Etiqueta: Tiago Franco

  • Chega: só há uma “festa” como esta!

    Chega: só há uma “festa” como esta!


    O meu timing de entrada nos temas que circundam o Chega é quase sempre péssimo. Tenho a sensação que corro para a paragem e só vejo o escape do autocarro. Mas não é fácil, não é fácil, embora eu tenha tentado perceber este fenómeno da extrema-direita desde o início da aventura do nosso André.

    Um dia estava ele na CMTV a discutir centímetros dum penalti com aquele advogado que, alegadamente, recebia umas massas do Rui Pinto; e, no dia seguinte, aparecia ele em frente à Assembleia da República aos gritos contra o sistema.

    [Disseram-me que com a muleta do “alegadamente”, antes do verbo, podemos disparar toda e qualquer bojarda sem aquele risco incómodo de ir parar a um tribunal português. Ninguém tem 10 anos de vida para desperdiçar num processo na justiça lusa. De modo que, alegadamente, disparemos…]

    André Ventura, líder do Chega.

    Quando fui ver que ruído era aquele, e porque razão o gajo dos penaltis andava na rua a vociferar contra os poderes instalados, cheguei atrasado umas semanas. Já havia um partido político formado e com um segundo nome. O “Basta!” durou pouco e eu já só vivenciei mais a sério a experiência “Chegana”. Ainda dei ali o benefício da dúvida, porque, convenhamos, quem é que não corrige os temperos a meio do guisado? “Basta” era mais queque; “Chega” parecia mais do povo. Estavam afinados e prontos para partir.

    Nome bem acutilante, e grito de guerra “vergonha” a postos, faltavam as ideias. Ouço por um amigo: “ouve lá, este Ventura é que diz as verdades!”. Fui ver as verdades a meio de uma campanha legislativa e, novamente, cheguei tarde.

    Havia um programa político que previa o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, mas, segundo consta, deu reclamações em barda. Foi alterado, e quando lá apareci já só vi a versão 2.0, mais difusa e macia, de forma a agradar às hostes. Pensei: “ora aqui está uma originalidade política, programas à la carte!”. Gostei e percebi de imediato que iam longe.

    A legislatura foi mais fraca em termos de trabalho feito. Metade do tempo fora das votações e todo o poder de fogo colocado em vídeos do YouTube de dois minutos com bocas ao primeiro-ministro. O homem das verdades conseguia ainda assim trilhar o seu caminho. Continuei à espera das ideias, nem que viessem numa terceira versão do programa, mas, essencialmente, a coisa resumiu-se a cascar nos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e nos ciganos, em geral, sem qualquer ordem em particular.

    Lá por fora, o Chega colou-se aos outros partidos de extrema-direita – da Le Pen ao Salvini –, o que levou alguns ingratos a apelidarem-nos de racistas. Quando fui escrever sobre o tema, já o assunto estava, novamente, fora de prazo. Ventura, Parrachita e alguns incógnitos apoiantes desfilavam pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, empunhando tarjas com o slogan: “Portugal não é racista”. Fiquei informado sobre a nova posição e até me senti aliviado. Era o Portugal que eu queria também.

    André Ventura durante encontro do grupo político do Parlamento Europeu (direita e extrema-direita) Identidade e Democracia em 23 de Junho em Antuérpia (Bélgica).

    Tentei então dizer qualquer coisa sobre o tema, mas, de repente, um deputado do Chega afirmou, na Assembleia da República, que só não tinha sido eleito vice-presidente por causa da sua cor de pele, ou seja, por discriminação racial. Fiquei fora de jogo – e sem hipótese de ir ao VAR, tema que o André tanto gostava de debater, antes de se meter nestas andanças.

    Enfim, eu quero comentar a actualidade do Chega, mas torna-se incompatível com um horário de trabalho normal. Entre o tempo que começo a escrever e a pausa para o café, já o Ventura mudou de opinião três vezes. Aliás, nem estou a ser original, ele de facto mudou a intenção de voto três vezes no mesmo dia numa votação parlamentar. Não sei se o editor do PÁGINA UM aceita podcasts, mas, com palavra escrita, não há pai para a velocidade do Ventura.

    Há uns meses ouvi uma intervenção de alguém do Chega que falava nos boys dos aparelhos partidários. Alegadamente do Carlos César que, alegadamente, tem metade da árvore genealógica encaixada em cargos públicos.

    Muito bem, de repente senti um ponto de encontro e finalmente ia dar uma palmadinha nas costas por escrito. Porém, a meio do meu texto já se tinha descoberto que o pai de um deputado qualquer do Chega era agora assessor do Chega na Assembleia da República.

    Não quero imaginar o drama de combinar um jantar com um gajo destes. Sugerem a tasca do Avillez, 20 minutos antes do repasto dizem que é mesmo na tasca, mas do Zé e em Alfama. Trinta minutos depois da hora ligam a perguntar se sabemos onde fica a roulotte da Sónia, ali por baixo da Segunda Circular, mesmo na saída do Campo Grande. É gente que não se decide. Ou que estuda pouco e navega às sortes. Também pode ser isso.

    Antes do Verão, quando recebemos todos ordem de soltura da covid-19, o Ventura anunciou que o Chega faria a maior festa de Portugal, um festival algures em Julho, com comes e bebes, boa música e muita diversão. Pensei que seria uma forma de, por exemplo, arrasarem com o Avante.

    Imagino que seja fácil: se um partido moribundo, que nos juram estar a dar os últimos passos (há décadas), consegue juntar uns milhares há quatro décadas durante três dias, certamente que o Chega consegue juntar muito mais.

    A expectativa era alta até ter saído o cartaz do festival. E uso aqui a palavra “cartaz”, porque “programa” seria um exagero. Em termos de artistas, não sei se podem ser encaixados nessa categoria profissional: confirmados, estarão lá o Rui Bandeira e o Jaimão.

    Lembro-me que o primeiro cantava o “que venha um alien divino e nos leve para lá, aqui já não dá!”; e o segundo, julgo ser um camarada que aposta numas rimas à Quim Barreiros, mas com menos classe na métrica. Não sei se chegam para o “maior festival de Verão português”, mas darão uns bons três minutos de Youtube. Com o enquadramento certo e apresentação do Tilly, até poderá ser equiparado ao Rock in Rio na ChegaTV.

    Devo, contudo, manifestar-vos a minha surpresa com a forma de preenchimento de linhas no cartaz. Nunca tinha visto a referência a música ambiente num evento deste tipo. É quase como anunciar uma lista do Spotify ou avisar que o recinto terá urinóis. Parece aqueles relatórios de electrónica, que eu fazia, depois das madrugadas no Bairro Alto, em Times New Roman 16, só para conseguir ter mais do que uma folha atrás do título do trabalho. 

    Rui Bandeira, cabeça de cartaz da Chega Fest Batalha.

    Noto também a astúcia na pesquisa de trabalhadores. O Chega pede por voluntários, e depois diz-lhes que terão que passar por uma selecção. É o equivalente à experiência de trabalho voluntário na WebSummit, mas na companhia de pessoas que não terminaram a escolaridade obrigatória.

    Em suma, o Chega gosta da voracidade dos mercados, do indivíduo que se sobrepõe ao todo e, sempre que possível, do desvio de dinheiro público para lucros de uma minoria privada, mas, no seu quintal, opta pela camaradagem do trabalho gratuito em prol do bem comum. Ahh…o sol ainda nascerá para todos eles. 

    Quando comecei a escrever isto colocava, sem ironia, todas as esperanças musicais deste festival na banda de tributo aos Queen. Não há forma de correr mal quando se tocam os clássicos. “I want it all, I want it all, and I want it noooooow!”

    Um pouco antes de enviar o texto, vou olhar para o cartaz de novo para ver se não me esqueci de nada, e vejo que a banda anunciou ter sido colocada no programa da festa por engano e, como tal, não marcará presença. Estes gajos não têm descanso. Devem andar a calmantes com o carrossel que a vida lhes proporciona.

    Provam ainda assim que tenho duplamente razão: a banda deve de facto ser boa, e não há maneira de uma verdade chegana durar o tempo de cozedura de um texto.

    Que venha a FEST. Vai ser porreira, pá!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os pais do Simba

    Os pais do Simba


    Nos meus tempos de teenager, durante os verões alentejanos, um amigo mais eufórico depois daqueles jantares regados com uva das adegas locais, gritava: “sou filho do meu pai e da minha mãe, não pago e não tenho medo de ninguém!”.

    Quando a conta chegava, enfim, como todos nós, ele pagava. Mas durante cinco minutos sentia-se o pai do Simba, com o sangue ali a circular mais depressa entre as veias. E tudo bem, entre teenagers com aquele grau de idiotice mais próprio da idade, não há problema.

    brown lion on green grass field

    Até porque, quando eu era gaiato, não existiam telefones com câmara ou lives no Facebook. A vida era reservada ao que a nossa memória guardava, e isso, meus amigos, valia ouro. Sorte a do meu amigo que eu não me esqueci dos números de Rei da Selva…

    Dizia eu – quando perdi o foco, como é habitual – que a idiotice é natural em jovens imberbes. Mas isso torna-se mais preocupante em adultos, especialmente se esses adultos forem líderes de países democráticos.

    Recentemente a Estónia veio bater à porta da NATO, porque um helicóptero russo passou no seu espaço aéreo.

    Na Finlândia, o líder das Forças Armadas afirmou que estão prontos para combater com os russos.

    Já na Lituânia, as autoridades decidiram bloquear o acesso dos comboios russos de mercadorias ao enclave de Kaliningrado.

    Vejo aqui vários candidatos a pais do Simba – alguns Reis da Selva e poucos cérebros em funcionamento.

    brown and gray concrete building during daytime

    Os russos já avisaram que responderão à Lituânia caso o bloqueio não termine. Seja ou não um membro da NATO, note-se.

    Vou ouvindo e lendo que a Rússia está de rastos, que não aguenta nova frente de batalha e que não são perigo para ninguém – excluindo para os ucranianos, deduzo. É uma teoria assente no desgaste que estão a sofrer em território ucraniano, e na frase que se repete: “se nem com a Ucrânia podem, quanto mais com a NATO”.

    Permitam-me discordar aqui um pouco antes de chegarmos ao fundamental desta questão.

    Os russos estão certamente desgastados, mas julgo que, por esta altura, já ninguém se atreve a dizer que esta é uma guerra entre dois países. Os mortos são de facto maioritariamente de dois países, mas há um envolvimento directo do chamado Ocidente na contenda.

    Sem o dinheiro e armas despejados pela União Europeia, NATO, Estados Unidos e Reino Unido, a Ucrânia já teria capitulado há muito. Portanto, é justo dizer-se que os russos combatem contra uma coligação.

    É certo que o Ocidente incentiva os ucranianos a continuarem e a doar a carne para o churrasco, mas o carvão, as acendalhas e as minis são oferecidas por nós.

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    O envolvimento da NATO nesta guerra é mais do que assumido; portanto, tenhamos pelo menos esse dado em conta e não continuemos a fingir que os ucranianos estão sós. Sós estavam os georgianos e duraram cinco dias. Sós estão os palestinianos que vivem em prisões a céu aberto.

    Portanto, voltando ao ponto inicial: quando vejo simulacros de pai do Simba, imagino que todos, agora na União Europeia, vejam os russos debilitados e em ponto de rebuçado para levarem mais umas vergastadas.

    E a minha pergunta aqui é: porquê? Mesmo que estejam desgastados, cansados e debilitados, quem é que ganha com o alargar do confronto para a Zona Euro? Se um touro de 500 quilos andar às voltas num praça durante uma hora, passa a ser um acto de inteligência correr contra ele só porque já exercitou um pouco a musculatura? Os 500 quilos de peso doem menos e provocam menos danos no nosso esqueleto?

    É que nem essa teoria dos russos estarem de gatas, caso fosse mesmo essencial alargar o conflito, parece ter base firme.

    Televisões ocidentais, portuguesas incluídas – portanto, não foi a RT –, anunciaram que os lucros no último trimestre aumentaram mais de 30% na Rússia. A principal razão continua a ser a venda de energia, neste caso, com a China e a Índia – entre outros BRICS – a adquiriram o excedente que deixou de ser vendido para a Zona Euro.

    Ou seja, as potências emergentes dizem, pela vertente comercial, que não se importam de financiar a invasão russa, e ainda aproveitam para fazer negócio, refinando a matéria-prima e voltando a vendê-la aos europeus.

    Ao mesmo tempo, Xi Jinping, líder chinês, afirmou que as sanções impostas à Rússia seriam um tiro nos pés dos europeus e, cedo ou tarde, se virariam contra o próprio povo.

    Como se percebe pelo custo dos combustíveis, redução de salários e aumentos das taxas de juro, ele está certo. Mais não seja, porque a continuação da guerra e as restrições impostas, dá às petrolíferas e às financeiras a desculpa perfeita para os aumentos desejados – sejam ou não realmente afectadas. 

    Por outro lado, as relações comerciais entre a Rússia e os BRICS – que são potências emergentes –, com China e Índia à cabeça, mostram-nos qual foi o lado que estes exércitos escolheram no conflito. Ou seja, o touro exaurido e com a língua de fora parece ter amigos do tamanho da NATO.

    Neste cenário, queremos mesmo ver três países – Estónia, Finlândia e Lituânia –, cujas populações somadas não chegam à portuguesa, a encherem o peito em nosso nome em frente à Rússia?

    Estamos assim tão confiantes que os Estados Unidos e a NATO se vão meter nisto, numa altura em que Joe Biden já assumiu que, cedo ou tarde, Zelinsky terá de se sentar e chegar a um acordo?

    Pessoalmente, preferia que a malta do Báltico se acalmasse, aproveitasse o Verão – que são sempre os melhores quatro dias do ano – e, se possível, que tentassem contribuir para uma conclusão do conflito.

    green wheat field under blue sky during daytime

    Gente com gasolina ao redor da fogueira, já temos em demasia. Agora, aquilo que precisamos é de sair disto rapidamente, e usar a política para o que ela realmente serve: sossegar os egos dos líderes.

    Venham acordos de paz, com ou sem território, com mais ou menos dinheiro, com ou sem entradas na União Europeia. Façam lá as promessas que precisam de fazer para todos saírem desta guerra vencendo qualquer coisa.

    Acabem é com a carnificina de russos e ucranianos no terreno, e ainda com o empobrecimento generalizado da população europeia. O desgaste russo assumido pelos americanos é, na realidade, o desgaste de toda a Europa. Eu sou aquele que confiou nos avisos dos serviços secretos britânicos que, em Fevereiro passado, julgo, afirmavam que a guerra estaria terminada em Maio. Enfim, nunca mais foram os mesmos depois da morte do James Bond – spoiler alert.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A tempestade perfeita

    A tempestade perfeita


    Estranhei ver uma casa à venda na minha da rua. Nos últimos quatros anos, que me lembre, que ninguém vende nada por ali. Estranhei ainda mais que o preço de venda fosse abaixo do valor de “mercado”. Note-se que este é um dos meus termos favoritos. Mercado. Essa entidade abstracta que se auto-regula, e que nos convence daquela verdade absolutamente idiota: “se alguém pagou, é porque vale”.

    Perdi a conta ao número de vezes que discuti isto com os mais variados entusiastas dos mercados. Um T2 em Arroios não vale 500.000 euros. Um T4 no Seixal não vale 800.000 euros. Uma casa de madeira na minha rua não vale 600.000 euros. Ponto final.

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    Podem dizer que se venderam, que alguém pagou, que um norueguês achava barato. O bem adquirido NÃO VALE ESSE VALOR. Ponto final. Quem o vendeu é que lucrou mais do que lucraria sem especulação pornográfica.

    Repeti esta discussão vezes sem conta, terminando sempre da mesma forma: como ficarão as coisas no dia em que o último comprador, depois de anos de vendas especulativas, ficar com um bem nas mãos que vale menos do que o crédito que contraiu por ele? Por outras palavras: o que acontece quando quisermos vender uma casa que o mercado nos diz, agora, valer menos do que pagámos por ela? Ficamos assustados e vendemos ao melhor preço. E depois os outros apercebem-se que o mesmo lhes sucederá, e vendem ao melhor preço, que rapidamente tende a ser cada vez mais baixo… Ou seja, rebenta a bolha.

    Há uma bebedeira colectiva em que todos fomos culpados. Nós, privados, que aceitámos que os mercados nos dissessem que um Fiat valia o preço de um Ferrari, e os bancos, que avalizaram créditos para Ferraris tendo Fiats como garantia.

    Finalmente, sempre com a guerra na Ucrânia, as sanções e a escalada dos preços em pano de fundo, aparecem os aumentos das taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE) que, obviamente, vão trazer à vida aquelas páginas do fim da resma que nos entregam quando fazemos um crédito hipotecário – e que, claro está, ninguém lê. “Se a Euribor passar para 2%, então a sua prestação será X”.

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    Em Gotemburgo, onde um apartamento no pior bairro custa perto de 200.000 euros, as famílias estão endividadas até ao osso. Meio milhão de euros por um apartamento é hoje algo perfeitamente banal na cidade. Uma realidade parecida com a de Lisboa, eu diria, onde qualquer apartamento fora da Amadora começa nesses valores.

    Os bancos suecos começaram a avisar os clientes das constantes subidas das taxas – deduzo que em Portugal se esteja a fazer o mesmo – e para quem tinha créditos variáveis, os mínimos a um ano passaram para 4%. Isto significa, grosso modo, que as famílias dobrarão os seus custos com a habitação.

    Portanto, não só os salários diminuíram com a inflação como, por conta do aumento das taxas de juro no crédito hipotecário, ficarão muitas famílias numa situação de aperto até aqui inimaginável. O mercado vai-se encher de casas, os preços vão baixar, alguns não vão conseguir pagar os créditos ou vão trabalhar até rebentar apenas para pagar contas.

    Pergunto: era assim tão difícil perceber que dizer “o mercado diz que” é, na verdade, apenas uma forma imunda de justificar lucros disparatados num reduzido espaço de tempo? Não é mais ou menos óbvio que não, um T1 numa colina de Lisboa com uma janela de 10 cm de vista para o Tejo, não valerá nunca, por mais franceses que o queiram, 350.000 euros?

    Se a situação na Suécia, onde o nível salarial e de poupanças são altos, caminha para um nível assustador, eu não quero imaginar o que vai acontecer em Portugal.

    person holding brown leather bifold wallet

    Mas quero muito que me voltem a explicar as vantagens do mercado desregulado, do envio de dinheiro e armas para uma guerra, das sanções que estão a rebentar com os russos e de como os aumentos do BCE nos ajudam a controlar a despesa.

    Quero também entender, com muita vontade, por que razão a banca é pública na altura de ser salva, mas totalmente privada e autónoma na altura de decidir o tamanho dos seus lucros.

    As pessoas vão perder casas e os créditos dos palheiros transformados em mansões vão acabar na dívida pública. No fim, o único culpado, será o gajo que tentou sair de casa dos pais quando percebeu que já tinha 35 anos.

    Entrámos num comboio há anos que só anda em círculos e, por mais paragens que se repitam, ainda acreditamos que seguimos em linha recta.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Tiro ao médico? Não e não

    Tiro ao médico? Não e não


    Sempre que um grupo de trabalhadores do sector público luta por direitos laborais, levanta-se a turba dos indignados. Reparem no pormenor de eu dizer “sector público”. Não há luta no sector privado, há resignação.

    Mas dizia eu: levantam-se vozes, normalmente com os mais estapafúrdios dos argumentos, contra as classes profissionais que se organizam para lutarem pelos seus direitos. Os alvos desta semana são os médicos.

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    Devo dizer-vos uma coisa para início de conversa. Se pensarmos que andamos há 35 anos a receber subsídios europeus e que continuamos pobres, e com auto-estradas de luxo, é mais do que natural que constantemente assistamos a lutas laborais. Assim de repente só me lembro de três ou quatro classes profissionais que têm salários comparáveis aos parceiros europeus mais desenvolvidos.

    Portanto, estranho seria se não víssemos greves e lutas, quando o nível salarial é, na generalidade, o maior problema português.

    Isso aplica-se a um professor, a um enfermeiro, a um médico ou a qualquer funcionário público que não seja autarca, deputado, vereador ou secretário de Estado. Ou ministro.

    De entre as acusações com que os médicos foram brindados – com o “gananciosos” à cabeça –, houve uma que me saltou à vista: a de terem a obrigação de devolver o dinheiro que o país investiu neles, nas suas longas e caríssimas formações, trabalhando em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). E acrescento: as horas necessárias por semana e pelo salário que a tutela quiser.

    Ou seja, para alguns de nós, um médico deve trabalhar 10 horas por dia, fazer urgências e ganhar menos do que um qualquer assessor de secretário de Estado – daqueles que entram e saltam de um Executivo sem darmos por eles, sem terem qualquer formação para lá do networking dos papás.

    Eu não sei se já perderam algum tempo a perceber como funciona o ensino público, mas, na base, todo e qualquer curso universitário numa instituição não-privada é quase integralmente financiado pelo Estado. Seguindo essa lógica da dívida de gratidão, um professor tem que dar aulas 10 anos em bairros sociais, um engenheiro civil tem que fazer as primeiras duas pontes de borla e um advogado tem que defender criminosos pro bono durante cinco anos. Pelo caminho, tornam-se vegetarianos e comem a relva do Monsanto.

    É exactamente pelo custo da formação de um médico, pela duração dos cursos e das especialidades, que o Governo deveria proteger o investimento, dando a estes profissionais salários dignos. Já não digo comparáveis aos seus colegas europeus do Norte, mas, pelo menos, suficientes para o grau de importância que esta profissão tem em qualquer sociedade.

    O risco é que, obviamente, depois de 10 anos de formação, os médicos escolham uma compensação financeira fora do SNS ou, ainda pior, fora de Portugal.

    Não sei se conhecem muitos países com excesso de médicos. Eu não me lembro de nenhum, é uma daquelas profissões sempre em falta, talvez tirando o exemplo cubano que, a dada altura da História, trocavam médicos por petróleo – tema para outro dia.

    Portanto, a questão é simples: sabendo os médicos que podem vender a sua força de trabalho por valores muito mais altos, porque devem eles jurar fidelidade ao SNS e aos salários baixos?

    Esperam que alguém que dedica 20 anos da sua vida a estudar, depois aceite salvar vidas por um salário inferior ao de qualquer boy do PS ou PSD, com experiências profissionais na área da distribuição de sacos de pano e canetas com logótipos de dois em dois anos nas arruadas? Tenham dó!

    Eu espero que os médicos, ou qualquer classe profissional, lute pela dignidade das carreiras e pela justa valorização do trabalho. E isso, meus amigos, num mundo capitalista, começa no salário.

    Ninguém trabalha por caridade e no nosso caso em concreto, se conseguimos andar a salvar Salgados e Rendeiros, e a sustentar uma corja de políticos com zero impacto na sociedade, podemos certamente pagar salários de Primeiro Mundo a quem nos mantém nele mais tempo.

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    Um dos nossos problemas enquanto sociedade revela-se a cada greve, a cada discussão com o patronato. Há sempre alguém que diz “eu vivo com 600 euros e tu não consegues com 2.000?”. É esta a raiz dos males: o pensamento que coloca sempre a fasquia no chão. Se eu estou na miséria, não quero sair dela, quero é que tu venhas para onde estou.

    600 euros não é um salário na Europa: é uma esmola, uma afronta, uma exploração. E 2000 euros, depois de cortados os impostos, também não foge muito disso. É aquilo a que nos países civilizados se chama “subsídio de estudante”.

    Nós – ou vá, a maioria de nós – que trabalhamos por conta de outrem, tudo o que temos para trocar é a nossa força de trabalho. Para quem não nasceu em berço de ouro, e depende, em exclusivo, do seu trabalho para viver, é a forma como fazemos essa troca que nos atribui uma vida de qualidade ou de sofrimento.

    E é por isso que não podemos apedrejar quem luta pelos seus direitos laborais e procura a justa compensação pela venda da sua força de trabalho. Devemos é juntar-nos a eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Alma e corpo de emigrante

    Alma e corpo de emigrante


    Estamos a jogar ping-pong, e ele, enquanto me tenta perturbar o nervo a cada batida – introduzimos mind games há muito na disputa de qualquer ponto, seja xadrez ou raquetadas, pois há que moer a cabeça do adversário –, vai dizendo: “ya pai, tens bué sorte, tipo nessas chouriçadas“.

    Bué, ya, tipo… desde quando falas assim?”, acrescento eu. E ele, sabendo que estamos a dias de ir para casa, diz-me, “estou já a treinar para falar com os primos”

    Continuei concentrado na bola porque, de momento, já não lhe posso dar borlas, sob pena de perder o título de campeão da casa, mas fiquei com a frase ali a bater-me na parte de trás do crânio.

    Recuei duas décadas e lembrei-me de um miúdo que orientei durante um estágio na Autoeuropa. Tinha nascido em Tomsk, na Sibéria, e crescido na Alemanha, para onde os pais tinham emigrado, algures à sombra da fábrica mãe da VW.

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    Andámos uns meses por Setúbal onde, entre outras coisas, lhe tentei explicar que a praia se chamava Albarquel e não Albarcuel.

    Ele dizia-me, várias vezes, que em lado nenhum se sentia um local.

    Na Sibéria era alemão e, em Wolfsburg, passava por russo.

    Desde que me mudei para a Suécia conheci mais N histórias destas, muitas com o denominador comum da Bósnia. Crianças que de lá saíram na década de 90 a fugir da guerra e que hoje, quando voltam, já lá não pertencem. Mas aqui, numa sociedade absolutamente catalogada, nunca chegaram também a suecos. Portanto, ficam ali no limbo eterno.

    O meu filho está precisamente nesse limbo, e eu, por alguma razão, sinto uma enorme dúvida em todo o processo e escolhas de vida. Como perceber o que é mais certo ou até importante, antes de acontecer?

    Até eu, que saí de Portugal com 28 anos, perfeitamente criado e enraizado, já sinto algumas dificuldades quando estou aí, e vejo (e ouço) coisas que para mim, hoje em dia, não fazem qualquer sentido e são perfeitas aberrações.

    Não digo que sejam erradas. Digo apenas que chocam, e muito, com aquilo que vejo em meu redor há 16 anos. Não sinto dificuldades com a língua, mas sinto dificuldade com a mentalidade. Já não me encaixo numa série de coisas que, antigamente, eram parte integrante do meu quotidiano.

    O Diogo refere-se aos suecos como “suecos”. Aos portugueses como “nós”. Portanto, ele identifica-se e sente-se como estrangeiro. Quando aqui está, fala um sueco perfeito, mas não tem cabelo louro. A pergunta primeira, a ele ou qualquer não louro é, “de onde vens?”

    Quando está em Portugal parece-se com qualquer um de nós; porém, fala com erros, com sotaque, com traduções de estruturas gramaticais suecas que não existem em português. Toda e qualquer criança, mal o conhece, pergunta ao fim de dois minutos: “de onde vens?”

    Portanto, esteja onde estiver, Lisboa ou Gotemburgo, de imediato assumem que ele não é dali.

    Abordo o assunto com desvelo, mas sei que ele não se sente confortável com isso. Ainda assim não desanima. Basta chegar a uma praia qualquer e ver uns putos aos chutos numa bola e mete conversa. Aliás, vale-lhe (e a mim também) o espírito aberto de não se encolher perante a adversidade; caso contrário, seria um problema ir a casa.

    desk globe on table

    É já agora um problema recorrente entre emigrantes de segunda geração. O desconforto no contacto em cada regresso a casa e um progressivo afastamento. Desde que ele nasceu que falamos português única e exclusivamente para garantir que esse corte nunca chegará. Mas vão-se tropeçando numas pedras pelo caminho – e, ao contrário da frase fofa, não servem para fazer castelos.

    Em tempos, num jogo de futebol entre miúdos, onde eu também participava, um dos putos foi bastante desagradável e começou a gozar com uma palavra mal pronunciada pelo Diogo. Ele não ligou, eu fingi que não ouvi – e na jogada seguinte dei uma sarrafada no miúdo.

    Eu sei, a falha é minha, mas não consegui.

    Eu vejo o esforço que o Diogo faz para ser entendido, hoje em dia em três línguas, e tenho tentado, da minha parte, corrigir todas as falhas gramaticais. Não há dia que não corrija palavras ou frases. É uma luta diária, mas não consigo substituir 12 anos de escola. E a culpa de ele não andar numa escola portuguesa não é dele, é minha. Fui eu que escolhi emigrar, e fui eu que o “condenei” a crescer na Suécia, na escola pública onde ele é a minoria.

    A culpa de ele se sentir diferente, na Suécia ou em Portugal, também é minha. É um peso que carregarei sempre com a desculpa de achar que, aqui, ele terá mais oportunidades de vida e acesso a um ensino universal de educação melhor. Digo a mim mesmo, talvez para acalmar a consciência, que a vida dele será mais fácil por crescer na Escandinávia.

    bowl of food beside wine glass

    Apesar de tudo, ainda acho que não me enganei. Ainda acho que crescer num país desenhado para se ser criança é um privilégio. Ter ciclovias, um campo de futebol em cada bairro, amigos ao lado de casa, horários de trabalho que permitem horas de parentalidade diárias, salários que permitem ver qualquer canto sonhado do mundo e ensino universal, para além da liberdade que a segurança e a organização de cada bairro permitem, não deixam de ser luxos nos dias que correm.

    Restam alguns verões, páscoas e natais, até que ele decida se fica por aqui com a Johanna ou, em alternativa, volta às origens levando consigo a Mari Cruz. Imagino sempre uma chilena a entrar na família, não sei bem porquê.

    Ainda acho que um dia iremos juntos para Portugal. E por aí ficaremos, não sei bem a fazer o quê. Mas nunca deixaremos de ser emigrantes, isso é garantido. Seja no pensamento ou na conjugação do verbo IR.

    Pode ser que isso seja, quiçá, bué de fixe. Vi får se

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As leis do empobrecimento

    As leis do empobrecimento


    Volto com alguma regularidade ao drama do Ruanda em 1994. Não é que o quotidiano não me preencha a quota de amarguras, mas há, naquele genocídio, uma lição sobre maiorias que, parece-me, vamos esquecendo com o passar das décadas.

    Não quero de forma alguma estabelecer comparações com um período da História de pura barbárie, embora queira aí recuar para pensar na saturação ou no rastilho que deu origem a uma das maiores catástrofes humanitárias do século XX.

    Resumindo uma história complexa: durante gerações, a minoria Tutsi foi utilizada pelos colonos (belgas) para controlar a restante população, maioritariamente Hutu. Uma situação de algum privilégio e acesso aos lugares de poder que se arrastou por décadas, até que a maioria se revoltou.

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    Não há nada que justifique o que ali aconteceu, e hoje o Ruanda não é propriamente um sítio melhor. Os Tutsies recuperaram o poder na guerra civil e, entre eleições fraudulentas e suspeitas de afastamento de opositores, Paul Kagame, antigo líder militar, está há mais de 20 anos na liderança do país.

    Mas a chacina aconteceu. Mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas, e o desespero por condições de vida foram o rastilho. É aqui que nos quero transportar para a realidade europeia e, em especial, para a portuguesa.

    Bem sei que todos estes dramas nos passam um pouco ao lado, e dentro do continente europeu estamos habituados a alguma estabilidade. Mas agora, depois de dois anos e meio de absoluta loucura governativa com a covid-19, uma guerra que se alastrou – convém lembrar que a zona Este da Ucrânia está ao som de morteiros desde 2014 – , uma inflação a chegar aos dois dígitos e juros mais altos decididos pelo BCE, é justo de afirmar que boa parte da população portuguesa está em dificuldades.

    Num programa económico, não me lembro agora em que canal, explicava um analista, de forma pedagógica e em tom de conselho à população, o que poderiam fazer para aguentar o embate esperado dos aumentos das taxas de juro decididas pelo BCE (agora em Julho).

    two Euro banknotes

    Em média, para créditos com spread actual a rondar os 1,5% e com os aumentos anunciados por Christine Lagarde, estima-se que por cada 150.000 euros de empréstimo, a prestação suba cerca de 100 euros.

    Não sendo economista, tento perceber, junto de quem sabe, o porquê destas medidas. Para mim, um simples e anónimo português, a pergunta que importa é esta: com um salário médio de 1.000 euros e 85% a levarem para casa menos de 900 euros líquidos, como é que se aguentam aumentos de centenas nas prestações bancárias?

    É esta a matemática simples que eu tento compreender.

    Normalmente levo com teorias do género “são as leias básicas da Economia, pá!”. Quais? Bom… se a inflação aumenta, tem de se aumentar também o juro para que fique menos dinheiro disponível para o consumo e, dessa forma, se reduza a inflação. Mas, pergunta minha, se a inflação (preços dos bens de consumo) aumenta, as pessoas não consomem menos porque perdem poder de compra?

    Em teoria sim, diz-me quem percebe disto, mas em Portugal está-se a verificar um fenómeno contrário, porque as pessoas acumularam algum dinheiro durante a pandemia.

    Por outro lado, acrescenta quem foi à escola ouvir falar disto, o banco não pode receber menos do que te emprestou e hoje o dinheiro vale menos. A forma de compensar é com a subida dos juros.

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    Volto ao meu bloco de notas e abro as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE). Mesmo que os portugueses tenham gastado menos daqueles fabulosos 900 euros mensais ao longo de um ou dois anos, quanto é que poderão ter poupado? O suficiente para umas férias? Mais jantares com bifes proibidos pela Jonet? Ou estão todos a comprar iates no Mónaco?

    De que nível de poupança estamos a falar? Com este nível de rendimentos não me parece que sejam sacos e mais sacos de arame, como lhe chamava Mário Soares.

    E sobre o dinheiro valer menos hoje, e a banca ter que ser compensada, confesso que começo a sentir algum fumo no emissor do meu transístor por onde passa a corrente. É que, vam’lá a ver, a banca portuguesa recebe dinheiro desviado dos impostos há mais de uma década. Pega nesse dinheiro e empresta-nos com juro. Portanto, nós pagamos duas vezes a mesma coisa, ou três, se contarmos com os prémios de gestão ao fim do ano. E agora, numa altura de óbvio embate, somos nós que voltamos a meter a pele.

    Eu compreendo o cenário de catástrofe: dois anos de pandemia, com o Governo a endividar-se para pagar confinamentos, layoffs e até vacinas em barda a farmacêuticas que, lembrem-se, nunca abriram as patentes. Portanto, a factura da covid-19 – depois dos lucros pornográficos dos laboratórios, farmacêuticas e empresas de bens de primeira necessidade/entregas online –, chegou e será entregue a quem as costuma pagar: os trabalhadores por conta de outrem.

    Em cima disto, metemos a guerra na Ucrânia e mais 2% do Orçamento de Estado desviado para políticas belicistas. Somamos o mercado liberal de combustíveis – que, afectado ou não pelo petróleo russo, aproveita para recuperar o que não ganhou quando todos estavam em casa. Aumento esse, no caso português, mesmo com a redução de impostos, o que é algo de extraordinariamente abjecto, e a confirmação do cartel petrolífero que usa e abusa da lei que lhes dá poder para decidirem tudo, sem qualquer regulação governamental.

    Ah… e quase que me esquecia: ainda temos que ter em conta a total desregulação do mercado imobiliário e o elevado endividamento das famílias portuguesas. Isto porque, claro, insistem em não viver debaixo da ponte, o que também não se compreende.

    Portanto, chegados aqui, e com esta bomba-relógio em ponto rebuçado, dizem-nos que temos de aumentar ainda mais o custo de vida. Porquê? Porque é uma lei da Economia, estúpidos. Mesmo sabendo que oito em cada 10 famílias podem vir a passar ainda por mais dificuldades, e muitos terão de entregar casas, mas, caso não percebam, é para o vosso bem.

    Dou comigo a pensar nisto, e a ver o comum português que trabalha de sol a sol para pagar contas, enquanto acumula aquela fortuna que lhe dá direito a 15 dias em Agosto na Quarteira.

    Que culpa tem este gajo dos confinamentos? Ou das ajudas à banca? Ou da invasão da Ucrânia? Ou das sanções impostas pela União Europeia? Algum de nós foi tido ou achado nesta merda que andamos a viver desde 2020? Não.

    O nosso papel é abdicar de liberdades básicas em nome não se sabe bem de quê, ou, em alternativa, pagar a conta.

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    Temos que andar a reboque e a empobrecer por decisões de uma minoria, algumas comprovadamente erradas e prejudiciais.

    Bem sei que, em democracia, elegemos outros para decidirem por nós, mas tudo tem um limite e, no fim das contas, a resistência de um povo à adversidade imposta pelo poder tem um tempo.

    Se forem três ou quatro que percam este ano a ida à Quarteira, enfim, a coisa faz-se. Se forem umas centenas sem casas, actualiza-se uma tabela de pobres do INE, e vamos para fim-de-semana. Mas se forem uns milhões a caminhar para a pobreza, a entregarem casas e a ficarem ainda mais desesperados, não pode o cenário ficar ligeiramente mais sombrio para quem nos governa?

    É que quando justificamos a pobreza de milhões com leis da economia, eu lembro-me sempre da afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa, no jornal da TVI, nos tempos de comentador a propósito da careca descoberta no BES e da primeira intervenção estatal. “Mas está a brincar?”, disse ele para o pivot, “já imaginou o perigo de risco sistémico se não ajudássemos o BES?”. Aí está, outra lei da Economia que em 2008 nos disse o que fazer. Parece-me óbvio, 14 anos depois, que foi bom segui-la.

    Se a história dos nossos dias fosse o capítulo de um livro, com este enredo em que a população perde direitos, liberdades, condições de vida e boa parte do seu sustento no espaço de dois anos e meio, eu esperaria que o capítulo seguinte se iniciasse com uma revolução.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O fado dos rankings

    O fado dos rankings


    Adoramos um ranking que fale mal de nós. É a altura perfeita para nos deprimirmos um pouco mais e praticarmos o desporto nacional de lançamento da culpa. Se vem “lá de fora”, então deve ser verdade.

    Ainda me lembro dos gritos moralistas do “comprámos muitos LCDs e carros a crédito” quando o FMI nos assegurava que a nossa Economia valia “lixo”, e isto porque, durante anos, vivêramos acima das nossas possibilidades.

    Entretanto, o Air Help – um site alemão que vive da gestão das queixas de passageiros em trânsito aéreo – publicou um ranking onde o aeroporto de Lisboa surge classificado como o pior aeroporto do Mundo. Alguma imprensa portuguesa fez o alarido catastrófico do costume, e nós, naquela falta de orgulho tão nosso, lá fomos em coro dizer que sim, que obviamente a Portela era o pior aeroporto do Mundo.

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    Este tipo de “estudos” – o seu valor e a forma como a discussão fica pelas gordas – é algo que sempre me irritou. Já agora, também em sentido inverso, me irrito quando, ano sim, ano não, Lisboa ou Porto ganham os títulos turísticos dos “melhores destinos do Mundo”. Seja lá isso o que for…

    Nós somos o povo que descobriu os caminhos marítimos para o Mundo, mas que, em simultâneo, rebentamos de orgulho com o cão-de-água português dos Obama.

    Curiosamente, ninguém discutiu esse ranking para lá de Lisboa. Eu fiquei curioso e fui cavar mais um bocadinho.

    Quando Lisboa é classificada como a pior em qualquer coisa do Mundo, sabemos imediatamente que o problema deixa de estar na cidade e passa a estar na classificação.

    Nada, absolutamente nada em Lisboa, nem sequer as obras deixadas pelos pombos nas estátuas, são as piores do Mundo. Quem vos disser o contrário é porque nunca saiu do Prior Velho.

    Há desde logo uma curiosidade interessante. Nos “20 piores aeroportos do Mundo” estão, para além de Lisboa, também Dubai, Porto, Frankfurt, Paris (dois aeroportos), Londres (dois aeroportos), Edimburgo, Dusseldorf, Newark, Manchester e Malta.

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    Conheço-os quase todos, e por isso vos digo: para aeroportos como Frankfurt, Porto, Dubai ou Gatwick estarem sequer perto de uma cauda seja do que for, o standard mundial teria que ser uma ficção qualquer do Stanley Kubrick com muitos móveis retro e lacados brancos.

    Quando reparei neste top 20, confesso que a credibilidade deste ranking estava para a aviação como o Miguel Relvas para a Academia.

    Fui então ver a metodologia utilizada no “estudo” da Air Help. Sim, admito, há dias em que tenho muito tempo livre e uma vida triste.

    Portanto, verifiquei que eram excluídos todos os aeroportos onde não fosse possível recolher informação, e eram incluídos apenas os “mais conhecidos e mais utilizados”. No “ranking mundial” estavam assim, afinal, apenas 132 aeroportos dos cerca de 42 mil existentes no planeta. Atenção: dados da CIA, só para não pensarem que os fui contar ao Google Maps.

    Ou seja, a Air Help recolheu informação em 0,3% dos aeroportos e fizeram um ranking mundial. Foi isto que deu as parangonas e a discussão em Portugal. O equivalente a um ranking de medalhas numas Olimpíadas disputada apenas por um país.

    Além disso, 80% dos critérios de avaliação referiam-se a atrasos nos voos e ao tempo para passar a segurança. Portanto, aeroportos com mais tráfego e menos pistas, tinham maior possibilidade de irem para a cauda do “Mundo”.

    high-angle view of city

    Dizia um leitor qual alguma piada: “a sanita é um buraco no chão? Não? Então não é o pior aeroporto do Mundo”. Fiquei curioso de saber por onde andou ele a voar.

    Para que serve então, para lá do clickbait e de alguns ódios virtuais, este estudo da Air Help? Para nada. É a Portela o pior aeroporto do Mundo? Não, nem por sombras, por mais atrasos que a única pista disponível nos traga.

    Assim sendo, como corolário, porque discuto um estudo sem relevância em tom de irritação?

    Também não sei. Mas gostava.

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    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Johnny Depp por umas horas

    Johnny Depp por umas horas


    Dos vários espectáculos degradantes que a vida nos vai proporcionando, o pior dos flagelos será a rentabilização da desgraça alheia. Nesse em particular, a cultura norte-americana é dona e senhora de um estatuto único no planeta.

    Não há nada, por mais desinteressante ou abjecto, que não possa ser transformado em espectáculo para entretenimento das massas. Tudo – menos um livro, vá – serve para massajar o cérebro de uma sociedade cada vez com maior acesso a informação em tempo real, mas, aparentemente, mais estúpida.

    black and white animal drawing

    Confesso a minha estupefacção pelo interesse mundial que gerou um divórcio e as suas sequelas. As horas de directos a partir do tribunal, os rios de tinta sobre a toxicidade do casal, as claques que juravam conhecer a verdade, tudo e um par de botas sobre um simples divórcio entre uma estrela planetária de Hollywood e uma senhora que entrou no Aquaman.

    Antes que me acusem de sexismo, explico a frase anterior. Eu não sabia quem era Amber Heard até a ver num julgamento transmitido em direto.

    Johnny Depp julgo que será conhecido na ilha mais remota da Amazónia, pelo que, com alguma segurança, afirmo que será uma cara mais conhecida que a do papa. E espero, com isto, não ofender cristãos.

    Nos dias que correm, ao escrever uma linha, temos de pedir desculpa na seguinte.

    Ainda assim, com uma estrela mundial no palco, não consigo entender como é que um divórcio é tema de conversa para milhões. Num mundo cheio de lixo até às entranhas, onde ainda se morre de fome e a guerra se espalha por quatro continentes, discutimos apaixonadamente, e com certezas absolutas, as quezílias do divórcio de dois milionários. Sim, porque se fossem pobres, e se espancassem com mocas de pregos, ninguém queria saber.

    Sendo assim, se nada disto me interessa, perguntará o leitor porque estou a requentar o tema?

    Porque, no meio do chavascal, há um e um só detalhe que me interessa, com o qual me sinto representado e que, julgo eu, se aplica a qualquer mortal no planeta. Mesmo aqueles que nunca estiveram nas Caraíbas e nem chegaram a piratas.

    E é este o detalhe: o direito a não ser difamado.

    Não sei se já alguma vez passaram por um tribunal e tiveram que ler folhas e mais folhas contando-vos, por interposta pessoa, quem afinal vocês eram. Usando frases fora de contexto, textos escritos com amor para um filho, acções desesperadas de defesa, coisas que não fizeram, afirmações que não vos pertenciam. Tudo misturado num bolo para provar, num tribunal de estranhos, que vocês afinal são outra coisa que até ali não conheciam. Sem uma única prova palpável, mas com um chorrilho de intenções, planeadas e executadas ao detalhe.

    silhouette of birds during sunset

    Contando que a sociedade, apenas porque sim, apoiasse uma queixosa quando ela diz que o homem é o culpado de todos os seus problemas e um empecilho ao curso da sua vida. Alguém que deve ser afastado, de tudo e de todos, especialmente de um filho, para bem do menor. Alguém que pode até ser perigoso.

    E porquê? Porque uma mulher o afirma. Se não passaram por isso, devo dizer que não recomendo. Não tem o glamour de Hollywood e deixa marcas para a vida.

    Amber Heard escreveu um artigo no Washington Post onde, pelas suas palavras, deixou um rasto de suspeição sobre Johnny Depp. O facto de ser uma figura pública à escala mundial, fez o resto. Perdeu contratos, trabalho e ganhou ódios. Se fosse um de nós, teria sido apenas difamado; como era o Johhny Depp, passou a andar com um alvo nas costas.

    É-me absolutamente indiferente quem mente mais, quem era mais tóxico ou que transacções financeiras resultaram daqueles arranjos. Há milhares de divórcios por dia. Dizem-me todos eles o mesmo que o do Johhny Depp e da Amber Heard: nada. A falência de uma relação entre dois seres-humanos é privada, íntima. Deve ficar entre quem passa por ela.

    Já a difamação não. A difamação é pública, pensada, estruturada, objectiva.

    Quem a faz tem um objectivo. Pode ser o de conseguir uma indemnização, a custódia de um filho, mais uns seguidores para o #metoo, a simples destruição de uma vida alheia. É essa a parte da sentença que me interessa. Aquela que afirma que a dignidade de alguém não pode ser posta em causa só porque sim. Que não podemos destruir a imagem do outro para benefício próprio. Que não podemos acusar sem provas e que opinião não é sentença. E, principalmente, que a justiça se obtém num tribunal e não numa folha de jornal ou em likes do Instagram.

    Nessa e só nessa parte deste julgamento, digo com algum alívio, voltámos a ganhar.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O PIB cresceu. Urra! O português empobreceu. Bolas!

    O PIB cresceu. Urra! O português empobreceu. Bolas!


    O dia em que Portugal seria elogiado pelos parceiros europeus por outra coisa que não sol, mar, comes e bebes, haveria de chegar. E chegou!

    A União Europeia felicita Portugal pela primeira posição no crescimento previsto do Produto Interno Bruto (PIB) na Zona Euro: 5,8%. Só para terem uma noção da tareia que vamos dar nos outros; no que toca a previsões, alemães e escandinavos nem aos 3% chegarão.

    Mal acabei de ler a notícia comecei aos saltos, e tive alguma dificuldade em conter a emoção. Bati com umas panelas, meti o Poeira da Ivete Sangalo aos berros e gozei com os meus vizinhos suecos. Finalmente, vamos crescer economicamente, meter este pessoal a comer o nosso pó do progresso, e ultrapassar a Lituânia, Estónia, Eslováquia e todos os outros que aparecem nos cartazes da Iniciativa Liberal.

    10 and 20 banknotes on brown wooden table

    Finda a celebração, limpei o suor da testa e sentei-me a fazer contas, só para perceber se mandava vir um Ferrari ou se teria que me contentar com um Mustang.

    O primeiro cálculo deu-me a sensação de que iríamos continuar pobres, o que só poderia ser falha minha. Contactei uma economista que conheci poucos dias depois de nascer. Eu; ela já por cá andava.

    Para não parecer muito idiota fui navegar na imensidão de dados que o Instituto Nacional de Estatística (INE) nos disponibiliza. Só para ler aquilo, uma pessoa tem de tirar um curso em Matemática Aplicada. Pelos últimos dados disponíveis (de 2020), 40% das famílias declararam menos de 10.000 euros de rendimentos anuais, ou seja, ficaram isentas. No universo de cerca de 5,5 milhões de trabalhadores, temos 86,5% dos agregados que levam para casa (cada elemento do casal em média) menos de 1.000 euros líquidos.

    Ou seja, numa aproximação mais simples, em cada 20 trabalhadores portugueses, 17 vendem o seu mês de trabalho por menos 1.000 euros líquidos. Numa realidade sueca isto seria o equivalente a ter 86.5% da população a viver com subsídios de estudante.

    man in blue shirt carrying blocks on head

    Por outro lado, menos de 1% dos agregados conseguem um salário bruto, por cabeça, igual ou superior a 3.500 euros, o que representaria menos de 3.000 líquidos. Ou seja, apenas 0.9% das famílias portuguesas têm um rendimento parecido com aquele que, a tal Europa mais rica que agora nos elogia, aceita como mínimo.

    Durante a pandemia a população portuguesa empobreceu – tínhamos cerca de 20% no limiar –, alguns empregos desapareceram e a dívida externa do país aumentou para pagar os custos do confinamento, dos lay-offs e dos apoios ao comércio/actividades encerrados. É por isso de esperar que os rendimentos das famílias tenham piorado.

    Junta-se a isto o anúncio do aumento nas taxas de juro e percebe-se facilmente que, com os salários declarados, 80% da população portuguesa não conseguiria comprar uma casa no centro de Porto ou Lisboa, aos preços de hoje.

    De onde vem então o milagroso crescimento do PIB? Segundo alguns economistas, essencialmente do consumo interno. Mas este aumento do consumo interno não se deve somente a um aumento do consumo de produtos e serviços, mas também ao aumento dos preços. Portanto, à inflação.

    green tractor on brown grass field under blue sky during daytime

    Mas vamos assumir que com o fim das restrições, o consumo aumentou, as pessoas voltam a sair de casa e os lucros já não vão apenas para os supermercados e bens de primeira necessidade.

    A vida volta ao normal – pelo menos para a fatia da população que conseguiu manter os seus empregos e o nível de vida. Há ainda a “bazuca europeia” que permitirá uma boa dose de investimento público. Ou seja, com mais pobres do que em 2020, com aumento da dívida externa (a “bazuca” não é grátis) e com a perda do poder de compra (por causa da inflação galopante), o PIB português crescerá.

    Que diferença isto trará à fatia de pessoas que depende do seu salário – especialmente daquelas que, apesar de trabalharem 160 horas por mês, não conseguirem abandonar a faixa de pobreza? Nenhuma. Zero.

    Algumas clientelas vão receber fatias da “bazuca”, mas, no essencial, o português comum continuará a fazer contas para esticar o salário até dia 25 do mês seguinte.

    Pelo meio dão-se ao luxo de um ou outro jantar fora, quem sabe uma volta ao Algarve e está feito. O PIB dispara.

    Champagne pouring on glass

    Entretanto, o combustível subirá amanhã pela 18ª vez – décima oitava vez – em seis meses, recuperando assim tudo o que não se vendeu durante a pandemia. Isto apesar da descida dos impostos, provando que o liberalismo dos mercados é um embuste e um apelo aos cartéis. E a Galp Energia obteve um resultado líquido de 155 milhões de euros no primeiro trimestre de 2022, que comparam com 26 milhões de euros do período homólogo.

    Bendita Ucrânia de costas largas.

    Enfim, estamos mais pobres, mais endividados e mais longe dos centros urbanos. Mas o PIB cresceu. Comemoremos, pois, mas com espumante. Champanhe é só para 0.9% dos portugueses.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • A razão de um escroque

    A razão de um escroque


    De repente Henry Kissinger falou e o Mundo parou para o ouvir. Por princípio, tenho alguma alergia quando se destacam opiniões de assassinos, e se valorizam as ditas dos ditos. O tempo não apaga a “Operação Condor” nem os milhares de mortes que Kissinger tem no curriculum vitae.

    O problema, neste caso, é que de facto Kissinger deu uma das saídas possíveis para a guerra na Ucrânia. Para eu engolir o sapo e continuar a escrever, vou apenas pensar que até um relógio parado acerta duas vezes por dia.

    Digo que deu uma das saídas porque, obviamente, não é a única. Mas é algo que merece discussão.

    low angle photo of flag of U.S.A

    A sugestão de Kissinger não é popular e, de uma forma geral, foi arrasada pelos nossos opinadores de serviço, o que se compreende. Por que razão deveria a Ucrânia ceder parte do seu território? Não há nenhum motivo para que um país invadido aceite perder território como moeda de troca para o fim do conflito, certo? Mas é uma das consequências das guerras, das invasões, dos conflitos, das operações especiais. Do que lhe quiserem chamar.

    Quando a Sérvia perdeu 20% do seu território a favor da minoria albanesa, a Europa aplaudiu. A NATO bombardeou Belgrado e o Kosovo nasceu. Se a memória não me atraiçoa, Rússia e Espanha foram dos poucos países que ficaram ao lado da Sérvia, o que não admira. Na altura lidavam com gritos semelhantes vindos da Chechénia e Catalunha, respectivamente.

    Contudo, a União Europeia de hoje não aceita um novo Kosovo no Donbass. Eu estava contra na altura (da perda de território da Sérvia), e, portanto, mantendo a coerência, estou a favor agora da manutenção do Donbass pela Ucrânia.

    Reparem que há anexações/disputas de território um pouco por todo o lado. Da Palestina à Arménia, da Abecásia à Índia, de Marrocos ao Curdistão. Da Somália a Gibraltar. Fazem parte, infelizmente, da História dos Povos. Hoje e sempre. A hipocrisia está naqueles que nós elegemos como importantes.

    A União Europeia não mantém a coerência porque não se mexe por convicções. Mexe-se por interesses – próprios em termos económicos e ditados pelos Estados Unidos na parte bélica. Neste caso importa aos Estados Unidos manter a guerra em território ucraniano. Dito e assumido pelo secretário de Estado da Defesa – portanto, já não é tema para debate. É um facto.

    grayscale photo of person holding glass

    Não seguindo a teoria de Kissinger restam-nos, portanto, duas hipóteses: ou os russos retiram e fingem que isto nunca aconteceu, pouco provável diria; ou, para além de dinheiro e equipamento militar, a comunidade internacional envia as tropas e avançamos para Moscovo.

    Estamos preparados para isto? Para uma III Grande Guerra assumida? Digo assumida, porque acho, para ser sincero, que o envolvimento da União Europeia e da NATO é tal que já não se pode afirmar que esta guerra é apenas entre Rússia e Ucrânia.

    Julgo que não. Os Estados Unidos vão usar os ucranianos enquanto derem jeito, e, cedo ou tarde, dirão a Zelensky para se calar. As promessas cairão no esquecimento, como o passado nos explica (Curdos no Iraque, lembram-se?), quando os interesses terminarem. Ou seja, quando os russos estiverem suficientemente desgastados para não arrastarem um fuzil nos próximos 20 anos.

    Nessa altura Zelensky deixará de ser esta estrela que entra em direto nos parlamentos e festivais de cinema, para ser mais um com uma mão cheia de nada para apresentar e um país em chamas para reconstruir.

    Clara Ferreira Alves disse que, neste momento, o líder ucraniano seria um entrave às negociações de paz por causa da ilusão criada com o apoio internacional. Não diria tanto, mas que, aos poucos, o tema parece começar a desinteressar a cada vez mais, julgo ser óbvio.

    grayscale photo of human skeleton

    Continuo a pensar nos milhões de deslocados e nos milhares de mortos. Peões no xadrez de um lunático russo e de comediante ucraniano que, três meses depois, continua a acreditar nas promessas do exterior. Em sinceridade, a União Europeia não quer a Ucrânia como parte integrante dos 27 – não está sequer perto de cumprir os requisitos – e a NATO nunca imaginou aquele território como parte da Aliança. Mas ambos vendem sonhos a Zelensky, que, por sua vez, vai mudando o discurso consoante o armamento que lhe chega.

    Já disse que não pensaria na NATO nos próximos 15 anos. Já afirmou que queria negociar e arranjar um estatuto para o Donbass. Agora só aceita retirada total e devolução dos territórios, incluindo Crimeia. Compreendo que seja o que qualquer ucraniano quer ouvir, mas, pergunto-me, o que andarão a vender a este pobre rapaz? Que promessas fará Biden a Zelensky?

    A não ser que uma revolução popular russa termine com a guerra, e com o reinado de Putin, eu não acredito que uma saída desta guerra não implique perda de território pela Ucrânia.

    E também detesto ter que dizer isto: desta vez, o escroque do Kissinger tem razão.

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