Etiqueta: Tiago Franco

  • O trabalhador, o CEO e a vergonha de se exigir justiça laboral

    O trabalhador, o CEO e a vergonha de se exigir justiça laboral


    O meu filho, com 13 anos feitos há dois meses, tem uma concepção do mundo do trabalho relativamente simples e prática. O plano dele é ir para uma universidade nos Estados Unidos e, em paralelo, trabalhar entre os 20 e os 25 anos, de forma a conseguir ficar milionário. Em seguida, palavras dele, quer aproveitar a vida, porque é mais fácil fazê-lo sendo milionário.

    Pessoalmente encontro várias falhas no plano. Desde logo, onde está o financiamento inicial para se tornar milionário? Na Suécia, onde ele nasceu e cresceu, a universidade é gratuita. Nos Estados Unidos custa um rim – europeu; se for afegão custa uns sete.

    O TikTok mostra-lhe os self made billionaires, como o Elon Musk na Land of Opportunities, sem lhe contar o arranque inicial com a mina de esmeraldas do papá.

    Mas tudo bem, não sou progenitor de estragar os sonhos. Também eu quero muito ir à Polinésia Francesa, e não admito que me digam o contrário.

    A discussão que verdadeiramente me interessa são os porquês.

    Qual a razão de se querer ser milionário e de ter dinheiro que não se consegue gastar em tempo algum de vida? Ou melhor, sabendo que quando o dinheiro se concentra num sítio é porque desapareceu de vários, qual é o desejo de acumular tanto?

    Contei-lhe a história de Mino Raiola, um predador de contratos de jogadores de futebol que gravitava em torno deles, conseguindo comissões absolutamente obscenas e uma fortuna acumulada sem nunca ter dado um pontapé numa bola. Representava tudo o que de errado e ganancioso existia no mundo dos empresários de futebol. Morreu esta semana, milionário, com pouco mais de 50 anos.

    Esta conversa surgiu no Dia do Trabalhador, e desenvolveu-se para a realidade do mundo laboral e dos self made billionaires como Bezos ou Musk. Nós, sociedade em geral, partimos quase sempre do princípio que é legítimo uma empresa acumular os lucros que conseguir e distribuí-los como bem entender.

    Pois eu não acho.

    A razão por que Bezos tem dinheiro de sobra para ir ao espaço, numa nave em forma de falo, é, entre outras, os salários e condições de trabalho que proporciona em muitos dos seus armazéns. O mesmo se passa entre os milionários portugueses, sejam eles donos da Jerónimo Martins ou da Sonae. A acumulação de lucro é feita nas e às costas dos trabalhadores e dos seus baixos salários.

    Há algum problema com o lucro? Não.

    Deve uma empresa ser gerida para a bancarrota? Não, claro que não.

    man in black framed sunglasses holding fan of white and gray striped cards

    Mas torna-se pornográfico quando entre o CEO e o trabalhador de base vão centenas de salários mínimos de diferença.

    Qual é a vergonha de dizer isto? Qual é o problema de exigir uma justa divisão da riqueza gerada?

    Por acaso os produtos do Continente criam-se e vendem-se por ordem divina? Não são resultado do trabalho de milhares de pessoas? Então que sentido faz a CEO ser aumentada em quase meio milhão de euros e a funcionária de caixa receber 700 ou 800 euros?

    No fim da história é, hoje e sempre, uma questão de opção. Em 2008 trabalhei numa empresa onde o chefe de departamento, graças ao trabalho de 160 como eu, recebeu um bónus enorme. Ele, que poderia ter comprado uma casa ou um barco, pegou no bónus e levou-me, com os outros 159, para um fim de semana em Budapeste com tudo pago.

    Teria ficado mais rico com aquele bónus? Certamente. Mas faria isso uma enorme diferença numa vida onde toda a base da pirâmide e das necessidades básicas está mais do que preenchida? Provavelmente não.

    É esta parte que decididamente não compreendo. A facilidade com que aceitamos ser explorados e nos resignamos ao “pouco é melhor do que nada”.

    gold and black car hood ornament

    Em 2017 disse, ao meu chefe de então, que estava cansado de trabalhar para deixar na empresa mais de metade do lucro produzido. Exigi fatia justa daquilo que era gerado por mim. No meu ramo de actividade tudo isso é facilmente quantificável, porque os nossos serviços são vendidos a um preço por hora [bem, dito assim até parece que o escritório é na recta de Coina; enfim, o pessoal da margem sul entenderá].

    Andei uns bons 10 anos a encher a mala a multinacionais sem que o esforço de estar longe de casa fosse verdadeiramente compensador. Fartei-me e despedi-me. O meu empregador de então ainda me ameaçou com um processo em tribunal por perder o contrato com o cliente da altura (Volvo), uma vez que eu me recusava a continuar a trabalhar para ele.

    Curiosamente, de tudo o que tentou para me manter a trabalhar, entre tribunais e listas negras em empresas de engenharia, nunca pensou em dividir o bolo das receitas. Os custos operacionais, o carro dele, o escritório dele, o cartão de crédito dele, o salário dele, tudo o que mantinha o CEO como CEO era mais importante do que a restante ralé, onde obviamente eu me incluía, já na casa dos 40 anos.

    Quando me vim embora – aliviado, mas um pouco sem saber o que fazer –, acabei por me juntar a uma empresa muito pequena, gerida por um amigo de longa data que escolheu entrar no ramo por conta própria. Optou por um modelo de gestão onde 80% dos lucros gerados vão para os trabalhadores. Não ficou rico, mas saiu do pior bairro de Gotemburgo, onde vivia, e mudou-se para uma zona boa da cidade.

    Todos os que ali trabalham ganharam a liberdade de negociar a venda da sua força de trabalho, e todos, sem excepção, melhoraram as suas condições de vida. Em jeito de brincadeira, digo-lhe sempre que, para quem chegou aqui num C130 a fugir à guerra, não está mau.

    Portanto, sim, é uma opção, a de querer ser milionário à custa do trabalho dos outros – ou a de, sempre que possível, contribuir para o aumento da classe média.

    A ganância da concentração de recursos em meia-dúzia de pessoas é que destrói a sociedade, não é um trabalhador querer viver de forma confortável com o resultado do que produz. Perceber isto é metade do caminho. A outra metade é parar. Parar tudo. Até que se perceba que é o trabalhador que gera lucro, e não o contrário. Pode ser que aí possamos aspirar a essa utopia de uma classe média para todos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ¿Por qué no te callas?

    ¿Por qué no te callas?


    Estava a preparar um texto do Primeiro de Maio, a pensar no Elon Musk, enquanto dois comentadores debatiam na CNN Portugal os próximos passos nas relações com a Rússia.

    Não conheço nenhum, nem os seus nomes me parecem aqui relevantes, mas senti magia nas palavras de ambos. Um dizia que tinha sido um erro a União Europeia ter criado uma dependência energética da Rússia. Acrescentou que “pensámos que, com as relações comerciais, a Rússia se tornaria numa democracia, mas estávamos errados. Temos que escolher parceiros mais fiáveis para o futuro”.

    Há aqui uma verdade absoluta. Dependência energética é má, concordo. Seja de quem for. E pela quantidade de fichas que metemos nos carros eléctricos significa que, em princípio, continuamos sem perceber o essencial.

    Mas gostei da parte onde perceberam que a democracia na Rússia afinal é fraquita. Quando distribuíamos Vistos Gold, a torto e a direito, pelos russos, correndo com os lisboetas para Corroios, o Kremlin era uma Assembleia Grega. Se a coisa avança e os chineses vêm em auxílio do Vladimir, ainda arriscamos ver algum quadro da EDP a dizer: “mas então, esta democracia não era das nossas?”

    Melhor ainda foi a frase de “temos que ir atrás de parceiros mais confiáveis”. É que a União Europeia virou-se entretanto para a Arábia Saudita e para o Qatar. Alguém sabe que partido ganhou as últimas autárquicas em Doha? Fiquei com a sensação que tinha sido o Al-Mesmo-de-Sempre, mas não sigo com acuidade a política do Golfo Pérsico. Já em Riade julgo que o novo presidente da autarquia também não gosta de bicicletas: parece que o chicote que leva à cintura prende-se nos raios.

    Gosto desta conversa das democracias à la carte. Os mujahidins foram, na década de 80, para a Time, uns freedom fighters – esta, por acaso, dava para aprender no Rambo III. Já no início do século XX passaram a terroristas.

    A Ucrânia era, até há uns meses, um estado corrupto sem os mínimos para sequer se candidatar à União Europeia. Hoje, já é uma democracia sólida. A Rússia largou o comunismo há várias dezenas de anos – há quem defenda que já vai em quase um século –, mas é hoje o invasor comunista.

    tables and chairs inside the hall

    A Líbia era uma ditadura, e quando o petróleo passou para mãos francesas deixou de existir nas notícias, apesar de viver numa anarquia há uma década.

    O que eu não percebo nestas análises é o porquê de termos que reescrever a História para justificar as nossas análises. Putin sempre foi um extremista que alimentou os fascistas europeus. Não é comunista, nunca foi. Não quer democracias. Terá sonhos imperialistas, acredito. E sempre foi isto. Quando sorria ao lado da Merkel, quando apertava a mão do Obama, ou quando fazia investimentos por toda a Europa e África.

    Então, ninguém queria saber se Putin roubava os recursos do seu próprio país a favor dos oligarcas, desde que, lá está!, o gás corresse para o lado certo. Ninguém apontou o dedo, ninguém questionou a democracia.

    Portanto, façam lá o favor, agora, de não serem uma cambada de hipócritas. Putin já foi isto na Geórgia, na Chechénia, na Crimeia. E ninguém quis saber. Não suporto virgens ofendidas consoante o drama do momento.

    Há nesta guerra um invasor e um invadido. Não há dúvida disso. Mas façam-me o favor de não criarem uma realidade que nunca existiu, na Rússia ou na Ucrânia. Na RTP3, ouvi Inês Pedrosa afirmar que o Batalhão Azov não era uma milícia nazi. Quer dizer, para negarmos a narrativa de Putin – que a Ucrânia é governada por nazis, o que é obviamente falso –, caímos no outro extremo que é o de transformarmos nazis em freedom fighters. E eu já disse que não me choca ver nazis na defesa de um país. Em tempo de guerra não se limpam armas. Mas por favor, parem de pintar quadros alternativos. Torna-se insuportável.

    sunflower field under blue sky during daytime

    A outra senhora que comentava na CNN Portugal dizia, por sua vez, que, como prioridade, tínhamos que avançar para o armamento dos países europeus. A ideia é a de nos prepararmos para o que aí vem. Já com a Suécia e a Finlândia no grupo e, a propósito, depois de caças russos terem passado aqui por casa hoje.

    Pergunto a esta senhora, até apelando à sempre discutida igualdade entre os sexos: vestirá ela um colete, empunhará uma arma e virá, com todos os restantes, homens em idade de combater, afundar-se nas trincheiras e dar o corpo às balas?

    Ouço todo o santo dia conversas de “vamos a eles” que me arrepiam, tal é a facilidade de lidar com balas, morteiros, mísseis e, quiçá, um ou outro cogumelo atómico. Eu não sei se andam a aprender história no Rambo III, ou como sobreviver a bombas nucleares com frigoríficos no Indiana Jones IV, mas acreditem que, neste caso, o filme não acaba no Air Force One com o Harrison Ford a esmurrar o árabe e a bradar, triunfantemente, get out of my plane. Será coisa para aleijar um pouco mais, garanto-vos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Luís Montenegro, um acidente no horizonte

    Luís Montenegro, um acidente no horizonte


    A insónia é a minha pior maleita. Reza a lenda que começou aos dois anos, e deduzo que me acompanhe até ao descanso final. Ontem, em mais uma dessas noites, resolvi ver o que passava na RTP3 já para lá da meia-noite, na hora local do meu estimado Ártico.

    Vítor Gonçalves, na sua “Grande Entrevista“, tentava colocar umas questões relativamente simples a Luís Montenegro, um dos candidatos à travessia do Saara em patins nos próximos quatro anos, também conhecida por “liderança do PSD”.

    Questionava o bom do Vítor sobre a linha vermelha que entalou Rui Rio. “Então, e o Chega? É desta que alguém nos diz um sim ou não?”. Montenegro passou os minutos seguintes a elaborar uma tese que daria para apresentar na defesa de José Sócrates. Infelizmente, não respondia era à pergunta…

    Luís Montenegro em entrevista conduzida por Vítor Gonçalves na RTP3, em 27 de Abril passado.

    O Vítor tentava agora o gancho, e o Luís esquivava-se novamente, com um bom jogo de pés, dizendo que “não vou perder mais tempo com essa conversa que, no fundo, é fazer um frete ao PS”.

    O entrevistador, sorrindo, dizia-lhe que, “em vez de divagações tão longas, poderia reduzir o tempo dizendo apenas um sim ou não”, ao que o amigo Luís, ainda não satisfeito com o conforto do buraco cavado até ai, acrescentou “mas não é uma resposta de sim ou não!”.

    Oh Luís!, oh Luís!… é pois! Se te perguntassem, por exemplo, se a pizza deve ser comida com talheres ou não, é que era uma resposta não binária. Terias um infindável número de factores a considerar.

    Estás a comer a pizza no sul de Itália e não queres levar uma chapada? Usas a mão.

    Estás num primeiro encontro romântico? Arriscas o garfo.

    A pizza vem a ferver, mas estás esganado sem hipótese de esperar? Metes as fichas todas nos talheres.

    A base é muito fina e quando pegas no pão cai-te tudo nas calças? Voltas ao garfo.

    Estás a comer com a tua mulher e és casado há 30 anos? Comes com a mão, em qualquer circunstância, porque já não tens nada a perder.

    Não sei se me estou a fazer entender, Luís. Às vezes sou um pouco limitado no uso da metáfora. Mas acho que percebes a coisa…

    Agora, quando nos perguntam diretamente: “ouve lá, gostas de fachos?”; nós, em princípio, dizemos que não. É mesmo daquelas questões em que não usamos o 50/50 ou a ajuda do público. Basta teres completado o 9º ano sem faltar às aulas sobre a década de 40. É só disto que precisas para responder à pergunta do pobre Vítor.

    A minha insónia piorou, aliás, porque comecei a ficar interessado, cada vez mais, na catadupa de disparates.

    Infelizmente, sou uma daquelas pessoas que contribui para o caos no trânsito, sempre que acontece um acidente. Não consigo parar de olhar quando vejo uma desgraça. Assumo. Ouvir o Luís nesta entrevista foi como estar na Segunda Circular às 6 da tarde num dia de chuva.

    E pensei com os meus botões que o legado de Rui Rio estaria, se calhar, bem entregue – e, provavelmente, com resultados eleitorais idênticos.

    Mas Montenegro não se ficou por aqui. Piscou o olho à Função Pública, dizendo ser preciso atrair talento com melhores salários. Segundo ele, uma técnica superior não pode levar para casa 900 euros. Fez-se a “hola mexicana” em casa de cada funcionário público, e, antes que se voltassem a sentar no sofá, esclarecia o Luís que era necessário contribuir para as nossas responsabilidades na NATO, os tais 2% destinados ao Ministério da Defesa, indo buscar dinheiro com uma “melhor gestão da Administração Pública”.

    “Por exemplo, na Saúde”, dizia ele, “podemos poupar muito dinheiro”. Nada contra evitar o desperdício da má gestão, contudo, todos os que andamos por cá desde o tempo do Cavaco que percebemos o politiquês da coisa. Entendemos que esta é a famosa conversa das gorduras do Estado, que levou a uma década de congelamento das carreiras, destruindo parcialmente o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Escola Pública. Isto, claro, enquanto se continuou a salvar a banca privada.

    Não sei absolutamente nada do outro candidato à liderança do PSD para lá do seu nome, Jorge Moreira da Silva, do seu anterior emprego (OCDE) e da total recusa em estabelecer conversas com o Chega.

    Se não quiser também rebentar com a Administração Pública para desviar o dinheiro para os lobbies – sejam estes da banca, da construção ou do armamento –, já parte em vantagem nesta corrida.

    Não é que algum dia vá votar em qualquer um deles, mas, como se vê pela maioria absoluta e crescimento da extrema-direita, o país não ganha nada com um PSD de joelhos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial

    O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial


    Aqui há uns dias tive uma discussão com um amigo sobre o “estado da arte” na Ucrânia. Discussão não; um debate. É sempre bom lembrar que mesmo na maior das discordâncias ainda somos capazes de conviver e tolerar as opiniões alheias. Já não é mau para os tempos que se vivem, onde escolhemos odiar a cada divergência.

    Eu acho um erro continuar a armar a Ucrânia, ele acha que se deve “armar pela paz”. Como nos bombardeamentos de Belgrado ou nos ataques de Nagasaki e Hiroshima. Matar pela paz. Foi este o início de conversa, e o cabo das tormentas, que, julgo eu, divide a maior parte das opiniões.

    person touching and pointing MacBook Pro

    Percebo a visão de continuar a armar a Ucrânia. Não o digo de forma irónica, percebo mesmo. Há um invasor; logo, temos que correr com ele. E para esta argumentação vou fugir ao whataboutismo abordado noutras crónicas. Vou ignorar todos os demais invasores a quem continuamos a estender a passadeira, consoante os interesses económicos do momento, e focar-me apenas no caso ucraniano.

    Se optamos por continuar a armar a Ucrânia temos duas saídas possíveis no pensamento.

    Ou acreditamos que os ucranianos, sozinhos, vão conseguir fazer o regime de Putin capitular. Ou então, alimentamos a escalada do conflito até a intervenção da NATO ser irremediável. Em qualquer um dos casos morrerão mais ucranianos e corremos o risco da utilização das armas nucleares. No segundo caso, deixamos de assistir à guerra pela CNN, já que entraremos num conflito global.

    Sempre que ouço o facilitismo com que se discute a escalada bélica, pergunto-me se os autores de tal discurso estão dispostos a sacrificar o seu estilo de vida, ou mesmo a própria vida, com as consequências de tais actos.

    Depois, para quem defende o armamento contínuo, esperando por uma rendição russa – lembremo-nos que, neste momento, o desequilíbrio de forças é de 10 para 1 –, é preciso lembrar que dois dos maiores exércitos do mundo (China e Índia) não só não condenaram a invasão como continuam a fazer negócios com a Rússia.

    Portanto, caso cheguemos a um conflito global, quem é que nos garante o lado em que ficarão indianos e chineses?

    landscape photography of trees

    Eu compreendo a solidariedade com um povo que sofre. Com todos, já agora. Só não vislumbro menos mortes com mais armas. É apenas isso.

    Isto leva-nos ao odioso da questão. E então, qual é a alternativa? Deixamos os ucranianos entregues à sua sorte?

    Ora, a não ser que de facto um exército estrangeiro vá para o teatro de operações, os ucranianos estão entregues à sua sorte. E com todos os erros de cálculo dos russos, com todas as perdas assumidas, com todo o material deixado a meio do caminho, são os ucranianos que estão a perder as famílias, a ver as suas cidades arrasadas e a perder o controlo do Este e Sul do país.

    Por mais injusta que possa ser a discussão com o inimigo e invasor, de que servirá chegar a essa conversa com um número de mortos maior?

    Ouvindo os jornalistas no terreno e os especialistas militares, tenho a sensação que estamos a assistir a uma viagem entre Lisboa e Porto. A dúvida parece apenas ser se lá chegamos rapidamente ou se optamos por dar a volta pelo Algarve. Quanto maior for o percurso, mais pesada será a factura na contagem de mortos e mais do território haverá para reconstruir.

    Sim, porque essa também é uma parte que convém não esquecer. Quando a poeira da guerra assentar e se enterrarem os mortos, Putin – ou o que sobrar do seu regime – estará isolado do resto da Europa (espero eu!) com os restantes amigos de França, Itália e Hungria, entre outros.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Mas a Ucrânia, com o FMI a bater à porta, terá um garrote financeiro por décadas. Os falcões da guerra lucram sempre duas vezes. Primeiro, com o ecoar da destruição provocada pelas armas; depois com a estridente azáfama dos camiões e das escavadoras.

    Em resumo, se continuarmos a enviar armas ninguém se sentará à mesa e com mais mortos, o regime de Zelensky ficará na mesma sem os territórios ocupados e com uma factura maior de reconstrução. É chegar ao mesmo sítio usando um caminho maior.

    Para as armas, que enviamos, servirem de facto para ganhar esta guerra, então temos que estar preparados, sem burocracias, para intervir. Nós, a tão famosa comunidade internacional.

    Na frieza do pragmatismo parece-me que, apesar de tudo, ainda são dois cenários bastante diferentes. Um leva à perda de parte de um território soberano. Com tudo o que isso tem de injusto para um povo – ninguém o discute. O outro, leva a um conflito mundial. Perdoem-me quando digo que, entre estes dois males, não pode haver dúvidas sobre qual o caminho a seguir.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje mais do que nunca, sempre!

    Hoje mais do que nunca, sempre!


    Na capa da revista do semanário Novo, João Lagos, o conhecido organizador do Estoril Open, dizia há poucos dias que “cheirou-me que o 25 de Abril não seria bom para o ténis”.

    O contexto completo seria que, nessa altura, sendo o ténis um desporto de elites, depois do 25 de Abril de 1974 passaram os seus executantes a serem chamados de fascistas, burgueses e por aí fora.

    O Novo, que apesar do nome já cheira a mofo, vai fazendo o que pode para trazer os valores, os interesses e as notícias de outros tempos. Imagino que tenham na calha um exclusivo da Exposição do Mundo Português de 1940 e ainda um roteiro gastronómico com as melhores tascas de Santa Comba Dão.

    yellow ball on water during night time

    Devo dizer que concordo no essencial com João Lagos. O ténis sofreu com a Revolução. Antes era um desporto reservado a uma certa classe social. Por exemplo, nas colónias, os campos de ténis eram só utilizados pelos colonos brancos. Hoje, qualquer preto da Amadora vai à Decathlon em Alfragide e compra uma raquete por 30 euros. Onde é que isto vai parar?

    Mas não foi só o ténis que sofreu com a insurreição dos Capitães. Assim de repente lembro-me de mais umas quantas actividades que ficaram para sempre traumatizadas.

    Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Antes desse 25 de Abril de má memória, simplesmente não existia; depois teve que se apresentar ao trabalho e começar uma vida de amarguras com pobres aos rodos nos corredores dos hospitais. A assistência médica durante a ditadura não estava disponível para todos, e em casos mais agudos, e na eventualidade de seres de uma classe mais baixa, falecias só. O que era óptimo em termos de gestão das contas nacionais, porque se poupava muito em pensões e subsídios de desemprego. 

    O problema é que nessa altura também não existiam pensões ou subsídios de desemprego. Outra consequência desagradável da Revolução dos Cravos foi a tentativa de criar uma rede social que não deixasse ninguém na miséria absoluta. Pior ainda, decidiram criar um salário mínimo nacional. Portanto, à própria Economia, tal como a João Lagos, lhe cheirou que isto dos chaimites no Largo do Carmo ia dar asneira. 

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    De repente, um país que estava habituado a gastar o dinheiro dos impostos em guerras em África, onde uma geração morria sem saber porquê, viu-se na contingência de criar uma rede de apoio social e um sistema universal de saúde gratuito. Não só as pessoas deixaram de morrer entre saraivadas de balas na selva como, na Metrópole, deixaram de temer uma pneumonia como se de peste se tratasse. Imaginem o rombo nas contas! 

    Mas a catástrofe não ficou por aqui. O acesso ao emprego também passou a estar consagrado na Constituição da República e a deixar, legalmente, todos com hipótese de serem o que quisessem ser. Independentemente de sexo, raça, cidadania ou território de origem.

    O preto já não tinha que trabalhar na sanzala ou servir o colono. A mulher já não precisava de ficar em casa e ter como objectivo de vida tratar do marido. Agora pensem como isto destruiu o ego masculino e nos trouxe para a cama da insegurança.

    Foi o grande boom dos consultórios de psicanálise. Antes de 74 tínhamos criados, zonas em espaços públicos só para brancos e acesso ao emprego condicionado a um clube. Depois da malfadada Revolução, entrámos num mundo aberto e, em teoria, acessível e mais justo para todos. Ao movimento do macho alpha, tal como ao João Lagos, cheirou-lhe logo que isto do PREC ia deixar traumas.

    Não contentes com o acesso de todos ao mundo laboral, ainda criaram regras mais ou menos civilizadas. Isto quando o processo de jorna e de recolha de homens nas praças para jornadas de trabalho funcionava tão bem.

    De repente, passou a existir um horário de trabalho de oito horas diárias e dois dias de descanso. Em cima disso, a loucura das férias pagas e do direito a licença de maternidade. Foi também nesta altura que o patronato começou, tal como João Lagos, a pensar: “Regras? Isto vai dar merda.”

    group of men in black and gray helmet standing on road during daytime

    E, por esta altura, ainda não se tinham lembrado do direito à greve. Reclamar? O trabalhador pode reclamar se não concordar com o empregador? Mas está tudo doido? Ainda ontem estavam felizes com um cabaz de pão, vinho e azeitonas, e agora temos que negociar como vender a força de trabalho?

    O 25 de Abril foi também muito mau para os lucros dos patrões. Sem aviso, tiveram que começar a tratar os trabalhadores como algo mais próximo de um ser humano.

    Mas o pior de tudo, e que Abril nunca mais endireitou, foi a beleza do acto eleitoral do partido único. Uma pessoa sabia sempre o resultado e, aqui e ali, até se contavam votos dos mortos, o que era sempre uma forma de manter os defuntos entre nós. Um conceito de família para a eternidade numa sociedade devota e cheia de fé.

    Hoje tudo isto acabou, e qualquer pessoa pode formar um partido político com base nas suas convicções. Por muito idiotas que estas sejam, estão protegidas, em princípio, pela liberdade de expressão e de pensamento. Uma facada irreparável no silêncio e tranquilidade vividas até Março de 74, quando as opiniões eram controladas e as publicações autorizadas apenas depois de passarem no filtro editorial.

    Agora todos dizem o que pensam, escrevem o que querem, falam do que lhes apetece. Uma chatice. Se a saudosa PIDE-DGS ainda aplicasse o lápis azul, teríamos para ler, com alguma probabilidade, apenas o Novo e o Observador. O que seria óptimo para as poupanças familiares, sabendo nós, desde que a troika nos informou, que vivemos sempre acima das nossas possibilidades.

    Há quem chame a tudo isto Conquistas de Abril.

    Conquistas que se vão ensombrando um pouco por toda a Europa com o crescimento dos movimentos de extrema-direita, muitos deles apoiados pelo inimigo número um do momento: o Vladimir, que hoje ninguém conhece mas que, durante anos, passeou, tirou fotografias e fez negócios com os principais líderes europeus.

    Até por cá, na nossa pequena democracia, temos um saudoso do Estado Novo que, imitando uma tradição salazarista, forrou os gabinetes dos deputados do seu partido na Assembleia da República com retratos do grande líder. Que saudades desses tempos parece ter o nosso André. 

    woman in black and white tank top leaning on wall

    O mais importante, e que estes últimos anos parecem querer ensinar-nos, é que nada é garantido. A liberdade que hoje conhecemos está, de facto, constantemente ameaçada por uma classe de privilegiados, dentro e fora de portas, que preferem um mundo cheio de compartimentos e acessos restritos.

    E é por isso que, ironias à parte, Abril ainda não terminou. Se há milhões de europeus e milhares de portugueses que, livremente, votam em partidos políticos de índole fascista, significa que a Revolução ainda não cumpriu os seus propósitos.

    E por isso dizemos, hoje mais do que nunca, 25 de Abril. Sempre!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem quer ser professor?

    Quem quer ser professor?


    Maria de Lurdes Rodrigues, actual reitora do ISCTE, num debate sobre o futuro da Educação na RTP, disse: “não sei como chegámos aqui, e nem quero saber, quero olhar para o futuro”. O “chegámos aqui” é a falta de professores, que existe hoje, e que se agravará ainda mais com o envelhecimento da classe.

    Também não sou grande coisa de memória, até escrevo temas para estas crónicas nos braços para não me esquecer passados cinco minutos. Ainda assim, deixo duas sugestões para início de conversa do “por que razão não temos professores suficientes hoje?”:

    1 – Pedir à Maria de Lurdes Rodrigues, reitora do ISCTE, que pergunte à Maria de Lurdes Rodrigues ex-ministra da Educação de governos PS. Podia ser que a segunda elucidasse a primeira que, hoje, parece sofrer de amnésia localizada. Como a do Salgado, mas com um livro de cheques mais modesto.

    2 – Porque as carreiras estiveram congeladas 10 anos e os salários são uma miséria?

    people sitting on chair

    A maior parte dos intervenientes no debate repetiram que, hoje, a carreira docente não é atractiva. Entre salários baixos, contratos temporários e colocações onde Judas deixou as botas (termo técnico), não são assim tantos os que sonham com essa vida depois de quatro ou cinco anos numa universidade.

    Isso seria um problema em qualquer parte do Mundo; logo, em Portugal, com o seu crónico atraso nos níveis de Educação, o impacto ainda é maior.

    Eu acrescentaria os problemas familiares provocados pela distância.

    Pouco acompanhamento dos filhos ou dificuldades de ter uma vida normal de casal. Um professor no século XXI é um nómada. Roda escolas na esperança de algum dia ficar efectivo algures.

    Passa 10 anos sem progressão salarial enquanto o custo de vida do país galopa ao ritmo das melhores capitais europeias.

    grayscale photography of two people raising their hands

    Os habituais detratores da Função Pública repetem até à exaustão que os professores apenas trabalham 35 horas, quando, é mais ou menos senso comum, que depois das aulas ainda têm mais umas horas pela frente para preparar matéria, fazer avaliações ou embrulharem-se em tarefas burocráticas.

    Um dos professores presente no debate dizia que as plataformas informáticas apareceram para substituir o papel e facilitar o trabalho administrativo, mas, numa medida muito portuguesa, estes continuavam a fazer tudo em papel, repetindo a informação que deixavam na plataforma.

    Faz-me lembrar a anedota do burocrata a quem pediram para reduzir o arquivo, e ele disse, convicto, para a secretária mandar tudo fora depois de tirar uma fotocópia. É algo muito nosso, precisamos de papel que valide outro papel. Não há “cloud” que safe este rectângulo à beira-mar plantado.

    Sou da opinião que professor e médico são as profissões mais importantes em qualquer sociedade civilizada. Um salva vidas, outro forma. E é por isso que não entendo muito bem como é que chegámos ao ponto de ser tão pouco atractivo ser professor.

    Esse é o primeiro passo para conseguir apenas aqueles que vêm na carreira uma terceira ou quarta opção, enquanto os melhores fogem para outros sectores de actividade. Se um bom professor forma milhares de alunos, um mau também os deixa mal preparados para o que se seguirá.

    Não há muitas voltas a dar a isto, e por muito que os sucessivos Governos fujam, a questão dos salários é crucial. As pessoas vendem a sua força de trabalho a troco de uma compensação financeira que se espera justa. Os professores não são diferentes.

    Por muita paixão que tenham pelo ensino e pelos seus alunos, também pagam contas. E ao fim de 20 anos de trabalho, divididos por não sei quantas escolas e concelhos, levar 1.200 euros para casa é um insulto. Especialmente se pensarmos que Portugal anda há 35 anos a receber subsídios e escolheu, apesar do seu diminuto tamanho, ceder ao lobby do betão e construir uma rede de auto-estradas como nenhum outro país europeu tem.

    Para se compreender as decisões dos sucessivos Governos, podemos pensar nas três auto-estradas que ligam Lisboa ao Porto. São 300 quilómetros com três opções rápidas. Noutro país daria prisão, em Portugal deu votos. No mesmo sítio onde se recusam a deixar um banco privado ir à falência durante 13 anos, aceitam deixar milhares de professores a recibos verdes ou com o mesmo salário anos a fio.

    people raising hands with bokeh lights

    Portanto, se não querem procurar os culpados do passado, como disse Maria de Lurdes Rodrigues, pelo menos não repitam os erros no futuro. Usem o Orçamento do Estado para o que ele serve, e comecem a pagar aos professores o que eles merecem. Não há dignificação da carreira docente sem salários de Primeiro Mundo.

    E aos professores que lutam por melhores direitos, façam um favor à classe: ponham uma guia de marcha ao Mário Nogueira. Os sindicatos são essenciais neste processo, e o Nogueira, ao fim de 20 anos sem entrar numa sala, é como um jacaré numa banheira. Só atrapalha.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Páscoa de chamas na Suécia

    Páscoa de chamas na Suécia


    O fim de semana de Páscoa esteve quente em várias cidades suecas. Esta entrada poder-nos-ia levar a pensar que esta seria uma crónica do saudoso Anthimio de Azevedo, mas não. Vamos falar de nazis, tema em voga há 70 anos, e que nunca desilude.

    Rasmus Paludan, um advogado gordinho de quem nunca tinha ouvido falar, é o fundador do Stram Kurs, um partido nacionalista de extrema-direita da Dinamarca, que, curiosa e felizmente, também nunca tinha ouvido falar.

    O bom do Rasmus, filho de um cruzamento entre suecos e dinamarqueses, e por isso beneficiado com dupla nacionalidade, pode dizer asneiras em ambos os lados da ponte Öresund, a maravilha da engenharia que liga Copenhaga a Malmö.

    Pegou no carro e em alguns amigos, e veio fazer uma tour pelo sul e centro da Suécia, com uma agenda bastante simples: falar em praças vazias para quem ali passava e, sempre que possível, queimar um Corão. Esta foi a estratégia de marketing pensada pelo gordinho para entrar no “mercado sueco” e tentar conseguir juntar assinaturas para concorrer às próximas eleições.

    O Stram Kurs, uma versão escandinava do PNR, Ergue-te ou qualquer outra coisa que o José Pinto Coelho se lembre amanhã, já disputou eleições, aqui ao lado de onde vos escrevo, na Dinamarca. Entre algumas frases polémicas, encontra-se esta: “a melhor coisa que poderia acontecer era não sobrar um muçulmano na nossa querida Terra”. Portanto, uma ternura de homem apenas com alguns problemas mal resolvidos.

    Agora, depois de umas dezenas de votos em 2017 e uns milhares em 2019 (com suspeita de fraude e suspensão) na Dinamarca, Rasmus Paludan tenta concorrer às eleições suecas em 2022.

    Num país onde uma em cada cinco pessoas vota no Chega local (Sverigedemokraterna), a quota de fascistas parece já estar bem preenchida, e não sei se há muito espaço para nazis da linha dura.

    Para já, a tour do Rasmus conseguiu que membros das várias comunidades muçulmanas se juntassem nas diferentes cidades em protesto pela queima do Corão. Protestos esses que resultaram em confrontos com a polícia, carros destruídos, gente ferida e prisões.

    Eu pensei, na minha mais profunda ingenuidade, que a sociedade cairia que nem um trovão em cima deste energúmeno, e que, em momento algum, se discutisse a liberdade de expressão numa acção que é simplesmente de incitamento ao ódio. Não há qualquer hipótese de discutir uma ideia política com alguém que vê num livro a arder uma mensagem. Seja o Corão, a Bíblia ou a Tora. É irrelevante para o que aqui se debate.

    Quem não tolera outras raças, outros credos ou outros tons de pele, não tem sequer base para o início da conversa. Com um fascista não se discute, combate-se.

    people kneeling and praying during daytime

    Hoje, no Göteborg Posten, o maior jornal da cidade de Gotemburgo, vejo um editorial onde se exigem mais e melhores meios para a polícia. Canhões de água e toda uma lista de requisitos que transformem as pacíficas forças de segurança, pouco habituadas a motins, numa SWAT de louros que, ao mais pequeno sinal de manifestação, aprendam a disparar e depois perguntar.

    Curiosamente, nem uma palavra sobre prender o gordinho que originou tudo isto. Ou seja, envolto na capa da liberdade de expressão, o fascismo e o nazismo tiveram tempo de antena, e o odioso ficou do lado de quem mostrou a sua indignação.

    Mais de 70 anos depois de termos dito “nunca mais”, vou-me convencendo que o maior perigo neste cancro, que se espalha novamente pela Europa, não está necessariamente nos nazis que se assumem de megafone numa praça perdida. O real problema está naqueles que, em silêncio e nos escritórios, parecem concordar com eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Sonae como exemplo de uma mentalidade

    A Sonae como exemplo de uma mentalidade


    A conversa de aumento de salário indexado à produtividade, repetida até à exaustão, é uma narrativa que me enerva. Como tal, acaba em texto.

    Já todos perceberam esta parte, e por isso avancemos para o cerne da questão, como diria Pacheco Pereira, o mais famoso comunista nos quadros do PSD.

    Apesar dos lucros estratosféricos, a Sonae recebeu um apoio do Estado como forma de compensação para o aumento do salário mínimo nacional. Gente que fez a contas reporta que, com apenas 0,15% dos lucros do último ano, a Sonae conseguiria sem qualquer ajuda pública pagar o aumento envergonhado do salário mínimo.

    Cláudia Azevedo, CEO da Sonae

    Ao mesmo tempo, a companhia divulgou um aumento no salário da sua CEO na ordem do meio milhão de euros. Arredondando, chegamos mais ou menos ao apoio recebido do Governo.

    Liberais, apoiantes do Chega, saudosos do Passos Coelho e os quatro apoiantes do Nuno Melo dizem: “Qual é o problema? Uma empresa remunera a sua Administração como bem entender.”

    Permitam-me discordar.

    Uma empresa privada faz o que quer na sua gestão, desde que não receba fundos públicos de apoio.

    Depois, e esta é uma opinião arriscada que assumo, não podem as empresas continuar com este eterno modelo de salários miseráveis na base da pirâmide; e, depois, sem qualquer problema ético ou moral, continuarem a premiar os gestores de topo. Estes recebem salários anuais de milhões; cá em baixo, uma operadora de caixa do Continente luta para sobreviver com 750 euros mensais.

    Se é este o modelo ad aeternum dos empresários portugueses, assumamos todos que queremos um país de mão de obra barata, onde os mais qualificados procuram a porta da emigração e se recusam a viver na pobreza, mesmo trabalhando 40 horas semanais.

    Esse é o drama nacional: ser possível trabalhar 160 horas por mês em Portugal e ser pobre.

    Este é um conceito que, na tal comunidade ocidental, que se resume a 10% dos países mundiais, já não existe. Uma pessoa que trabalhe um horário regular tem, a troco da sua força laboral, a recompensa suficiente para uma vida digna, confortável e digna.

    Não é pobre, não tem que alugar uma casa até à velhice, e, luxo dos luxos, até se pode dar ao desplante de ver um bocadinho do Mundo que a rodeia.

    Numa frase simples, pode viver sem a angústia de escolher entre a conta da luz, os livros escolares dos filhos. Ou o bife de vaca, que a Jonet já nos avisou, há uns anos, não poder ser um hábito, enquanto nos continua a carpir que compremos para o seu Banco Alimentar latas de atum e esparguete para os pobrezinhos no Continente, aumentando os lucros da Sonae e engrossando as receitas de IVA do Estado.

    Aquilo que a Sonae e outros grandes grupos deseja é algo verdadeiramente simples: maximização dos lucros através de baixos salários. Uma espécie de fado português, aqui e ali interrompido pela confederação dos patrões para nos explicar, como se fôssemos todos idiotas, não ser possível aumentar salários (começando pelo mínimo) se a produtividade não aumentar.

    Lembro-me sempre do modelo de negócio da Padaria Portuguesa, com incontáveis lojas em Lisboa e tão elogiada pela sua gestão. Até recordo, com algum carinho, um dos gestores de topo que dizia, numa reportagem qualquer, que o salário não era tudo; o amor que davam aos funcionários era mais importante.

    Compreende-se, porque olhando apenas para o salário mínimo, torna-se difícil sentir a chama da paixão.

    Ao fim de 15 dias de lockdown, por causa da covid-19, a empresa com lucros fabulosos e, uma vez mais, um mundo de distância entre a base e o topo da pirâmide, pedia ajuda ao Governo para pagar salários.

    Portanto, quando me dizem que uma empresa privada, como a Sonae, paga o que quiser aos seus funcionários, eu até sou, enfim, obrigado a concordar. E mesmo quando direccionam apoios estatais para o CEO, eu também, enfim, tenho de aceitar. São os mercados. As regras da gestão privada. Agora, não posso é continuar a engolir a argumentação da produtividade ligada a salários que não sejam de fome.

    Portugal tem uma faixa salarial que nos envergonha. Não está só na cauda da Europa civilizada como se aproxima, a passos largos, do Terceiro Mundo.

    A Sonae choca porque é um dos maiores empregadores, e mesmo assim escolhe, sem qualquer vergonha, a estrada da mais injusta distribuição de lucros entres trabalhadores.

    E se aceitamos, pacificamente, a imoralidade da distribuição dos lucros apenas no topo da pirâmide, estamos apenas a fazer um favor a quem vê nos trabalhadores portugueses uma fonte de rendimento de baixíssimo custo.

    Com o aproximar da data percebe-se que, afinal, talvez seja tempo de uma nova Revolução. Não pode um país, com mais de três décadas a receber fundos europeus, achar normal que 20% da população esteja na pobreza e, entre os que trabalham, mais de 70% traga para casa menos de 900 euros mensais.

    Viver é qualquer coisa mais. Em Portugal sobrevive-se. Sem contestação.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Um novo Hotel Ruanda

    Um novo Hotel Ruanda


    Poucas coisas se comparam à emoção de ter um texto pronto a enviar, e ver o computador entregar a alma ao Criador antes de o gravar.

    Quer isto dizer que o caro leitor apanhará um texto novo sobre outra temática, produzido quando me passar a neura?

    Não, não senhor.

    O estimado leitor que apoia este jornal vai ler o mesmíssimo texto, mas elaborado com as palavras que a minha memória guardou. Não prometo grande coisa, porque a minha memória apresenta-se, taco a taco, ao nível dos conhecimentos de Excel da doutora Graça Freitas. Mas, convenhamos, o Colombo também não sabia o caminho, e tentou. Vamos a isto.

    woman in white long sleeve shirt kissing girl in white long sleeve shirt

    Volto a uma forma particular de argumentação que me enerva: a de que apenas podemos discutir um assunto de cada vez, para não cairmos em whataboutismo. Coisas que me enervam são, aliás, a minha maior fonte de escrita, e felizmente o mundo nunca me desilude.

    Sempre que ouço ou leio a redução mental de “então és um whataboutista“, se, por audácia, discutirmos Palestina, Iémen ou Afeganistão entre um ou outro morteiro no Donbass, fico na dúvida se terei perdido algo nos últimos anos? Nomeadamente no que concerne ao envio de arroz para o Iémen e no acolhimento de afegãos na União Europeia.

    Ouvindo quem recusa o alargamento do debate, parece que estávamos todos imbuídos numa solidariedade monstruosa com as guerras em África, Ásia e Médio Oriente, e, de repente, com um conflito mais próximo, interrompemos os esforços para nos concentrarmos na ajuda aos ucranianos.

    Ora, como se percebe, nada disso alguma vez aconteceu. Os conflitos que geram refugiados há décadas nunca nos mereceram particular interesse, e quem agora inventou essa idiotice do whataboutismo precisa apenas de um escape argumentativo que justifique o racismo encapotado.

    Não é preciso andarmos com voltas e mais voltas, é preferível chamarmos os bois pelos nomes, usando aqui algum português técnico.

    Tedros Ghebreyesus, presidente da Organização Mundial de Saúde, disse esta semana que é importante continuar a ajudar a Ucrânia, mas que, e cito, o “Mundo não presta a mesma atenção às vidas de negros e brancos “. O pobre Tedros não sabe que, por esta altura, em Portugal, já é considerado whataboutista (usou um “mas” no discurso), um comunista e um pró-Putin. Nada mau para uma manhã de trabalho.

    Mas o nosso TG não está só na afirmação. Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, anunciou esta semana um acordo assinado com o Ruanda para alojamento de refugiados com destino a terras de Sua Majestade. Em abono da verdade, Party Boris não está a ser muito original.

    Já no ano passado, a Dinamarca iniciou um protocolo semelhante com o mesmo Ruanda e outros países africanos. A ideia é simples e pretende desocupar as fronteiras do Reino Unido. Quem ali chegue vindo do Magreb, do Médio Oriente ou de outras paragens problemáticas, em busca de um futuro seguro, será gentilmente recambiado para o Ruanda. Entre fugir de uma guerra na Ásia Central ou desembarcar no Ruanda, julgo que toda uma nova equação de vida se coloca.

    Passei esta semana em Londres, e ouvi diariamente na BBC as críticas e os apoios a esta medida. Um parlamentar dizia que o Reino Unido gastava uma fortuna em hotéis para alojar todos os refugiados que por cá apareciam, e que, como se percebe, o modelo não era sustentável.

    Já enviar essa malta para longe, algures no centro de África, parecia, segundo este deputado, uma medida com futuro. Aliás, para quem sabe um bocadinho de História, os hotéis no Ruanda costumam ser um porto seguro, se não aparecer um machete maroto aqui ou ali.

    Curiosamente, estas medidas não se aplicam a refugiados ucranianos. À primeira vista, comentar esse facto poder-vos-ia parecer um ligeiro whataboutismo, mas, se pensarmos bem, é só uma colocação do referencial no sítio certo.

    Portanto, chega um ucraniano a Londres ou Copenhaga, recebe casa, comida e uma ajuda para voltar a organizar a vida. E ainda bem – já agora, convém dizer isto. Ainda bem.

    Chega um afegão a Gatwick ou um sírio a Kastrup, e, com sorte, acorda dali a uns dias em Kigali.

    No meio disto, aparece o Tedros a dizer que tem a sensação de andarmos a tratar a vida de forma diferente consoante a tonalidade da pele.

    Tedros, Tedros… vê se te acalmas. Ninguém suporta whataboutistas.

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  • A claque dos generais

    A claque dos generais


    Não tendo passado por qualquer teatro de guerra, nem sequer como soldadinho de chumbo, tenho apreciado com algum vigor os comentários aos comentários no que ao desfilar de militares nas televisões nacionais diz respeito.

    Aparentemente, também se está a formar uma claque de vila bajo e outra de vila arriba – publicidade dos anos 90, sinal primeiro de velhice – para puxar pelos nossos generais.

    Pelo que percebo, se dizem aquilo que achamos ser a lógica da guerra no momento, são as vozes da razão. Já se escorrem opiniões disparatadas, são uns energúmenos ao serviço de alguém. Note-se que somos nós, que nem o serviço militar fizemos, que decidimos o que faz sentido ser dito sobre o teatro de guerra.

    black megaphone pendant

    Jornalistas conceituados como, por exemplo, Fernanda Câncio, insultam generais no Twitter ridicularizando as suas opiniões. Classificando-as como disparatadas.

    Fernanda Câncio pode não detectar uma moscambilha, digamos, no próprio quarto ou no cofre de uma hipotética sogra, mas sobre invasões e reagrupamento de batalhões não pede meças a ninguém.

    Acho extraordinária a arrogância com que arriscamos entrar em campos desconhecidos. É algo muito português esta coisa da convicção na opinião. Não primamos pela busca do conhecimento, mas defendemos, com unhas e dentes, uma opinião pouco fundamentada. Até ao limite. Mesmo que tenhamos de insultar homens que andaram em cenários de guerra como observadores internacionais.

    Tudo porque, no decorrer de uma guerra, eles, os militares, não pensam como nós, que vimos todos os Rambos e até nos emocionámos com o Platoon.

    E nesta coisa das claques definimos logo que uns militares defendem cegamente a causa russa, outros estão pela Ucrânia. A poucos parece passar pela cabeça que aqueles homens, sentados em frente a uma câmara, se limitam a correr o risco de emitir uma opinião para que possam ser mais tarde ridicularizados pelos verdadeiros especialistas de sofá.

    Se afirmam que o exército russo é mais forte, são pró-Putin. Se observam na resistência ucraniana os novos barbudos da Sierra Maestra, logo são pró-Zelensky. Sofrem do delito de opinião e sujeitam-se ao julgamento da Câncio, do Milhazes ou do Rogeiro, que fala por interpostas pessoas com o Zelensky.

    Durante a pandemia tínhamos doutorados em Geologia a dar lições de Saúde Pública, e todos faziam ámen. Agora temos militares a falar sobre guerra e… dizem que todos estão ao serviço de uma agenda qualquer. Tenho a impressão de que o excesso de informação nos retirou a capacidade de raciocínio. Ou, pior, nos deixou com a sensação que sabemos mais do que nos ensinaram.

    white ceramic mug on table

    Hoje ouvi um militar na CNN, cujo nome não decorei, a dizer que na preparação da grande batalha do Donbass, as tropas russas estavam com o moral em baixo. A razão? Muitos reservistas vinham de longe, lá dos confins da Sibéria, mal preparados, sem saber bem o que iam fazer para o centro da Europa. Já os ucranianos, com os civis em grande forma e os drones a terem um papel decisivo, estariam em melhor posição para a fase decisiva do conflito.

    Com os afilhados de Putin a ganharem votos por toda a Europa civilizada – veja-se França, por exemplo –, a última coisa que precisamos é que a Rússia ganhe mais território em direcção ao Ocidente.

    De modo que, como nem sequer passei da recruta, espero que o general de hoje tenha razão. Na dúvida, vou ver o que a Câncio diz. Só para ficar esclarecido.

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