Etiqueta: Tiago Franco

  • Como encher 12 horas de emissão?

    Como encher 12 horas de emissão?


    Chegámos finalmente ao dia das decisões. O dia em que as televisões sofrem a bom sofrer na procura de material para encher 12h horas de emissão, até que os resultados sejam conhecidos.

    À hora a que escrevo já recolhi uma enormidade de informações que podem, quiçá, ajudar alguns indecisos. Ou então não.

    Marcelo Rebelo de Sousa votou em Celorico de Basto, como é habitual, a terra onde tem amigos e de onde era a sua avó Joaquina. Rui Rio votou na escola do Bom Sucesso, mesmo ali ao lado de casa no Porto. Vai almoçar, ficou a dúvida se seria carne ou peixe, e depois seguirá para Lisboa por uma das três auto-estradas possíveis, desenhadas num paralelo surreal para um percurso de 300 quilómetros e que, como se percebe, são bem mais úteis para o país do que o descongelamento das carreiras dos professores.
    Alguém lhe disse que era mais barato vir na TAP, mas ele recusou para não deixar cair a nódoa no pano do populismo mesmo a chegar à meta.

    O Chicão é meu vizinho, e eu não sabia. Julgo que é uma notícia relevante para todos vós. Foi votar no Lumiar e seguiu para um repasto com a família, composto de carne bem selvagem caçada com a ajuda de perdigueiros na mata de Monsanto. Mais tarde vai à missa, em princípio, pedir ao Criador que lhe safe a pele quando o táxi se reduzir a uma trotinete.

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    Já Ventura ensaiou o voto, sim, ensaiou, porque saiu e entrou novamente para dar tempo aos repórteres de imagem de captarem aquele belo fato e gravata. Quantos de nós, portugueses de bem, não damos o passeio matinal de fim-de-semana equipados com Armani?

    Enquanto fazia um compasso de espera, a jornalista da CNN informava-nos que Ventura chegara ao Parque das Nações, à sua secção de voto, ao volante de um Mercedes.

    Percebe-se agora a embirração com a malta do RSI. Desde pequeno que o André não gosta de partilhar brinquedos. Depois do almoço com a família e dos telefonemas com a Le Pen, conta também ir à missa para fazer a penitência. Não esclareceu se seria na mesma igreja do amigo Chico.

    Costa já votou há uma semana e por isso foi apenas passear os cães junto às câmaras da RTP. Não vi saquinhos na mão e por isso, deduzo, que o resultado da caminhada tenha ficado espalhado na calcada portuguesa. Mas é especulação, admito. Inês Sousa Real podia vir atrás a limpar de forma discreta.

    Já mais ofuscante foi aquele casaco que a líder do PAN usou para se proteger do frio. Eram penas de pato, Inês? Daqueles que acabam envoltos em arroz e rodelas de chouriço? Vá lá que não comemos cães.
    João Cotrim Figueiredo conseguiu hoje o seu melhor e mais sincero momento de campanha. Disse que estava muito bem disposto, que lá fora havia sol e que os confinados podiam votar. Tudo verdade, tudo real, pura liberdade. Muito bem, João.

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    Catarina Martins deu um salto a Vila Nova de Gaia para meter o voto na urna e aproveitou o momento para fazer um pouco de campanha, mantendo o mesmo tom ensaiado de discurso dos últimos 20 dias. Denota alguma dificuldade em sair da personagem.

    Já Jerónimo de Sousa parece não conseguir entrar na personagem, por mais que tente. Estava tão cansado depois de votar que, ofegante, conseguiu a custo prestar declarações. Simpatizo com Jerónimo e por isso desejo que se recupere o quanto antes. E já agora, assim que estiver na plenitude física que os seus 75 anos permitem, espero que se reforme e aproveite o que a vida tem para lhe oferecer, para lá da liderança do PCP.

    Todos os líderes políticos disseram hoje, a uma só voz, que era seguro ir votar e que mesmo os infectados deveriam sair de casa, a bem da democracia.

    Não poderia estar mais de acordo com eles. Gostava apenas que, amanhã, fosse qual fosse o governo, mantivessem essa coerência e deixassem cair as regras de segregação, com testes e certificados, que impõem aos emigrantes em cada regresso a casa.

    Para lá do desfile e palavras de ocasião com que as televisões tentam aquecer o dia, há uma informação de facto relevante. Segundo a última sondagem (Pitagórica), o terceiro lugar neste momento pode ser do Chega, BE ou CDU, algo que parecia garantido para Ventura nos últimos 15 dias. Segundo a mesma sondagem, ao PS dificilmente escapará a vitória, restando saber o número de deputados. Neste momento o melhor cenário, em que não acredito, prevê 113.

    Volto depois de serem conhecidos os resultados.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo quarto episódio da Recensão Eleitoral (30/01/2022) – Como encher 12 horas de emissão?


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Reflectir em voz alta

    Reflectir em voz alta


    Uma vez que o dia se presta a tal, resolvi reflectir. Coincidentemente coloquei essas reflexões numa folha de papel e espero, com esse gesto, não ferir susceptibilidades ou sequer incorrer em ilegalidades. A justiça é fulminante em Portugal, nem pensar em meter-me em tais alhadas.

    A primeira coisa que me passou pela cabeça foi que, afinal, corri o risco de ter votado quase em branco. Não sendo eu um eleitor do centrão (eu sei, ninguém adivinhava) e podendo o namoro entre Costa e Rio dar casamento, ficam os pequenos partidos numa situação de quarta roda num sidecar. Ali a roçar a inutilidade.

    Alguns saudosos da AD falarão em estabilidade, outros, lembrando-se da bazuca, percebem que este cenário deixa a raposa a tomar conta do galinheiro. Ou, explicando de uma forma mais visual, os boys a distribuírem o dinheiro pelas sequiosas clientelas.

    O facto de nem Costa, nem Rio, atormentados pelas sondagens, fecharem a porta a um entendimento entre eles, deixa-me algo inquieto. Os líderes de PS e PSD chegaram ao último dia de campanha sem fecharem a porta a qualquer entendimento, à esquerda, ao centro e à direita. Confesso que, numas eleições com a particularidade destas, esperava entrar no dia de reflexão sabendo os cenários possíveis. Assim, votamos todos sem saber bem em quê.

    Outra nota de destaque em dia de reflexão vai para o cordão sanitário estabelecido por António Costa na direcção do Chega, pela mão cheia de nada de Rui Rio sobre uma eventual coligação e, pior, pela tentativa algo ridícula dos comentadores da CNN, ontem, fazerem uma operação Javisol, lava mais branco, no partido de André Ventura.

    Rui Rio assumiu que não levará o Chega para o Governo mas que poderá negociar um acordo. Ventura já disse que só valida um governo do PSD se for ministro. O que faz todo o sentido, num partido unipessoal que serve, essencialmente, a ambição de Ventura, independentemente da ideologia necessária. Se para a semana as redes sociais se indignarem com pokemons, Ventura cavalgará na onda do Pikachu, se isso lhe valer mais alguns votos. O homem quer ser ministro de qualquer coisa, não quer defender ideias. Até porque não as tem.

    Na CNN compara-se esta teimosia (de deixar o Chega fora de acordos de governação) com a geringonça entre PS, PCP e BE. Dizia um rapaz por lá, cujo nome não me lembro, por que razão não pode Rio negociar com a extrema-direita, mas Costa pode fazê-lo com a extrema-esquerda? Bom, a resposta a isto é relativamente simples. Primeiro porque não existe extrema-esquerda no parlamento. Existe esquerda.

    Depois porque PCP e BE, por mais divergências que tenham em temas económicos, europeus ou de Estado Social, não são partidos xenófobos, racistas e contra a Constituição da República. No fundo, a realidade é que, por mais lixívia que se passe na bandeira do Chega, não há maneira de tirar aquele mofo da década de 30 do século passado. E deixá-los longe de qualquer centro de decisão era o mínimo que um democrata deveria querer.

    Por fim, lembrei-me das próprias sondagens que saíram ontem, a habitual tracking poll da CNN e a da SIC/Expresso, com resultados ligeiramente diferentes, que deixam no ar a extinção do CDS, com zero deputados, tal como Livre e a redução do PAN para apenas um.

    Pergunto-me, num país onde habitualmente metade da população não vota, seja porque é dia de praia ou por puro desinteresse, que fiabilidade devemos colocar nestas sondagens? Por outro lado, que influência terão os 10% da população que, em casa, estão confinados por causa do covid? Quantos votarão?
    Veremos domingo.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo terceiro episódio da Recensão Eleitoral (28/01/2022) – Reflectir em voz alta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A ultrapassagem que vem de Leste

    A ultrapassagem que vem de Leste


    Ao fim de sete dias de empates técnicos nas sondagens, os discursos finalmente mudaram. Costa deixou de pedir a maioria absoluta corrigindo um erro que não devia ter cometido e Rio, saindo da posição de humildade onde já esteve, deu mais um empurrão ao adversário dizendo que era tempo de este aprender a perder. Os estrategas da campanha de Rui Rio devem ficar com cólicas de cada vez que o deixam sozinho por mais do que 5 minutos.

    É curioso perceber como o tracking poll vai influenciando a campanha. Isto apesar de os dados revelados pela CNN diariamente terem uma margem de erro de mais de 10%, já que apenas 150 pessoas variam na amostra diária. Mas lá que as campanhas dançam ao ritmo das sondagens, já ninguém duvida.

    Um dos temas mais marcantes destas legislativas, trazido para o debate pela direita em geral, tem sido a ultrapassagem dos países de leste a Portugal e a nossa crónica posição na cauda da união europeia.
    Há duas coisas que me irritam particularmente nessa discussão. Desde logo que se refiram a eles como “ex-países de leste”, como se, entretanto, se tivessem movido para as Caraíbas. Depois, a demagogia e populismo usados para explicar essa ultrapassagem.

    Liberais culpam o Governo pelo Estado Social e carga fiscal. O PSD diz que as leis do trabalho não são flexíveis e competitivas. O CDS culpa a falta de produtividade na lavoura e o Chega, imagino, culpará os emigrantes que chegam ao paraíso para nos resgatarem aqueles empregos altamente aliciantes nas obras e nas limpezas.

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    Findo este discurso atira-se com um “a geração mais qualificada de sempre” e “emigração”, mexe-se bem e temos uma receita de populismo e sound bites, que explica coisa nenhuma sobre a ultrapassagem, mas que deixa, na tal geração mais preparada, a sensação que aconteceu uma calamidade e por isso, ficámos para trás.

    Ora, de facto aconteceu uma calamidade. Chama-se “Escola Pública”.

    Aquilo a que Portugal chama a geração mais qualificada de sempre representa, na verdade, 25% de frequência universitária entre a população com mais de 25 anos e menos de 64. Estónia e Lituânia, dois daqueles países que aparecem sempre como exemplo do nosso fracasso, caminham para metade da população (42% e 44%, respectivamente em 2020) com frequência universitária.

    A imagem que nos tentam passar dos países do leste europeu, como se fossem de terceiro mundo, é pura e simplesmente falsa e por aí começa a nossa frustração, ao não percebermos de facto com quem estamos a concorrer.

    O índice de educação, publicado anualmente pelas Nações Unidas, que relaciona o tempo expectável na escola com o tempo que efectivamente se passa na escola, tinha a Lituânia e a Estónia no top 25… em 1990. Portugal ocupava por essa altura uma honrosa 63ª posição, lado a lado com a Mongólia, Panamá, África do Sul e Bolívia.

    Em 2019, Lituânia, Estónia e, já agora, Letónia e Polónia, continuavam pelo top 25 e Portugal, galgara cerca de cinco posições. Era agora quinquagésimo sétimo, em parceria com Tonga, Grenada e Bahrain.
    Portanto, é com isto que estamos a lidar e é esta a razão para o nosso atraso. A “melhor geração de sempre” que chegou a Portugal em 2022, já tinha passado pelo Báltico no século passado. Logo, assim que entraram no mesmo espaço económico, estranho era se não ultrapassassem um país com um nível de educação muito mais baixo.

    A dúvida agora é o que fazer daqui para a frente? Demorámos 30 anos a recuperar os níveis de educação para algo parecido com a primeira divisão europeia (embora continuemos atrás da maioria). Deve a aposta ser toda na educação universal que só o pode ser se for oferecida no serviço público a troco da contribuição fiscal? Apostamos em pagamento de salário digno aos professores? Ou jogamos na roleta de um sistema misto onde o estado arca com os custos públicos e privados, mas os alunos só têm acesso garantido ao que for público com investimento reduzido?

    A História explica.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo segundo episódio da Recensão Eleitoral (27/01/2022) – A ultrapassagem que vem de Leste


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os ofendidos de direita

    Os ofendidos de direita


    Boa parte desta campanha eleitoral joga-se no “pós-jogo”. Explico. Por cada vira que António Costa dança no Minho, por cada três minutos de conversas de mercado de Rui Rio, ou por cada declaração de Ventura sobre o RSI, discute-se uma hora entre os comentadores de serviço nos quatro canais noticiosos.

    A dinâmica imposta à campanha pelas televisões transforma-se em entretenimento de horário nobre. Os líderes partidários fazem declarações de segundos e os comentadores enquadram-nas durante horas. Num país onde adultos conseguem discutir dias a fio a vida de Jardel e Bruno de Carvalho numa casa na Venda do Pinheiro, ainda há 50 000 almas que, por exemplo, assistem à CNN todos os dias (cerca de 2,2% de share). Se somarmos aos que se espalham pelos restantes canais, podemos facilmente assumir que mais de 100 000 pessoas, diariamente, vão formando opinião com o que por ali ouvem.

    E é aqui que a batalha me parece incrivelmente desigual. Os comentadores afectos à direita estão em larguíssima maioria. Ao fim de 12h só consegui contar 5 de esquerda, entre todos os canais. 5,5 se pensar em Pacheco Pereira, uma espécie de estrumpfe chateado dentro da sua própria casa. Honestamente não encontro uma explicação para isto, mas compreendo que a influência exercida não tem contraditório.

    Ontem, na CNN, depois de António Costa ter sido entrevistado, quatro comentadores criticaram a posição do atual primeiro-ministro. Ou porque repetia o discurso, ou porque não esclarecia as alianças, ou porque se associava novamente a PCP e BE. Já Rui Rio continuava muito bem e a presença de Luís Montenegro, ex-opositor, mostrava unidade no partido. Quando o PSD ultrapassou por 1% estava à frente, quando o PS ficou a 4% de distância, já era empate técnico. Os intervalos de confiança aplicam-se apenas para um lado, ao que parece.

    Pedro Silva Pereira, em debate com Paulo Rangel (no mesmo programa), acusou o painel de ser escolhido a dedo para emitir aquelas opiniões. Sebastião Bugalho, ex-candidato ao parlamento nas listas do CDS e amigo de jantarada de André Ventura, ficou muito ofendido. Mafalda Anjos, diretora da Visão, também. Inês Serra Lopes, antiga diretora do Independente, jornal associado à direita, também. E Rui Calafate, que classifica Ventura como um “killer” nos debates e que vê, na gritaria, uma substituição do debate, também ficou incomodado. Em resumo, num painel onde o CDS tem mais apoio do que votos nas urnas, Pedro Silva Pereira constatou o óbvio.

    E, se alargarmos o espectro para as restantes televisões, percebemos que os opinion makers que ajudam os indecisos a deixarem de o ser, estão largamente ao serviço da direita política. Resta saber quantos votos ganharão, num dia em que a direita, à excepção do Chega, se afundou um pouco mais.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo primeiro episódio da Recensão Eleitoral (26/01/2022) – Os ofendidos da direita


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ligeira curva à esquerda

    Ligeira curva à esquerda


    Olhar para a tracking poll, animada com a evolução diária das intenções de voto, tornou-se o meu café da manhã. Há alguma emoção naquela corrida colorida, com margens de erro. Hoje as notícias não são boas para a direita. O PSD volta a cair e a IL dá um trambolhão assinalável. O Chega segura-se nos 6%, e apenas o CDS regista uma pequena subida, mas ainda em torno do 1%.

    O caso do CDS parece ser o de explicação mais simples. Francisco Rodrigues dos Santos tem uma missão espinhosa entre mãos, e vê o eleitorado fugir para a esquerda e para a direita. Aquela base de votantes de classe média alta que quer menos impostos, a mesma escola privada e mais seguros de saúde, foge para a IL. Já a fatia mais pobre, de visão mais reduzida da realidade, e com uma necessidade maior de sangue no imediato, corre para o Chega, uma vez que a facção Nuno Melo não venceu nas internas do partido.

    De modo que, ao bom do Francisco, sobraram os caçadores e os devotos do Colégio Militar. Não serão assim tantos.

    Já no caso de PSD e IL, a explicação pode ser mais complexa, mas eu aposto na leitura dos programas. Entre os indecisos que provocam as variações nas intenções de voto, alguém deve ter andado a ler o que, afinal, PSD e IL escreveram nos programas que apresentaram ao país.

    Ontem, por exemplo, num debate entre as cabeças de lista por PS e PSD em Coimbra, Marta Temido e Mónica Quintela, respectivamente, a segunda, entre gritos e interrupções, afirmou que o PSD não queria privatizar a saúde. Ora, se tiverem paciência de consultar o dito programa, está lá, nas páginas 104 e 105, uma mudança no financiamento do Sistema Nacional de Saúde (sistema, não serviço, note-se), passando este também por privados (certamente aumentando as PPPs existentes).

    Rui Rio, que tem estado bem na campanha, resolveu também aderir à modalidade de dar tiros nos pés, afirmando que a Justiça em Portugal se tornou muito menos efectiva desde o 25 de Abril.

    Pode parecer ao leitor um disparate comparar o sistema de justiça de uma ditadura com o de uma democracia, mas, se pensarmos bem, Rio até tem aqui estrada para andar.

    Hoje os mega-processos por corrupção demoram anos, décadas e, no caso do visado ser rico, vamos de recurso em recurso até à prescrição final.

    Já no tempo da ditadura a coisa era mais simples. A PIDE entrava nas casas a meio da noite e o acusado, antes de o ser, já estava nos calabouços da António Maria Cardoso ou a fazer sauna no Tarrafal. Não sabemos se chegava a haver Justiça, mas, em termos de velocidade de processos, eram imbatíveis.

    Imaginemos, por exemplo, todos aqueles acusados do PSD que andavam a gravitar no BPN, a dar lucros de 127% a Cavaco Silva, ou a assinar contratos para off shores em Porto Rico. Como seria o seu julgamento em 1965? Também gostava de ver…

    brown and gray wooden tables and chairs

    A queda maior da IL também pode estar relacionada com a leitura do programa. São 614 páginas e só ao fim de uma semana é que os indecisos chegaram a meio. Nomeadamente à página 308 onde se lê, cito:

    “ACESSO UNIVERSAL A ESCOLAS DE QUALIDADE E LIBERDADE DE ESCOLHA DA ESCOLA

    • Estabelecer um regime de cheque-ensino, em que as pessoas podem escolher a escola, e o Estado paga às escolas de acordo com os alunos que as frequentem. Neste modelo, a escola pública coexiste com escolas privadas e sociais que queiram aderir ao sistema, e todas passam a estar acessíveis a todos os alunos, porque todos os alunos são financiados por igual.”

    Ora, em termos de chavão está óptimo, e como slogan de campanha também me parece forte. “Escola universal para todos” é um best seller.

    Só há dois problemas. O primeiro é que é o Estado que paga a escola privada, entrando naquele conceito muito caro à direita que diz “menos Estado, a não ser na hora de receber a factura”. O segundo é que a escolha não é verdadeiramente do aluno ou dos pais. É da escola. Ou seja, o estabelecimento de ensino pode ser pago por todos, mas só escolhe alguns, como tal, tonar-se difícil estabelecer o conceito de escolha livre para todos quando há um porteiro que só deixa passar os amigos do bridge e da canasta.

    Entre o barulho das luzes e as pílulas de Viagra, começa a assentar a poeira, e as intenções de cada partido vão ficando mais límpidas. E ainda bem.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo episódio da Recensão Eleitoral (25/01/2022) – Ligeira curva à esquerda


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O debate das rádios e o desespero dos guiões

    O debate das rádios e o desespero dos guiões


    Escapou-me o debate das rádios (Antena 1, TSF e RR) e, agora que o ouvi, compreendo que dei duas horas da minha vida para ver uma sequela de categoria B. Lembrei-me da minha meninice, para usar uma expressão da minha avó alentejana, e daquela tarde na Academia Almadense a torcer pelo Ivan Drago, iludido pela ingenuidade da tenra idade e das mensagens políticas formatadas em guiões.

    Depois de assistir a mais de 30 debates, fiquei com a sensação de que há muito tempo nada de novo nos é dito. A repetição do discurso e a fuga às questões colocadas pelos jornalistas são as principais armas de retórica.

    Mesmo sabendo que cada partido tem uma mensagem para passar, torna-se insuportável, ao fim de dias e dias de tempo de antena, ouvir intervenções que começam com um “vou já responder à sua pergunta, mas antes permita-me que…”.

    Deste lado apetece-me gritar “epá, responde só à pergunta!!!”.

    Já são tão raras as ideias válidas partilhadas e discutidas que, qualquer deriva no discurso, arrisca-se a tornar miserável o que já era pobre.

    Ventura e Rio não apareceram. O primeiro porque, provavelmente, depois da catástrofe que foram as suas prestações nas televisões, não quis voltar a correr riscos. Isto numa altura em que as sondagens mostram o Chega em perda, mas ainda a segurar o terceiro lugar.

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    Já Rui Rio, imagino que justifique a ausência com as maravilhas que a campanha de rua está a fazer pelo PSD. Recuperou grande parte da desvantagem que trazia dos debates e já há no ar um cheiro a poder, basta ver como a oposição interna se vai chegando ao líder.

    Se uma crise económica transforma um liberal num socialista, já a distribuição de lugares na governação transforma a oposição interna no Coro de Santo Amaro de Oeiras.

    O Óscar “como ajudar Rui Rio em 10 lições” segue destacado nas mãos de Catarina Martins. Eu, confesso eleitor de esquerda, já não consigo ouvir aquele discurso. O tom de voz, a pontuação, o ritmo ensaiado, a repetição de ataques ao PS, deixando campo aberto à direita.

    Depois de 20 dias neste registo, algum dos estrategas da campanha bloquista deve ter olhado para as sondagens e percebido que o BE se prepara para dar o maior trambolhão no lado esquerdo do espectro político. Assim, ontem, num comício, a líder do BE abriu a porta para se sentar à mesa com o PS e discutir propostas de governação com António Costa. Isto, note-se, três dias depois de o ter rasgado na rádio.

    António Costa continua a disparar para todo o lado e a recusar assumir pontes de governação. Vai aguentando os ataques e, tirando o PAN (que provavelmente perderá metade do grupo parlamentar e não será grande ajuda), parece apostado em não revelar entendimentos futuros. Custa-me um pouco concordar com João Cotrim Figueiredo, mas, pelo carácter específico destas eleições, era bom que cada um de nós soubesse que destino pode ter o seu voto.

    Neste momento António Costa joga com tripla. Entendimento com maioria de esquerda, bloco central ou um novo Queijo Limiano, com acordos pontuais.

    Rui Rio ensaia uma solução parecida, mas com aquele embrulho da maioria de direita dependente do Chega.

    Dias difíceis para os eleitores dos dois maiores partidos portugueses.

    Regresso amanhã, com o obituário do CDS, se, obviamente, não voltar a ver fotografias do Ventura com um camuflado do Exército.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Nono episódio da Recensão Eleitoral (24/01/2022) – O debate das rádios e o desespero dos guiões


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As letras pequenas no contrato com a Iniciativa Liberal

    As letras pequenas no contrato com a Iniciativa Liberal


    Com os dois maiores partidos em empate técnico, o grande destaque desta semana no que a sondagens diz respeito é a Iniciativa Liberal (IL). O crescimento nas sondagens deixa a IL com um grupo parlamentar constituído por 4 a 6 deputados.

    Esta subida assinalável tem, na minha opinião, duas razões primordiais. Desde logo as prestações de João Cotrim Figueiredo nos debates. Depois, a magnífica capacidade da retórica liberal que transforma um prato de feijão com arroz numa experiência gourmet de hidratos.

    O objectivo é só um: desviar dinheiro público para bolsos privados, chamando-lhe outra coisa qualquer. Ou como diria um liberal, um rebranding no Orçamento de Estado.

    A parte difícil é convencer uma população, ou parte dela, que isto lhes trará algo de bom. Cotrim tem feito um bom trabalho nesse campo, admito. Até na gestão das incongruências vejo mérito. As sondagens assim o provam.

    Andou anos a pedir menos Estado, mas, durante a pandemia, pediu intervenção urgente do Governo nos apoios às empresas.

    Falou em cada debate sobre o dinheiro gasto na TAP, mas, que me lembre, nem uma palavra sobre a banca, em especial o BPP, de cuja holding foi presidente.

    Vende todos os dias as maravilhas do imposto único sem explicar que isso beneficia verdadeiramente uma minoria, não os 75% que levam menos de 900 euros para casa.

    Consegue dizer, sem se rir, que desviar dinheiro da escola pública para o ensino privado (é disto que se trata, por mais nomes que lhe possam dar) é dar mais liberdade de escolha às pessoas. Nunca o ouvi explicar que, na verdade, são as escolas privadas, pagas por todos, que teriam a liberdade de escolha, uma vez que fazem a selecção dos alunos.

    Num país onde os privados fugiram do combate à pandemia ou exigiram ao governo uma fortuna por cada paciente, Cotrim quer dizer-nos que liberdade na saúde é um bom seguro da Medicare.

    Quando lhe perguntam se o exemplo a seguir é a selva americana, ele diz que não. A IL segue o modelo nórdico e de outros países europeus de “sucesso económico”. E é aqui que fico baralhado. A Suécia, tão utilizada nos cartazes, tem 30% da força de trabalho assente na Função Pública. Ora, Cotrim está farto de dizer que temos funcionários públicos a mais.

    O Governo sueco (de esquerda), governa com o apoio dos centristas, comunistas e ambientalistas. O partido liberal é a sétima força no parlamento sueco. Isto está para um “país liberal” como o Brasil de Bolsonaro estava para o mapa de partidos socialistas, com que a IL decorou os cartazes da Segunda Circular.

    A ideia liberal tem óptimos conceitos. E não estou a ser irónico. Pena é que não se apliquem a pessoas que dependem de um sistema público de Saúde, aos que necessitam de uma escola pública decente num bairro de subúrbio ou para quem tem salários, digamos, inferiores a 4.000 ou 5.000 euros. Mas para todos os outros funciona às mil maravilhas, isso é garantido. Resta saber quantos portugueses se encaixam nesta última categoria.

    Por isso, olhando para as intenções de voto na IL, fico na dúvida se a classe média portuguesa aumentou, e estão a tratar da vida, o que compreendo, ou se o pessoal que depende da rede pública de serviços, e está naquela média salarial que nos mata, ainda não percebeu as letras pequenas do contrato que João Cotrim Figueiredo nos tenta vender.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Oitavo episódio da Recensão Eleitoral (23/01/2022) – As letras pequenas no contrato com a Iniciativa Liberal


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os tiros nos pés da esquerda

    Os tiros nos pés da esquerda


    Por esta altura circulam SMS e e-mails no Largo do Rato com a seguinte questão: “és amigo do Sócrates? Se sim, apaga tudo”.

    A CNN cortou 30 minutos aos directos sobre o covid e presenteou-nos com um martírio ainda maior. José Sócrates, o nosso estimado filósofo da Sorbonne apareceu para trazer novidades. Para discutir se o cofre era da mãe? Se as fotocópias eram em papel timbrado com fios de ouro? Se as luvas eram feitas na serra da estrela ou na casa da moeda? Não, nada disso. Para que Sócrates pudesse descascar o juiz Carlos Alexandre e as falhas do processo Marquês.

    Júlio Magalhães repetia a mesma pergunta a cada acusação, “mas acha que o Carlos Alexandre tem algo contra si?”. Que borla do sistema para os desvios de Sócrates e que luxo ter um juiz que adora as luzes da ribalta, as páginas do Expresso e o cognome de “justiceiro”. Tudo o que o nosso José precisava para que não se falasse do que interessa ou, como ele dizia, “aquilo que eu gosto”.

    O bom do Júlio não deixou a homília acabar sem que Sócrates falasse das legislativas. Era tudo o que António Costa precisava. Com o PS a descer nas sondagens, Rui Rio a fazer stand-up no programa de Ricardo Araújo Pereira, PCP e IL em bom plano, faltava só aparecer o defunto a reclamar créditos passados, e a mandar um abraço solidário para os amigos que estão a disputar as eleições. É o chamado beijo da morte.

    Costa, a braços com os constantes ataques de Catarina Martins, numa estratégia que confesso não perceber por parte do BE, deve ter engolido em seco durante aqueles fatídicos 30 minutos. A última coisa que António Costa quer, neste momento, é que alguém se lembre de um Sócrates que não seja o grego. A campanha entra na última semana com o PS a receber um presente envenenado da CNN. Isto um dia depois de Rosa Mota, num evento de apoio ao PS, ter chamado nazi a Rui Rio. Nada corre bem a António Costa.

    Rio que entrou pessimamente no ciclo de debates e que não é propriamente forte em campanha, está a fazer um final de corrida, ou maratona como diria a nossa Rosa, bastante interessante. E com um empurrão decisivo por parte das forças de esquerda que, ao que parece, insistem em dar tiros nos pés.
    Veremos o que nos reserva o sprint final.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Sétimo episódio da Recensão Eleitoral (22/01/2022) – Os tiros nos pés da esquerda


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As contas de dia 31

    As contas de dia 31


    Sempre que se fala em sondagens ouvimos dois chavões, um clássico e outro mais recente, consoante os interlocutores. “Sondagens são apenas sondagens”, diz quem normalmente vai atrás. Ou “lembrem-se do Moedas!”, quando queremos prevenir um falhanço catastrófico das empresas que fazem os estudos.
    Ainda assim, com o PS a descer nas intenções de voto e o PSD a subir, será interessante olharmos para o mapa parlamentar que se vai formando.

    Segundo a última sondagem (CESOP para a Universidade Católica e Público em 20/1/2022), o PS pode aspirar a um máximo de 110 deputados, sendo que Livre e PAN não ultrapassarão, em conjunto, o número de quatro deputados. Isto quer dizer que António Costa não terá a maioria absoluta sem se entender com PCP ou BE.

    É curioso verificar que, apesar do desaparecimento do líder (Jerónimo de Sousa) e da estratégia utilizada pelo PS para atingir a maioria absoluta (diabolizar os companheiros da geringonça), o PCP, segundo esta sondagem, não é muito castigado. No melhor cenário perderá apenas três deputados.

    blue and white knit textile on brown tree trunk

    Pessoalmente, acho que a entrada de João Oliveira na campanha foi uma lufada de ar fresco positiva para o partido. Por outro lado, já se sabe que o eleitorado do PCP é fiel e não se dá a grandes indecisões. Já o BE, mesmo com a votação máxima prevista, perderá pelo menos 11 deputados. Uma pequena hecatombe. Ainda assim serão decisivos para uma maioria de esquerda.

    À direita o cenário é ligeiramente mais complicado. Segundo os dados recolhidos, o PSD pode chegar aos 100 deputados, IL aos seis e o CDS aos dois. Mesmo contando com a boa vontade do PAN, Rui Rio não alcançará a maioria sem o Chega. É aqui que a democracia treme um bocadinho e o populismo e as ideias do século XIX ganham um novo fôlego.

    Desde Junho de 2021 que o Chega tem vindo a descer nas intenções de voto (de 9% para 7%, dados Marktest), ainda assim, mesmo depois das prestações deprimentes de André Ventura nos debates, apresenta-se a poucos dias do acto eleitoral em boa posição para ser a terceira força.

    A boa notícia é que nenhuma sondagem atribui uma maioria absoluta ao PS. A pior coisa que poderíamos ter na nossa, sempre frágil e dada a desvios, democracia, era vermos os boys instalados e sem controlo, na distribuição dos dinheiros da bazuca.

    A má nova é que, a História ensinou-nos, a sede de poder do PSD pode levar a uma segunda parte do acordo dos Açores e, de repente, termos um governo com pastas ministeriais distribuídas por um partido unipessoal, racista e xenófobo.

    Rio não fechou essa porta, apenas a IL e o CDS a encerraram à direita.

    Já António Costa, que partiu para isto com algum excesso de confiança, deve ter percebido entretanto que o apelo à maioria com a narrativa de que os parceiros de geringonça seriam os culpados por algo que todo o parlamento votou, também já caiu por terra.

    Hábil como é, vai obviamente entender-se com o PCP. João Oliveira abriu essa porta no último debate e, se há dançarino que não perde um tango, é António Costa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Sexto episódio da Recensão Eleitoral (21/01/2022) – As contas de dia 31


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os que só contam em Agosto

    Os que só contam em Agosto


    991.536 é um número importante para a discussão que se segue. É, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a quantidade de portugueses que foi trabalhar para outro país entre 2011 e 2020. Um período de 10 anos em que cerca de 10% da população se foi embora.

    Em 2019, Portugal tinha o equivalente a 25% da sua população espalhada pelo mundo. Para se ter uma noção do que isto significa, apenas quatro países europeus apresentam uma percentagem pior: Macedónia, Albânia, Moldávia e Bósnia. Todos fora da União Europeia, um deles devastado por uma guerra há pouco mais de 20 anos.

    Este cenário é o de uma catástrofe para Portugal. Especialmente quando pensamos neste último milhão que se foi embora. São a chamada “geração mais qualificada de sempre”, que, depois de formados pela escola pública com investimento estatal, vão utilizar os conhecimentos adquiridos no desenvolvimento da Economia da Alemanha, Dinamarca, Suécia, Holanda ou Reino Unido.

    Por que razão chamo este tema num diário de campanha sobre as legislativas? Simples. Para que nos lembremos de temas decisivos para o futuro do país que não entram no debate, completamente afogado em covid, SNS e alianças pós-eleitorais.

    Discutimos horas e horas de RSI, essa gota no oceano do Orçamento de Estado, mas, de bom grado, passamos ao lado do facto de um país cada vez mais envelhecido, perder 100.000 trabalhadores por ano, colocando o Estado Social em causa, a garantia das pensões, o crescimento da economia e do desenvolvimento tecnológico. Somos o país da Web Summit que vende sonhos de start-ups, mas cuja principal exportação resultante dessa feira é apenas os seus engenheiros.

    man with backpack beside a books

    Ouvi alguns partidos usarem bordões de ocasião. “Temos que impedir que os que cá estão se vão embora”, ou “temos que fazer com que regressem a casa”. Como, pergunto eu? Há 15 anos que tento descobrir a resposta.

    Entre os impostos noruegueses, custos de habitação parisienses e salários do Ruanda, como é que se sobrevive sequer? Como é que, 70% da população que não leva 900 euros para casa, paga a conta da electricidade para suportar o frio das casas no Inverno, a prestação do carro durante um ano e a renda do T2? Como é que se encaixa isto com três refeições diárias, roupa para os miúdos, manuais escolares e 900 euros?

    O que eu queria ouvir falar nesta campanha era disto: salários. Para quem está, para quem foi, para quem quer voltar. É essa a razão pela qual as pessoas se vão embora. Ninguém abandona os 300 dias anuais de céu azul de Lisboa, a vista de Gaia para o Porto, o sol do Algarve ou as paredes caiadas do Alentejo, se não andar cada mês da sua vida a trabalhar para pagar contas.

    Três tipos de pessoas não pensam em emigrar neste momento:

    i) os que não têm perspectivas de trabalho;

    ii) os que estão na percentagem mínima de funções bem remuneradas;

    iii) os boys dos partidos e os filhos dos banqueiros.

    Portanto, uma minoria. E isso explica a sangria de pessoas que atravessam a fronteira, em cada ano, com maior ou menor qualificação, mas com vontade de trocar a força do seu trabalho por uma vida confortável.

    A quantidade de mão-de-obra que oferecemos aos parceiros europeus é uma espécie de Natal português em forma de dádiva para os países mais ricos. Um Natal que reserva, em cada ano, aos nossos governantes, o triste papel de burro do presépio.

    Estarão eles preocupados? Provavelmente não.

    Para já estão concentrados nas suas próprias entrevistas de emprego. Ou campanha eleitoral, como alguns lhe chamam.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Quinto episódio da Recensão Eleitoral (20/01/2022) – Os que só contam em Agosto


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.