Etiqueta: Tiago Franco

  • Os senhorios também gostam da inflação

    Os senhorios também gostam da inflação


    Quando tratamos os senhorios como um todo – uma espécie de perigosos especuladores –, corremos o risco habitual das generalizações. Em princípio, vamos misturar o trigo com o joio, e do mesmo saco tiramos o ganancioso capitalista e o gajo que foi viver para outro país e deixou a casa alugada por um preço decente.

    Devo dizer, para início de conversa, que o argumento de que “cada um mete o preço que quer na sua propriedade”, é algo que me irrita particularmente. Quando a liberdade se confunde com o puro bom senso e toma lugar a procura do lucro fácil à custa da miséria alheia, eu acho muito bem que o Governo tome medidas para beneficiar os mais desprotegidos.

    Colorful Buildings in City Downtown

    Dou-vos dois exemplos que ilustram o que pretendo dizer.

    Se uma pessoa contrai um empréstimo bancário para compra de casa e, passados uns tempos, vai trabalhar para outro país, acho perfeitamente lógico que a alugue por um preço que cubra a prestação ao banco e as despesas inerentes. O mesmo é dizer que se a Lagarde passar os juros para o triplo, também é normal que essa carga acabe no inquilino, uma vez que é ele que lá vive. O senhorio nesse caso continua apenas a cobrir as despesas e os aumentos a que é alheio. Não há qualquer busca  pelo lucro fácil. 

    Já se um apartamento nos cair no colo, por herança ou qualquer outra razão, e o resolvermos alugar, praticamente toda a receita é lucro. Neste caso, admito, já tenho mais algum dificuldade com conversas de inflação e juros que pouco ou nada afectam as despesas da casa. Claro que podemos sempre dizer que cada um pede o que quer e só aceita quem quer. É verdade. Mas não é propriamente um bom princípio de convivência social e muito menos um caminho com grande futuro.

    Se num país com falta de habitação – embora existam mais casas do que pessoas –, especialmente a preços que os baixos salários possam suportar, deixarmos o preço do arrendamento ser decidido, apenas, por quem procura uma mina de ouro no meio do empobrecimento geral, em princípio não vamos muito longe.

    man in yellow shirt and blue denim jeans jumping on brown wooden railings under blue and

    Reparem que nada disto é muito difícil de perceber. Provar as despesas que se tem com uma casa, começando pelo crédito à habitação, é relativamente simples. Portanto, não é uma equação impossível perceber quem é que lucra muito com a especulação imobiliária. 

    Dito isto, o tecto de 2% imposto pelo Governo para o aumento das rendas é mais uma daquelas medidas do governo do PS que servem para muito pouco. Darão eventualmente uma linha no próximo PowerPoint de programa eleitoral mas, para a vida dos inquilinos que sofrem para aguentar as casas, não trará grande protecção.

    Como explica a própria associação nacional de senhorios, num rasgo de inteligência a lembrar um chco-esperto de Alfama: “se o Governo anuncia um aumento máximo de 2% para daqui a não sei quanto tempo, os senhorios aumentam 30% já e ficam garantidos para os próximos anos”. E volta a meter o palito na boca para tirar os último fios do pastel de bacalhau ingerido no jantar do dia anterior.

    Há no entanto um argumento que é válido do lado desta malta. Segundo eles, se todos os outros sectores não são prejudicados pela inflação, leia-se, restaurantes, supermercados, bancos, etc., por que razão não podem os senhorios aumentar os preços de acordo com a inflação? Ou seja, se os outros mamam, por que não podemos nós também?

    A Person Holding a Mango Fruit

    Esta é uma argumentação que me lembra uma conversa, há uns meses, com um senhor que trabalha em jardinagem. Dizia ele: “se o carpinteiro, pintor e canalizador dobraram os preços, sou eu que vou cobrar o mesmo?” Na altura, disse-lhe que se os gastos dele eram exactamente os mesmos, tanto na mão de obra como nos materiais e não perdia dinheiro, qual era a necessidade de dificultar a vida aos clientes cujos salários, esses sim, estavam a perder poder de compra. Ao que ele respondeu, insistindo que, se o pintor podia, ele também.

    Ora o senhor da associacão nacional de senhorios segue este tipo de lógica, e eu percebo-o. Se os bancos ganharam um jackpot com a inflação nas prestacões das casas e o Costa não fez nada, tem agora que vir chatear a cabeca aos senhorios? Visto assim até os compreendo. Se a Lagarde aumenta os juros só porque lhe apetece, não pode o gajo que tem um T0 na Mouraria fazer o mesmo, agora que nenhum russo lhe quer comprar aquilo? Claro que pode. E se o Costa disser que só pode aumentar 2% com a inflacão nos 5%, ele adianta logo um simpático 28% ao inquilino e depois da guerra acabar, olha, paciência. Segue jogo e fica como está.

    Há uma regra na Suécia para casas compradas em regime de cooperativa que me agrada particularmente: ou vives lá ou então vendes. Se estiveres com um pé dentro e outro fora, podes alugar durante dois anos. Findo esse período, tens de decidir. Viver ou vender, não há cá lucro gerado para ninguém com filas enormes para conseguir casa. É a chamada optimização de recursos e o combate possível à especulação imobiliária.

    low angle photo of mirror glass building

    O problema do governo PS é que navega sem rumo há já tempo demasiado, tendo em conta o tempo que ainda falta para as eleições legislativas. Costa anuncia medidas em pacotes cheio de flores e intenções, mas com pouquíssima aplicação prática. Quando vamos a ver, somos um país de paus mandados da União Europeia. Se o Banco Central Europeu aumenta os juros, nós dizemos que sim e os bancos nacionais fazem o que bem entendem.

    O Governo não pensa, por exemplo, em devolver parte desses juros em sede de IRS. Se a Lagarde diz para não pagarmos prestações sociais, nós deixamos as pessoas sem nada. Se os supermercados aumentam os preços até ao limite do insuportável, resistimos a colocar tectos, porque isso é muito Venezuela. Os governos portugueses limitam-se a gerir apoios comunitários e pouco mais. Não conseguem ver para lá do próprio interesse e da próxima eleição.

    Enquanto vivemos este autêntico inferno – onde é suposto acomodarmos a ganância de toda a gente, desde bancos privados a senhorios que aproveitam a oportunidade, passando por cadeias de distribuição que agarraram este momento único –, aceitamos que a única coisa que fica absolutamente fixa, segura e imutável, é o salário. Esse, na melhor das hipóteses, ficou poucos pontos percentuais abaixo da inflação. Andam os sindicatos a fazer greves por todo o país por salários que já andam de braço dado com a Sérvia e a Moldávia.

    A cantina onde de vez em quando compro um iogurte, mudou o seu preço pelo menos três vezes nestes últimos meses. De 3 para 4,5 euros. Sempre, mas sempre, com a justificação da Ucrânia, quando o leite e tudo o que lá está dentro, é produzido aqui na cidade ou arredores. Um simples copo de vinho, num banal restaurante italiano, custa agora quase 8 euros. Também por causa da Ucrânia, essa famosa exportadora de vinho. 

    granola and yoghurt filled mason jar

    Há um conjunto de negócios que aproveitam, sem margem para dúvidas, esta oportunidade de lucrar como nunca.  Senhorios, pelo menos alguns, estão dentro do grupo de pessoas ou entidades que não querem ficar de fora desta autêntica lotaria. A perda do poder de compra dos trabalhadores é real, os salários pouco ou nada mexem, mas, no fim, temos que olhar em volta e aceitar que todo o resto do mundo precisa de vender o seu produto de acordo com a inflação. 

    António Costa, um político hábil, como se sabe, vem desde a pandemia a governar ao sabor do vento e sem um real plano de futuro. Tapa buracos com areia, em estradas ventosas. Pior do que percebermos onde estamos é não vermos grande alternativa. Imagine-se um Governo do PSD com liberais e extrema-direita, num período em que as pessoas precisam de ajuda como nunca.

    Resta-nos continuar a empobrecer e ir distribuindo o pouco que temos por bancos, supermercados e senhorios. Viver, pelo menos como a vida merece ser vivida, isso fica para a próxima geração.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Há falta de professores? E novidades, há?

    Há falta de professores? E novidades, há?


    Falta de professores afeta 100 000 alunos“, é este o título de uma notícia do Observador de sexta-feira passada, e replicada em outros órgãos de comunicação social, que me prende a atenção e deixa um cheirinho a nostalgia nesta minha memória que já teve melhores dias. Tenho a sensação de que, há uns anos a esta parte, a cada início do ano escolar esta notícia se repete.

    Começamos a ter um ciclo, com as cheias em Janeiro, os fogos em Julho ou Agosto e a falta de professores em Setembro. Longe vão os tempos em que Pedro Passos Coelho sugeria aos professores que emigrassem, nesta Europa livre e sem fronteiras.

    Não é difícil perceber porque faltam professores em 2023. Ou faltavam em 2022 ou em qualquer ano da década anterior. Mas a pergunta que importa é: quem quer ser professor nestes dias que correm?

    Teacher Showing His Class a Human Skull

    Quem quer aturar os filhos dos outros, explicar a quem não deseja aprender, ouvir todos os tipos de falta de educação e ainda ter de aturar, de quando em vez, as frustrações dos pais por causa da incapacidade dos educandos?

    Quem tem paciência para andar de mala às costas, a viver longe da família, ou sem conseguir formar uma, dada a dificuldade em fixar residência?

    Quem sonha com uma carreira que anda há mais de uma década em luta por direitos básicos e cuja progressão é lenta ou nula?

    E finalmente, quem arrisca o seu futuro numa profissão assim, com todas estas condicionantes, por um salário de indigno que se arrasta durante toda a vida? Indigno, não: deixemos as metáforas à porta, é mesmo uma merda.

    A parte curiosa disto é não se ver, para além de declarações vazias do ministro da Educação (este ou outro qualquer) – tais como “as negociações seguem o seu normal percurso” –, qualquer medida verdadeiramente importante para tornar a carreira docente minimamente atractiva.

    Boy Running In The Hallway

    E é disso que se trata: convencer pessoas que ser professor é algo bom e não deixar o destino do país depositado nos heróis que, apesar das condições lamentáveis, ainda têm paixão por ensinar. Sim, leram bem: o destino do país. Ao contrário do que se possa pensar, o sucesso de um país não está no seu exército, nas suas estradas exploradas por privados ou no número de visitantes anuais. O sucesso mede-se pela qualidade da escola pública e da saúde oferecida a troco dos impostos. Uma boa escola pública cria bons trabalhadores, e bons trabalhadores desenvolvem o país e a sua Economia. Não é propriamente um segredo. Todo o norte da Europa já percebeu isto há 100 anos. 

    Na década de 90 entraram para a área de Educação, no ensino superior, uma média aproximada de 30 mil alunos por ano. Entre 2000 e 2005 esse número aumentou para 45 mil e desde então tem vindo a descer, atingindo o mínimos em 2019 com pouco mais de 12 mil alunos.

    Como é que um país cada vez mais pobre se dá ao luxo de afugentar professores, é um mistério que decididamente não consigo compreender. Qual é a visão de longo prazo? Termos cada vez mais empregados de mesa e camareiras de hotel e, os poucos que vão levando a escola até um ponto que interesse, vamos oferecendo aos países desenvolvidos?

    Interior of Abandoned Building

    Eu percebo que o dinheiro não dá para tudo, mas, no fim, estamos sempre entre opções políticas que podem levar ao desenvolvimento ou ao atraso geracional, não é? Não digo que seja necessário algo radical como atenuar um pouco os roubos que a corrupção inflige ao Orçamento do Estado. As negociatas do tutti-frutti, as adjudicações aos amigos, os subsídios de deslocacão para quem está parado, os resgates aos bancos que tinham ministros no bolso e outros quejandos. Não, não digo para pouparem algum dinheiro aí porque se perdia logo a essência da política nacional, assente em compadrios e corrupcão. Temos que ir um pouco mais devagar.

    Mas, por exemplo, parar de fazer auto-estradas por todo o lado e atribuir o lucro da exploração a privados?  Era um princípio. Imaginem o que daria em salários de professor a fortuna que foi gasta para estarem todos confinados. Alguns 10 anos de progressões, paz social e setembros com os putos nas salas de aulas com adultos lá dentro.

    Não sei bem como dizer isto de uma forma mais simples, mas não há país desenvolvido e Economia sustentada sem um ensino público de qualidade. E não há ensino público de qualidade sem professores motivados.

    Portanto, senhores do Centrão, que há umas décadas gerem fundos comunitários, em vez de desenvolverem o país: RESPEITEM OS PROFESSORES. Sem eles, e um ou outro médico para nos desentupir as artérias, não há mais nada. Sobra-nos o estatuto de República Dominicana da União Europeia com 11 gajos com jeito para a bola. Se é esse o desígnio nacional, sigam em frente que estão bem. Se querem deixar de ser o mais pobre entre os pobres da Europa, é bom então que se aproximem dos professores, com algumas flores na mão.

    Nem é preciso ser muito inteligente. É só olhar em volta e fazer o que já foi feito.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Entre o certo e o errado, mais 1.000 milhões (de dólares) para mortes em prime-time

    Entre o certo e o errado, mais 1.000 milhões (de dólares) para mortes em prime-time


    Ontem tinha alinhado com os meus botões outro tema para a crónica de hoje, mas a actualidade estragou-me os planos.

    Li que os Estados Unidos tinham disponibilizado mais 1.000 milhões de dólares para a guerra na Ucrânia e comecei a fazer contas à vida. Tenho alguma dificuldade em perceber esta cascata de dinheiro despejado na guerra – e aqui confesso que pode ser um problema herdado da minha profissão.

    Pagam-me para arranjar soluções. Não importa agora para quê. Dão-me problemas e pedem-me soluções. Lógicas, e que nos façam chegar a um produto final que, por sua vez, será vendido a quem o quiser comprar. É na perspectiva desta lógica que olho para o apoio à guerra da Ucrânia. Já passou a fase da emoção, da moralidade, do certo ou errado. Olho para ali e penso: “como é que se resolve isto?”

    Exploded House in Borodyanka

    Para vos ser sincero, a fase da emoção não durou muito. Durante 20 anos andou a União Europeia a branquear o regime russo a troco de gás, e mal meteram os pés no Donbass passaram a ser uma ditadura. Quando cortaram o mapa ali pelos lados da Ossétia, Chechénia ou até Crimeia, ainda eram apenas os nossos fornecedores de energia.

    Lembro-me sempre da frase de Macron, numa reunião de líderes – em 2022, e a memória não me falha –, afirmando que era preciso pedir aos sauditas que aumentassem a produção de petróleo para compensar o boicote à Rússia. Pelo meio, ainda vimos Ursula Von der Leyen a fazer “parcerias estratégicas” com o Azerbaijão para conseguir mais umas botijas de gás.

    Portanto, esta coisa de escolher “democracias amigas” à la carte, e consoante os interesses do momento, é prática que nunca me seduziu.

    A moralidade ainda foi mais constrangedora porque, de repente, a fazer fé na comunicação social portuguesa, o Planeta Terra vivia em paz e todos tínhamos de apoiar a resistência ucraniana: com dinheiro, com soldados, com armas, com as nossas casas. Com o que calhasse.

    Abandoned Battle Tank

    Lembro-me de ter falado nisso ainda o primeiro drone não tinha sido usado e ouvir o novo cognome de “whataboutista”. Ou seja, quem pergunta os porquês de tamanha dedicação à causa ucraniana, em contraponto com a História dos últimos 70 anos, passou a ser uma “whataboutista” – e mais tarde um “putinista”.

    Mas, afinal, o que separa ucranianos de arménios, palestinianos, iemenitas, sérvios, afegãos, curdos, sírios, tibetanos, taiwaneses, georgianos, cubanos, paquistaneses, indianos e tantos outros povos a braços com guerras e ou disputas territoriais? Eu respondo: o interesse, momentâneo, de outros impérios em desgastarem o império invasor. Apenas isso. Algo que muito pouco terá a ver com a defesa territorial ucraniana, e ainda menos com a hipócrita tentativa de salvar vidas.

    É muito difícil, ao fim de ano e meio, continuarmos a discutir a invasão da Ucrânia à luz do certo ou errado. Se assim fosse, teríamos de o fazer para uma enormidade de povos que por isso passam há décadas. E não, não é “whataboutismo”, é apenas não ser idiota e perceber que o Mundo não se divide entre impérios bons e impérios maus. Divide-se entre impérios e seus seguidores. Se é império, não é bom – é tão simples quanto isso.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Resta-me, pois, a visão prática que, como expliquei ali em cima, me chega por defeito profissional. Vão os 1.000 milhões de dólares mudar o curso da guerra? Não, não vão.

    Podem os Estados Unidos (e a União Europeia) continuar a despejar dinheiro e a pedir aos ucranianos, àqueles que não vão morrendo, que, em princípio, o resultado final não se altera.  Há algum analista, algum militar, algum comentador, tirando o Zelenski e os seus comandantes mais próximos, que tenha dito que com mais armas e dinheiro a Ucrânia consegue vencer esta guerra? Julgo que não, pelo menos não me lembro de ninguém. Espera…talvez o Isidro da CNN que diz, todas as semanas, que o [inserir aqui nome da arma] vai ser um game changer no curso da operação.

    Mais dinheiro até agora resultou nas mesmíssimas zonas ocupadas pelos russos, em milhares de mortos de parte a parte, na divisão das diplomacias em dois blocos – onde o ucraniano começa a ser minoritário, ao contrário do que a União Europeia nos vai vendendo – e num empobrecimento geral das democracias que são forçadas a enviar dinheiro. Sim, forçadas. Ninguém perguntou aos contribuintes europeus se querem aumentar o investimento na defesa, mas os impostos são canalizados para lá na mesma. Ninguém nos perguntou se concordamos com o ataque cerrado do Banco Central Europeu (BCE) para corrigir o efeito da inflação, mas, a reboque da guerra, tivemos de aceder à duplicação dos custos para a habitação.

    a pile of money sitting on top of a wooden floor

    Se despejar dinheiro não resolve o conflito, qual o motivo de o continuarmos a fazer? Estão a ver o sentido prático da coisa? Se mais uns milhões de pessoas ficarem sem casas, perderem empregos, não aguentarem o custo de vida e rebentarem em dívidas, enquanto enviamos uma ou duas cascatas de dinheiro para a Ucrânia, embrulhadas em tanques e F16… conseguimos, nós, os do império bom, expulsar os russos? Se sim, vamos lá empobrecer um bocado. Se não aparecer um daqueles generais velhotes a dizer que é possível, então se calhar parávamos com isto e tentávamos chegar a um acordo numa mesa qualquer.

    Aquela conversa de apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário é muito bonita, mas como devem compreender, não é real. Não há apoio eterno a ninguém. Quer dizer, a ninguém que não seja israelita. Ou que não tenha muitos poços de petróleo. Assim é que é.

    Há quase dois anos que andamos a tentar uma só solução que, invariavelmente, produz os mesmos resultados. Não sei como funcionam as reuniões entre Bruxelas e Washington, mas se eu apresentasse estatísticas destas, no meu trabalho, já me tinham despedido.

    Há uma e uma só hipótese que qualquer pessoa de bom senso consegue perceber: negociar. Sem “mas” ou discussões de ética e moralidade. Há um problema real que afecta toda a gente e que não tem solução no campo de batalha. Despejar dinheiro não salva ucranianos e só adia a decisão final. Chegaremos sempre ao mesmo ponto – e com um número de mortos maior.

    oval brown wooden conference table and chairs inside conference room

    Isto, claro, partindo do princípio de que a alucinação que faz os sonhos molhados de alguns (a NATO entrar directamente no conflito de forma oficial – pela outra já lá está) continua a ser colocada de parte, como parece ser o caso. Os Estados Unidos aparentemente estão contentes com o negócio e não parecem dispostos a trocar sangue. Desta vez, ficam-se pela promoção do evento, troca comercial, venda de pipocas no espectáculo e, no fim, tomam o lugar do concorrente mais cotado quando ele estiver cansado.

    Ninguém, na verdade, parece estar muito preocupado com os ucranianos hoje ou o que sobrará da Ucrânia amanhã.

    Enfim, há dias, um leitor deste nosso jornal colocou-me a seguinte pergunta: “não tem a Ucrânia o direito de se defender e não deve ser apoiada nesse esforço?”. Eu disse-lhe que a resposta era tão longa e complexa que daria um texto. E deu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mas afinal que mal vos fez o Avante?

    Mas afinal que mal vos fez o Avante?


    Três anos depois, ainda estamos, por aqui e por ali, a discutir a mesma coisa: o ódio ao Avante. 

    Para um povo que gosta de festa em geral, venha ela de onde vier, esta comichão com a rentrée do Partido Comunista Português é algo que me fascina.

    Primeiro, foi a pandemia e o perigo de contágio na Quinta da Atalaia. Depois, foi a guerra e a fábula do apoio à Rússia. 

    Notem que eu até compreendo os gritos do Milhazes sobre o tema: ele, que durante algumas décadas andou esquecido a viver (e comer) à custa do regime que agora critica, precisa desta sua versão de Milhazes para continuar em antena. Parecendo que não, é mais confortável estar na antena da SIC do que numa cabana na Sibéria a traduzir as memórias do Estaline.

    Agora vocês, leitores inteligentes e sem amarras, podem olhar para o Avante de uma forma mais prática e menos apaixonada.

    Digam-me: que tipo de português não aprecia um bom festival gastronómico? Tasquinhas com diferentes sabores a preços económicos. Iguarias dos 18 distritos portugueses. A possibilidade de almoçar espetada em pau de louro (na zona da Madeira). Jantar uma carne de porco à alentejana (na zona de Beja). Um moscatel para abrir o apetite na casa de Setúbal. Uma queimada bem forte, lá para a madrugada, na Galiza, ali perto das tascas internacionais.

    Portanto, se não gostam de música, livros, política, teatro ou actividades desportivas… podem ir lá só pelo comer.

    Se gostam de música, normalmente o cartaz é interessante e distribui-se por mais do que um palco. Há uma orquestra com obras clássicas, há música popular, há rap, há metal, há rock, há músicas do mundo; enfim, o teu estilo passa ou passou por lá, certamente. 

    Depois de se ter “pedido”, no ano passado, que os artistas boicotassem a Festa do Avante, este ano o nosso Zé Milhazes foi mais comedido e pediu-lhes só que anunciassem, antes de cada actuação, se apoiavam a invasão da Ucrânia ou não. Reza a lenda que o bom do Zé exigiu aos Red Hot Chilli Peppers que declarassem o seu desagrado com o consumo de álcool pelos jovens, antes de actuarem no Super Bock, Super Rock.

    Eu aprecio muito esta fábula do “se vais ao Avante, apoias a invasão da Ucrânia”. Desde logo porque tenho uma vida onde a pressão é uma constante e necessito de momentos de descontracção. A frase: “o PCP apoia a Rússia de Putin”, tem sido a minha favorita desde que aqueloutra do “são só 15 dias para achatar a curva” saiu de circulação. 

    Andava o sr. Putin a vender gás por toda a União Europeia e aos beijos com os principais líderes, e já o PCP escrevia contra as suas acções. Tal como no tempo de Iéltsin. Mas Milhazes, que andava nessa altura a fazer pela vida e que classificou em Junho, o regime de Putin como extrema-esquerda, não deve ter reparado de que lado ficou o PCP.

    Continuando…

    Vamos então assumir que também não ligam a música, e que a comida não vos puxa. Podem ir ver teatro ou até navegar perdidamente pela feira do livro. É certo que encontrarão por lá as obras do Manuel Tiago, mas, que diabo!, algum livro vos captará a atenção. 

    Se a literatura também não for a vossa praia, então é porque, em princípio, gostam de jogar à bola. Pois bem, formam uma equipa e entram nos torneios. No fim, bebem umas cervejinhas e, se ignorarem as camisolas do Che, até parece que estão na praia com os amigos.

    Portanto e em resumo: há uma infinidade de razões para irem a uma festa, para lá da componente política, por esta reunir vários tipos de eventos num só local.

    Dito isto, mas se vocês forem do tipo que não gosta de comer…

    Ou se forem do tipo de terem pezinhos de chumbo para a dança…

    Ou se forem do tipo de não querer jogar uma futebolada…

    Ou se forem do tipo de desdenharem um copo…

    Ou se forem do tipo de adormecer num teatro…

    Ou se forem do tipo de nem estarem virados para bancas de livros…

    Ou se forem do tipo de nem apreciarem um concerto…

    Ou, enfim, se forem do tipo de nem sequer quererem estar na converseta entre amigos…

    Então… vocês são só chatos, perdoem-me a revelação. 

    Mas, nesse caso, ainda há uma solução: fiquem em casa… a ver o Milhazes.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um dia, numa realidade paralela

    Um dia, numa realidade paralela


    Já por aqui contei que grande parte da minha  vida em território português acontece na Margem Sul (do Tejo). Fui ali criado e boa parte da minha família continua por lá, a viver. É ponto de paragem obrigatória e, mesmo sem querer, dou por mim a analisar a transformação dos subúrbios a sul de Lisboa nas últimas duas décadas.

    É particularmente mais trabalhoso nesta altura, com o regresso dos emigrantes e a enchente de gente naqueles espaços que já são, por definição, sobrelotados. Foi para isso que se construiu o subúrbio. Para encher de gente da classe trabalhadora, que não consegue viver nos grandes centros, mas que para lá se desloca diariamente para trabalhar. Ou era este o objectivo. Hoje, toda a classe média foi empurrada para os subúrbios, porque já ninguém consegue pagar uma renda ou comprar uma casa no centro de Lisboa.

    A mudança é, daquilo que me lembro, ainda assim evidente. Por exemplo, nas praias. Quando eu era miúdo, a praia da Fonte da Telha era uma zona de péssimos acessos, casas ilegais e barracas que faziam as vezes dos restaurantes. Um pouco como a Costa da Caparica, mas sem os parques de campismo e aqueles horrorosos prédios de 10 andares. Eram as praias dos pobres, da classe trabalhadora, daqueles que nem ao Algarve conseguiam chegar. Era onde eu passava o meu tempo nas férias da escola e, julgo, onde aprendi a nadar, entre um ou outro susto em dias de ondas mais destemidas .

    Hoje, a mesma Fonte da Telha, continua a ser uma praia com péssimos acessos e um caos indescritível para estacionar, as casas ilegais por lá continuam, mas as barracas, que serviam os petiscos, levaram umas madeiras melhores e mais polidas, e passaram a incluir nos menus palavras como sunset, lounge e espumante.  Nada contra o melhoramento de espaços e a “fusão de sabores”. Mas já sangria de espumante questiono-me sempre porquê…

    Ouvir uma bossa nova enquanto se come um bom peixe grelhado, uma nasigorada (uau), um tom yum (como?) ou um arroz com coisas do mar e aromas, parece-me sempre boa ideia. Mesmo que acompanhado por sangrias cheias de gasosa, gelo e mirtilos. Mas, no fim, quando a conta chega e a festa fica em 60, 70 ou 80 euros por pessoa, eu começo a olhar em redor. Não para fugir, note-se, mas para perceber se entre uma framboesa e um acorde do Tom Jobim, fui teletransportado da Fonte da Telha ou de São João da Caparica para Nice, Miami ou Veneza.

    high rise buildings near green trees under blue sky during daytime

    O carro continua estacionado num monte de entulho, de onde não sei se sairá, os buracos para aqui chegar ainda não foram tapados, o simpático funcionário, que foi partir gelo para encher aquele jarro, recebe o mesmo salário mínimo há três anos. Que sentido faz cobrar ao cliente um valor como se estivesse noutras paragens? Por onde se distribui esse lucro? É na envolvente que os meus olhos encravam sempre.

    Pior ainda foi perceber que começa a ser normal e corriqueiro, em contas astronomicamente altas, acrescentar uma sugestão de gorjeta na casa dos 10, 15 ou 20%. Ou seja, a introduzir o modelo liberal americano onde os contratos de trabalho na restauração incluem a expectativa da gorjeta definida como “recomendável”. Portanto, não bastam os preços completamente desfasados da realidade portuguesa, em especial da classe trabalhadora que vive nos subúrbios, e ainda começamos a contribuir para a normalização da precariedade do pessoal que trabalha na restauração.

    Uma amiga disse-me que tínhamos que ir cedo, as filas eram enormes para arranjar mesa. E assim é. Há que reservar, há que aparecer cedo, há que correr para conseguir beber sangria a 35 euros o jarro. Ou as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE) andam a falhar e a média salarial subiu muito, ou então aquela minoria que ganha bem descobriu apenas recentemente as “praias dos pobres”. Era pelo menos isto que eu pensava arriscando um raciocínio simples de contabilista.

    Saí dali a cantarolar a Garota de Ipanema e a arrotar o excesso de 7up da sangria e fui ter com o meu irmão, que me pedira ajuda para procurar casa. Enquanto conduzia, ouvia a notícia das bombas de fragmentação cedidas pelos Estados Unidos à Ucrânia e gostei particularmente da justificação dada. Na guerra contra a Rússia, a Ucrânia já esgotou a capacidade de produção de munições de todos os países da NATO, de modo que agora tem de se recorrer a uma bomba que mata mais civis do que militares.

    Está bem visto. Não sei se se lembram, mas antes de nos pedirem para pagar e empobrecer a favor desta guerra, garantiram-nos que os russos só tinham balas para mais um mês. Continuar a meter dinheiro na Ucrânia, agora que a contra-ofensiva parece estar a falhar, é como tirar a água do mar com uma colher de chá. Já não há paciência, nem orçamento, para moralismos bacocos. A realidade é o que é, e não vale a pena camuflar. Ou se sentam a dividir terreno ou a coisa só se resolve com a NATO a meter as botas no terreno.  

    Desligo o rádio, porque já avisto a baía do Seixal lá ao fundo, onde o meu irmão me aguarda. Estamos na parte velha e mais decrépita que há anos está a ser recuperada, e, por isso, se passou a designar por “Seixal Histórico”, em frente à baía. Nos meus tempos de escola, aquela baía tinha um nome, ligeiramente desagradável para escrever num jornal, hoje designa-se por “maravilhosa” e com “as melhores vistas de Lisboa”. Isto convertido em euros ao metro quadrado é um pequeno mimo.

    Falámos com um promotor, homem simpático e ágil no argumento, que nos disse: “Este T0 agora custa 80.000 euros. Assim, todo partido. Depois de renovado fica em 180.000 euros”. Eu sorri e perguntei-lhe se, no fim da obra, estaria a olhar para o Sena ou ainda se veria o Tejo. Fomos embora com destino a algo mais modesto, sem água por perto, para alugar. Era tão modesto, mas tão modesto, que era um anexo a uma casa. Quase sem janelas e num estado pouco mais do que lastimável, numa das piores zonas da Margem Sul. O senhorio achava que 850 euros mensais era o valor apropriado para aquela barraca. Isto, no tal país, onde 70% das pessoas não ganham sequer isso por mês.

    Aqui já me deitei a pensar um pouco mais, sem no entanto aborrecer o meu irmão com as indignações. Alguém me convencerá que os mercados se ajustam? Ou que a habitação não pode ter limites nos preços? Ou que este escândalo de especulação acontece pela falta de oferta? Não, são argumentos que não colhem.

    Como é que se pode falar em falta de oferta quando o Estado não consegue sequer contar os imóveis devolutos e desocupados que possuí? Como é que assistimos, de braços cruzados, nós e o Governo, ao aumento das taxas de juro que transportam os créditos à habitação para valores superiores aos salários e, mesmo no arrendamento, à normalização de preços completamente desfasados da realidade?

    Nada pode ser feito? Claro que pode.

    A começar pelo Governo, que deve fornecer mais habitação a baixo custo, construindo ou reabilitando o que já existe e é seu. E no aluguer feito por privados, pode obviamente impor-se um tecto nas rendas abusivas. Deixam os senhorios de alugar? Pois, que deixem. Ao preços de hoje também não servem a ninguém.   

    Aquilo que não pode ser é o contribuinte anónimo ficar preso entre a espada e a parede. Ou tem de suportar juros definidos por um BCE, que não elegeu, até perder a sua casa, ou tem de deixar 80% do salário para alugar uma barraca num subúrbio. Não me digam que a culpa é de quem trabalha e paga impostos. E não me digam que é a maioria que sofre com isto, que tem de se adaptar ou mudar. Mudar para onde?

    a person holding a wine glass

    Estas pessoas, que se vão deslocando para a Margem Sul por já não conseguirem viver em Lisboa, são as que, como se percebe, além de contribuírem para mais trânsito no acesso a Lisboa (um problema com décadas), correm o risco de, a este ritmo de empobrecimento, daqui a uns anos, já nem na Margem Sul conseguirem viver. Pelo andar da carruagem, ainda vamos conseguir repovoar o Alentejo.

    No fim do dia fico com a impressão que estou a viver numa realidade paralela. Ainda estou ali, no mesmo subúrbio, sem perceber bem como é que tudo aquilo cola. Algumas zonas melhoradas, é verdade;  outras particularmente feias, muitas cheias de erros arquitectónicos e calamidades de betão. Nem a recolha de lixo, problema básico das sociedades desenvolvidas, está resolvido ou sequer os acessos têm condições. Há engarrafamentos por todo o lado e estradas esburacadas a perder de vista. Há barracas de chapa, de madeira, de tijolos que vão sobrando. Mas pedem, a quem ali vive, por vezes em condições que dão vergonha só de olhar, que aceitem custos dignos de uma qualquer capital europeia.

    Na casa, nos impostos, nos combustíveis, na electricidade, na restauração, até no simples acesso a uma praia onde se paga para entrar. Propriedade pública controlada e gerida por privados onde pobres não passam.

    A Margem Sul, um pouco como o resto do país, vive de cosmética para disfarçar os problemas reais. Vende lounges, sunsets e coisas gourmet, para quem lá fica umas horas, mas esquece-se de tirar o lixo amontoado da frente dos prédios, de tapar as crateras do alcatrão ou de acabar com o inferno do acesso à ponte. Faz-me lembrar uma pessoa que conheci em tempos, pouco fã de banho e que disfarçava a terra das unhas com verniz.

    Ainda assim, como um homem sofre a ver a desorganização do país onde nasceu, mas gosta mais dele do que de batata frita, também eu me vou esticar e esperar por dias melhores.

    Desejo umas óptimas férias aos leitores do PÁGINA UM e se vos tocar uma dessas sangrias de espumante, coragem.

    Até breve!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O (alegado) gamanço de Armando e a justiça poética sobre Drahi

    O (alegado) gamanço de Armando e a justiça poética sobre Drahi


    Quanto mais leio sobre Armando Pereira, o co-fundador da Altice, mais aprecio este magnífico enredo. Começo pelo fim, pelo extraordinário Bugatti Centodieci. Um carro de luxo, raríssimo, avaliado em oito milhões de euros e com apenas 10 exemplares produzidos. Três deles pertencentes a portugueses. Um pertence ao Cristiano Ronaldo, um rapaz que ganha anualmente o suficiente para comprar a produção inteira; e os outros dois estão à guarda de Armando Pereira e do seu braço direito, Hernâni Vaz Antunes. Estão não – estavam. Agora foram fazer a rodagem para a garagem da Polícia Judiciária.

    Qual é a probabilidade de num dos países mais pobres da Europa se encontrarem 30% dos proprietários de um dos carros mais exclusivos do Mundo? Pequena, obviamente. A não ser que esse país seja Portugal, claro.

    Se o país for Portugal, nesse caso chamaremos de “herói nacional” a alguém que compra uma empresa pública, reduz salários dos trabalhadores e aumenta a própria fortuna. Armando Pereira e o sócio fundador da Altice francesa, o franco-israelita Patrick Drahi, ficaram conhecidos por comprar empresas e de imediato reduzirem custos. Numa conferência de imprensa em 2015, disse Drahi: “Eu não gosto de pagar salários. Pago o mínimo que puder“.

    Drahi é, portanto, um empresário que tem, pelo menos, a virtude de assumir ao que vem: maximizar o lucro explorando os trabalhadores. Ou, como lhe chamariam os liberais, um visionário. Já Armando Pereira era conhecido como cost killer (mata-custos) e entrou na antiga PT a ceifar tudo o que conseguiu.

    Em 2015, António Pires de Lima, então ministro da Economia, apelidou Armando Pereira de “herói de Vieira do Minho e até nacional” durante o discurso de inauguração de um call center da Altice naquela vila nortenha. Um herói naqueles sítios onde pagaria pouco mais do que o salário mínimo nacional a cada um dos desgraçados que ali passaria, horas, a responder às queixas dos clientes.

    Armando Pereira garantia então, também em 2015, que não iria mexer nos salários, mas que renegociaria os contratos com os fornecedores. Sabe-se hoje que parte do esquema que resultou no desvio de mais de 250 milhões da Altice passava exactamente pelos fornecedores que, alegadamente, alinhavam em pagar luvas ao empresário e à rede de comparsas, ou então saltavam fora do negócio. Sabe-se hoje que também aos funcionários foram cortadas regalias deixando-os apenas com o salário-base.

    Armando Pereira, co-fundador da Altice.

    Eis mais uma história de um self-made man lusitano, que foi trilhando o caminho do sucesso à custa da exploração alheia e do crime financeiro. Segundo suspeita o Ministério Público, o plano de desvio de dinheiro tinha duas áreas de actuação: a primeira seria comprar imóveis da antiga Portugal Telecom (PT) em Lisboa, nas zonas nobres, e revender com lucros fabulosos, deixando a especulação fazer a maior parte do trabalho; a segunda, seria a chantagem sobre fornecedores para continuarem a fazer parte do negócio.

    Um esquema simples, dir-se-ia, tendo uma rede de pessoas certas nos locais certos, como era o caso.

    Há uma parte comum em todas as novelas dos self-made man à qual Armando Pereira também não foge. A circulação de dinheiro sem deixar rasto pelas famosas offshores. Era aqui que entrava o empresário e amigo de Braga, Hernâni Vaz Antunes, que criava empresas fictícias na Zona Franca da Madeira e no Dubai, que depois faziam as transferências do dinheiro desviado.

    O crime financeiro existe porque os governos permitem – é bom que nos vamos lembrando disto. As Zonas Francas, as offshores, o que lhes quiserem chamar, não aparecem por auto-determinacão de meia-dúzia de malucos como o Reino do Pineal (também é uma história boa para outro dia). Aparecem de forma legal e autorizada por praticamente todos os países do planeta.

    A Suíça, por exemplo, faz vida a guardar dinheiro sujo desde que existe, e ninguém se parece preocupar com isso. Os Panama Papers mostraram esquemas gigantescos com lavagens de dinheiro nas Caraíbas e, no essencial, nada mudou. Vivemos num mundo onde os mais ricos criam leis que os protegem. É factual.

    Patrick Drahi, co-fundador e presidente do Grupo Altice.

    O duo Armando e Hernâni formaram assim uma dupla de respeito na arte de roubar. O primeiro criava as condições e o segundo executava, Um exemplo disso foi a empresa de mobiliário criada por Hernâni Antunes, em Braga, que viria a ser a fornecedora escolhida para a remodelação das lojas MEO. O dinheiro depois, como já adivinhou o caro leitor, ia dar aquela voltinha pelo Dubai até ser transformado num Bugatti, num heliporto ou num campo de ténis de uma moradia qualquer em Vieira do Minho. Certo, certo, é que jamais apareceu no recibo de vencimento dos trabalhadores da MEO.

    Desconfia-se que os amigos de Braga tenham ficado com uma comissão do que a Altice pagou a Cristiano Ronaldo pelos contratos de publicidade e que outros 20 milhões de euros tenham sido desviados do pagamento de direitos televisivos ao Futebol Clube do Porto, e a verba posteriormente dividida por homens da confiança de Hernâni Vaz Antunes e de Pinto da Costa.

    Por esta altura do enredo imagino o que andará pela cabeça de Patrick Drahi. O CEO do Grupo Altice, que detesta pagar salários, mas que é roubado dentro de portas por altos quadros. Justiça poética meus amigos, daquela que nos faz sorrir.

    Pergunto-me o que moverá alguém, que já é milionário, a optar por crimes desta magnitude correndo o risco de perder tudo? Alguém que se desloca de avião privado ou de helicóptero, que abre a garagem e vê 50 carros, que tem casas em Nova Iorque, Paris e Ilhas Caimão e… não consegue segurar a ganância? Sente que precisa de mais e que tem de meter todos em risco? Sim, todos. Trabalhadores incluídos.

    As aquisições da Altice são, por norma, feitas a crédito, e portanto, escândalos destes podem criar incumprimento e instabilidade na banca. Como todos sabemos, a cada derrocada empresarial são os trabalhadores que ficam sem sustento. Os Armandos Pereiras têm as fortunas escondidas algures, num sítio onde o Fisco não chega, e por isso, entre fugas, advogados de elite e recursos em tribunal, vão sempre seguir a sua vida.

    É aliás curioso que o Estado português, sempre aflito por receitas, ande atrás de simples emigrantes para lhes taxar o salário, quando já pagam impostos no país de acolhimento, mas veja sinais evidentes de extrema riqueza em pessoas com fortunas escondidas e nada faça. Hernâni Antunes é, na verdade, um fantasma para o Fisco lusitano, uma vez que há muitos anos é residente oficial no Dubai e Armando Pereira, com boa parte da fortuna gerida por uma offshore no mesmo sítio (pela mão do pai do genro), nem permite que se saiba a totalidade do seu património.

    Ninguém se muda de armas e bagagens para uma offshore se não tiver algo para esconder. Essa é uma lição que todos já aprendemos e é exactamente para isso que esses instrumentos financeiros existem. Legais e consentidos pelo poder, relembremos.

    Finalmente, e antes que se chegue a qualquer lado na investigação (se é que alguma vez chegaremos), pergunto: o que ganhou o país com a venda da PT pública para uma entidade privada? Nada. Absolutamente nada. Reduzimos a massa salarial dos trabalhadores, colocámos em risco os seus postos de trabalho, aumentámos a fortuna de vários milionários e ainda corremos o risco de ter nova corrida aos fundos de desemprego. Já nem falo no detalhe de o Estado Português deixar de controlar uma área vital como as telecomunicações…

    Este escândalo, mais um, serve também para acabar com um dos dogmas liberais a propósito da gestão pública (em teoria despesista e má) e a gestão privada (em teoria mais rigorosa e eficaz). Não é o ser público ou privado que decide se a gestão de uma empresa é boa. Espero que pelo menos essa parte do assunto fique hoje fechada. No fim, tudo se resume a competência e honestidade, e aqui, como em tantos outros casos portugueses, estamos perante mais um self-made man que veio de baixo e “subiu a pulso”: só que foi a roubar, estão a ver?

    Foi, de novo, a roubar. Colocando em risco os trabalhadores e usando bens (imóveis) que tinham sido adquiridos ao património público português. Foi uma coisa à oligarca russo nos tempos de Yeltsin. Armando Pereira não é um herói nacional. Nem de Vieira do Minho. Nem sequer da sua aldeia natal onde levou o Tony Carreira para alegrar uma festa, oferecida por ele, aos habitantes. Armando Pereira é apenas mais um milionário que roubou, e muito, para ali chegar. E que piorou a vida de quem para ele trabalhou para que o seu lucro fosse maior. Num país decente não voltaria a sair da prisão; em Portugal, provavelmente, vai “repor a honra” nos tribunais.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ronaldo e a bol(h)a

    Ronaldo e a bol(h)a


    Sempre que se abre a boca para falar de Ronaldo é preciso compreender que vamos ofender alguém. Há o grupo de indefectíveis, onde se inclui o meu filho, que me obriga a ver jogos do campeonato saudita; e os outros, que vão lendo a realidade como ela é.

    O ponto de partida para mim, quando penso em Cristiano Ronaldo, é no extraordinário atleta, melhor futebolista português de sempre e, provavelmente, a pessoa que mais deu a conhecer o nosso país pelo Globo. Reconheço, sem grandes problemas, que pessoas que não faziam a mínima ideia onde ficava Portugal, foram ao mapa ver por causa de Ronaldo. Portanto, até ao nível dos conhecimentos de Geografia, até de cada adepto escondido na Micronésia, o nosso madeirense colaborou.

    Ainda assim, depois de década e meia de glória, começa a ser penoso ver esta transformação de ídolo planetário para o “Gajo de Alfama” (dos tempos em que o Ricardo Araújo Pereira tinha piada). As recentes declarações de Ronaldo, puxando para si o mérito de abrir o caminho das Arábias para mais jogadores de renome, qual Vasco da Gama dos petrodólares, soam um pouco mal.

    Fizeram-me lembrar aqueles tempos de terror em que Jorge Jesus, envergando o Manto Sagrado, nos envergonhava a cada conferência de imprensa com as suas bazófias a perder de vista. Certo dia, numa palestra na Faculdade de Motricidade Humana, Jesus, o Poeta da Reboleira, disse que queimara muita pestana para inventar uma Ciência. Assim mesmo, inventar uma Ciência.

    Eu aprecio homens da Ciência, convenhamos. Até porque sem as suas descobertas dificilmente eu teria as bases que trazem o pão cá para casa. Mas, como diria o nosso Costa, vamlá a ver, decidir se os laterais fazem o corredor e os extremos vão por dentro ou, em alternativa, jogamos com um meio-campo a três e dois extremos puros, não é a mesma coisa que descobrir a cura para o cancro. Ou sequer, vá lá, desenvolver uma Via Verde que poupa umas horas de fila na segunda ponte do Feijó. Aliás, neste caso, foram portugueses que inventaram aquilo. Homens da verdadeira Ciência.

    Bem sei que países pouco desenvolvidos fazem do futebol um desígnio nacional. São programas de debate diários em todos os canais informativos sobre o que aconteceu, o que está a acontecer e o que vai acontecer à vida dos artistas da bola. Quando há jogo debate-se o penalti e quando não há fala-se da transferência e dos rumores. Diariamente. São 12 meses por ano com paragem no Natal para podemos ver as fotos dos jogadores a comer bacalhau.

    Também eu sofro com a bola, especialmente quando ela desliza na Catedral, e não me quero por isso excluir da parolice nacional em torno da caixa de Pandora de Ronaldo. Dir-me-ão que a um milionário todo o disparate é permitido. Se Elon Musk, tido por muitos como um génio, pode dizer asneiras em barda, por que não poderá Ronaldo, um milionário com baixa escolaridade, fazer o mesmo? De facto, pode, mas não deixa de ser deprimente.

    Ronaldo deixou de jogar futebol, um jogo de equipa, há uns bons anos, provavelmente antes sequer de chegar à Juventus, e começou então a praticar uma modalidade individual chamada “quebrar recordes”.

    Pelo caminho, ia reclamando com quem não o ajudava a chegar lá e culpando os restantes 10 em cada insucesso. Continua no seu direito, mas, visto daqui, foi quando comecei a olhar mais para o lado. Saber envelhecer no mundo das estrelas planetárias não deve ser fácil, acredito que não; ainda assim, sempre imaginei Cristiano Ronaldo a sair de cena pela porta grande e sem se arrastar nos relvados, como faz agora.

    Cristiano Ronaldo decidiu desafiar o tempo e continuar pela única porta que se abriu: a da ditadura saudita, e da que teimosamente, na seleção nacional, não se fechou.

    Note-se que não faço parte do coro de puritanos que acha que um futebolista não deve validar uma ditadura. Era o que mais faltava. Anda o famoso “Ocidente” a fazer da Arábia Saudita um parceiro privilegiado há décadas, a fechar os olhos aos crimes perpetrados no seu território em nome dos barris de petróleo e esperava-se que um atleta, a quem se oferece uma fortuna incalculável, fosse recusar uma mudança para o deserto? Sabe lá o Ronaldo a História da Arábia Saudita…

    O Macron, presidente francês, sabe certamente e, mesmo assim, disse alto e bom som, num encontro de líderes a propósito das sanções à Rússia, que tinham que pedir aos sauditas que aumentassem a produção. Portanto, deixemo-nos de moralismos bacocos.

    Nós validamos, há muito, todas as ditaduras que são boas para o negócio. E tal como as elites políticas, Ronaldo foi fazer pela vida e entrar num circo a troco de dinheiro. Repito: está no seu direito. Mas tentar convencer toda a gente, um ano depois, que o campeonato saudita é muito bom, ou que abriu o caminho para outras estrelas, é apenas triste. Aquilo que abriu caminho foram as fortunas que os xeques sauditas, que exploram e lucram com os recursos do país, resolveram distribuir um pouco por todo o lado.

    Jogadores em fim de carreira ou ainda com muitos anos nas pernas foram aliciados, numa tentativa de trazer o país para a alta roda futebolística. Um pouco como o que chineses tentaram fazer há cerca de 10 anos, com a construção de uma Superliga, que levava alguns dos bons talentos da Europa, mas modelo ao qual se colocou, entretanto, um travão nos gastos por ser insustentável.   

    Depois do Mundial do Qatar, outra ditadura amiga – os sauditas – tentam, através do futebol, dar uma nova imagem do país. Ronaldo alinhou, e agora são vários os nomes famosos que se juntarão a ilustres desconhecidos.

    Entre eles, Ruben Neves, internacional português, foi claro e objectivo nas suas declarações: saiu da Premier League, onde era um ídolo no Wolverhampton, porque o dinheiro ganho na Arábia Saudita permitiria dar à família uma vida diferente e, provavelmente, garantir o conforto da geração seguinte. Tudo bem, tudo certo. Nada de conversas sobre o “projecto” ou a “Liga Saudita vai ultrapassar a Turquia e a Holanda”, como nos informou Ronaldo, o homem que abre caminhos.

    Para finalizar a palestra, o nosso descobridor, ainda disse que a Liga Italiana também estava morta quando ele foi para lá e que não voltaria para a Europa onde o futebol se tornara muito fraco. Nem Zlatan Ibrahimovic, dono e senhor da maior arrogância que se conhece neste mercado, produz disparates destes. A Liga “morta” colocou três clubes nas meias-finais da Liga dos Campeões no ano em que Ronaldo saiu de lá. E o futebol fraco europeu brindou, pelas camisolas do Celta de Vigo, um empate de 5-0 ao Al-Nassr, um pouco depois destas declarações.

    Não sei se o estimado leitor já viu algum jogo do campeonato saudita, espero que não, mas é mais ou menos como aquelas futeboladas que fazemos aos domingos com o pessoal amigo onde aparece sempre um, que em novo, chegou a jogar nos juniores do Belenenses…

    Ronaldo não volta para a Europa, porque não há quem pague o que ele quer, e nenhuma das equipas de topo, onde ele acha que ainda teria lugar, o quer por perto.

    A continuar por este caminho, sem aceitar o tempo que a todos consome, ainda nos vai fazer esquecer aquele rapaz sem medo que fazia todo o corredor em Old Trafford, e nos encantava, nos tempos de Alex Ferguson.

    É uma pena. Para nós, os adeptos, claro.

    Na verdade, nada que o afecte, lá na bolha onde vive.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O imigrante que não se quer integrar

    O imigrante que não se quer integrar


    De todas as discussões possíveis em torno da morte de Nahel Merzouk, o jovem francês de ascendência argelina baleado nos subúrbios de Paris, há uma que não parece oferecer grandes dúvidas: foi cometido um crime pela polícia.

    As imagens deixam pouca margem para discussão e não esteve, em momento algum, em risco a integridade física do atirador, que se limitou a assassinar um miúdo a sangue-frio. 

    Podia o polícia ter disparado para os pneus e imobilizado o carro, mas escolheu, naquele momento e a poucos metros de distância, balear uma pessoa desarmada que em momento algum colocou em perigo a vida do agressor.

    Esta parte da conversa é importante porque não existe “mas” nesta situação. Não existem atenuantes ou justificações que suportem a acção policial. Nem mesmo os distúrbios e a revolta da população que se seguiram a este assassinato podem, a posteriori, servir para validar as balas no peito de Nahel.

    É certo como o destino que, a cada abuso das forças (supostamente) de segurança, se acabe a discutir questões raciais ou de integração de imigrantes. É um tema que me revolta só por si e tende a ficar escatológico, à medida que os dias sob o crime vão avançando.

    João Miguel Tavares disse, a propósito deste caso, que a integração de um imigrante depende do país de acolhimento, mas também da vontade que este tem de fazer parte dessa cultura.

    Miguel Sousa Tavares, de uma forma muito mais radical, disse que os argelinos em França não se querem integrar, de todo, e que estão lá para destruir a França por dentro (Nahel era de ascendência argelina e marroquina e vários jovens de ascendência árabe juntaram-se aos protestos).

    Vamos, antes de mais, meter um ponto de ordem à mesa: para o que aqui se discute, é absolutamente irrelevante saber se Nahel estava bem integrado, se cantava a marselhesa ou se vibrava mais com Mbappé ou Mahrez.

    A única coisa que importa, para este caso, é que um jovem de 17 anos, desarmado, foi assassinado pela polícia sem ter feito nada que o justificasse. Ponto final.

    Dito isto, como é óbvio, a cada dia de tumultos perguntava-me quando é que viria o tema da “integração”.  É sempre engraçado ouvir a opinião de pessoas que viveram toda a vida no seu país de origem a falar sobre a comunidade A ou B que não se quer integrar no sítio X ou Y.

    Reparem que, para início de conversa, discute-se a integração de Nahel como se ele não tivesse nascido em França. Este é sempre o ponto de partida para os ataques raciais e xenófobos. Podemos ir na terceira ou quarta geração de nascidos no país de acolhimento e ainda nos referimos a eles como imigrantes. Talvez fosse bom, para o tema da integração, deixarmos de lhes chamar isso, vá lá, ao fim de duas gerações.

    O que eu perguntaria a João Miguel Tavares e a Miguel Sousa Tavares, se pudesse, é se eles pensam que algum imigrante escolhe viver o inferno que é estar à margem da sociedade que o acolheu ou onde nasceu.

    Pensarão, quiçá, que alguém prefere viver em guetos, ter mais dificuldade no acesso aos empregos e às melhores escolas? Haverá algum filho de marroquinos, senegaleses, argelinos ou tunisinos, em Franca, que prefira uma vida de segregação ao mundo de oportunidades de que outros dispõem? Perdoar-me-ão, mas, de uma maneira geral, não é assim que a coisa funciona. 

    Não importa se há “ódio visceral” (como sugeriu Sousa Tavares) entre franceses e argelinos, por causa da guerra da independência, ou se os árabes seguem outras práticas religiosas. Alguém acredita que um destes miúdos dos subúrbios, onde se amontoam as diferentes comunidades, escolheria entregar pizzas e estar longe da escola se tivesse outras oportunidades e melhores perspectivas de vida?

    Sentados no sofá de nossa casa, no bairro onde sempre vivemos, julgamos compreender como funciona a vida de um deslocado. Sim, Nahel era um deslocado no país de nascimento. Tal como muitos outros com ascendência africana que, por norma, não são levados em grande conta até que marquem um “golito” ou defendam qualquer coisa num campeonato do mundo de futebol.

    Há muitos anos, nos meus primeiros tempos de estadia na Suécia, tive uma chefe de projecto excepcional. Trabalhava no sistema de airbag da nova geração de “Volvos”, muito antes da corrida ao lítio, e esta pessoa, sempre muito simpática, cordial e incentivadora, foi estabelecendo comigo uma relação profissional que me agradava.

    Foi a primeira vez que ouvi sequer um elogio ao desempenho profissional. Nos meus anos de Autoeuropa, aqui pelo burgo, não sabia que as pessoas também podiam ser elogiadas no trabalho.

    Não tinha grandes pontos de contacto naquele país e, como perceberão, era bom ir fazendo amizades no trabalho. Até porque não tinha outras por aquelas paragens. Nesta fase da minha vida fazia tudo para me integrar nos hábitos, cultura e tradições do país de acolhimento. 

    Com o passar dos meses foi dizendo, essa minha colega, que gostava que eu, e a minha companheira, fôssemos jantar lá a casa com a família dela. Imaginei que se estivesse a criar uma relação para lá das paredes do escritório. Uma vez mais repito, não conhecia ninguém e os tempos passados para lá do horário de trabalho não eram de grande actividade social. Era de longe a parte mais difícil na clássica “integração”.

    Lembro-me sempre de um velhote simpático, que me alugava uma casa e me perguntava de quando em vez: “E então, já fizeste amigos suecos? Deduzo que seja difícil. O meu grupo de conhecidos é o mesmo desde a creche. Não entra ninguém novo e quando sai algum, é por que morreu”. Nesta fase eu ainda me ria e pensava que era ele, aquele velhote, o pessimista de serviço.

    group of people tossing wine glass

    Combinámos a data do jantar e eu fui à loja do Estado (Systembolaget), único sítio onde se vende um tinto digno desse nome, comprar qualquer coisa para não aparecer com as mãos nos bolsos. Na véspera do dia – é bom de ver que os suecos combinam tudo com semanas de antecedência e espontaneidade é coisa que só se vê nos filmes – a minha anfitriã manda-me uma mensagem dizendo que ela e o marido achavam que afinal não era boa ideia jantar. E assim ficou.

    Seguimos a relação profissional sem grandes conversas sobre o tema e sabendo que os elogios ou gosto na minha companhia se resumiam ao que, aparentemente, fazia ou deixava de fazer no sistema de airbag.

    O produto lá chegou ao mercado, a Volvo continuou a ser um dos fabricantes mais seguros do mundo e eu segui para outro projecto, cruzando-me aqui e ali com aquela personagem e não trocando mais do que um “olá, tudo bem?” de ocasião. 

    Situações destas repetiram-se – umas mais chatas, outras mais subtis – até que percebi, ao fim de cinco anos a tentar, que aquela parte da sociedade seria mais difícil para não me sentir só. Foi quando comecei a procurar outros portugueses na cidade, latinos de diferentes países da América do Sul e estrangeiros de outros países europeus, com quem fui estabelecendo relações de amizade ao longo dos anos e com quem consegui formar uma rede social nos 12 anos seguintes.

    Nunca vivi num subúrbio mal frequentado de Gotemburgo, nunca andei a queimar nada ou a exigir que cobrissem a pele. Nunca roubei (ok, tirando aquela colecção do Seinfeld), nunca maltratei ninguém, nunca tive qualquer comportamento daqueles clássicos que atribuem, os “opinadores” de sofá, aos que “não se querem integrar”. E, mesmo assim, quando olho para trás, vejo chilenos, portugueses, espanhóis, colombianos, argentinos, ingleses, mexicanos. Não vejo um único sueco. Nada. Zero.

    people sitting on chair in front of table with candles and candles

    A minha dúvida é, se tivesse nascido num subúrbio e crescido com a cultura de “nós e eles”, teria tentado sequer durante cinco anos fazer parte da sociedade de acolhimento? Provavelmente não. O mais certo era chegar aos 13 ou 14 anos e compreender que já estava à margem da realidade dominante e, inevitavelmente, escolher o caminho onde a discriminação não existe: entre os “meus”.

    Tem culpa o Nahel da guerra da independência da Argélia e dos ódios criados, quase 60 anos antes do seu nascimento? Ou da organização dos subúrbios de Paris onde os imigrantes são despejados em guetos? Ou do passado colonial de Franca? Ou do racismo constante dos europeus em relação aos africanos que exploraram durante séculos? Não, não tem culpa de nada disso.

    Nahel Merzouk, tal como muitos outros imigrantes que nem o privilégio de serem chamados franceses têm, limitou-se a nascer num daqueles sítios onde a probabilidade de sucesso reduz drasticamente. Está nos livros. As contas estão feitas.

    No caso dele, nem chegou a um trabalho mal pago ou uma vida precária. Foi logo baleado na rua por um assassino que nunca, jamais, deveria ter acesso a uma arma de fogo.

    O facto de os advogados do polícia já terem angariado mais de um milhão de euros, prova, entre outras coisas, como a sociedade está doente e as prioridades, comprovadamente, trocadas.

    Para onde caminhamos, nesta Europa com saudades dos muros?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aumentem os salários! Ontem já era tarde

    Aumentem os salários! Ontem já era tarde


    Cheguei à cantina e pedi o iogurte do costume. Não tem nada de especial: um fio de mel, três ou quatro nozes e já está. Na altura de pagar, reparei que o preço tinha subido de 3,5 para 4,5 euros. Já achava o preço de ontem desagradável, hoje nem vos digo.

    Perguntei à senhora que me servia o porquê da repentina subida de preços e ela disse: “Sabe como é… a Ucrânia!”.

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    Enquanto ia contando o número de colheres que aquele iogurte me proporcionava, pensava nas costas largas da Ucrânia que não mandavam para ali leite, nozes ou mel.

    A propósito desta temática, num programa de debate na RTP com quatro conceituados economistas, Francisco Louçã defendeu que as cadeias de distribuição aproveitavam este momento para aumentar a sua margem de lucro.

    É um facto que os custos de produção são hoje mais baixos do que eram antes do início da guerra, mas, no entanto, não se nota uma redução no preço dos produtos finais. Segundo Louçã, depois de 20 anos em que as regras da concorrência não permitiram aumentos disparatados, chegou agora o momento das empresas aproveitarem a conjuntura actual para dispararem as suas margens. Isto contraria a previsão do Banco Central Europeu que nos assegurou, no ano passado, que a inflação seria temporária.

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    Identificado que está o problema, chegamos à terapia. De momento, discute-se se devemos continuar a aumentar as taxas de juro para controlar a inflação ou, se por outro lado, devemos repensar e compensar essas subidas na despesa das famílias com o aumento dos salários reais.

    Sandra Maximiano, professora do ISEG, também presente neste debate, defendeu algo que já escrevi em outros textos aqui no PÁGINA UM: a aplicação cega da receita de Christine Lagarde – aumentar as taxas de juro em toda a Zona Euro – não tem o mesmo impacto em diferentes países.

    Em Portugal, onde a população é mais pobre e as famílias mais carenciadas – é bom não esquecermos que 75% das pessoas levam para casa menos de 900 euros líquidos –, não há a mesma capacidade de aguentar o aumento da despesa mensal como em outros países mais ricos da União Europeia. Voltamos sempre à discussão de medidas que visam reduzir o consumo em famílias que já pouco ou nada consomem. Aliás, é um tema recorrente falarmos em famílias portuguesas, como se entre elas, as carenciadas fossem uma minoria.

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    Tenho sempre alguma dificuldade em dizer isto, mas parece-me que continuamos a considerar que Portugal é um país onde a classe média, à escala europeia, tem algum peso. Não tem. Se olharmos e compararmos com os países mais desenvolvidos da Europa, grande parte da população portuguesa nessa escala seria pobre.

    Percebendo então que a inflação não é temporária, que os preços dificilmente voltarão aos valores pré-guerra e que as taxas de juro não regressarão ao mítico 1%, e perdoem-me por esta parte, mas seria obrigado a concordar com Luís Montenegro. Disse o líder do maior partido da oposição que era altura de arriscar e desafiar a Economia: “Temos de subir os salários em Portugal”.

    Dir-me-ão que depois de 20 anos a defender o aumento de salários indexado à produtividade, chegou a vez do PSD, através do seu líder condenado à travessia do deserto, dizer o contrário. É preciso aumentar por decreto. Estaremos perante uma tentativa eleitoralista de Montenegro, concordo, ainda assim correcta.

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    Não há outro caminho. De facto, Portugal não pode continuar a ser o país dos baixos salários para onde as multinacionais se dirigem na procura de mão-de-obra qualificada a baixo custo.

    É preciso que o Estado, depois de arrecadar impostos extraordinários e as empresas verem as suas margens de lucro subirem, tenham a capacidade e honestidade moral de dividir essas receitas com os trabalhadores, tanto na Função Pública como no setor privado. Esta é uma oportunidade histórica de tornarmos Portugal um país menos desigual.

    Quando até o líder do PSD nos diz que é tempo de arriscar e subir os salários, percebemos que o Apocalipse está próximo.

    Aumentem, então. Ontem já era tarde.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António

    A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António


    O Bloco de Esquerda (BE) deixou de me motivar no período que se seguiu ao Miguel Portas, Daniel Oliveira e Ana Drago. Entrou numa fase de lideranças errantes, e Catarina Martins sempre foi, na minha opinião, um erro de casting. A um político não basta passar a mensagem certa, tem de saber passá-la sem irritar o ouvinte.

    Catarina Martins falhava, habitualmente, nas duas vertentes. Ainda assim não deixei de acompanhar a vida do partido. Posso não ser eleitor do BE, mas sou eleitor de esquerda e, portanto, tudo o que acontece entre o cada vez mais centrista PS e a extrema-esquerda do MRPP me interessa. Extremismos à parte, espero ter essa parte ficado implícita.

    Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES (2014-2015), fiquei a conhecer Mariana Mortágua. Tinha tudo, achei eu nessa altura, para ser uma política de sucesso. Estudava os temas, falava de forma calma e ponderada, usava argumentos lógicos e facilmente perceptíveis pelos eleitores, sem entrar em populismos baratos. Esta parte é importante num político que quer algo mais do que um esporádico bom resultado eleitoral.

    O pouco que fui vendo da vida do BE, desde essa comissão de inquérito foi, essencialmente, para perceber para onde caminhava Mariana Mortágua. Nunca percebi, que me perdoem os seus acólitos, como foi possível manter tantos anos Catarina Martins na liderança, quando se tinha Mariana Mortágua ali ao lado.

    O discurso de uma e de outra é a diferença entre mudar o canal ou ficar a ouvir até ao fim. Depois de algumas eleições catastróficas, e, julgo, quase 10 anos de liderança, Catarina cedeu o lugar a Mariana. Em boa hora.

    Este fim-de-semana, numa sardinhada do BE, Mariana Mortágua deixou duas ideias simples, mas fortes, dada a urgência de ambas. A primeira relacionada com as taxas de juro e com a inoperância do Governo português perante os aumentos do Banco Central Europeu (BCE).

    Com salários que rondam os 800 ou 900 euros, algumas famílias viram a prestação da casa subir de 400 para 700 euros. Não é preciso ser um matemático de eleição para perceber que não se vive assim. Na melhor das hipóteses, sobrevive-se.

    Como pode um país cada vez mais pobre, como Portugal, suportar políticas de aumento da despesa familiar para controlar a inflação? Como é que se pode aplicar a gregos, portugueses e romenos a mesma estratégia que seguem alemães, belgas e holandeses? E por que razão é apenas Mariana Mortágua que repete isto, sugerindo que os bancos, com lucros recorde, absorvam os aumentos em vez de sacrificarem as famílias. Tudo isto é tão óbvio que nem deveria dar argumentos para uma conversa.

    A outra mensagem, relacionada com a Educação, foi a de exigir que as creches fossem incluídas no sistema público de ensino e tal, como as escolas, fossem gratuitas em cada bairro e cidade. Algo que afirmo há pelo menos 14 anos, desde que percebi, na minha vivência de emigrante, que os impostos podem ser usados numa Educação verdadeiramente universal. Da creche até ao Ensino Superior, as mesmas oportunidades para o filho do padeiro e do médico. Tudo gratuito. É isso, e apenas isso, que faz um sistema de ensino universal.

    Uma vez mais, porquê apenas Mariana Mortágua, entre duas sardinhas e um copo de vinho tinto, fala sobre isso? Poucas coisas são tão importantes para um país pobre e envelhecido do que o estímulo à natalidade. As creches gratuitas são parte importante do plano.

    Gosto quando a esquerda fala sobre temas clássicos da esquerda sem se perder em discussões de unicórnios ou casas de banho, por onde o Bloco resolveu andar nos últimos anos. Estes são temas actuais, importantes e prioritários. Ditos de forma perceptível e sem grandes dramas ou demagogias. Mariana não parece encarnar um personagem, limita-se a dizer o que pensa. Ou, pelo menos, é essa a sensação que passa.

    No mesmo fim-de-semana, nas Caldas da Rainha onde há anos se recolheu, António José Seguro deu um ar da sua graça e parece, anos depois da rasteira que lhe passaram, estar disposto a regressar às lides políticas. Sobre Seguro, voltarei noutro texto porque há algo mais para dizer, mas, para já, fico com a impressão de que a esquerda portuguesa se começa a mexer numa direcção curiosa, para o período de oposição que se adivinha.

    Depois de tutti-fruttis, Catarinas, Costas, Galambas, Temidos e Cabritas, o futuro parece apontar para algo mais suportável, para quem não vota em Montenegro, Ventura ou o novo Cotrim (ainda não lhe decorei o nome).

    Já só falta o João Ferreira. Mais década menos década, está ai a rebentar.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.