António Filipe foi à CNN Portugal discutir a actual situação da Ucrânia ou, pelo menos, assim pensava ele. Ladeado por Sérgio Sousa Pinto e Sebastião Bugalho, portanto, direita conservadora, acabou a discutir a posição do PCP em relação ao conflito. Ou, nas palavras de Sérgio Sousa Pinto, do “capacho de Putin”.
Sérgio, antigo líder da Juventude Socialista (JS), disse há uns tempos, numa entrevista a um jornal, que era um betinho de Lisboa e que, graças à JS conseguiu conhecer Portugal.
Não me admirei por ser um betinho, mas já fiquei mais surpreendido com a vertente turística da JS. Sabia que o cartão de jotinha abria muitas portas, mas nunca pensei que uma delas fosse a da Agência Abreu.
O que eu achei interessante no debate de ideias é que, a dada altura, passou a ser mais importante a posição do PCP em relação a Putin, ao conflito ou à NATO, do que propriamente a análise ao que aqueles desgraçados sofrem no terreno. Fico sempre encantando com a atenção que o país dá à opinião de um partido que, segundo me explicam, está para desaparecer desde o século passado.
Há um ponto do debate que vale a pena relevar: o “mas”. Sérgio Sousa Pinto, que não parece saber que o partido comunista russo é oposição, e não poder, fica a espumar porque o PCP condena a NATO ao mesmo tempo que critica a invasão.
Para ele, não pode haver um “mas”. Há que arrasar a Rússia e acertar o relógio da História para sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2022. Aliás, como disse o moderador/pivot da CNN: “António Filipe, a guerra começou há 3 dias!”
Ora, aí é que está, não começou, não. A não ser que comecemos a procurar sinónimos mais latos para guerra. Há oito anos que se trocam tiros na região de Donbass, entre russos e ucranianos. Para mim, que não sou muito versado em kalashnikovs, se há tiros no ar durante muito tempo, e entre as mesmas pessoas, já lhe chamo uma guerra.
Entramos então na moralidade do “mas”, que me irrita ligeiramente, confesso. A direita acusa o PCP de não condenar a Rússia com força suficiente, embora já repetidas vezes tenham dito que não apoiam Putin. Ou, como disse António Filipe, “a Rússia capitalista e senhor Putin nunca nos enganaram”. Mas não chega.
Não se pode falar na História de 2014, do Acordo de Minsk ou na expansão da NATO. Para Sérgio Sousa Pinto e para a direita em geral, isso é validar a agressão. O relógio temporal tem que ser iniciado apenas no dia 25 de Fevereiro e nós temos que ignorar tudo o que nos trouxe aqui.
O problema é que este “MAS” só se aplica nas críticas feitas ao PCP. Aos outros não só é permitido como essencial na argumentação. Exemplo: “O PCP foi importante na luta contra a ditadura, MAS queria, ele próprio, impor outra em seguida”, diz um dirigente do CDS enquanto comemora o 25 de Novembro.
Durante os bombardeamentos da Faixa de Gaza, há pouco mais de um ano, ouvimos todos os dias os lamentos pela morte de 50 crianças palestinianas, MAS fomos recordados que morreu uma do lado israelita. Portanto, a brutalidade está justificada para o mundo ocidental. Ainda nestas últimas eleições, elementos do PSD se indignaram com o cordão sanitário exigido na relação com o Chega dizendo que, se o PS se pode coligar com o PCP e BE, por que razão não pode o PSD coligar-se com o Chega? Ou seja, na discussão sobre um partido racista e xenófobo, sentiram necessidade de falar em dois partidos que cumprem a Constituição.
Sérgio Sousa Pinto dizia a António Filipe, por que razão devemos falar da NATO quando há uma invasão no terreno? Pela mesma razão que o caro Sérgio, na análise das legislativas, dizia que a demonização do Chega não fazia sentido quando o PCP tinha um acordo de Governo.
Para o jotinha que conheceu Portugal faz sentido falar no PCP quando se discute um Governo de direita com o Chega, mas já é estranho, ou vá, descabido, falar na NATO por causa de uma guerra onde ela é uma causa direta. Realmente… quem é que se lembraria, Sérgio, quem?
O que é que isto nos diz? Que sempre, em qualquer tema ou discussão, a análise é feita de acordo com as convicções, conhecimento histórico e enquadramento global. Aqueles que agora exigem ao PCP que ignore tudo o que aconteceu antes de dia 25, são os mesmo que usam o comparativo quando o seu lado se apresenta como o facínora da história.
Pior, fazem-no num momento delicado, tentando colar o PCP a um regime de direita e confundindo a crítica à NATO com a validação da guerra. E por mais que António Filipe e seus pares digam o contrário, a mensagem vai circulando, e o PCP fica com o odioso rótulo de ser o apoio de Putin em Portugal.
Putin que, lembremo-nos, financia os partidos de extrema-direita na Europa, entre os quais os amigos Salvini e Le Pen, companheiros de retrato de Ventura.
Isto, meus amigos, é desinformação em horário nobre. E da boa.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Acompanhar e perceber o confronto entre a Rússia e a Ucrânia é bem mais difícil do que esforço, a todos exigido, naqueles “anos felizes” em que éramos apenas especialistas em Saúde Pública.
Agora estamos em modo Enciclopédia. Historiadores de manhã para entendermos o relato dos acordos de Lisboa (durante a crise da Bósnia), feitos pelo major-general Raul Cunha. Daí passamos logo a Especialistas Militares, porque descobrimos que major-general é um posto.
À tarde ouvimos o Rogeiro e ficamos com Phd em Logística de Combate.
Segue-se o Monjardino com quatro hipóteses futuras para as opções de Putin no Kremlin. Concluímos a tese de mestrado em Ciência Política.
Chega então o Zé Gomes da SIC, e dá-nos uma esfrega com as sanções e a “bomba nuclear” do Swift. É a pós-graduação em Economia.
Quando chega a hora de dormir, já nem a tabuada se consegue processar. Nestas intermináveis horas de directos, com muitas repetições, e por vezes perguntas idiotas, tenho visto também bom serviço (público e não só), excelentes comentadores que trazem alguma luz à contra-informação, e repórteres no local que acrescentam algo à informação.
Pedro Mourinho, agora com matéria, tem sido um exemplo de sobriedade e tranquilidade na transmissão de informação. Já José Rodrigues dos Santos pula de angústia, em exclamações de excitação, como se estivesse em trabalho de prospecção para o próximo livro sobre campos de concentração.
Algo parece ter mudado nas últimas 48 horas. Pensava-se que a capital cairia anteontem noite, mas a resistência ucraniana mostrou-se organizada. O presidente Zelinsky, que incentivou civis a pegarem em armas e cocktails molotov, parece ter ganhado uma nova aura de líder, depois de ter recusado as ofertas de exílio oferecidas pelos Estados Unidos e Letónia. Disse que não queria boleia, mas sim armas.
Zelinsky anunciou que a Turquia iria bloquear o acesso ao Mar Negro, o que não se verificou, mas a Ucrânia conseguiu mobilizar a atenção mundial e cocar Putin como um pária. O líder russo já quer terminar as invasões, que não estão a ser um passeio para as suas tropas, e quer encetar negociações. Putin mostra que não quer uma guerra longa, mas tal pode não suceder. Alemanha enviou mais armas para ajudar a resistência ucraniana, tal como os Estados Unidos.
Contudo, por agora são apenas sanções contra os russos, e armas para a Ucrânia resistir. Os ucranianos, na verdade, continuam sozinhos, mas parecem manter a fé. Resta saber até quando vão aguentar. Suecos e finlandeses entram agora no radar e começam também a enviar dinheiro para o combate à Rússia. A Bielorrússia cedeu o seu território sem pensar que, no futuro, podem eles ser a próxima Ucrânia.
Que amanhecer teremos daqui a umas horas?
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Não é muito fácil imaginar o que passará pela cabeça de Putin neste momento. Mais difícil ainda é perceber que acesso de loucura imperialista o levou a meter-se num buraco de onde dificilmente sairá vencedor. Depois de semanas de incentivo americano, especulação em algumas televisões e promessas de guerra com hora marcada, a Rússia lançou de facto uma ofensiva em todo o território ucraniano. A partir deste momento o regime de Putin deixou de ter qualquer poder de argumentação para o que se seguirá.
Numa situação extremamente complexa, como a que se vive neste conflito, acho confrangedora a simplista análise do Bem contra o Mal, e a escolha de lados.
Mariana Mortágua fez, até ao momento, o julgamento que me parece mais lógico, e com o qual concordo. Putin é um oligarca de extrema-direita, sem qualquer apreço pela democracia e com sonhos imperialistas, como mostram as anexações na Geórgia, Crimeia e, desde 2014, Donbass.
Mas a história não começa aqui. Independentemente da loucura atribuída a Putin, não se pode contar esta história sem pensarmos na expansão da NATO para os países da antiga Cortina de Ferro, nos repetidos ataques de pelotões de neonazis à população russa no leste ucraniano, dos bombardeamentos da NATO na Sérvia, da invasão da Líbia e do Iraque, dos interesses americanos no conflito, seja pelo armamento ou pelos acordos energéticos.
Putin poderia até querer equilibrar a balança de poder, e trazer a Rússia para o confronto com os Estados Unidos, ao mesmo tempo que colocaria um tampão à expansão da NATO. Era uma posição, ainda assim discutível. Uma versão russa do Kosovo, quiçá.
Contudo, assim que as tropas russas lançam ataques em todo o território ucraniano, cai por terra a defesa dos separatistas de leste.
Fica visível que o discurso sobre a Ucrânia, onde Putin considerou que aquele território nem um país deveria ser, não era um bluff.
E é aqui que as dúvidas se multiplicam. O que esperará Putin obter de tudo isto?
A narrativa oficial é de que a Rússia não quer controlar a Ucrânia, mas sim retirar-lhe qualquer poder militar. Pergunto: porquê? Para defender uma região separatista de leste? Não bastava para isso estacionar tropas como fizeram na Crimeia? Alguém comprará a narrativa oficial?
Mesmo que a Rússia consiga vergar a Ucrânia, e trocar o governo pró-europeu por um pró-russo, que mais valia tirarão daí para além do acesso às riquezas do subsolo?
No outro lado da balança estará o despertar do fantasma russo na União Europeia. Os Estados Unidos atiram-se ao fornecimento de gás, a Europa certamente começará a pensar em sanções económicas, e mais defesas militares contra a Rússia. É este o preço que Putin quer pagar? O de ter como inimigos praticamente todos os parceiros comerciais do continente? Ainda por cima quando a NATO nem sequer queria admitir a Ucrânia como membro.
Putin fez tudo o que o governo americano poderia desejar, e é isso que, decididamente, não consigo compreender.
Numa das declarações à televisão russa, Putin avisou ainda que, para além da invasão nos seus termos, não quer qualquer interferência no terreno de outros países, porque, se for esse caso, também esses países serão visados pelo exército russo.
Há quem diga que desde 1989, quando em Berlim assistiu encurralado à queda do muro, que os sonhos de grandeza e de recuperação do império habitam a mente deste ex-KGB. Será este o seu momento? A NATO informou que não terá qualquer intervenção, e sabemos que tropas estrangeiras, entre elas portuguesas, estarão nas fronteiras apenas para controlar refugiados. Ainda assim, por quanto tempo ficarão os ucranianos entregues à sua sorte? Poderá o conflito ficar resolvido sem ultrapassar as fronteiras da União Europeia?
Imagino que as conversas da III Guerra Mundial comecem agora a tomar forma.
O rublo está em queda e o preço do gás e do crude começam a subir, afectando a vida de todos no continente europeu. A União Europeia vai ter que acelerar a transição energética e, com isso, reduzir a dependência da Rússia. Não há nada neste quadro que possa beneficiar a Rússia, seja qual for o desfecho da guerra.
Entendo que um homem como Putin, que entre manobras internas com Medvedev ou a alteração da Constituição, se consegue manter no poder há duas décadas, queira deixar uma marca na História do país. Pergunto-me é se terá feito as contas todas antes de ultrapassar as fronteiras de Donbass.
Por fim uma nota interna para quem, a partir de Lisboa, vê este conflito. Putin não é um político de esquerda. Putin não é comunista. Putin nem sequer vê com agrado as ideias de Lenine ou uma sociedade socialista. Putin é um capitalista corrupto à frente de um império que defende os seus interesses económicos. Tal como os que estão do outro lado do Atlântico.
Portanto, por favor, Partido Comunista Português, organização fundamental na luta contra a ditadura e defesa dos trabalhadores, não confundam a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obra. Uma coisa é a política expansionista da NATO, orquestrada pelos Estados Unidos, que está na origem do conflito – e sim, deve ser criticada. Outra, é fechar os olhos a um louco de extrema-direita, só porque dirige um país que já foi palco de revoluções de trabalhadores e de ideais de Lenine.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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As declarações de Putin, reconhecendo a independência dos territórios no leste da Ucrânia, geraram uma multiplicação de reuniões e respectivas reacções dos decisores políticos.
Nas Nações Unidas, o representante ucraniano disse que não dariam nada a ninguém. O russo avisou o Ocidente para uma reflexão antes de começarem com sanções, que é como quem diz, depois não digam que não avisei.
Os Estados Unidos avisaram que as tropas russas, ao contrário do afirmado por Putin, não são forças de paz, mas sim invasores.
As Nações Unidas, aqui que ninguém nos ouve, servem para muito pouco.
Basta ver que há mais de 50 anos, por voto favorável de apenas dois países, contra os restantes cento e tal, o embargo a Cuba não é levantado.
O Reino Unido também mostra as garras, e o good old Boris lançou já uma série de sanções a cinco bancos e três milionários russos. Felizmente Abramovich pediu passaporte português aqui há uns tempos, senão, digo eu, lá iria a Premier League ao fundo. É que é importante fazer muito alarido, dar a sensação que se está a mudar algo, mas, no essencial, deixar tudo na mesma enquanto os impérios se entendem.
A União Europeia também impôs sanções, nomeadamente ao Nord Stream 2 – o famoso abastecimento de gás, que resulta numa grande fonte de rendimento para Moscovo. E já agora, que fornece uns bons banhos quentes na Finlândia, Bulgária, Eslováquia, Alemanha, Itália, Polónia e França, sem passar pela Ucrânia.
Joe Biden não quer o Nord Stream 2 a funcionar, pois acabará por amarrar os alemães, e, já se sabe, sem os alemães a Europa não decide seja o que for.
Aliás, a União Europeia dá, neste momento, uma imagem de fraqueza confrangedora nesta luta de interesses entre russos e americanos, via NATO. Polónia e Ucrânia dificultam sempre que lhes interessa a passagem de gás russo para a Europa. É por estes territórios que é hoje feito o abastecimento. A Ucrânia, mais concretamente, até já bloqueou a passagem prejudicando países da União Europeia.
Contudo, neste momento de aflição, exigem que a União Europeia boicote um abastecimento de gás que não dependeria dos interesses ucranianos… é, no mínimo, curioso.
Mas como é essa a vontade dos Estados Unidos, via NATO, a União Europeia faz.
Os cidadãos europeus que lidem com o que aí vier. Depois do gás, veremos o aumento do preço do petróleo, também fornecido pela Rússia a alguns países da União Europeia.
Somos uns meros peões neste tabuleiro de reis e rainhas.
Portugal, na voz do nosso Marcelo, já repudiou veemente as acções russas. Julgo que terá sido a gota de água para Putin. Uma coisa é receber uns milionários recambiados de Londres, ou ter que fechar a torneira do gás. Outra é o repúdio do Marcelo. Um homem não é de ferro.
Putin fez, durante uma hora, um discurso inenarrável, que, entre outras coisas, afirmou que os ucranianos não se conseguiam governar sem ajuda externa. Ou seja, estão mesmo a pedir uma anexação para se organizarem. Já os Estados Unidos vêm com bons olhos o aumento do preço dos combustíveis na Europa, mais dificuldades para as populações e a abertura de uma linha de crédito para continuarem a armar os ucranianos.
Portanto, pergunto-me se, nesta disputa de interesses entre duas potências, com a China a observar, há ainda alguém que acredite num confronto entre o Bem e o Mal.
Não. Nada disso. Há negócio e interesses. Os ucranianos podem esperar.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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Julgo que foi Ricardo Araújo Pereira quem, em tom humorístico, deu a melhor receita até ao momento para analisar a tensão entre a Rússia e a Ucrânia.
Disse, e cito de cor: “gosto de ouvir o que têm a dizer aqueles que afirmaram que o Iraque tinha armas de destruição maciça. Depois, em princípio, é fazer o contrário”.
Faz algum sentido. Há mais de uma semana que Joe Biden grita aos quatros cantos que, hoje é que é! A CNN dá-nos, diariamente, várias opções de ataque ao território ucraniano, com base em informações das inteligências francesa, inglesa ou americana. E nada acontece. Até Nuno Rogeiro, que normalmente mantém um tom sério nestas coisas, ocupou boa parte do seu programa “Leste-Oeste” a falar de bloopers e episódios caricatos.
Mas centremos a discussão em dois pontos essenciais. O que quer realmente Putin e, já agora, a NATO?
A primeira coisa que a NATO não quer, nem oferecida, é a Ucrânia. Entre presidentes pró-russos, revoluções, deposições, independentistas, acusações de corrupção, eleições falseadas, grupos nazis e, agora, um comediante à frente do país, o xadrez ucraniano é de uma complexidade tal que dificilmente o Ocidente se poderia segurar a qualquer tipo de estabilidade para justificar fosse o que fosse.
Por outro lado, a NATO não vai correr o risco de aceitar um novo membro que tem disputas territoriais com a Rússia.
Já Putin, apesar de não ser grande democrata, vê o mesmo que todos nós, a expansão da NATO para leste. Um tratado de defesa militar que, desde a queda da URSS, deixou de ter a raiz da sua existência, mas, como se percebe, nunca parou de ir ocupando os territórios circundantes da Rússia.
Seria um exercício interessante o de pensarmos como reagiriam os Estados Unidos se, durante umas décadas, os russos fossem instalando bases no México, em Cuba, na Jamaica ou no Canadá? Melhor, como veria a comunicação social do Mundo Ocidental essa movimentação? Nós acabamos sempre por formar opinião sobre a História pela forma como esta nos é narrada.
Sobre essa dualidade de critérios há ainda um pormenor relevante. A NATO, que agora defende que os territórios ucranianos com maioria étnica russa devem permanecer na Ucrânia, foi a mesma NATO que em 1999 bombardeou a Sérvia, para que esta abrisse mão de 20% do seu território onde estava uma maioria albanesa (Kosovo).
Portanto, percebemos sempre em cada capítulo do confronto de potências que, a chamada comunidade internacional, não defende o que está certo ou o que é melhor para as populações. Defendem, cada uma das potências, o seu próprio interesse. E a comunidade internacional segue o rasto do dinheiro.
No caso da NATO, uma espécie de cão de fila do governo americano na Europa, qualquer hipótese de conflito na Ucrânia é óptimo. Desde logo porque podem vender armas aos ucranianos, mas não precisam de gastar dinheiro no envio de tropas. Depois, porque, qualquer limitação ao fornecimento de energia na Europa, que passe pela Ucrânia, pode ser substituído por fornecimento americano. E é por isso que Biden grita todos os dias. Está no Bolhão da Real Politik, a puxar pelo negócio.
O que fez afinal Putin? Obviamente, não invadiu a Ucrânia, como se percebia pela quantidade de tropas na fronteira (excepto para os analistas da CNN que já tinham o caminho traçado até Kiev), e deixou os separatistas no leste ucraniano fazerem o trabalho de sapa.
Depois, reconheceu à maioria russa no território o direito à independência. A partir daqui, mesmo que mais ninguém no mundo reconheça estes territórios, qualquer ataque ucraniano passará a ser um ataque à Rússia. Em resumo, uma repetição da guerra dos 5 dias na Geórgia com as zonas fronteiriças da Ossétia e Abecásia. Estava nos livros.
Putin quer recuperar o controlo de partes da União Soviética onde foram deixadas populações russas, depois de afastados os nazis no caminho para Berlim. Pelo meio da jorna ainda recupera algumas prendas oferecidas, como a Crimeia. E pode, como se vê, pode.
Os textos entretanto escritos ficaram obsoletos em 24 horas, e começam, a partir de hoje, novos diretos de especulação. A lógica, na minha opinião, será a de que Putin procura zonas tampão, territórios na fronteira, áreas com maiorias étnicas russas. Mas não estou a ver isto chegar para grandes directos de Kiev e horas de Azeredo Lopes. É preciso usar esta declaração de independência de forma algo mais espectacular e preparar novos gráficos com setas vermelhas.
Assim, esta manhã, já se contavam os possíveis mortos causados pela nova invasão russa e o caminho escolhido até Kiev. Amanhã, Pedro Mourinho dir-nos-á que ainda não aconteceu nada, mas estará para breve, sente-se no ar. Biden pedirá sanções, enquanto oferece descontos nos morteiros. Em princípio temos audiências garantidas para mais um mês. Depois começa o Big Brother Quase Famosos 2.
Impérios. São impérios na sua formação contínua e afirmação de poder. E nós, neste cantinho sem direito a audiência na mesa dos seis metros, ficamos a ver a posição da União Europeia de subserviência a quem lhe der energia e a ouvir o que aí vem nas vozes de Marques Mendes ou Helena Ferro Gouveia. São sortes.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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Não me lembro de ouvir falar em eleições de vice-presidentes para a Assembleia da República. Será provavelmente um lapso meu, mas, daquilo que me recordo, eles apareciam simplesmente nas sessões plenárias, passavam a palavra de A para B, de vez em quando ausentavam-se para uma ou outra necessidade fisiológica, e era isso. Sem grandes dramas ou confusões.
Hoje já sei mais qualquer coisa sobre o tema porque, graças ao Chega, há três semanas que vejo debates sobre o Diogo Pacheco Amorim.
Existem dois méritos inegáveis da extrema-direita portuguesa. O primeiro é o de conseguirem trazer, para a agenda política, temas que não interessam ao menino Jesus. O segundo é o de se contradizerem a cada passo das polémicas que criam e, mesmo assim, aproveitarem a onda gerada para se vitimizarem.
Vamos por partes. O Chega apresenta-se como um partido anti-sistema. Não é que a maioria acredite, basta ver o percurso de André Ventura, mas foi essa a mensagem passada. Se bem me recordo da última visita à minha mãe, ali no concelho do Seixal, numa das rotundas perto do afluente do Tejo pontificava um cartaz enorme com a estampa “dia 30 vamos abanar o sistema!”.
Qual foi então a primeira coisa que o Chega fez depois de dia 30, assim que conseguiu formar um grupo parlamentar? Tentar entrar para o sistema…
O cargo de vice-presidente, com direito a gabinete próprio, carro e motorista, é exactamente a personificação do sistema que o Chega afirma querer combater. Pessoalmente nunca tive qualquer dúvida, mas, para a próxima, sugeria mais calma ao pastor André. É que nem tiveram tempo de tirar os cartazes para que as pessoas se esquecessem das parangonas eleitorais, e já a extrema-direita voltava a dar o dito por não dito.
Ficámos durante semanas a discutir um não assunto. Não há sequer tema para debate. O Chega pode indicar um vice-presidente para a eleição, tal como fizeram. Os restantes deputados votam. É isso. Por isso se chama eleição e não nomeação. Tudo dentro da lei, tudo dentro da Constituição.
Ventura aproveita a recusa do Parlamento para trazer a sua verdadeira força: a vitimização. Não só o Chega marca a agenda durante semanas como André Ventura grita em frente às câmaras pela tradição parlamentar que é recusada ao Chega. Alguém lhe explicou, julgo ter sido Isabel Moreira, que tradição não é lei. E que garantia de resultado numa eleição, como pretende o Chega, não é democracia, é regime de Estado Novo do exemplar Marcelo Caetano.
Uma nota para pessoas inteligentes, como Adolfo Mesquita Nunes ou Lobo Xavier, que tentaram comparar Diogo Pacheco Amorim, um “homem culto e afável” com outros “bombistas no parlamento”, e o Chega com “o PCP que defende de facto ditaduras”.
Destaque para Pedro Frazão, novo deputado do Chega, já condenado em tribunal por difamação contra Francisco Louçã, que disse sobre o passado bombista no MDLP, e cito, “o Dr. Pacheco Amorim só tinha 24 ou 25 anos nessa altura!”. O que me parece fazer sentido. Uma coisa é andar metido em atentados e mortes, como por exemplo do padre Max, quando se tem 25 anos. Outra, bem diferente, é fazê-lo aos 70. Uma pessoa, entretanto, perde aquele sangue na guelra e a morte parece que já não sabe ao mesmo.
Aliás, Pedro Frazão caiu-me no goto, devo dizer. Trata-se de um discípulo de Ventura bastante mais calmo. Desde logo tem a condenação por difamação que, a reboque do líder, é uma espécie de requisito para entrar no grupo parlamentar do Chega. Depois, com um sorriso e de forma tranquila, interrompe cada adversário de debate na mesmíssima forma patenteada por Ventura, marcando um estilo de pocilga no confronto de ideias.
Imaginem, por segundos, uma sessão plenária dirigida por um partido que não se revê na Constituição, que defende ideias anti-democráticas, que quer um Estado mínimo e um controlo privado de dinheiro público e que vê com bons olhos o autoritarismo. Bem sei que em Portugal já nos habituámos a bater repetidamente no fundo, mas, até nós, temos limites.
Ventura diz que o Parlamento não respeita os 7% que votaram no Chega o que, como se percebe, não é verdade. Tanto que respeita que um grupo de extrema-direita tem hoje 12 lugares no órgão máximo da Nação, pode indicar um vice-presidente e terá, provavelmente, presidências de comissões parlamentares. O facto de esse mesmo Parlamento chumbar o nome de Diogo Pacheco de Amorim significa apenas que os 93% que não votaram no Chega têm, felizmente, uma representatividade maior.
E isso, por muito que custe a André Ventura e afilhados, chama-se democracia.
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O Comboio da Liberdade, ou Freedom Convoy – um protesto iniciado em Ottawa, no Canadá, contra o certificado digital covid –, trouxe um certo embaraço a quem tenta diminuir qualquer manifestação com a narrativa do negacionismo. E isso leva-me para um assunto que, há meses, me é caro.
Desde que apareceu o passaporte digital que me manifestei contra por considerar que se tratava de uma medida de segregação.
A lógica é relativamente simples para mim. Se um Estado aconselha uma vacina, está a dizer aos seus constituintes que decidam, sozinhos, se a devem tomar ou não. Não pode, pois, esse mesmo Estado, em seguida criar dois tipos de cidadãos, com direitos diferentes no que à sua mobilidade diz respeito.
Apesar de ser vacinado, respeito quem não o queira ser, e defendo esse seu direito. O mesmo é dizer que não entendo a utilidade do certificado digital, especialmente quando até há pouco, este era pedido em simultâneo com um teste PCR (por exemplo para entrar em Portugal). Mas mesmo que o certificado tivesse alguma utilidade, a minha posição seria a mesma. Em momento algum posso aceitar um regime que cria cidadãos de primeira e outros, de segunda.
Faz-me lembrar outros tempos, que felizmente não vivi, e que só conheci pelos livros de História.
Há uma certa atração por associar estas manifestações a “negacionistas”, “anti-vacinas”, e por aí fora. Desde logo, qualquer pessoa que se questione o porquê da enxurrada de testes, lucros dos laboratórios e a não abertura da patente das vacinas, é logo negacionista. Pensar deixou de ser permitido a partir de 2020.
A comunicação social parece pouco interessada em tentar perceber porque é que um país com 80% da população vacinada (Canadá) se insurge contra a exigência de um passaporte que só afecta uma minoria. A solidariedade dos trabalhadores e das pessoas em geral não fazem boas cachas, não ajudam nas audiências e não servem para “alertas CM/CNN”.
Ao fim de dois anos na rua, camionistas, e outros que nunca estiveram em teletrabalho, acharam que não fazia sentido que lhes pedissem um certificado para a sua movimentação nas horas de lazer. E estão, obviamente, cobertos de razão. É mais ou menos o mesmo ridículo que cada um de nós passa à porta de um cinema em Lisboa, ao sábado, depois de uma semana no comboio da linha de Sintra com distanciamento de 10 centímetros.
Liberta-se a produção e a geração de capital, restringe-se o lazer e o tempo em família. É a transformação lenta de cada um de nós num objecto produtivo, sem qualquer respeito por aquilo que deve ser o equilíbrio, os afectos e as relações humanas.
O comboio de Ottawa inspirou mais protestos em Paris e, segundo notícias de hoje, dia em que escrevo, também na Holanda se ouvem vozes. Em direto da capital francesa, um repórter da CNN explicava-nos o teor das manifestações enquanto procurava uma etiqueta política. “Vejo ali grupos de extrema-esquerda e também de extrema-direita”. Bem visto, assim agrada à audiência toda. A CNN Portugal está a tornar-se dona de um estilo de jornalismo que faz o Correio da Manhã parecer o New York Times.
Como é que se explica que, também em Franca, uma população com cerca de 77% de vacinados, se parta para as ruas contra uma medida de segregação? Nas redações pergunta-se quantos negacionistas e amigos da Le Pen caminham por Paris, eu limito-me a pensar que, em princípio, a maioria de vacinados percebe que nada de interessante aguarda uma sociedade que valida a segregação. Vem nos livros.
Em Portugal não vemos manifestacões, segundo a narrativa corrente, porque “há poucos negacionistas”. Mas não, não é por isso. Em Portugal a maioria vacinada não se manifesta contra uma medida que cria cidadãos de segunda, pela mesma razão que não se queixa da falta de memória do Salgado, da fuga do Rendeiro ou dos desvios do Sócrates. Temos opinião para tudo mas pouquíssimo sentido cívico na luta pelos direitos e liberdades.
Os canadianos fizeram um favor ao Mundo e foram os primeiros a bater o pé a uma imposição governamental sem sentido que, sob a capa da defesa da saúde pública, não faz outra coisa que não seja acirrar ódios e dividir a população. Os franceses seguiram as suas pisadas e, imagino, outras carruagens estarão a caminho.
A História julgará. Bem, julgo eu.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Pela primeira vez em Portugal, em período de eleições, pudemos acompanhar diariamente as intenções de voto, através da tracking poll da CNN. Um modelo de “política-espectáculo” importado da casa-mãe que garantiu audiências, análises diárias e que… falhou estrondosamente.
Como escrevi há uns dias neste jornal, a variação da amostra diária (apenas 150 pessoas) dava taxas de erro superiores a 10%, ou seja, poder-se-ia concluir tudo e o seu contrário em cada uma das previsões.
Contudo, a tendência foi uma e uma só: a de criar um cenário de subida da direita sempre suportada pelos comentadores em estúdio. Tentei reunir os analistas de esquerda, e não me consegui lembrar de outros que não Francisco Louçã, Pedro Adão e Silva, Ricardo Araújo Pereira e Daniel Oliveira, contra um exército infindável, nos três canais, de simpatizantes do CDS, PSD, IL e Chega (embora estes com algum pudor na assunção das suas cores). Esta estratégia teve um efeito óbvio no decorrer da campanha, uma vez que as equipas de comunicação e os líderes partidários adaptavam os discursos ao que imaginavam ser a intenção de voto.
Catarina Martins, por exemplo, a dada altura deixou de apontar ao PS para sugerir que se sentassem à mesa. Rui Rio que tinha iniciado a corrida sem grandes esperanças, já sugeria a Costa que soubesse perder com dignidade. O próprio primeiro-ministro, na última semana de Janeiro, deixou de falar em maioria absoluta e abriu a porta ao diálogo com todos. Era essa a leitura das intenções de voto, uma maioria absoluta impossível.
Quem assistisse aos diários de campanha nas televisões, apoiados nesta ilusão das sondagens e nas análises dos comentadores, imaginava que Rui Rio teria recuperado o terreno perdido e que a vitória estava garantida.
Sempre me fez alguma confusão toda aquela “onda laranja”, foi assim que a baptizaram, em torno de um homem que tinha mostrado em cada debate que não estava preparado para ser primeiro-ministro, cuja tentativa de se colar ao centro era mais uma estratégia de agradar a todos do que ideologia. E, pior do que tudo, que em momento algum se libertara das amarras do Chega. E nem a matemática que apoiava o foguetório parecia fazer sentido, como se comprovou.
Esta ilusão ajudou, por exemplo, a que se pensasse no voto útil à esquerda, para evitar um governo do PSD que só o seria com a ajuda dos deputados do Chega. O PS beneficiou, PCP e BE foram prejudicados. Não são poucos os relatos de eleitores de esquerda que, ao saberem da maioria absoluta, se arrependeram de não terem votado nos partidos onde normalmente votariam.
Mas o que acho mesmo mais deplorável no fim de tudo isto é a tentativa de uma saída à portuguesa. Ninguém diz um simples “desculpem, enganámo-nos”. Discutiram-se durante dias a gravata do Costa, o coelho do Ventura ou o cão do Cotrim, mas não há debate sério sobre uma calamidade probabilística que serviu apenas para entretenimento e teve de informação séria um valor a tender para zero. Não há responsáveis, não há culpados.
Faz-me lembrar aquela famosa compra de submarinos entre Portugal e Alemanha onde, do lado alemão se descobriu o corrompido, mas, alegadamente, neste belo rectângulo à beira-mar plantado, ninguém tinha sido corruptor. Ah, valente Pátria onde a responsabilidade é sempre aquela mãe de má-fama que acaba na solidão.
Julgo que foi Luís Aguiar-Conraria que melhor resumiu o que verdadeiramente se fez com a tracking poll. Cito de cabeça, mas julgo que foi algo parecido com o seguinte: “criaram-se notícias a partir de uma amostra pequeníssima e depois, comentaram a sua própria criação”. Acrescento eu, com aqueles painéis escolhidos a dedo e sempre inclinados para o lado que segura a faca. Isto não é informação e, julgo eu, também não deve ser jornalismo.
Resta, pois, descobrir se se tratará de mais um caso de simples incompetência, tão comum entre nós ou, por outro lado, de extrema dedicação ao trabalho.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
Décimo sétimo episódio da Recensão Eleitoral (02/02/2022) – Sondagens: incompetência ou amor laboral?
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Dia 31 de Janeiro, depois do pequeno-almoço com sementes de chia, João Cotrim Figueiredo percorreu a lista de comentários na sua última publicação do Linkedin. Para quem não sabe, o Linkedin costumava ser uma plataforma onde empresas e trabalhadores se encontravam para, entre outras coisas, partilhar curricula vitae e concorrer a propostas de emprego. Hoje em dia é uma mistura de Facebook, Tinder, Instagram e frases motivacionais do Gustavo Santos.
Entre os parabéns antecipados (a publicação foi feita no sábado de reflexão) pelo grupo parlamentar que se adivinhava, escorriam elogios e palavras de esperança de vários CEOs, CFOs, diretores, empresários e toda aquela nata que vê no recibo de cada mês a tabuada dos 10 do salário mínimo.
Curiosamente não havia grande entusiasmo entre prestadores de serviços, operadores de fábricas ou caixas de supermercado. Dir-me-ão que um operador fabril não usa o Linkedin, porque não depende tanto do networking. Pode ser isso de facto. O meu primeiro pensamento foi para o facto de a taxa única não ajudar muito nos baixos salários, mas posso estar enganado.
A minha curiosidade agora é a de saber como se sentem os liberais neste momento? Por um lado, formaram um grupo parlamentar com oito deputados, um extraordinário resultado para quem andou a vender ilusões, mas, estão dependentes da vontade de diálogo do governo para conseguirem começar a desviar fundos públicos para o sector privado ou “liberdade”, como eles lhe chamaram.
Costa disse que seria dialogante apesar da maioria, mas também ele tem clientelas à espera e, por isso, Cotrim até pode passar os próximos quatro anos apenas a sentir o aroma da bazuca, mas sem lhe tocar. Ainda assim, se tivesse que apostar, diria que a IL ainda vai crescer mais.
A geração mais formada parece ver na IL uma esperança real de desenvolvimento e, essa tendência, a do aumento das qualificações da população, não deverá diminuir na próxima década. Eu diria que o produto da IL continuará a ser apetecível e bem comercializado. O problema maior é mesmo quando se experimenta e se percebe que, afinal, o anunciado Volvo eléctrico, verde, seguro e confortável, era só um Citröen Mehari com dois cavalos e portas de plástico.
Não sei se André Ventura começou o day after na missa, agora que a CNN não estava por perto, mas imagino o que lhe passará pela cabeça. “O que é que vou fazer com esta malta no parlamento?”, deve ser o refrão mais repetido naquela voz de quem castiga a “Paixão” de Carlos Tê e Rui Veloso. Não sei se os eleitores do Chega tiveram a oportunidade de ver quem são os deputados que formam a nova bancada parlamentar. Diria que as ideias públicas dos 12 não chegam a metade das nove páginas do programa, portanto é coisa para se ler depressa.
Temos por lá um senhor, com 72 anos, sempre bom para quem quer abanar e renovar o sistema, que pertenceu ao MDLP, movimento de extrema-direita responsável por atentados bombistas depois da Revolução de 25 de Abril de 1974. Um ancião que, entre outras coisas e no seu devido tempo, defendia, tal como o avô deputado no regime salazarista, que Portugal devia manter o império em África.
Outros, mais novos, trazem para a Assembleia da República temas como “a invasão de Lisboa pelo mundo rural, no dia em que o Governo proibir a tourada”. Há também quem defenda o fim do corte de carne para consumo, como a que é feita por judeus e muçulmanos. Declara-se o “fim do racismo em Portugal” como um dado historicamente adquirido e comprovado.
Outro elemento deste dream team tem três dívidas públicas na lista de execuções do Estado português, imagino eu que por alguns Mercedes ou algo do género. Um deles é acusado de xenofobia por uma dirigente do Chega de origem brasileira, e outro tem uma petição pública feita por militantes do partido para que seja afastado das listas. Dizem, e cito, “o mesmo demonstra uma impreparação total e uma falta de literacia e intelecto para se candidatar ao cargo de Deputado da Assembleia da República”. Com amigos assim, este deputado não irá longe.
Quanto a vocês não sei, mas a sensação que me dá é que o Big Brother está a dias de se transferir da Venda do Pinheiro para a bancada parlamentar do Chega. Ou o Ventura fala pelos 12 e mostra a inutilidade dos restantes, num partido que se percebe ser unipessoal, ou distribui a palavra e contribui para o boom da indústria de memes.
Se tivesse que apostar diria que, ao contrário da IL, o Chega está próximo do seu pico de crescimento. Cecília Meireles falou ontem na CNN durante 12 minutos para explicar, em duas frases o que aconteceu ao CDS. O partido que se quis afirmar como a direita mais pura e conservadora, desistiu de falar para os portugueses e preocupou-se essencialmente com a discussão dos golpes palacianos. Pior, esgotou um tema tão abrangente como o mundo rural apenas em caçadores e touradas.
Cecília, de quem eu tinha ficado com uma boa impressão na comissão de investigação ao BES, disse no fundo o que todos já sabíamos: Chicão é um velho beato num corpo de 30 anos, com pensamentos típicos de quem está no Moçambique de 1963, achando-se um cristão decente porque deixa os empregados da sanzala comerem à mesa com o patrão.
Depois desta brilhante exposição, com a qual concordo, e que, em parte, já tinha escrito em crónicas anteriores neste jornal, Cecília Meireles disse que continuava a apoiar Nuno Melo.
Fiquei baralhado com o futuro deste CDS. Parecem querem sair de 1963 sem correrem o risco de verem 1974. Entre Chicão e Nuno Melo a diferença essencial está no racismo dito em voz alta. Que enorme travessia do deserto se adivinha para o CDS.
Que caminho sobra agora para o PSD? Um partido do sistema, com boys para colocar, clientelas dependentes e abutres à espera da TAP, em ano de bazuca, e com 71 almas no parlamento sem saberem muito bem o que fazer.
Se, quando foi necessário, Rui Rio não conseguiu fazer oposição, e se tornou no melhor amigo que Costa podia ter, como encarar agora estes quatro anos, sabendo que o dono da bola provavelmente não os deixará jogar?
António Costa pode ficar no cargo o tempo suficiente para se tornar o primeiro-ministro português com o maior número de anos em funções. O PSD sofre do mal de qualquer grande partido que passa muito tempo longe dos centros de decisão. As críticas internas multiplicam-se e as facções também.
Rui Rio conseguiu sempre derrotar os adversários internos, que não lhe deram grande descanso, diga-se, mas nunca conseguiu convencer o país de que estava preparado para o liderar. Tentou ao centro, e falhou. Tentou em terrenos da IL, e baralhou-se. Tentou normalizar o Chega, e selou o seu destino. O senhor que se segue, se fosse eu a escolher, seria Paulo Rangel. Na minha opinião representaria um corte definitivo com a extrema-direita e uma ameaça real à IL.
Dizem-nos que PCP e BE pagaram a factura do apoio à geringonça. Sinceramente, não acho que termine aí a dor da esquerda. Julgo que a rasteira do Orçamento, deixada por Costa, foi a imagem que ficou na memória mais recente. Chegamos, pois, ao cúmulo de o PS se preparar para aprovar um Orçamento de Estado, lembre-se, chumbado por quase todos os partidos em Dezembro passado, mas que ficou nas costas de comunistas e bloquistas.
O que se segue para ambos, agora com grupos parlamentares bem menores, caso queiram evitar o destino do CDS? São cenários diferentes na minha opinião. Em comum, o óbvio, devem voltar às políticas marcadamente de esquerda. À defesa dos trabalhadores, à luta nas ruas, ao combate frontal que fora do parlamento poderão fazer já que, lá dentro, o hemiciclo estará apenas com espectadores num jogo onde apenas o PS joga.
Colocar a estratégia para os próximos quatro anos na capacidade de diálogo de António Costa parece-me um risco desnecessário. Catarina Martins talvez tenha condições para continuar. Posso não gostar do estilo, mas reconheço a combatividade. Já Jerónimo não tem mesmo por onde seguir. Só por teimosia e absoluto conservadorismo é que Jerónimo de Sousa não sai já da liderança, abrindo caminho para João Ferreira. Ou até João Oliveira.
Se alguém me deixasse entrar no comité central para cinco minutos de prosa, pediria a Jerónimo para se despedir da Assembleia da República, receber a saudação e o respeito que todos lhe prestarão, mas, depois, deixar a renovação do PCP efectivamente acontecer. A hora já passou há muito, resta saber se num partido pouco maleável, alguém está disposto a dar um murro na mesa.
Rui Tavares é um parlamentar de quem espero algo bom, e, imagino, que possa beneficiar de um crescimento nas próximas eleições, em virtude da sua maior visibilidade a partir de agora. O Livre foi um projecto adiado por causa do caso Joacine Katar Moreira, mas, mesmo tendo que voltar à casa de partida, parece-me um projecto com alguma solidez para se manter na Assembleia da República.
Já o PAN, a não ser que António Costa lhes dê a mão como fez nos debates, não vejo como podem ganhar alguma relevância e inverter este ciclo de perda. Não há ideologia nem uma líder carismática ou de discurso cativante. A componente da Ecologia pode ser ocupada pelo Livre, e a maior parte das suas linhas programáticas são coincidentes com outros partidos, nomeadamente o PS. Só com as leis para os animais o discurso tender-se-á a esvaziar ainda mais.
A direita diz-nos que depois desta maioria do PS chegará a troika. A Moody’s, segundo notícias de hoje, parece contente e já faz contas à nossa dívida pública. Quando uma agência de rating começa a falar do nosso país, ainda que seja para elogiar, devemos logo esperar o pior.
O PS tem agora campo livre para cumprir o seu programa: aumento do salário mínimo, desdobramento dos escalões do IRS, creches públicas, a TAP, crescimento económico acima da média europeia, estabilidade na carreira de docente, semanas de trabalho de quatro dias, aumento do rendimento médio em 20%, redução da dívida para 110% do PIB e alteração de leis para a dignidade no trabalho.
Não sei onde estaremos daqui a quatro anos, mas, uma coisa é certa: de todas as desculpas para as falhas no cumprimento do programa, a única que o PS não poderá invocar será a do número de votos no Parlamento.
A manhã de dia 31 foi gloriosa para António Costa e para o PS. Pedro Nuno terá que esperar mais uns anos, e não há quem levante a voz internamente depois de uma vitória destas. Em democracia aceita-se tudo o que as urnas nos dizem, e, por isso, viveremos em regime de quero, posso e mando.
Regra geral, em Portugal, a população não beneficia com isso, já as clientelas costumam gostar muito.
O povo escolheu e o voto é soberano. Agora é aguentar.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
Décimo sexto episódio da Recensão Eleitoral (01/02/2022) – O dia seguinte de cada partido
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Este é o primeiro de uma série de três textos sobre a noite eleitoral.
O grande derrotado da noite foi, sem qualquer dúvida, Rui Rio. Não só viu o PS chegar a uma impensável maioria absoluta, depois de dois anos de crise pandémica e saturação da população, como ainda foi penalizado com a perda de deputados e fuga de votos para os partidos à sua direita, o Chega e a Iniciativa Liberal.
Rio disse na declaração de derrota que a esquerda se uniu em torno do PS mas, à direita, não se verificou igual movimento em torno do PSD. Deduz-se, pois, que a culpa estará nos receptores da mensagem, vocês, portanto, e não em quem a transmite. Em português e alemão assumiu que chegara a sua hora e que, por ele, a facção de “Rangelistas” podia ir começando a afiar as facas. Depois de quatro eleições perdidas e uma presença parlamentar nos próximos anos de puro corpo presente, resta pouco para fazer ao PSD de Rui Rio. A conta do jantar nos Açores com André Ventura demorou, mas chegou.
Francisco Rodrigues dos Santos e o CDS figuram entre os outros derrotados à direita. Pela primeira vez em democracia o partido conservador desaparece do Parlamento. Era um fim expectável e, apesar das sucessivas tentativas de Chicão, entre o combate aos opositores internos e a renovação dos quadros do partido, estimava-se que a debandada dos mais radicais para o Chega, ou dos mais progressistas para a Iniciativa Liberal, traria o fim anunciado. Veremos quem é o próximo aluno do Colégio Militar que quer pegar num partido que participará em debates acompanhado pelo RIR, MRPP, Aliança e Ergue-te.
João Cotrim Figueiredo e André Ventura foram os vencedores da noite à direita. Ambos criaram um grupo parlamentar – no caso do Chega com 12 deputados –, uma subida absolutamente estratosférica. Quase 400.000 pessoas em vários distritos acharam boa ideia votar num partido de índole racista e xenófoba, cujas principais discussões que trouxe para a campanha foram a castração química, prisão perpétua e os ciganos do RSI. Temas fundamentais e estruturantes na República Portuguesa, como se perceberá.
A Iniciativa Liberal conseguiu juntar quase 270.000 pessoas que concordam com a baixa de impostos aos mais ricos, saúde privada paga pelo Estado e escolas financiadas por todos, mas com acesso limitado a alguns. Beneficiaram largamente do deserto de ideias de Rui Rio, e da incapacidade deste se distanciar mais do Chega, para captar descontentes mais progressistas no PSD. A sensação com que fico é que, mesmo sem conseguir explicar os unicórnios do liberalismo, João Cotrim Figueiredo convenceu os desiludidos do PSD, mas com escolaridade suficiente para não aderirem ao Chega, que a IL era a única porta que lhes restava.
À esquerda a noite foi agridoce. Costa arriscou tudo no braço de ferro com o PCP e o Bloco, na discussão do Orçamento de Estado. Forçou eleições e convenceu a população que o chumbo do Orçamento era da responsabilidade dos parceiros de geringonça. Isto apesar de ter votado durante a legislatura, quase sempre, ao lado de PSD e contra PCP e BE.
A população acreditou e deu os votos que Costa precisava para não precisar de discutir com mais ninguém. O PS, a solo, em ano de enxurradas de dinheiro europeu, poderá decidir onde o quer aplicar e por quem o vai distribuir. Já há filas de boys a fazerem meia-volta do centro de emprego e empresas de construção à espera de novo ajuste direto.
António Costa, como já tinha escrito em crónicas anteriores neste jornal, saiu dos debates pouco amassado, e conseguiu sempre manter-se à tona da narrativa oficial das sondagens, tema a que voltarei no terceiro texto.
Explicou, ao vivo, como fez a cama a António José Seguro, a Pedro Passos Coelho e a Rui Rio, sem aparentemente se sujar, gritar ou cansar. Está claramente mais bem preparado para o cargo do que Rui Rio, mas a forma como vence deveria ser estudada em teoria política.
Bloco de Esquerda tem a maior queda da noite com a perda de 14 deputados. Uma hecatombe. Se António Costa soube culpar o BE pela queda do Governo, Catarina Martins nunca conseguiu desmascarar a estratégia do PS. Ao invés, insistiu naquele discurso ensaiado e sem alma, por vezes surreal, que levou a que eleitores do BE fossem na cantiga de Costa, do voto útil, para evitarem um governo de aliança entre a direita ou ao centro.
O PCP perdeu metade do seu grupo parlamentar, mas, pior do que isso, deixa de contar com deputados importantes como António Filipe ou João Oliveira. A campanha do PCP foi um misto de enganos e a ausência de Jerónimo foi a única coisa boa. Tal como o BE, não conseguiram distanciar-se da bola de ferro que Costa lhes colocou nos pés. Olhar para o destino do CDS deve agora ser uma prioridade. Sem renovação, arriscam-se ao mesmo destino.
O PAN também foi castigado, embora não se perceba bem se foi à esquerda ou direita. Inês Sousa Real não soube passar ideias que interessem verdadeiramente à maioria das pessoas e, como se não bastasse, mostrou-se confortável com alianças com qualquer Governo. A factura da falta de ideologia chegou na noite de ontem.
Já Rui Tavares recupera um lugar que devia ser seu há três anos. É uma lufada de ar fresco à esquerda, e uma esperança para uma esquerda que pode aprender algo com as esquerdas europeias que importam. Entre os perdedores da noite estão também as empresas de sondagens, e aquele inenarrável empate técnico que durou sete dias. Voltarei a este tema no terceiro texto desta análise.
Regresso amanhã com a segunda parte do rescaldo eleitoral, onde tentarei perceber o dia seguinte de cada partido.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
Décimo quinto episódio da Recensão Eleitoral (31/01/2022) – Como encher 12 horas de emissão?
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.