples noutras latitudes. Pelo menos aos olhos de uma criança que depende das relações humanas e, ainda não, de um emprego.

    people sun bathing on beach

    Durante estes anos, perdi a conta às pessoas que ajudei a vir para aqui, a arranjar um primeiro emprego, o primeiro alojamento. A todos disse, quando me perguntaram, que a emigração não era um el dorado. Ao contrário do que o Passos Coelho disse, não chega ter uma Europa sem fronteiras e com livre circulação.

    Ninguém, absolutamente ninguém, deveria ter necessidade de sair do sítio de onde nasceu à procura de melhores condições de trabalho. É uma violência da qual nunca recuperamos e é uma fatia da vida que, por muitas coisas boas que nos traga, leva invariavelmente uma boa parte da alma.

    O tempo que perdemos com a família e amigos. Os momentos em que aparecemos no vídeo numa mesa recheada de caras conhecidas. As semanas de solidão que atravessamos nos invernos que parecem não ter fim. 

    person looking out through window

    Hoje, ainda coloco questões. Voltaria a fazer tudo de novo? Sim. Não sou um emigrante mal-agradecido ao país de acolhimento. Todo o reconhecimento profissional que obtive, devo-o à Suécia. A vida que é proporcionada à minha família, devo-o à Suécia. As oportunidades que os meus filhos têm hoje e o conhecimento que têm do mundo, devo-o à Suécia.

    Provavelmente, poderia ter sido mais fácil. Certamente ter-me-ia dado jeito alguma ajuda no início do processo.

    Mas sim, voltaria a fazer este caminho, passando pelo mesmo sofrimento, sabendo que poderia dessa forma ajudar a minha família.

    De há uns anos a esta parte, venho dizendo aos que me estão mais próximos que está na hora de voltar. Normalmente, ouço um “deixa-te estar lá que estás bem, aqui não há nada”.

    Discordo. Aí está praticamente tudo o que importa. Aos 46 anos, e 6.339 dias depois, o ciclo fechou.

    Vou para casa. Agora.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • António Costa e o momento Luísa Brandão

    António Costa e o momento Luísa Brandão


    António Costa voltou a mostrar nas comemorações do 10 de Junho como é que se consegue atravessar a turbulência dos casos da TAP, escândalos de ministros desde os tempos do Cabrita, uma pandemia, uma guerra, pobreza crescente, inflação descontrolada, taxas de juro altíssimas e famílias desesperadas e, ainda assim, manter o cargo de primeiro-ministro durante sete anos.

    Este foi o homem que chegou à liderança do PS depois de António José Seguro atravessar sozinho o deserto e, em eleições nacionais, o que formou Governo sem ser o mais votado (felizmente, acrescento eu aqui).

    Portanto, meus amigos: António Costa é hábil, político de corpo e alma (para o bem e para o mal) e pensa as jogadas uma semana antes dos oponentes.

    Naquelas tristes comemorações do Dia de Portugal destacam-se sempre três coisas: discursos aborrecidos com recados que não servem para nada, a quantidade de latas velhas que a cada ano vai desaparecendo do desfile (positivo) e o barómetro de popularidade aos políticos em funções.

    Marcelo, o habitual rei do “não chove nem molha” recolheu o apoio popular, Galamba foi o alvo-mor dos apupos e não há quem perceba como é que este homem ainda é ministro.  Costa andou no limbo, teve que suar pelo voto e… safou-se.

    Fez questão de andar a pé com a mulher no meio dos professores descontentes e enfrentou-os. Certamente ia preparado para isso, mas a paciência com que falava e era interrompido (ou insultado) sem perder a calma, mostra que nada lhe acontece por acaso.

    Deixou os jornalistas apanharem o teor das conversas com alguns professores que o apertaram e tinha as medidas do descongelamento das carreiras na ponta da língua. Costa é um rapaz que se prepara.

    Um grupo mais restrito de professores fez-lhe o favor de o insultar com cartazes de muito mau gosto e índole racista. Meus amigos: numa luta onde a razão está toda do lado dos professores, dar tiros de pólvora seca com uns cartazes que até ao Chega envergonhariam (ou talvez não), é fazer do Governo um alvo de simpatia popular. Com este tipo de pensamento tão limitado e uma visão tão reduzida da realidade, espero que nenhum daqueles professores dê aulas de história. Seria uma verdadeira catástrofe.

    A Fenprof afastou-se deste grupo de professores e traçou a linha da decência. E fez bem. Na luta pelos direitos laborais, ou em qualquer luta, não se usam argumentos racistas. Se o fizermos a causa está perdida antes sequer de começar. 

    Até que chegou o momento Luísa Brandão. Uma professora que fez 120 km para se meter na fila das selfies.

    Chegada a sua vez, disse que não queria fotografias mas sim ser ouvida. Falou das suas preocupações e de tudo o que ia para lá dos salários, nomeadamente a vertente pedagógica e a falta de condições em que os professores trabalham.

    Costa ouviu, debateu, argumentou e sacou o golpe de génio: prometeu, em frente a um batalhão de jornalistas, que lhe ligaria para discutir aqueles temas e ainda lhe pediu o número de telefone, escrito num papel para que em redor ninguém ficasse com ele. É o tocar no chão e meter-se ao nível dos problemas de cada um de nós. É o ganhar a simpatia entre quem o insulta. Saiu entre sorrisos e boa disposição.

    No dia seguinte poucos falavam do “momento Galamba” do discurso do presidente da República (quando disse que era preciso cortar alguns galhos estragados) e muitos contavam a história de Luísa, a professora da Póvoa de Lanhoso, que saíra de casa com a convicção de que chegaria à fala com o primeiro-ministro. 

    Em princípio, ninguém se lembrará de confirmar, daqui a umas semanas, se Costa efectivamente lhe ligou mas, naquele dia, o ódio ao Governo caiu em Galamba, a indiferença em Marcelo e Costa, uma vez mais, passou pelos pingos e saiu em ombros.

    Anselmo Crespo dizia na CNN que por muito mau que seja o Governo, as pessoas olham em redor e pensam nas alternativas. Ventura e Montenegro. Montenegro e Ventura. É pouco, muito pouco. Costa mete-os no bolso com duas ou três Luísas.

    A direita ainda se arrisca a perder as eleições mais fáceis da história.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Milhazes é todo um outro campeonato…

    O Milhazes é todo um outro campeonato…


    Nunca percebi o fascínio que temos por conversas vazias de conteúdo em horário nobre. Se for na tasca da minha freguesia no intervalo do Benfica, entre minis, eu não só percebo como até aprecio. Mas, na televisão, todos os dias à hora da sopa, ter de levar com especialistas em banalidades, é coisa que me aborrece.

    Repito esta parte, porque é importante: acho óptima uma boa conversa de café; só que gosto de as ter… no café. Não sei se me faço entender.

    Assim, transformar conversa de café em homília diária é coisa que me faz pensar nos critérios de quem liga a televisão.

    Durante a pandemia recebemos doses reforçadas do Froes, que nos vinha mostrar o catálogo de vacinas que os patrocinadores mandavam.

    Ou então era o Carona, que a meio do processo deixou de ser médico e passou a romancear o sofrimento.

    Eram heróis que choviam em horário nobre. Quem não se lembra dos votos ganhos pelo deputado e médico do PSD, Ricardo Batista Leite, aquando das mortes que não aconteceram no hospital de Cascais. E quando não eram estes artistas, ainda vinha o Antunes que, no meio de umas pausas das medições de montanhas, nos recomendava quantos dias é que devíamos ainda usar máscara ou ficar fechados em casa.

    Lembro-me de ouvir economistas na SIC Notícias a discutirem medidas de Saúde Pública decididas pelo Anders Tegnell na Suécia. O Tegnell, que andava por África quando o Ébola rebentou, era contestado por Marias (e aqui o nome não é ficção) que gritavam por confinamentos.

    E “nós” ouvíamos aquilo, sem contestar, e ainda chamávamos assassino a quem andava pela rua. Se há coisa que a covid-19 me ensinou foi que a estupidez humana é mesmo infinita. Bem sei que hoje já não se encontra uma alma a favor dos confinamentos, mas, na altura, iam todos na conversa de café da Maria. 

    A cada nova miséria, entre os entendidos que, de facto, percebem da poda, aparece sempre uma rock star

    E neste ano e meio de guerra, o galardão tem de ser entregue ao Milhazes. Por vezes até fico com pena do Rogeiro, ao lado de tal personagem. Entendo que nesta temática (a guerra), quase todos os analistas falem na condição de adeptos e que puxem a coisa para a sua cor. Acaba por ser inevitável. Poucos dão opinião de forma isenta e, entre estes, também se contam pelos dedos aqueles que nos fornecem alguma informação útil e relevante.

    Sabemos que o Rogeiro há 30 anos que estuda a matéria e, obviamente, é um entendido do assunto. Justifica as suas posições, mais ou menos apaixonadas, com dados. Dá para o ouvir e, pelo menos, ficar a pensar.

    Mas o Milhazes é todo um outro campeonato.

    Entendo que, no início disto tudo, o homem tenha aparecido pelos estúdios de televisão para traduzir umas coisas de russo e tal. Um espécie de Mourinho que foi fazer uma perninha a Barcelona como tradutor de um inglês, e, quando deu por ela, já estava com o pé na bola. Só que o Mourinho tem talento. Ou teve, pelo menos.

    O Milhazes não. A quantidade de disparates é de tal maneira grande, e a “informação” tão inútil, que não se percebe a quantidade de horas que lhe são dispensadas.

    Como da componente militar, aparentemente, nada percebe, Milhazes dedica-se a fazer de alcoviteira de Zelensky. Fala mal de russos em Portugal, sejam eles professores universitários ou membros de associações de acolhimento.

    Todas as semanas nos aparece ele com grandes revelações de propaganda russa, vídeos fabricados e coisas do género, com a alegria de quem descobriu a pólvora. Como se numa guerra algum dos lados falasse verdade, como se numa guerra a propaganda não fosse, sempre, e em qualquer circunstância, uma das armas. 

    Mostra-nos todos os nazis do lado russo, e transforma aqueles que, de suástica no braço, combatem do outro lado, em defensores da liberdade. Em determinados momentos, José Milhazes parece um crítico da imprensa cor-de-rosa, daqueles programas da manhã, em versão russofóbica. Nem o Avante escapa a este justiceiro. No ano passado, criticou os artistas que lá iam, dizendo que estavam a ser cúmplices com um partido que apoiava a invasão da Ucrânia. Este ano, pelo que percebo, voltou a repetir o discurso. Milhazes é, por esta altura, a melhor publicidade que a Festa do Avante pode ter.

    Este discurso bafiento contra quem pede conversas de paz ser putinista ou apoia a invasão, está ao nível do “assassinos” ou “negacionistas” de há pouco tempo para quem era contra a inutilidade dos confinamentos. Hoje somos todos, eu sei.

    E Milhazes repete esta conversa, a toda a hora, entre os disparates que vai dizendo e a ausência de análise que nos vai presenteando. Ainda assim, tal como o Froes nos vendia vacinas, esta rock star da guerra vai vendendo uns livros e percorrendo o país a espalhar a sua sapiência. A história das rock stars repete-se quase sempre, ainda que o motivo do estrelato seja diferente.

    Aqui há uns dias, no meio da cegueira ideológica, Milhazes afirmou que a Rússia era uma ditadura de extrema-esquerda. O disparate passou e aparentemente ninguém deu por ele, vindo da boca de um estalinista arrependido.

    Aliás, é caso de estudo um homem que passa quase quatro décadas numa ditadura, metade do tempo nas mãos de Putin, e só nos estúdios da SIC é que descobriu aquele ódio todo a quem lhe deu de comer e, pelo vistos, continua a dar.

    Quando chegou a casa e começou a receber gratificações do André Ventura, lá percebeu o disparate, e no programa seguinte fez a correcção e pediu desculpa. Mas não conseguiu terminar a frase sem repetir um daqueles bordões mais clássicos deste ano. Olhou para o Rodrigo Guedes de Carvalho e, com aquela cara de quem tinha terminado um tinto menos veludado, disse: “por ser uma ditadura de extrema-direita, ainda é mais esquisito que o PCP a apoie”.

    Estranho, estranho, estranho mesmo é ver como o Milhazes se consegue aguentar no ar tanto tempo com uma encenação tão mal montada. Não via um espectáculo tão pobre e duradouro desde que saí a meio do Cats, numa noite de má memória no Coliseu dos Recreios. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Umas férias no sofá

    Umas férias no sofá


    Vi uma notícia na SIC que me deixou curioso: a ocupação hoteleira no Algarve, por esta altura do Verão, não é a esperada pelo sector, havendo menos portugueses e espanhóis, além de contenção de despesas. Se bem me recordo, anunciava-se que este seria o melhor Verão de sempre. 

    É um facto que depois da idiotice dos confinamentos as pessoas saíram, as que podiam, para períodos de férias um pouco por todo o lado, mas parece agora haver alguma contenção nos gastos. A inflação com a Ucrânia atrelada parecem ser as principais causas, mas permitam-me, se possível, discordar.

    brown wicker armchair on focus photography

    Uma das desvantagens dos anos de emigração era a “necessidade” constante de usar grande parte do período de férias para regressar a Portugal, ver família, amigos e todas essas actividades incluídas no cabaz que vem com a mala de cartão.

    Para quem, como eu, tem o sonho de dar a volta ao Mundo, esta “necessidade” fazia com que fosse muitas vezes turista no meu próprio país. Quando deixei de ter horário fixo de trabalho, e me converti numa espécie de freelancer (ou nómada digital como parece agora estar na moda dizer), acabaram os 30 dias de férias por ano, e passei a trabalhar enquanto viajava, permitindo não só conhecer os sítios que sonhava como, e até muito mais vezes, estar com família e amigos.

    Durante os anos em que circulava entre o Algarve, Alentejo, Douro e Ilhas, bem antes da Lagarde e da guerra que andamos a patrocinar, sempre achei os preços muito desfasados da realidade portuguesa. Não sou rapaz do Excel, mas, no fim de Agosto, a cada regresso à Suécia, percebia que a despesa de ir a “casa” era equivalente a umas semanas na Tailândia para ver a praia do DiCaprio e a comer galinha em casca de ananás.

    photography of seashore during daytime

    Sempre considerei a possibilidade de sair de casa como uma espécie de um avaliador da qualidade de vida. Para quem gosta, claro. Não pretendo com isto dizer que uma pessoa não possa ficar entre paredes e ainda assim ser feliz. Digo apenas que, para mim, não poder ir a um restaurante, viajar, conhecer outros destinos ou ver culturas que só conhecia da televisão, me retiraria felicidade. 

    Ao longo dos anos fui vendo cada vez mais gente a passar férias em casa, não por opção, e a deixar sequer de frequentar restaurantes. Muito antes desta inflação, que nos come os salários um pouco por toda a Europa, já os hotéis no Algarve e os restaurantes em Lisboa, agora gourmet ou cheios de fusões, se iam afastando das carteiras dos portugueses.

    Sempre achei um erro o país que se dimensiona para receber quem vem de fora. E antes que apareçam aqui apoiantes do Ventura a bater palmas, explico melhor que não tenho nada contra visitantes de outras paragens. Até incentivo. Mas se as nossas cidades, praias e restaurantes deixam de ter locais, porque estes não conseguem pagar uma simples refeição, passamos a ser um destino de plástico, daqueles feitos para agradar o visitante. Perdemos a alma, a História, as raízes. Passamos a ser um Dubai da Europa e não o país com oito séculos de História e a mais antiga fronteira do mundo.

    dish on white ceramic plate

    Voltamos sempre à discussão dos baixos salários dos portugueses como desculpa e origem de tudo.

    E é verdade. É de facto essa a raiz do problema que nos leva a nem dentro do país conseguirmos tirar uns dias de férias. Mas não termina aí e por isso permito-me discordar da guerra e inflação como justificação global.

    Se no preço da habitação já é mais ou menos consensual que a especulação tomou conta do assunto (Lisboa é das cidades mais caras da Europa no rácio custo casa/ salário), no caso da restauração ou até dos hotéis, a situação é relativamente diferente. 

    Fiz a experiência de procurar um hotel de quatro estrelas em Lisboa, Roma e Paris para cinco noites na semana que agora começa. Pelo mesmo preço, cerca de 300 euros por noite, encontrei um hotel ao lado do elevador de Santa Justa, na Baixa Pombalina, outro junto ao Louvre (Paris) e um a poucos passos da Fontana de Trevi (Roma). Percebem certamente para onde vou a seguir. Como é que Lisboa, Roma e Paris cobram o mesmo, sabendo-se que, no caso português, os salários no sector do turismo são pouco mais do que miseráveis?

    well-arrange room

    Ou seja, cidades com custo de vida bastante superior e salários bem mais elevados, têm um custo idêntico para turismo e lazer. E isto já era assim antes da inflação que agora vivemos. Portugal ficou na moda há menos de uma década e começou a vender-se a quem dava mais.

    Os sítios onde comíamos um bitoque por 7 euros são agora “tasKas” ou “SerVejaRia” e o mesmo bife passou a 20 euros com “imersão de experiências tradicionais”.

    As praias onde bebíamos uma imperial ou abríamos umas sardinhas, agora servem balões de Gin com pepino a 12 euros e robalos a 30 euros. Um almoço de família, mesmo para quem trabalha na Suécia, passou a ser uma experiência a pedir mais idas à cozinha de casa. Deduzo que para quem está na média salarial portuguesa se tenha tornado algo a evitar.

    Tive várias vezes esta discussão com quem defendia que nos devíamos virar para o turismo como principal fonte de receita do país. Sempre achei um erro exportar médicos e engenheiros e importar empregados de mesa. O país fica à espera dos belgas, ingleses, alemães e dinamarqueses deixando os locais a ver a acção pela televisão ou da janela de casa.

    white and blue concrete building

    Entretanto os salários nivelam-se por baixo e quem aposta na formação, especialmente nas áreas técnicas, vai-se embora. De repente, o país deixa de estar na moda ou, por exemplo, Turquia e Egipto recuperam dos atentados e da insegurança, e vendem o peixe, o sol e o mar, ainda mais baratos… e lá se vai a estratégia das “imersões de temperos”, dos campos de golfe em áreas de seca constante ou das residenciais que se querem passar por suites em Manhattan.  

    Uma coisa é criar condições para sermos visitados, o que acho bem e me parece inteligente, dada a oferta tão grande que um país tão pequeno como Portugal tem. Outra, bem diferente, é tornarmos o território inacessível para quem cá está o ano inteiro, tornando a classe média e os trabalhadores em geral um grupo à parte, mesmo que sejam maioritários, na utilização das infraestruturas do seu próprio país.   

    Com os salários de 900 euros que chegam à maior parte dos trabalhadores estamos, parece-me, a chegar ao ponto em que ir a um restaurante ou usufruir de umas semanas de férias algures, se tornou um luxo.

    A qualidade de vida de um povo mede-se, em grande parte, para além das condições de trabalho, por aquilo que conseguimos fazer nos períodos de lazer. Aqui há uns anos, desesperado com os invernos suecos, perguntava a um colega, nativo, quantos anos ele se tinha demorado a habituar ao frio e à escuridão. Ele disse: “nunca me habituei e por isso, pelo menos duas vezes em cada inverno, vou para um sítio qualquer com sol. Tailândia, ilhas espanholas, Dubai, Caraíbas…tudo menos seis meses de nuvens”.

    person holding a plate of salad

    Nem sequer lhe perguntei como é que ele pagava isso porque, obviamente, num sítio onde os salários mais baixos estão perto dos 3.000 euros, não há discussão sobre ir ou ficar num período de lazer. E isso, apesar do frio e da escuridão, é qualidade de vida.

    Nós, com sol para dar e vender, uma imensidão de mar e praia, restaurantes excepcionais e esplanadas a perder de vista, vamos, aos poucos, ficando condenados a dividir o tempo entre o local de trabalho e o sofá da sala, em frente à televisão. É como viver à porta do paraíso, mas não conhecer o porteiro.

    Os empresários do Algarve estão desiludidos com a taxa de ocupação? Tenho duas sugestões: baixem os preços das diárias ou aumentem os salários dos funcionários. Qualquer uma delas ajuda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Pão e circo

    Pão e circo


    Alegadamente (temos sempre que começar a frase por aqui), assessores do PSD receberam 200.000 euros do Parlamento durante o “reinado” de Rui Rio. Este é o rastilho para mais um caso que promete uns dias com uns directos deprimentes até que vá para a gaveta do esquecimento, nomeadamente na altura das conclusões.

    Uma das coisas que nunca percebi nas buscas relâmpago da Polícia Judiciária (PJ) é a facilidade com que as televisões estão, a tempo e horas, no local da acção. A PJ parece ter uma linha vermelha para avisar os meios de comunicação de cada vez que montam o circo.

    Devo dizer que a palavra não é escolhida ao acaso. Tudo isto me parece de facto um circo. Casos e mais casos iniciados em directo no Jornal da Noite e, 10 anos depois, ainda se aguardam conclusões. A justiça segue uma agenda partidária que é mais ou menos óbvia e cansa de tão básica que é. Fazem de nós, os eleitores, uma espécie de gado que não percebe o que se passa e que abre a boca de espanto a cada novo escândalo.

    fire, calls, hot

    Com o PS aflito, envolto nos escândalos da TAP e da recuperação de computadores pelo SIS, recuperou-se o caso Tutti Frutti, em lume brando há sete anos. Alguns diretos, escutas de dirigentes do PSD a comprovar um profundo desprezo pelo erário público e muitos debates sobre a corrupção nas juntas de freguesia, com umas caneladas em Medina. O PS respirou. 

    Voltou Pedro Nuno Santos, que deu uma lição na Comissão Parlamentar de Inquérito e explicou, em poucas palavras, por que será o sucessor de António Costa. Seguiu-se mais contestação dos professores, novas dificuldades com as taxas de juro, alunos sem professores nas provas finais, falta de médicos nas urgências e discussões em torno da redução de impostos para ajudar as famílias durante a crise inflacionária. 

    Voltam as dificuldades do PS e sai a Policia Judiciária em nova rusga, agora em sedes distritais do PSD e até na casa de Rui Rio. Reparem que, nem o caso Marquês, que já pertence à pré-história, chegou ao fim e ninguém consegue manter actualizado o número de investigações abertas. O Ministério Público queixa-se da falta de pessoal (imagino que não seja uma carreira atractiva) mas não deixa de meter a mão em tudo, pelo menos no início, sem concluir qualquer coisa que se veja. 

    Andaram anos a aparecer no Estádio da Luz, de 15 em 15 dias, sempre com directos da CMTV, sem conseguirem chegar a bom porto. Prenderam Sócrates de forma “hollywoodesca” nas mangas do aeroporto, sem que, ao fim de anos, tivessem sequer acusação formada. Parecem mais uma comissão de festas de aldeia do que uma brigada de investigação ao crime. Largam os foguetes, tiram as primeiras imperiais, mas a meio do concerto já estão em casa, deixando a limpeza do recinto para quem vier depois.

    A imagem de Rui Rio na varanda, enquanto lhe faziam buscas em casa, a responder a perguntas de café que os jornalistas faziam cá em baixo, é um momento ligeiramente deprimente da nossa democracia. Não meto as mãos no fogo por político algum do centrão, mas parece-me algo inócuo ir a casa de um antigo líder para encontrar registos de transferências de dinheiro. Não seria mais fácil ir à Assembleia da República, uma vez que foi dali que veio o dinheiro?

    Repare-se que, em momento algum duvido da corrupção e desvio de dinheiro nos bastidores da política portuguesa. Ainda assim, sem nunca ter votado em qualquer partido de direita, se tivesse que apostar as minhas fichas, não colocaria Rui Rio nesse papel. O homem não será certamente o político mais carismático mas parece ser uma pessoa séria.  

    Hoje e amanhã vamos discutir o tema e ver “senadores” como Miguel Relvas a analisar a situação. Também faz parte do circo. É aliás outro tesourinho deprimente que nós, eleitores e espectadores, vamos tolerando.

    Os políticos que hoje estão envolvidos em escândalos serão aqueles que daqui a uns anos, com novos penteados e os dentes arranjados, farão as delícias do comentário televisivo. Paulo Portas passou uma pasta mais branca nos dentes e deixou os submarinos bem lá atrás, para nos falar de moralidade nos jornais da TVI. Já Miguel Relvas, o licenciado (alegadamente) das quatro cadeiras, apagou a Tecnoforma do Curriculum Vitae, penteou o cabelo para trás e é um homem novo, que nos conta como o dinheiro público deve ser bem gerido. 

    Lá para domingo já deveremos ter uns quantos incêndios de proporções catastróficas e os directos, em princípio, passarão para as autoestradas em chamas e os debates incidirão sobre os Kamov e os contractos de aluguer de Canadair espanhóis. O PSD que vá arranjando qualquer coisa na TAP porque, certo como o destino, a cada novo aperto na governação, lá virá qualquer coisa laranja para as “breaking news“. Com as Europeias já no horizonte, é normal que o “governo desgastado” não queira correr riscos.

    Há que ir alimentando a indignação diária e mantendo o nível de espectacularidade das notícias. Só queremos ter mais “alertas” e “breaking news” e, como tal, estamos no caminho certo. Ninguém quer eliminar a corrupção na política, acabar com o desvio descarado de fundos públicos ou sequer erradicar esta ideia de que ser político é uma profissão para a vida. Muito menos terminar o compadrio entre políticos e empresas de amigos.

    Há que mexer muito para dar a sensação de movimento e, essencialmente, ficar no mesmo sítio. O pão e o circo, que nos vão amarrando ao terceiro mundo.

    Se possível, e se não for pedir muito, os partidos de esquerda que aproveitem este atirar de lama ao centro, para mostrarem aos eleitores que são e podem fazer diferente. Já era um serviço que faziam à democracia.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Santa Maria, a minha (e a vossa) ilha desconhecida

    Santa Maria, a minha (e a vossa) ilha desconhecida


    Olho todos os dias para estas paisagens e penso na sorte que tive. Não nasci aqui, não tinha familiares por perto e vim cá parar nas asas do destino, quando o meu pai aceitou uma vaga de trabalho no aeroporto local, ali a meio da década de 80.

    Falo de Santa Maria, uma das mais pequenas e desconhecidas ilhas dos Açores.

    Bem sei que a vida é uma estrada que se vai definindo a cada nova bifurcação (embrulha Gustavo Santos), mas há claramente escolhas mais felizes do que outras.

    Ter vindo aqui parar, ainda por cima por decisão alheia, foi uma daquelas coincidências do destino que acabou por marcar a minha vida até aos dias de hoje.

    Tornou-se viral um vídeo de um casal na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) deste ano a dizer que dos Açores só conheciam as vacas. Não sabiam quantas ilhas formavam o arquipélago e até o Funchal incluíram na deprimente descrição de localidades a não perder.

    Saltando, por agora, um conceito que o meu avô paterno usava muito quando eu não sabia fazer qualquer coisa numa obra conjunta – “afinal o que foste fazer para a escola?” –, este desconhecimento das ilhas açorianas sempre foi para mim um mistério.

    Portugal tem um dos destinos de Natureza mais bonitos e imaculados do Mundo. Para muitos de nós, os Açores são uma espécie de Triângulo das Bermudas. Passamos lá por cima a caminho da República Dominicana, e das suas águas temperadas, onde nos espera uma semana trancados em resorts, sem saber que ali, em território português e graças ao microclima, temos águas mornas, Verões pouco agressivos e Invernos que não aleijam.

    Quem por norma sabe qualquer coisa do arquipélago fala dos Açores referindo-se à sua maior ilha, São Miguel. Já não é mau.

    A série Rabo de Peixe, transmitida pela Netflix, veio, espero eu, despertar alguma curiosidade pela região. Nunca percebi como é que o turismo por estas paragens se manteve tão modesto ao longo das décadas. Não sei se é a falta de promoção, desconhecimento da população ou simples desinteresse, mas é um mistério, para mim, a razão de tanta beleza natural receber tão pouca atenção.

    Não é que turismo de massas interesse a alguém, mas sempre pensei que se estas ilhas fossem espanholas, italianas ou francesas estariam em todos os roteiros do Planeta. 

    Perdi a conta ao número de vezes que expliquei a portugueses e estrangeiros onde fica Santa Maria. Uma das mais pequenas e, ainda assim, mais completa ilha dos Açores.

    O sítio onde a qualidade de vida é garantida para médicos e engenheiros, padeiros e mecânicos, professores e lavradores. Não é que os salários sejam diferentes do resto do país, entenda-se.

    A vida é que é mais barata. Não há portagens, EMEL ou filas para a ponte. O combustível é mais barato e rende mais quando a maior estrada tem apenas 20 quilómetros.

    Os impostos são mais baixos para compensar a insularidade. A habitação, em muitos casos, passa de geração em geração. Há emprego que chega a quase todos. Leva-se a vida com tranquilidade, vendo uma cara conhecida a cada dois passos.

    Curiosamente, andando por estas estradas nos meses de Verão, identifico mais estrangeiros, daqueles com botas e mochilas, do que propriamente portugueses. Mais depressa um reformado de uma aldeia alemã descobre Santa Maria do que um habitante de Amarante.

    A apenas duas horas de Lisboa está um paraíso onde, no mesmo dia, se pode fazer um trilho pedestre na montanha, tomar banho numa praia deserta, ver jamantas no seu habitat natural e beber uma cerveja de fabrico artesanal local. Nunca percebi, que me perdoem os adeptos do Algarve, como é que passam uma vida a ir para Albufeira sem tentarem, com bilhetes de avião ao preço das portagens, descobrirem o que este arquipélago tem para oferecer.

    A parte que me fascina mesmo em Santa Maria é a excelência das baías. Falamos de uma ilha muito pequena que terá, provavelmente, algumas das melhores praias do país. Em quase toda a parte se avista o mar. Esse luxo, pelo qual lutamos em outras partes do território, aqui é apenas um dado adquirido.

    Até nessa parte dos acasos da vida, acho que tive sorte. Das nove ilhas ter-me calhado na rifa a pequena e peculiar Santa Maria, foi bom. Tudo o que aqui acontece é exactamente o oposto da minha jornada enquanto emigrante e, também por isso, o equilíbrio se tornou perfeito. Há calma, companheirismo, tempo para tudo, braços amigos, gente que faz adeus do outro lado do passeio. 

    Da janela vê-se a montanha e o mar. Em 20 minutos chegamos a quase todo o lado. Come-se bem e barato. O mar e a terra dão quase tudo. As caras com quem corremos no jardim da escola são as mesmas que sorriem, hoje, quando passamos por elas.

    Depois de 17 anos a ver olhos nórdicos que apontavam ao chão, estar em Santa Maria, na pequena e familiar Santa Maria, é um bálsamo para a alma.

    Voos diários ligam o continente português ao arquipélago dos Açores, com encaminhamentos grátis para todas as ilhas. Grátis, meus amigos. Grátis.

    Este Arquipélago e esta ilha, se me é permitido puxar um pouco a brasa, oferecem paisagens e experiências que normalmente só vemos nos documentários da BBC. A minha vida mudou há 39 anos quando aqui pisei pela primeira vez num Verão de boas memórias, a tempo de ver o Carlos Lopes vencer aquela medalha de ouro em Los Angeles. Nem sempre fiquei por cá, é verdade, mas nunca deixei de voltar e de ir, aos poucos, ligando o meu percurso de vida a esta pequena ilha.

    Experimentem. Em princípio vão gostar. E voltar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aguentem o ‘as long as it takes’…

    Aguentem o ‘as long as it takes’…


    Cheguei ao banco na hora marcada. Os horários não são grande coisa, mas, se perco a vaga, tenho de esperar mais um mês. Faz-se tudo online. Hoje em dias, falar com alguém para resolver um problema é um luxo. Parece conversa de velho – eu sei –, e é.

    A rapariga que me atende não terá mais de dois ou três anos de trabalho e aparenta uma indiferença preocupante. Espero que, pelo menos, perceba alguma coisa disto.

    Começa o discurso com a introdução histórica ao tema. Há uma guerra, os custos de produção aumentaram na Europa, a inflação disparou e, em virtude disso, o Banco Central Europeu (BCE) aumentou as taxas de juro, para controlar a coisa e reduzir o consumo na Zona Euro.

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    Espero uma pausa no discurso ensaiado para a informar que não estamos na zona económica do euro. A Suécia tem moeda própria. 

    Ela corrige, e diz que, apesar disso, o Banco Central da Suécia aproveita a boleia e também aumenta as taxas de juro para reduzir a inflação que ainda ronda os 6%. Até chegarmos aos 2%, temos que continuar neste caminho, diz ela. Aqui tive a primeira alucinação com a Christine Lagarde e o mantra dos 2%.

    Como gosto de aprender a magia que rege a Economia, e já que o objectivo era reduzir o consumo, perguntei-lhe se não seria altura de abrandar esse aumento das taxas de juro no momento em que percebem que a luta não é consumir mas manter as habitações?

    Ela disse que sim, teria lógica, mas que os bancos não podiam fazer nada. A decisão era do BCE e os bancos centrais de cada país, quais pedintes numa igreja, tinham a missão de ir recolher o dízimo em forma de prestação a cada cidadão europeu que, um dia, tinha tido a audácia de comprar uma casa.

    Receitada que estava a cantilena, começou a fazer contas, dizendo que tinha uma oferta muito boa a rondar os 5%. Cerca do triplo da taxa de crédito contratada há anos, num regime fixo, que tinha como objectivo proteger-me dos mercados de que nunca confiei. Voltou a dar umas marteladas furiosas na máquina até me dizer que a minha prestação passaria para o dobro. 

    Avisou-me, enquanto observava o meu silêncio, que eu tinha um mês para pensar. Voltou a falar da guerra e dos improváveis que ninguém controla.

    Já não consigo ouvir mais uma pessoa que seja a dizer-me que “temos de aguentar”. “Temos”? Quem? A Lagarde, em princípio, não deve ter problemas destes. A Von der Leyen também não. Certamente que Putin não paga casas a prestações. E Biden muito menos.

    Portanto, quem está englobado no “temos de aguentar?”. Eu respondo: os trabalhadores que ousaram contrair um crédito à habitação. Muito bem. Sigamos então a conversa.

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    Pergunto-lhe quando é que prevê que a coisa volte ao normal ou, vá lá, a algo suportável. Ela diz que espera-se que a Economia deixe de nos esfolar em 2025. 

    “Mas já não há guerra em 2025?” – introduzo eu na conversa. “Não sei, como é que posso saber uma coisa dessas trabalhando num banco?” – responde ela ligeiramente irritada. 

    Ora aí é que está o busílis. Se me diz, primeiro, que estamos neste barco sem rumo por causa da guerra e que prevê chegar a terra firme em 2025, mas não sabe quando acaba a guerra, quer dizer que está a mentir. Ou mente quando diz que a guerra nos colocou aqui, ou mente quando diz que tudo termina em 2025. Agora é escolher.

    O clima ficou um pouco mais tenso e ela sugeriu uma nova reunião em outro dia. Devo aqui introduzir um conceito muito sueco de, em cada reunião, criar temas paralelos que geram novas reuniões. Faz-se uma vida disto – já presenciei. E há quem fique mesmo esgotado mentalmente com a azáfama.

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    Disse-lhe que não precisava de tempo nenhum para pensar e muito menos de nova reunião. Não ia pagar uma exorbitância em juros para suportar uma guerra ou a ganância dos bancos.

    Fosse qual fosse a teoria certa, nenhuma delas merecia o meu apoio e muito menos horas e horas de trabalho para pagar uma prestação completamente desajustada do nível de vida e dos salários médios naquela região. 

    Todos os meses vejo esta realidade em redor. Casas e mais casas a serem vendidas porque, de repente, as prestações ficaram superiores aos valores dos salários.

    Em simultâneo ouço, em Bruxelas, o “as long as it takes” no apoio financeiro à guerra e, em Frankfurt, a cada nova conferência da Lagarde, a certeza de que continuarão a aumentar as taxas de referência até a inflação chegar aos 2% (hoje ronda os 6%) em todos os países da Zona Euro.

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    O problema do empobrecimento, como se percebe, alastra-se do sul ao norte da Europa. Cedo ou tarde, está a chegar a todos e a minar a qualidade de vida do Continente.

    É estranho, pensaria eu, que todas as populações aceitassem isto de ânimo leve. Nós, que começamos batalhas por penáltis mal marcados, aceitamos patrocinar uma das várias guerras do globo, onde três potências decidem quem vai mandar nas próximas décadas, sem barafustar. Sem partir qualquer coisa. Sem nos revoltarmos para lá da angústia individual e da raiva acumulada dentro de nós.

    Levantei-me sem plano B e disse-lhe que iria engrossar a lista de pessoas que, ali no bairro, tentava vender a casa para acalmar o “consumo desenfreado”.

    A rapariga não tem culpa alguma, note-se.  Cumpre apenas as directivas que lhe dão. É como ir a um balcão de reclamações da Ryanair e achar que a pobre desgraçada que nos atende é aquele insuportável do O’Leary.

    Monochrome Photo of Resist Signage

    Uma pessoa, por vezes, perde a paciência, mas como o leitor compreenderá, estamos todos a fazer a nossa parte. Os bancos a tentar aumentar os lucros e nós, os trabalhadores, a tentar não empobrecer mais. Foi apenas isso que ali aconteceu.

    Ela disse que me ia assaltar de forma legal e eu, que fiquei um pouco chateado, não parti nada porque – lá está – são estas as regras do capitalismo, e não há muito que um peão isolado possa fazer.

    Já perto da porta, e ainda sem um plano B para tapar aquele novo buraco, sorri e despedi-me com um: “agora é ver se recuperamos a Crimeia para a casa não ser perdida em vão”.

    Ela sorriu e disse: “espero que sim, temos de ganhar!”. Quando a porta já batia, ainda ouvi um: “em 2025, falamos para comprar outra!”

    Por mais montanhas que uma pessoa tenha de atravessar, ainda é o humor que nos safa. E a ironia –sobretudo a ironia. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Mediterrâneo que acolha os migrantes

    O Mediterrâneo que acolha os migrantes


    Passava por Lisboa, em trânsito, a caminho dos Açores. O habitual atraso no voo para as ilhas permitiu-me um salto à baixa pombalina para matar saudades.

    Não sou um saudosista da Lisboa antiga e abandonada e gosto, gosto mesmo, da mudança que a cidade sofreu neste século. Tropeçava em turistas que tentavam arranhar umas palavras em português para pedir uma bica ou aquele horrível galão depois do almoço. Pareciam felizes a desbravar a encosta do castelo num dia de sol e céu azul.

    Uma guia, de bandeira no ar, dizia a um grupo de asiáticos que tinham tido sorte com o tempo… e, por aí, se percebeu que não era destas paragens. Lisboa não tem sorte com o tempo, o tempo é que tem sorte com Lisboa. Céu azul é a prata da casa e o sol esbanja sorrisos em cada mês do ano. Há falta de salário, de consultas, de trânsito fluído. Nunca de sol, céu azul e sorrisos.

    a fountain in front of a row of buildings

    Na ginja do Rossio há um ajuntamento que me agrada. Novos e velhos, ricos e pobres, portugueses e estrangeiros. Todos bebericam com ou sem elas, sempre em animada cavaqueira. Eu observo, como faço sempre que regresso à colina onde nasci, deliciado com o movimento da cidade e na metrópole cosmopolita em que esta se tornou.

    Entre as conversas estridentes, uma chamou-me à atenção. Duas raparigas da minha idade (gosto sempre de achar que são raparigas para não me sentir muito velho) discutiam, com ajuda da terceira ginja, o último naufrágio do mediterrâneo ocorrido na semana passada, junto à costa sul da Grécia, com uma embarcação que se assume ter partido da Líbia, com destino a Itália.

    Este tipo de notícias já nos passa uma pouco ao lado e preenche os rodapés dos jornais, entre renovações de jogadores de futebol ou mais um esquema qualquer do PS.

    Ainda assim, entre as várias tragédias que aconteceram no Mediterrâneo, um autêntico cemitério de migrantes, este foi um dos piores de sempre na chamada “rota central de migração“, a mais longa e perigosa linha marítima de fuga para a Europa, vinda do norte de África. Quase 80 mortos, vários corpos por recuperar e estima-se que, num barco de pesca, sem capacidade para tal, viajariam 750 pessoas.

    calm sea under clear blue sky during sunset

    Elas, claramente animadas pelo debate político e pela ideologia exacerbada, diziam, debaixo do seguro céu azul de Lisboa: “que raio vêm eles fazer para cá? Não sabem que a travessia é perigosa e os barcos estão todos partidos?”

    Ora, esse é um excelente ponto. O que fará o digníssimo habitante do continente mais a Sul, atirar-se para um barco velho sobrelotado, sem colete ou bote salva-vidas e arriscar uma travessia perigosíssima?

    Acrescento ainda, só para aumentar a estupefacção das duas amigas, agora a caminho da quarta ginja: o que fará o migrante atravessar metade do continente a pé, fugir ao controlo dos senhores da guerra e entregar todo o dinheiro que consegue juntar ao longo de anos a quadrilhas que se dedicam ao tráfico de pessoas para… no fim disto, correr o risco de morrer no dito barco?

    Não tenho feito muita praia no Sudão e, em Trípoli, também tenho evitado jantaradas com os amigos, mas arriscava, pelo que vou lendo, que a vida é tão má, tão difícil e tão sem esperança, que até a ideia de arriscar uma morte no Mediterrâneo para entrar na Europa pode ser tentadora. É capaz de ser isso.

    building with refugees welcome signage

    “E mesmo que sobrevivam e que a Meloni não os mande para trás… o que vão eles fazer na Europa?”. Nova interrogação extremamente interessante. O que fará na Europa uma pessoa que a procura para conseguir uma vida melhor? Em princípio… tentar ter uma vida melhor.

    Eu entendo que para cada um de nós que nasce num continente com mais oportunidades, normalmente seguro, e com esperança de média vida longa, não faz grande sentido o sacrifício desumano de quem lá tenta chegar. É até difícil simpatizar com tamanho esforço porque não o compreendemos.

    O nosso campeonato é outro. Na nossa pirâmide das necessidades já não está o acesso a electricidade ou comunicações, lutas para controlar poços de água, saneamento básico ou três refeições por dia. A nossa batalha está na limpeza das ruas norueguesas, na corrupção finlandesa, na produtividade alemã ou nos salários dinamarqueses. É para aí que olhamos, já não conseguimos perceber a barriga vazia de um puto a fugir de uma guerra no Sudão ou um perseguido pelo regime do Assad em fuga da Síria.

    Criticamos o Costa, ficamos irritados com os preços do Pingo Doce, mas jantamos e chamamos nomes a quem queremos enquanto mandamos abaixo nova ginja.

    Uma delas, a mais calada, responde à pergunta da que fala mais alto: “o que vêm fazer para cá? Não é óbvio? Vêm atrás do subsídio, de não fazer nenhum e de viver à nossa custa”.

    A mais espalhafatosa empolga-se com aquele lançamento de alto teor racista e não perde tempo: “passado um ano, o Costa está a fazer-lhes mesquitas e merdas lá para o Alá e não sei quê! Bem faz a Meloni que os manda de volta. Razão tem o Ventura quando diz que estamos a ser invadidos!”

    Dois minutos antes tinha pensado em juntar-me à conversa para perceber a origem das ideias. Gosto de falar com estranhos e discutir ideias pelo simples prazer de aprendermos uns com os outros. Embora o discurso apontasse para aquelas ideias pré-concebidas do mundo cheio de muros, a confirmação surgiu com parangonas de ignorância. Virei a direcção. Não há diálogo possível com quem vê o mundo a duas cores, e fui buscar outra ginja. Desta vez com elas.

    Daquelas duas raparigas, extrapolei para os milhões de habitantes neste continente (as eleições na União Europeia assim o indicam) que concordam com elas. Há milhões de pessoas a fugir da guerra, da fome e da perseguição política, do médio oriente (Palestina, Síria) à África central. Milhares morrem anualmente nas malhas dos gangues do tráfico humano e fazem do mar predilecto dos europeus para férias, um autêntico cemitério, sem que organização alguma consiga sequer estimar o número de migrantes engolidos pelo Mediterrâneo.

    italy, cala gonone, air

    A calamidade é de tal forma grotesca que os governos europeus, líderes de populacões envelhecidas, antes de se preocuparem em salvar esta gente, chutam responsabilidades de um lado para o outro, deixando-os à sua sorte e fazendo o possível para que não entrem.

    Meloni culpa Macron, os gregos culpam os turcos, Malta culpa quem invadiu a Líbia. Os desgraçados continuam a morrer, em barcas velhas, pensando que têm o direito de tentar fugir à morte certa nos países de origem.

    No fundo, é isso: os migrantes acham-se no direito de fugir à morte, arriscando para isso morrer. E nós, por cá, nem a simpatia já temos para dar. O sofrimento alheio é-nos banal, debaixo do nosso céu azul não há espaço para refugiados que não venham do Donbass. O mediterrâneo que os acolha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As munições que o Governo dá aos liberais

    As munições que o Governo dá aos liberais


    Quando o sistema de impostos me desagrada evito falar sobre ele. A razão é simples: não dar munições aos liberais e à extrema-direita que vêem na “flat tax” a solução para todos os problemas.

    Sou um defensor acérrimo dos impostos progressivos por achar que é essa a única forma de assegurar serviços públicos de qualidade, pelo menos na saúde, na educação e no apoio ao desemprego.

    Ainda assim, agora vem o “mas”, volto ao tema dos impostos em Portugal por achar que a coisa começa a ultrapassar todos os limites da razoabilidade. E notem que me refiro a Portugal em especial porque no país onde passo metade do ano, a Suécia, ninguém se queixa do elevado valor dos impostos. Apesar da carnificina fiscal, não há que negar essa parte, aparentemente as pessoas identificam-se com a prática e percebem a importância de o fazerem. Deduzo eu pelo que recebem em troca.

    two Euro banknotes

    Esta é a parte importante desta troca comercial entre o contribuinte e o Estado. Nós depositamos um valor mensal e, em troca, o Estado proporciona-nos serviços.

    Se os nossos filhos estudarem sem pagar, se formos assistidos nos hospitais sem grandes custos, se tivermos uma pensão de reforma decente e, no caso de cairmos no desemprego, termos uma qualquer protecção, em princípio a população não se queixará muito. Imagino eu.

    Em Portugal, mesmo para um opositor da selva urbana defendida pelos liberais e do “cada um por si” exigido pela extrema-direita, começam a faltar argumentos para justificar a brutal carga fiscal. 

    Numa semana em que voltei a ouvir falar de Alexandra Reis e devoluções de indemnizações milionárias ou, de desvios do erário público para garantir obras aos amigos de PS e PSD, pergunto-me: até onde é que cada trabalhador tem que ser esfolado para pagar este circo todo?

    person standing near the stairs

    A inflação vai baixando com alguma consistência mas as taxas de juro continuam a aumentar.  Nos bens de consumo também não se nota grande abrandamento na escalada de preços e, segundo alguns economistas, mesmo quando a inflação regressar ao mítico 2%, não se espera que os preços regressem aos valores pré-guerra. O mesmo para os transportes onde uma deslocação na Europa custa hoje três ou quatros vezes mais, se compararmos com os preços praticados antes da pandemia.

    Num destes dias, entrei num café e pedi um iogurte. Um simples iogurte que, desde o dia anterior, tinha subido cerca de 30%. Quando perguntei a razão de tamanha exponencial à funcionária, ela encolheu os ombros e disse: “já sabe, a Ucrânia e tal…”. A Ucrânia está para a escalada de preços como o Aursnes para o onze do Benfica. É pau para toda a obra. 

    O dia até me estava a correr bem quando recebo a carta para pagar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis). O IMI é capaz de estar no pódio dos impostos mais estúpidos. Ninguém percebe bem a razão de pagar, anualmente, um imposto por uma coisa que é sua e que, ainda por cima, já foi alvo de carga fiscal a valer na altura da compra.

    man in purple suit jacket using laptop computer

    Uma pessoa quando compra uma casa já paga alguns milhares de euros em IMT e Imposto do Selo. Ou seja, o Estado já nos leva uma fatia na compra. Depois leva outra, maior, na venda. Tudo bem, não queremos especulação e tal. Mas depois ainda nos pede uma mesada, anual, pela existência da casa.

    A dada altura uma pessoa paga taxas e taxinhas já sem saber de quê. Mas pior… o que é que recebe pelo que paga? SNS e escola pública destruídos, salários na função pública miseráveis, roubos e mais roubos do erário público descobertos a um ritmo semanal. Fica difícil, muito difícil, para um convicto apoiante do sistema público, defender o assalto fiscal português quando a moeda de troca é uma mão cheia de nada ou uns subsídios mata-fome.

    Também não sou um fã da conversa de emigrante do “lá fora é que é” mas, efectivamente, é possível pagar muitos impostos, ficar com dinheiro no bolso para viver, ter serviços públicos de qualidade e não pagar impostos idiotas que cobram duas e três vezes a mesma coisa. Há décadas que PS e PSD, enquanto dividem autarquias e tachos para os boys, partilham uma única ideia para aumentar receitas: mais impostos.

    wallet, empty, poverty

    E por maior que seja o jackpot, vai sempre parar ao mesmo sítio. Estradas, clientelas, bancos, boys, empresas de amigos, PPPs ruinosas. Já para produção de mais valias, aposta em tecnologia e nos cérebros formados em Portugal, educação universal ou alívio fiscal, preferimos deixar para os países de primeiro mundo que nos vêm roubar os miudos à porta das universidades.

    Parece-me uma estratégia óptima para quem quer continuar a competir entre os mais pobres.

    Pessoalmente sinto-me cercado. Dependo de aviões para me deslocar todos os meses, pago impostos em dois países europeus a braços com a inflação desregulada e manietados por um estúpido apoio eterno a uma guerra entre impérios, disputada em território neutro. Já vamos em 3,5 anos disto.

    Primeiro a pandemia, a loucura das restrições e o aumento das dívidas soberanas. E agora esta crise militar com a fatura da covid-19 lá enfiada, tudo para ser pago pela antiga classe média europeia. É trabalhar até rebentar para pagar custos de vida que há muito deixaram de ser comportáveis. 

    loaf, bread crumbs, crumbs

    Nunca votaria em qualquer partido à direita do PS, incluindo o próprio, mas por esta altura do campeonato, dada a pobreza crescente em Portugal pergunto, qual seria o problema de reduzir os impostos e deixar cada trabalhador com mais dinheiro no bolso?

    Não diria isto se visse uma boa aplicação do dinheiro dos impostos mas convenhamos, enquanto a população empobrece e perde as casas, a classe política e as elites, vão dividindo o bolo e enriquecendo, entre negócios escuros com abutres que voam desde sempre na órbita do Estado. São muitos, são demasiados os exemplos de gestão danosa das nossas contribuições.

    Valerá a pena continuar este modelo onde as pessoas empobrecem, os serviços públicos vão desaparecendo, as contribuições vão aumentando e uma minoria, já não tão silenciosa, vai enriquecendo nas costas da corrupção? 

    person holding stainless steel fork

    Se não querem construir uma escola universal, se não querem recuperar o SNS, se não querem falar com os professores, se não querem dividir a riqueza colectada por quem trabalha, então colectem menos. É simples. Se vamos continuar a salvar bancos, a pagar PPPs ruinosas, a roubar e a desviar descaradamente o erário público e a “dar salários a boys que se estão a cagar”, então deixem de virar as pessoas ao contrário até que dos bolsos caia a última moeda.

    É imoral e pornográfico. Dividam a riqueza, forneçam serviços públicos de qualidade, tenham vergonha na cara e deixem, os sucessivos governos, de conduzir Portugal a uma república das bananas de terceiro mundo. Se assim não for, baixem pelo menos os impostos e deixem cada um tentar a sua sorte.

    Pior do que está não fica.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.