Etiqueta: Tiago Franco

  • O circo máximo de Ventura

    O circo máximo de Ventura


    Começamos a perceber, por esta altura, um pouco melhor daquilo que é o plano do Chega para esta legislatura. Corrijo: o plano de André Ventura. O Chega, mesmo com 50 deputados, continua a ser o partido de um homem só, que se desdobra em entrevistas e que, diariamente, é entrevistado por um canal qualquer para dizer uma série de alarvidades, desmentidas 10 minutos após a saída do estúdio.

    Ventura vive, entre nós, aquele famoso momento Trump: “poderia dar um tiro em alguém na Quinta Avenida e, mesmo assim, nada me aconteceria”.

    Para os eleitores do Chega, não há um incómodo com o chorrilho de mentiras que o querido líder debita em cada entrevista? Bem sei que tudo é dito com uma altivez de estadista indignado, mas, no fim, são apenas mentiras.

    A última foi sobre o deputado eleito pelo círculo europeu, ilegal em França e expulso por via disso, que, segundo Ventura, tinha dado o “salto” para fugir à guerra do Ultramar… em 1976. Provavelmente, ninguém lhe tinha contado que a revolução acontecera dois anos antes. Também pode ser isso. Ele podia acreditar que estava a fugir de uma guerra, como Ventura acredita que está a fazer o trabalho de Deus. O nosso, o filho do carpinteiro; pois, se forem enviados de outro deus qualquer, a começar pelo profeta, é dar-lhes guia de marcha, que o Martim Moniz já está a rebentar pelas costuras.

    Mas tudo bem. A mentira não vos incomoda, até por que “todos os políticos são iguais”, certo? Mentem de manhã até à noite.

    Sendo assim, o que dizer do partido que se declara anti-sistema e que se prepara para “limpar Portugal”, mas que só aceita as regras do jogo se fizer parte do arco da governação? Há mais sistema do que isso?

    Ao verem a chantagem diária e o pedido incessante de Ventura para que o deixem jogar também (leia-se entrar no governo), não ficam com a sensação de que ele nunca quis limpar nada, mas quer, simplesmente, chegar com a mão ao pote? Não? Também não? Tudo bem. Temos tempo para lá chegar.

    Se este triste espectáculo da eleição do Presidente da Assembleia da República nos ensinou algo, foi a percebermos, desde a primeira hora, aquilo que o Chega vai fazer nesta legislatura.

    É relativamente simples: Ventura vai chantagear, todos os dias, Luís Montenegro. Ou passa a bola, ou terá problemas para aprovar tudo e um par de botas, a começar pelo Orçamento do Estado, e ficando, assim, obrigado a negociar com o Partido Socialista.

    Para isso, vai repetir sete vezes ao dia que o Chega representa 20% dos eleitores, deixando de parte, como é óbvio, os restantes 80% que não quiseram ser representados por uma força extremista que não respeita a Constituição Portuguesa. Mais: muitos desses 80% votaram em partidos de direita que disseram, a partir de certa altura da campanha eleitoral, que não haveria coligação com o Chega. Esses, a maioria, são os primeiros que devem ser respeitados, e o “não” de Montenegro, deve mesmo ser não, apesar de algumas pressões que chegam de dentro, nomeadamente pelo CDS.

    Ouvi Cecília Meireles – uma personagem particularmente irritante pelas tentativas de normalização da extrema-direita – dizer que “era o que faltava que a Aliança Democrática não pudesse falar com o Chega, quando o PS fala com partidos antidemocráticos como o PCP e o BE”.

    Ora, eu já aqui expliquei, algumas vezes, que comparar um partido que lutou pela democracia e que defende diariamente a nossa Constituição, com outro que a quer ignorar e fazer tábula rasa dos direitos que lá estão inscritos, é uma daquelas idiotices sem tamanho. É a nova narrativa que a direita e alguns comentadores com espaço em horário nobre vão ensaiando.

    Primeiro, o PCP era “negacionista” porque organizava o Primeiro de Maio ou o Avante, seguindo todas as regras de distanciamento. Como, por exemplo, acontecia na Suécia. Depois, o PCP passou a putinista, porque, apesar de falar mal de Putin desde 2000 (quando a União Europeia lhe beijava os pés a troco de gás), defendia uma solução de negociação para a guerra da Ucrânia (que obviamente acontecerá, como a Administração Biden já assumiu). Agora que é necessário validar uma aberração antidemocrática como o Chega, o PCP também é pau para toda a obra, entrando nas mentiras de um contra-ponto à esquerda.

    O PCP é o Fredrik Aursnes da política portuguesa.

    Aquilo que eu espero, sinceramente, é que o Ventura não cesse de falar em estabilidade, enquanto chantageia o Governo diariamente. Aliás, até desejo que o faça até nova queda e eleições. Pode ser que chegue à maioria absoluta no próximo sufrágio e aí, todos os pobres, trabalhadores e dependentes do Estado social que votaram nele, percebam finalmente o buraco em que se meteram.

    Até lá, é desligar a Fox Comedy e sintonizar no canal do Parlamento.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Quem quer ser político em Portugal?

    Quem quer ser político em Portugal?


    Termina esta semana a enorme, penosa e pouco esclarecedora campanha eleitoral para as legislativas deste domingo.

    No momento em que escrevo, um pivô de um telejornal apresenta a última sondagem da Universidade Católica.

    A Aliança Democrática [AD] vence(rá) e a direita consegue a maioria dos deputados (com o Chega). É um cenário dantesco, confesso; mas razoavelmente normal para a alternância histórica dos partidos do centrão.

    Não me lembro de grandes discussões em torno da Educação, ou de o que fazer com a Ucrânia ou com Gaza. Também não me recordo de ouvir explicações da AD sobre a aliança com a Iniciativa Liberal [IL], que obrigará Montenegro a quebrar várias promessas eleitorais.

    Ficámos pelas promessas de tudo a todos – uns mais ridículos, e outros, poucos, mais objectivos.

    Enquanto acompanhava a campanha, em particular as arruadas, perguntava-me quem é que quer ser político em Portugal? A sério: quem?

    O desconforto no contacto com a população, para a maioria deles, é notório. Fora dos gabinetes e dos tapetes vermelhos da Assembleia da República, os candidatos parecem peixes fora de água, ouvindo insultos e sujeitando-se a momentos de vergonha alheia que me fazem pensar que não têm mesmo outra saída profissional que não seja aquela.

    Este período dos beijos a velhinhas nos mercados, passeios na linha férrea de interior escondido ou copos de três nas planícies alentejanas cheira a plástico por todo o lado. Tudo aquilo é feito com um esgar de dor e um sorriso amarelo que esconde o “quando é que isto acaba?”.

    A arruada é aquele momento em que o político profissional, algo que não deveria existir, faz o que mais se aproximará, na sua vida, com uma entrevista de emprego. Depois, se passar, pode estar mais quatro anos descansado e escondido atrás de um portão qualquer.

    Não há grande contacto entre as populações e o poder político. Pensem nisso. Quantas vezes na vossa vida chegaram ao contacto com um autarca, um deputado, um ministro? Há um sem número de degraus burocráticos que permitem, à classe política, “servir o povo” sem ter de o ver. Nem todos os partidos e/ou políticos são assim, mas, convenhamos, serão a maioria.

    Em Portugal gostamos muito das hierarquias e dos lugares no Olimpo, para onde mandamos uma boa parte dos incompetentes deste país. Não quero ser injusto, generalizando, mas acho mesmo que temos, actualmente, uma classe política medíocre e mais preocupada em “orientar a vida” do que servir a coisa pública.

    Um dos problemas, julgo, é a baixa remuneração dos políticos. Pode ser uma afirmação chocante, tendo em conta os baixos salários em Portugal, mas acho mesmo que o salário (oficial) de um político é muito pouco atrativo. Isso afasta os mais competentes, que ficam no sector privado e seguem as suas carreiras longe do lamaçal em que se transformaram estas décadas de “centrão”.

    Quem é que quer estar a ser analisado, criticado, vigiado e julgado na praça pública todos os dias? Culpado ou inocente, pouco importa; a imagem é arruinada em minutos nas televisões sensacionalistas, seja lá qual for o veredicto final dos tribunais. Isto, claro, quando há sequer veredicto.

    Pensem nos casos dos últimos anos e na forma como os ciclos se repetem. Soćrates, Galamba, Portas, Relvas, Albuquerque, Costa, Isaltino, os envolvidos do PS e PSD no tutti-frutti e por aí fora. Por todos, vimos directos, dias infindáveis de debates, suspeições, análises, escutas e imagens públicas devassadas antes das condenações. Alguns acusados, outros por acusar. Uns com penas, outros abafados. Uns com travessias no deserto e regressos triunfantes, e outros, ainda à espera do desfecho final.

    Mas reparem: independentemente da verdade que só à investigacão pública e aos tribunais deveria dizer respeito, todos formamos a opinião sobre a honestidade dos políticos visados. Lembrem-se do Galamba, anos e anos a ser escutado, com televisões à porta de casa enquanto levava o filho para a escola, sem que até hoje se perceba se o homem é inocente ou culpado. Longe de mim ter simpatia pela personagem em questão, mas onde quero chegar é: alguém se quer sujeitar a isto?

    Quem poderá querer viver neste permanente sensacionalismo e desgaste da imagem pública, seja inocente ou culpado, a troco de um salário que qualquer imigrante com formação universitária consegue, tranquilamente, mal apanha o avião de ida?

    Será pelo prestígio de ser ministro de um país pobre e sem qualquer relevância internacional? Será por amor à causa pública? Será pela ambição de poder num sítio onde quem manda verdadeiramente são meia dúzia de milionários?

    Não creio. Amor à causa pública afasta, por norma, as pessoas da corrupção e de actos ilícitos de favorecimento próprio. Poder? Talvez, para quem nunca saiu do próprio bairro e não perceba onde nos situamos no século XXI.

    Eu acho mesmo que é por falta de opções. Para um inútil sem grande currículo, ser político profissional é o melhor que pode almejar. E quanto mais inútil for, mais precisa de concorrer ano após ano – ao parlamento, às autarquias, ao que for. Tem de garantir um emprego. Ao contrário do que acontece nos países civilizados, ser político em Portugal é uma profissão para a vida. Mesmo com escutas, vigias, prisões em directo nas mangas dos aviões, horas e horas de devassa da vida nas televisões.

    Ainda assim, entre culpados e inocentes, há quem queira fazer disto vida a troco de um salário pouco mais do que risível. Especialmente se contabilizarmos o custo do circo e dos momentos de vergonha alheia.

    A quem serve esta profissão? Essencialmente, a quem não consegue mais nenhuma. E é por isso que nos boletins de voto, o que realmente abunda, é mediocridade e ausência de vida real.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • A máscara perdida pela AD

    A máscara perdida pela AD


    Em tempos escrevi que não acreditava que Luís Montenegro alguma vez chegasse a primeiro-ministro. Disse-o pelas mesmas razões que ainda hoje acredito, ao fim de dois anos de pré-campanha por todos os concelhos do país – como ele gosta de repetir em cada oportunidade. Vejo, ainda, um homem com o carisma de uma alface, sem outra ideia para o país que não seja a de desviar dinheiro dos impostos para o sector privado. Disfarça ligeiramente melhor do que Rui Rocha, da Iniciativa Liberal (IL) mas, no essencial, o programa é o mesmo. Daí que nem seja estranho a aliança assumida com a IL e as 10 medidas que terão que acatar para conseguir uma maioria de direita sem o Chega.

    As minhas dúvidas sobre Montenegro desapareceram com o frete que escolheu fazer à Vinci, na escolha do novo aeroporto de Lisboa. Depois de ter acordado uma última investigação com António Costa que daria uma decisão final, voltou a recuar na palavra, criando nova comissão para estudar a decisão da comissão independente (cujo resultado não agradou os patrocinadores do PSD). Luís Montenegro, para beneficiar alguns privados, resolveu adicionar mais um capítulo à eterna novela do aeroporto de Lisboa. A palavra do líder político ficou aqui apresentada.

    Ainda assim, reconheço, a campanha não lhe estava a correr mal para os objectivos da Aliança Democrática (AD). Partindo de uma base fraquíssima e sem chama, a começar pela risível tentativa de recuperar uma AD com Nuno Melo e Gonçalo da Câmara Pereira, Montenegro sobreviveu aos debates, apesar de um amasso aqui e outro ali. Foi mais ou menos perceptível que as ideias estavam alinhadas e o discurso ensaiado para captar um eleitorado de centro moderado e alguns descontentes. Por esta altura, estabeleceu a ‘cerca sanitária’ ao Chega – bem, na minha opinião –, e ficou preso ao seu próprio compromisso. Lançou alguma confusão na própria direita, que, ao contrário da esquerda, não se conseguiu organizar.

    A saída de cena de António Costa beneficiou a AD, e Montenegro em particular, porque deixou Pedro Nuno Santos a ter de criar, rapidamente, uma personagem ao mesmo tempo que defendia oito anos de governação.

    É incrível, na minha opinião, ver a sucessão de erros de Montenegro no debate contra Pedro Nuno Santos, e perceber como é que um homem, que anda há dois longos anos a preparar-se para isto, não consegue arrasar um antigo ministro de um Governo que passou por uma pandemia, uma guerra, inflação, aumentos de impostos, degradação da escola pública, do Serviço Nacional de Saúde e perda do poder de compra dos portugueses. Pedro Nuno Santos, em cima do joelho e em poucos meses, soube (sem encantar) criar uma defesa que praticamente anula a oposição do PSD. Por aqui também se vê a capacidade do líder da AD.

    Pedro Nuno Santos não consegue, comprovadamente, encher os sapatos de António Costa, mas nem isso parece ajudar a AD. Aliás, nota-se alguma queda em ambos (AD e PS), com subidas dos partidos mais pequenos à esquerda e à direita. O que também me parece positivo, para ser sincero.

    Mas foi na estrada que verdadeiramente se percebeu como a AD tinha este discurso colado com cuspo e as convicções mais escondidas. Miguel Relvas, outro artista dos bastidores, dizia esta semana na CNN, a propósito do disparate de Paulo Núncio, que em campanha deve-se seguir disciplina militar: saber-se exactamente o que se pode dizer e o que não se pode dizer. Ou seja, mentir, em português mais corrente.

    Recorde-se que Paulo Núncio, vice-presidente do CDS-PP e candidato pela AD, apareceu a representar a coligação num encontro que deveria ter sido discreto, e onde se discutiu a revogação do direito ao aborto (lembram-se do referendo que nos tirou do tempo das cavernas?).

    Paulo Núncio, nesse encontro, ainda disse com orgulho que o governo PSD/CDS tinha sido dos primeiros do Mundo a dificultar o acesso ao aborto. Corre agora um vídeo de arquivo da RTP onde, em 2004, Núncio defende o direito das crianças a terem uma “família normal”, com casais formados por homens e mulheres.

    Montenegro veio a correr distanciar-se desta posição, tal como já tinha feito com Gonçalo da Câmara Pereira a propósito da violência contra mulheres.

    Se, do lado do CDS e do PPM, ninguém espera grandes disfarces, já no caso do Dom Sebastião – Passos Coelho, para os amigos – a ideia era outra. A entrada do antigo líder na campanha, com aquele infeliz discurso sobre “sensações de segurança”, a propósito dos imigrantes, foi uma tentativa deslavada de apanhar eleitores do Chega e mais uma punhalada em Montenegro. Por um lado, voltou-se a abrir a discussão, que estava fechada, da ‘cerca sanitária’ ao Chega. Por outro lado, todos vimos Passos Coelho, o criador de Ventura, a tentar normalizar ideias mais radicais dos extremistas.

    Aquilo que ficou claro ao fim desta primeira semana de arruadas e comícios é que, apesar de todo o esforço de Montenegro nos debates para fazer as pazes com os pensionistas, não restam mais dúvidas de que este PSD, presente a estas eleições, é, de facto, o de Passos Coelho. Não é o de Rui Rio. Não é de nenhum moderado. É a mesma coligação que juntou Passos, Relvas, Portas e outras figuras menores que cortaram o que lhes foi exigido e o que ninguém lhes pediu. Já agora, a mesma coligação que tinha Luís Montenegro como líder parlamentar, e que, por exemplo, em temas como o aborto, assinou processos disciplinares a quem, na bancada do PSD, votou contra o retrocesso civilizacional.

    Ainda assim, mesmo para mim que aprendi nas ultimas eleições a não ligar muito a empates técnicos nas sondagens, acho que esta AD, colada com cuspo e tentando disfarçar as suas reais convicções, pode vencer as eleições. Por duas razões essenciais. Primeiro, porque o PS não está a ser competente e a esquerda, do Bloco de Esquerda à CDU, insistem em alguns erros de palmatória (fica para outro texto). Depois, porque, parece-me, a ‘cerca sanitária’ ao Chega desapareceu e julgo que Montenegro se entenderá com Ventura se assim tiver de ser.

    Seguem-se cenas dos próximo capítulos e cada um votará em quem quiser. É essa a beleza da democracia e o alimento do debate. Mas, para a tomada de decisão consciente, é importante percebermos aquilo que cada partido traz para a mesa. No caso da AD, parece-me, depois desta semana, que ficou clarinho como água o século para onde nos querem enviar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Mixórdia de temáticas

    Mixórdia de temáticas


    1 – Acho sempre uma péssima ideia começar um debate com o argumento que do outro lado está alguém ignorante. Assim sendo, vou partir do princípio que Inês Pedrosa, quando disse que preferia Navalny, “o mártir heróico”, a Che Guevara, sabia quem eram as duas personagens que estava a comparar. Todos temos direito à nossa opinião e, por isso, respeito a de Inês Pedrosa. A minha é que ela disse um disparate em horário nobre da RTP3. No caso dela, um entre muitos que habitualmente vem dizendo desde os tempos da pandemia. Antes disso, não sei porque não lhe prestava atenção.

    Navalny veio para a ribalta por ser um opositor à ditadura de Putin, usando a guerra da Ucrânia como arma de arremesso para a sua posição de “defensor da democracia”. Nós, e por nós quero dizer o eterno moralmente superior Ocidente, corremos a abraçar a causa de Navalny seguindo aquela lógica do “inimigo do meu inimigo, meu amigo será”.

    Alexey Navalny

    Ora, não é propriamente o caso aqui. Os próprios ucranianos, de quem Navalny seria, em teoria, um amigo, referem-se a ele como um adepto do imperialismo russo, da anexação de partes da Ucrânia, da não-entrada na NATO e, ainda, com uma longa história de nacionalismo, xenofobia e pureza da raça, como disse à Time a professora da Universidade McGill Maria Popova. Em resumo, Navalny é apenas outro Putin que queria fazer o mesmo que o original, mas com uma ambição tal que, de facto, aceitou correr risco de vida para tomar o poder.  A figura de quem, como Inês Pedrosa, tenta transformar este homem num democrata, é semelhante à de Ursula Von der Leyen quando trocou o gás da ditadura russa pela ‘democracia’ azeri. 

    Temos um ditador no poder que mandou matar outro ditador em potência. Faz parte, infelizmente, da História Russa há 100 anos. É uma chatice, mas é o que é. Meter o Che Guevara no meio disto até me fez soltar um ou outro vocábulo mais rudimentar.

    2 – Em 2022 escrevi que este modelo de debate ‘express’ entre todos os líderes não beneficiava o estilo de Ventura. Quer dizer, não beneficiava ao fim de um certo tempo, que, na minha opinião, já passou. Interromper todo e qualquer raciocínio e apostar tudo em ataque pessoais, serve para um partido de protesto, mas é pouco para quem quer ser levado a sério e chegar ao poder. Três ou quatro anos depois, já todos conhecem os truques, e sobra a Ventura, se quiser passar da falange clássica de apoio ao Chega, começar a apresentar as ideias que não tem. Em todos os debates tentou a mesma estratégia de usar e abusar do ataque pessoal. Entre mentiras, populismo e factos com pouquíssimo interesse para as eleições, saiu dos debates a mendigar por uma aliança governativa que, aparentemente, ninguém quer aceitar. O Chega subirá, e muito, mas parece estar preso a uma cerca sanitária imposta pelo resto da direita, à qual estratégia de Ventura não parece ter conseguido dar a volta. Aliás, entre esquerda e direita, o único ponto comum ao fim de duas semanas de debates parece ter sido que o Chega é o parceiro com quem ninguém conta. Até Luís Montenegro, algo que honestamente me surpreendeu.

    O exemplo mais clássico, na minha opinião, de uma estratégia falhada, apareceu no debate com Rui Tavares onde, em vez de se discutirem soluções para a Educação, se passou o tempo a falar da escola privada dos filhos do líder do Livre.

    Como se uma pessoa precisasse de ter os filhos na escola pública para a defender. Ou nunca ir a uma clínica privada para defender o Serviço Nacional de Saúde. Ou não andar de avião para defender a ferrovia. Este tipo de discurso, e até de devassa da vida privada, é exactamente uma das razões para os melhores não quererem ir para a política. São salários baixos e uma exposição doentia, ao ponto de chegar à humilhação pública que, bem feitas as contas, se tornam absolutamente desnecessárias para quem tem carreiras sólidas nas respectivas áreas profissionais.

    Sobram-nos por isso artistas como o Ventura. É seguir, cantando e rindo.

    3 – Na Ucrânia chegámos ao ponto clássico das guerras alimentadas pelos Estados Unidos. Há sempre aquele momento em que desaparecem do radar como se nunca lá estivessem estado, deixando os locais entregues à sua sorte. O exército russo já teve milhares de baixas e o seu enfraquecimento é real, portanto, um dos objectivos de Washington está conseguido. As sanções produzidas pela União Europeia, por outro lado, pouco fizeram pela Economia russa que cresceu 3,2%. Agora, nesta fase de desespero, em que a Europa não tem armas para dar a Kiev, os russos vão fazendo o que querem, e alguns países, como a Alemanha, começam a tratar do seu próprio arsenal, antevendo o que aí virá.

    Há quase dois anos que repito isto, e volto a dizê-lo: acabaremos por negociar de qualquer forma os terrenos que passarão da Ucrânia para a esfera russa, mas, fá-lo-emos em muito piores condições e com muito mais mortes. Não sei se se lembram mas quem dizia há dois anos o que está a acontecer agora e o que a Europa será forcada, com maiores custos, a fazer, era apelidado de putinista. Desde o primeiro dia que sabemos que a invasão russa só se resolveria de duas formas: na mesa das negociações ou numa Terceira Guerra Mundial.

    Uma última nota sobre o formato da crónica desta semana: espero, até imploro, que Ricardo Araújo Pereira não me processe por usar um título que lhe pertence. Ainda pensei em usar uma frase como, por exemplo, “dizer o que não foi dito” para título deste pout porri” de temas, mas tive algum receio. Uma coisa é brincar com um humorista que tem o dom da palavra, outra é meter-me com um cantor que não canta. Ainda me mandava, olhem, Talvez Foder, que também deverá ter sido por ele patenteado.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Das primeiras impressões: 60 debates. Sim: 60

    Das primeiras impressões: 60 debates. Sim: 60


    Parece que os debates para as legislativas de Março estão a ter boas audiências; algo que, num país tipicamente desligado das decisões políticas, é um bom sinal. Há, pelo menos, interesse em ouvir o que os líderes partidários têm para dizer.

    Tenho algumas dúvidas que estes formatos sejam muito esclarecedores. Primeiro, porque o formato de “speed dating” não é o melhor para se explanar uma ideia. Parece que cada entrevistado tenta passar as suas ideias enquanto corre os 100 metros barreiras, sobrando pouquíssimo tempo para o confronto de visões. Depois, pelo que vou observando, o circo montado em redor dos debates, com as análises “pós-jogo”, tendem não só a transformar o que lá aconteceu, mas, principalmente, a levar a discussão para zonas que interessam muito pouco para o esclarecimento dos portugueses. É para isso que servem os debates: para o esclarecimento.

    Andar três ou quatro dias a discutir a avó da Mariana Mortágua serve apenas para desviar as atenções dos temas reais que, nesse debate em concreto eram, por exemplo, a contribuição do PSD para a especulação imobiliária ou a tentativa de desviar ainda mais fundos públicos para os hospitais privados.

    Ainda assim, devo dizer: este formato é obviamente melhor do que nenhum, e no meio do fogo de artifício, se estivermos atentos, conseguimos perceber as diferenças fundamentais entre os protagonistas.

    Eu trabalho, todos os dias, sentado em frente a um computador. Não era o sonho, mas deixemos isso para outra altura. Enquanto o faço, tenho normalmente um canal de noticias ligado para ir seguindo o que se passa e juntar algumas notas para aquilo que escrevo. Vi todos os debates até aqui. Todos. Ao fim de uma semana parece-me que, à esquerda, Rui Tavares foi quem mais se destacou, tal como Mariana Mortágua. Ambos me pareceram bem preparados, têm o dom da oratória que ajuda nestas coisas da exposição pública e conseguiram passar algumas das ideias-chave, encostando por vezes os adversários às contradições das suas próprias propostas. Mortágua meteu o pé em ramo verde com a história da avó; Tavares não cometeu erros.

    À direita, achei que um número maior de candidatos se destacou. Desde logo Bernardo Ferrão, Mafalda Anjos e Sebastião Bugalho. Mas também Rui Calafate, Inês Serra Lopes e Anselmo Crespo. Estiveram todos muito bem, ao longo da semana, falando aos espectadores sobre debates… que não existiram. Temo que, no início de Março, tenhamos chegado todos à conclusão que, em vez de 30, afinal vimos 60 debates. Aqueles que aconteceram em directo para todo o país e aqueles que o Anselmo & Cia nos quiseram contar.

    Rui Rocha foi, até ao momento, o candidato que demonstrou maiores fragilidades. Desde aquela irritante frase feita colada ao início da conversa até à imagem que permite ser colado pelos adversários. Saiu do debate com Pedro Nuno Santos, com a imagem colada à testa da pessoa que foi ali para conseguir financiamento público para o sector privado.

    E, em seguida, no debate com Ventura, conseguiu a proeza de ver o demagogo-mor fazer dele um vilão que não queria saber das pensões das velhinhas. Isto vindo de um antigo ministro que apresentou o Orçamento de Estado com a maior transferência de fundos para privados de sempre e, ainda, de um líder partidário que chegou às lides políticas, há seis anos, apresentando-se com o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da escola pública e do Estado Social em geral. É obra.

    Para piorar, ainda se conseguiu enrolar na área em que a Iniciativa Liberal costuma ser melhor: a de fabricar cartazes bonitos com países europeus onde qualquer coisa que lhes dá jeito funciona. Não havia um assessor que pudesse ir ao Google dar-lhe os escalões fiscais da Holanda, para evitar mais uma argolada? A sorte (quer dizer, não é bem sorte) de Rui Rocha foi a lavagem que os analistas fizeram na hora seguinte nas televisões. Quem os ouvisse ficava com a sensação de que a coisa tinha corrido bem.

    Luís Montenegro teve um arranque melhor do que Pedro Nuno Santos. Por uma simples razão: ninguém espera nada dele. Ainda assim, conseguiu manter-se em jogo com Mariana Mortágua até ao momento dos vistos GOLD e da invocação de “o que você quer é uma Venezuela”. Sabe-se que o argumento da direita termina quando, à falta de soluções, invocam Cuba ou Venezuela.

    A Montenegro, tal como Rocha, valeu também os analistas de serviço para recomporem as palavras e até apresentarem ideias que ele nem sequer mencionou. Há um esforço genuíno de alguma comunicação social para contribuir para a subida da direita ao poder. Desde sondagens repetidas diariamente que, invariavelmente, falham no dia das votações, a análises completamente contorcidas aos debates. Aliás, a título de curiosidade, está cada vez mais difícil ver alguém do centro-esquerda por lá, sentado numa cadeira de um estúdio de televisão.

    Pedro Nuno Santos teve sorte de começar a estrada dos debates pelo Rui Rocha e, como tal, conseguiu safar-se sem sair da personagem que o convenceram a encarnar. O homem moderado que não diz o que pensa mas aquilo que fica bem. Ora, não sendo eu um eleitor do Partido Socialista, a piada da eleição de Pedro Nuno Santos era exactamente a de não ter medo de defender ideias de esquerda. Fosse nas discussões sobre a CP, na defesa da TAP, na comissão de inquérito ou até no anúncio da localização do aeroporto de Lisboa. Farto estou eu, de políticos do centrão que dizem aquilo que acham que queremos ouvir.

    Prefiro a honestidade da palavra, mesmo que impulsiva, do que um homem que diz tudo e o seu contrário, sem qualquer respeito pela palavra dada. Montenegro já disse que se demitiria se não vencesse as eleições. Agora disse que ficaria. Já disse que o Chega não seria parceiro, mas está sempre a abrir-lhes a porta. Claro que não são temas explorados porque o espaço público está reservado para a avó da Mariana Mortágua mas, ainda assim, para quem tenha paciência para os ver, os sinais estão todos lá.

    Pedro Nuno Santos terá, a meu ver, que se libertar desse boneco onde lhe disseram que devia encaixar. Isto se quiser marcar alguma diferença e usar aquilo que é a sua mais valia. Caso contrário, corre mesmo o risco de deixar a decisão na mão de estarolas como Montenegro, Nuno Melo e Ventura.

    Ventura também não entrou muito bem nesta sequência de debates por uma razão essencial: a repetição da estratégia que já todos conhecem. Interromper cada frase do adversário, evitando o raciocínio do oponente, resultou em anos anteriores mas agora, já ninguém tem grande paciência para ouvir. Torna-se irritante para quem está em casa e já não provoca perturbações em quem se senta à frente de Ventura. Admito que ainda encante os eleitores do Chega, especialmente aquela ala mais desfavorecida no raciocínio mas é claramente um modelo esgotado.

    Inês Sousa Real, que não é uma oradora particularmente brilhante, passou por cima de todas as cascas de banana, sorrindo, e ainda teve tempo para humilhar André Ventura e o grupo parlamentar do Chega. 12 deputados durante uma legislatura, com produção de 169 propostas, tendo conseguido um total de ZERO aprovações.

    Como explicou a líder do PAN a qualquer eleitor do Chega, aquilo que isto significou, na prática, é que o voto no Chega não serve para nada porque, nenhum dos seus pares no hemiciclo os leva a sério. Isto para não dizer simplesmente que as propostas são, no seu essencial, absurdas e servem apenas para simular que se faz algo.

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    Em cima de uma estratégia que não pretende debater ou trocar ideias, Ventura continua a cair no erro de atirar factos aos calhas que, cinco minutos depois de terminado o debate, são desmentidos, como por exemplo, aquele número mágico do dinheiro da corrupção (90 milhões).

    Quando debate com a esquerda fala no despesismo, quando debate com a direita assume-se como defensor do estado social. Não há maior cata-vento na política portuguesa. Ainda assim, admito, Ventura é eficaz para o seu eleitor típico e até para outros que flutuam entre PSD e CDS. Neste momento, o Chega vive o seu momento Donald Trump (“posso matar alguém na 5a avenida que nada me aconteceria”).

    Pode Ventura dizer as maiores barbaridades, mentiras e contradizer-se 50 vezes em cada debate que, não me restam dúvidas, o Chega ganhará votos para as legislativas.

    Já que acabo a falar de populistas, e enquanto espero pela segunda semana de debates, deixo aqui uma nota final sobre Javiel Milei, o tal libertário que ia trazer vida nova, progresso, riqueza e liberdade para todos na Argentina. Lembram-se?

    O seu partido apresentou recentemente no Parlamento, uma proposta de revogação do direito da livre interrupção da gravidez, criminalizando o acto com penas que podem chegar a três anos. Já tinham feito o mesmo com o direito à manifestação. Há um traço clássico em todos os extremistas de direita que se apresentam ao público falando em liberdade: é que mal chegam ao poder, certo e sabido, a primeira coisa que fazem é tratar de a suprimir.

    Aprendam com os outros antes de irem às urnas, é o que vos digo.

    “Viva la libertad, carajo”, mas é o ca*****.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Macaco: a incrível história de um beneficiário do RSI

    Macaco: a incrível história de um beneficiário do RSI


    Há dois dias que só ouvimos falar de Fernando Madureira, ou do Macaco, como ele prefere ser chamado – o líder de um gangue criminoso que, por acaso, também vai à bola.

    Vi Miguel Sousa Tavares (MST) indignado com o estado em que a polícia deixou a casa de Madureira, e até a filha do visado a queixar-se da violência e agressividade com que a polícia por ali entrou. Percebo MST, percebo mesmo. Ainda é do tempo em que os polícias telefonavam a avisar antes das rusgas, dando tempo aos visados de fugirem para Vigo. Bons tempos que parecem não querer voltar.

    Já o espanto da miúda, tenho alguma dificuldade em entender. A não ser que o casal Madureira tenha proibido a filha de ir ao Youtube, há por lá boa documentação, do pai e da mãe, bem como dos amigos de ambos, em preparos bem mais violentos e agressivos do que a PSP a entrar pela porta da frente sem tocar à campainha. Para ela, aquilo deveria ter sido uma simples terça-feira de trabalho.

    Aquilo que realmente acho interessante neste caso é, uma vez mais, o tempo em que tudo acontece.

    Há pelo menos 20 anos que toda a gente sabe quem é Fernando Madureira. Até porque, convenhamos, ele não gosta de fazer um grande segredo das suas actividades. Tal como boa parte dos seus compatriotas, Madureira vive, diz, com o salário mínimo. A dura realidade de um país pobre, segundo a declaração que, anualmente, entrega em sede de IRS. Contudo, ao contrário de boa parte dos sobreviventes do salário mínimo, Madureira consegue esticar os parcos recursos declarados e viver, digamos, confortavelmente. Construiu uma moradia de luxo com dois pisos e piscina numa zona nobre de Gaia. Conduz um Porsche e um BMW topo de gama. Viaja frequentemente para sítios paradisíacos, onde o bilhete de avião e a estadia custam vários salários mínimos.

    Dir-nos-ia a Iniciativa Liberal que estamos perante um empreendedor, um homem que não se resignou à sua condição de pobre e que procurou investir em si mesmo. Um homem que faz a multiplicação dos pães ou, neste caso, dos salários mínimos.

    Desconfia-se, há muitos anos, que Madureira e vários membros dos Super Dragões estão envolvidos em actos ilícitos e, dessa forma, conseguem suportar os custos de uma vida de luxo sem que se conheça, aparentemente, um emprego fora da claque.

    Pergunto-me: como é que as autoridades terão desconfiado disto?

    Durante duas décadas, vimos Madureira e membros dos Super Dragões a vender bilhetes para jogos (libertados pelo próprio clube), ficando provavelmente com os lucros e oferecendo, em troca, todo o tipo de serviços ao clube, dentro da gama de recursos que uma guarda pretoriana pode oferecer.

    Vimos Pinto da Costa escoltado pelo gangue a caminho do tribunal, vimos visitas filmadas a árbitros no seu centro de treinos, soubemos de passagens por estabelecimentos de árbitros ou seus familiares na véspera de jogos. Há relatos de jogadores ameaçados pela claque quando não quiseram renovar contrato. Agressões a jornalistas, adeptos, adversários. O clima de terror e coacção vem de trás e trouxe, para além de alegados proveitos desportivos, aparentes proveitos económicos.

    Fernando Madureira mexe-se bem na alta roda dos interesses. Tanto aparece aos abraços com Pedro Proença, o dirigente máximo da Liga Portuguesa de Futebol, antigo árbitro amigo; como é visto com o apoio da Federação Portuguesa de Futebol, a liderar uma claque patrocinada para a nossa Selecção. Isto apenas por ter revelado, em livro, uma série de assaltos feitos nessas mesmas deslocações com a claque.

    Deve ser um dos poucos casos em Portugal onde o autor confessa os seus crimes pela via escrita ou filmada e, mesmo assim, nada lhe acontece.

    Há 20 anos que sabemos desta promiscuidade e, obviamente, a passagem do tempo aumentou a sensação de impunidade. Madureira faz o que quer, como quer, e quando quer. Em Gaia, expulsa de um restaurante um antigo funcionário do Benfica. Filma-se em combates ilegais de rua. Vende bilhetes em directo, afirmando que tem todos os bandidos do Porto ali por perto. Relata, detalhadamente, como roubam pessoas ou estações de serviço a caminho dos jogos. A única coisa que falta colocar em livro são os pontos de recolha e entrega de droga, outro dos negócios alegadamente ligado ao gangue liderado por Madureira.

    Pelo meio desta vida atarefada de gestão do salário mínimo nacional, Madureira ainda teve tempo para gozar com o sistema de ensino português. Conseguiu entregar uma tese de mestrado numa universidade privada e obter o grau de mestre com 17 valores.

    A revista Visão, em 2017, num artigo de Miguel Carvalho, relatava o seguinte sobre este tese:

    “Quando leu o documento, Maria Alzira Seixo, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ia tendo um susto. Ou pior. A tese de Fernando Madureira é um insulto à Língua Portuguesa e ao desporto nacional. Manuel Sérgio [catedrático da Faculdade de Motricidade Humana] pode ter um ataque cardíaco se a ler!”, ironiza, sem se deter, citando um dos académicos mais prestigiados nesta área. “É escrita num Português iletrado, analfabeto e ridículo. Inacreditável que uma instituição do ensino superior aceite tal coisa”, reforça Maria Alzira Seixo.

    Porquê agora? Numa vida cheia de história mal contadas e com provas repetidas de crimes cometido, o que mudou? Porque acordou o mundo para a realidade de Fernando Madureira, Sandra Madureira e o gangue criminoso por eles liderado? Por causa de uma assembleia geral onde as ameaças e coacção, normalmente usadas para adversários, foram aplicadas à oposição interna com aquele vergonhoso condicionamento dos trabalhos? Não, não foi por isso.

    Pinto da Costa reina tranquilo há 40 anos sem que alguém tenha sequer coragem para o criticar. Durante muito tempo, a claque garantiu que ninguém se aproximava sequer do poder. Aliás, a vida que Madureira tem só será possível enquanto Pinto da Costa for o presidente do Futebol Clube do Porto. E o contrário também é verdade. Direccão e claque precisam um do outro para manter as rotinas das últimas duas décadas.

    brown bridge with light

    Não foram os desacatos da assembleia geral que deram o alerta nas forcas de segurança. Não há nada de novo na violência e métodos do gangue. A novidade é que, desta vez, a oposição parece ter alguma força e, aos poucos, começa a cheirar a fim de ciclo e à queda do poder vigente. Ora, em Portugal, todos sabemos, a impunidade dos mais poderosos acaba quando a cadeira do poder se parte.

    Pinto da Costa está de facto ameaçado por André Villas Boas e sabe que, se não sair da administração do Futebol Clube do Porto num caixão, será ele o próximo a ir responder à Judiciária ou à PSP. O mesmo para o gangue de Madureira. A vida de luxo à custa do clube e o constante olhar para o lado das autoridades mantém-se, enquanto o poder instituído for o mesmo. Quando o sistema se começar a desmoronar, Madureira será a sua primeira vítima.

    A história de Madureira não diz nada sobre ele que já não fosse público. Diz, e muito, de como funciona esta República das Bananas a que vamos chamando Portugal.

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  • Portugal, o país das casas ‘norueguesas’ para salários ‘nepaleses’

    Portugal, o país das casas ‘norueguesas’ para salários ‘nepaleses’


    Há uns anos, ao fim de quase duas décadas de emigração, quando comecei a pensar regressar a Portugal ou passar por cá períodos maiores de tempo, decidi ir procurar casa em “casa”.

    Não sendo a minha cidade natal uma hipótese por causa dos preços (Lisboa), fiz como a maior parte de nós e fui averiguar na Margem Sul, onde vive boa parte da minha família. Lembro-me de ver umas maquetes de uns prédios em construção, ali perto do centro de estágio do Benfica (Seixal) e de comentar com o vendedor como achava tudo aquilo um absurdo e completamente fora do contexto real do país. Ele, obviamente feliz pela forma como corria a venda da maquete, dizia-me, a propósito do meu país de acolhimento, o seguinte: “olhe… ainda ontem saiu daqui um sueco velhote com a filha. Compraram um T4 por 800.000 euros. Onde amigo, onde, é que eu na minha vida alguma vez pensei vender um T4 no Seixal por 800.000 euros?”

    stack of books on table

    De facto, não pensou ele e, imagino, ninguém que tenha crescido e vivido por ali, como foi o meu caso. A “praia” para onde fugíamos tentando evitar as aulas, ali pelo final do século passado, baptizada com um nome pouco abonatório que incluía o recurso a adjectivos escatológicos, é hoje uma “vista desafogada para a baía”.

    Como imaginarão, fico contente com a reabilitação dos espaços urbanos, em especial nas zonas dos subúrbios que são, normalmente, pouco dadas a embelezamentos ou cuidados arquitectónicos. Mas há aqui toda uma matemática que, por mais que tentemos, não parece fazer qualquer sentido.

    Portugal tem um salario médio de 1.200 euros brutos (aproximadamente) e isto significa que a nossa classe média, a existir, é pequeníssima. A não ser que consideremos que a classe média recebe pouco mais do que o salário mínimo. Se for essa a bitola, então temos um país quase sem pobres.

    Se a maior parte dos portugueses vive com menos de 1.000 euros líquidos, como é que o preço médio de um apartamento com, por exemplo, 100 m2, vai de 445.700 euros em Lisboa a 285.700 euros no Porto? Ou até 230.600 euros em Faro e 193.300 euros em Setúbal?

    white and black concrete buildings

    Como é que isto é possível? Economistas defendem que há pouca construção e isso faz aumentar o preço dos imóveis disponíveis no mercado. É um facto que o nosso parque habitacional subiu pouco na última década (cerca de 1%), mas também não é menos verdade que a população é essencialmente a mesma. Entre entradas e saídas, mortes e nascimentos, continuamos a rondar os 10,5 milhões.

    Se os portugueses com poder de compra são cada vez menos, os imigrantes que tanto incomodam o Ventura recebem salários miseráveis… Quem é que compra estas casas em Lisboa entre 500.000 e um milhão de euros? São todos suecos como o amigo do Seixal? Ou franceses? Árabes? Russos?

    Segundo o Pordata, em Dezembro de 2023, Portugal tinha uma população estrangeira de 800.000 pessoas, das quais 30% seriam brasileiros. Admitindo que os brasileiros não são todos milionários, serão os restantes 70% compostos por golfistas ingleses e nómadas digitais australianos?

    Quando me falam no mercado para justificar tudo, é quando o fumo começa efectivamente a chegar à zona das orelhas. “Se alguém paga o valor, é porque vale. É assim o mercado”. Esta é uma versão redutora e que serve, na realidade, para justificar o injustificável. Para distribuir lucros pornográficos por uma minoria e prender boa parte da população a créditos eternos.

    white and red wooden cube

    Vi um prédio na Avenida do Brasil com apartamentos entre 300.000 e 1.200.000 euros. Dir-me-ão que tem melhores acabamentos, que os custos de produção aumentaram com a inflação, a guerra, e todo o novelo do costume. Mas, quando saímos de casa, do T3 que custa 1,2 milhões de euros, continuamos na Avenida do Brasil, não é? Com lixo a transbordar dos caixotes, merda de cão no passeio e marquises no prédio da frente. Não estamos na 5ª avenida ou nos Campos Elíseos. O preço surreal que o “mercado” atribui a uma casa em Portugal, seja esta no subúrbio ou no centro das cidades, é absolutamente incompreensível.

    Os custos de construção aumentaram? Por acaso têm visto pedreiros e carpinteiros em ferraris? O que aumentou verdadeiramente foram as margens de lucro de quem constrói e vende. Alguém acredita que o custo de produção de um T3 em Lisboa se aproxima sequer do milhão de euros? Não é mais ou menos óbvio que as margens subiram para valores que ninguém consegue perceber e muito menos, pagar?

    Nós, portugueses, chegámos a um ponto da nossa evolução em que não temos dinheiro para viver nas zonas onde somos forçados a trabalhar. Bem sei que devemos todos mudar para o interior onde tudo é mais barato e arranjar emprego na lavoura, mas eu ainda sou daqueles que defende que uma pessoa deve viver onde lhe apetecer, perto da família, do mar, da barragem, dos campos de girassóis ou na borda do rio. Um país não pode ter um parque habitacional onde o custo médio está muito, muitíssimo acima, daquilo que é o salário médio.

    burned 100 US dollar banknotes

    No outro dia, li algures que isto só lá vai com ocupações à força. Parece-me radical, até porque defendo o direito à propriedade privada (com regras). Ainda assim, não consigo aceitar que todos sejamos obrigados a viver em condições miseráveis para alimentar a especulação imobiliária ou então, em alternativa, sermos despejados para a porta da emigração.

    Há algo mais a fazer para resolver a crise da habitação. Desde logo, simplificar o processo de construção e deixar o mercado da concorrência funcionar. Depois, dar algum uso ao imenso parque habitacional público. E por fim, nos casos da mais pura e nojenta especulação, não me venham com conversas de investidores e segurança de mercado. Há que taxar sem complexos. Já se faz no primeiro mundo, não precisamos de inventar a roda.

    O que não podemos é continuar a viver em barracas enquanto pagamos palácios.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • ‘Quo vadis’ União Europeia?

    ‘Quo vadis’ União Europeia?


    Não é raro ficarmos espantados com as prioridades dos nossos governantes e o seu desfasamento com a realidade das populações. Eu, pelo menos, pergunto-me frequentemente em que mundo viverá a classe política? Do Parlamento nacional ao Parlamento Europeu, não raras vezes fico com a sensação que quem define as regras não vê notícias.

    A União Europeia lançou-se numa sequência de trapalhadas nos últimos quatro anos que, honestamente, piorou a vida de quem vive dentro das fronteiras dos 27.

    Primeiro, foi a pandemia que nos trouxe confinamento em quase todos os países, cancelamento das liberdades individuais, aquele inenarrável passaporte digital, perda de empregos e uma factura gigante transformada em impostos que ainda hoje pagamos. Ainda me lembro de ver noticiários com pessoas a bater palmas à janela e a histeria de quem achava que ficar em casa iria salvar vidas. Isto, enquanto milhões de pessoas dos serviços fundamentais ou do sector produtivo continuavam a trabalhar fora de casa todos os dias. O Capital, aparentemente, nunca passou pela pandemia.

    Seguiu-se a guerra na Ucrânia patrocinada pela União Europeia (UE), onde Rússia e Estados Unidos decidem o destino da Ucrânia. A não eleita Ursula Von der Leyen apressou-se a anunciar o empobrecimento obrigatório dos cidadãos europeus para pagarem as loucuras do impérios “as long as it takes“. Não sei se se lembram das delirantes conferências de imprensa dos líderes europeus que, sucessivamente, iam anunciando mais e mais pacotes de sanções à Rússia. Como consequência disso, os custos da energia dispararam no Continente e a guerra, em si, passou a ser causa (e desculpa) para o aumento dos preços generalizado. A UE escolheu financiar uma guerra que nos empobreceu duas vezes. Primeiro com o desvio dos Orçamentos do Estado para o sector bélico e, em seguida, com a inflação resultante da escalada nos preços da energia ou dos bens de consumo.

    Os Estados Unidos trataram dos seus interesses. Venderam armas, substituíram os russos no fornecimento de energia e ainda foram enfraquecendo um adversário directo à custa dos mortos ucranianos. Os russos também trataram da vida. Voltaram ao palco das decisões 20 anos
    depois, substituíram o mercado europeu com o asiático, trouxeram definitivamente a China para o seu ‘quintal’ e conseguiram, ainda assim, deixar a UE mais isolada. Até dentro da própria UE, a Rússia conseguiu apoio quando, há dois anos, nos tentavam vender a ideia de que estaria isolada.

    Já a União Europeia limitou-se a fazer a triste figura de fantoche dos Estados Unidos, sem força e opinião própria, e foi despejando dinheiro na guerra quando a isso foi ordenada, sem por momento algum defender os cidadãos europeus que, em última análise, até elegeram aquele parlamento.

    A mesma União Europeia que nos viu empobrecer ainda mais com as medidas do Banco Central Europeu e a subida das taxas de referência sem, uma vez mais, fazer fosse o que fosse para evitar a perda da qualidade de vida, o poder de compra e até o direito a ter uma casa, da generalidade dos europeus.

    Eis que chega o “direito a defesa de Israel” e, uma vez mais, Ursula Von der Leyen a fazer a triste figura de ter a UE a apoiar directamente aquilo que se está a tornar um genocídio. 1.000 mortos do lado israelita que já vão, três meses depois, em 25.000 mortos palestinianos e mais bombas despejadas do que aquelas que os Estados Unidos depositaram no Iraque. É uma carnificina onde os representantes europeus, uma vez mais, falam para se colocarem do lado errado da história.

    Depois de quatro anos a saltar de catástrofe em catástrofe, o que imaginaria eu que fariam os governantes europeus? Resolver qualquer coisa. Fosse o que fosse. Contribuir para a paz na Ucrânia ou em Israel. Não começar a ensaiar novas pandemias como parece que estão a tentar com a “X”. Intervir na questão das energias. Controlar as taxas de juro. Não deixar que a população dos países europeus, em especial os mais pobres, ficassem completamente reféns de políticas económicas. Tantos telhados que vão ardendo em simultâneo que, certamente, “em querendo”, como diz a minha avó, poderiam dedicar-se a fazer algo para melhorar a vida dos eleitores daquele inútil Parlamento Europeu.

    Mas não. Com o mundo em chamas, o que se discute em Bruxelas? Um novo projecto de lei que proíbe a reparação de carros com mais de 15 anos. Em nome do ambiente, claro. Devo dizer que a estupidez humana não pára de me surpreender.

    Não acho estranho que o lobby da indústria automóvel tente passar este tipo de leis. Faz parte do processo a que, resumidamente, chamamos capitalismo. Mas ver pessoas das classes trabalhadoras a defenderem esta “transição energética” como algo ambientalista é deveras alarmante.

    Nem me importa se a lei será aprovada ou não. Importa é discutir como é que um disparate destes vai sequer a votos?

    Devo fazer uma declaração de interesses, uma vez que há seis anos que trabalho no desenvolvimento de carros eléctricos e, portanto, contra o meu ganha-pão falo. Transição energética não é retirar 50 pessoas de carros a combustão e colocá-los em carros eléctricos. É, quando muito, meter essas 50 pessoas dentro do mesmo autocarro. Aí sim, há alguma preocupação ambiental. Isto, claro, para quem sabe que o lítio não cresce nas árvores.

    O que estas leis fazem, essencialmente, é dar um gigantesco impulso à indústria automóvel para vender carros caríssimos com uma autonomia baixíssima, e sem que o problema da extracção do lítio e tratamento das baterias esteja sequer perto de estar resolvido.

    black and white car door

    Mas pior do que a discussão da lei em si, é o alheamento da realidade que é necessário para que, num momento destes, se discutam temas destes no Parlamento Europeu.

    Uma pessoa pensa que a miséria dirigente se esgota na politiquice nacional mas, se observarmos com algum cuidado, percebemos que estamos entregues à bicharada, também, além-fronteiras.

    Estamos a um Trump de distância do absoluto caos no planeta.

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  • Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)

    Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)


    Começo esta crónica a citar o cabeçalho de uma reportagem publicada no Expresso: “Portugal tem a taxa de emigração mais alta da Europa e uma das maiores do mundo. A vaga contínua de saídas ao longo das últimas décadas engrossou o número de portugueses no estrangeiro, acelerando a perda de população jovem. De acordo com uma estimativa do Observatório da Emigração, 30% dos nascidos em Portugal com idades entre os 15 e os 39 anos deixaram o país em algum momento e vivem atualmente no exterior. São mais de 850 mil.”

    Escrevi, numa destas crónicas do PÁGINA UM, aquilo que considerava ser o flagelo da emigração jovem, tendo como base a equipa com a qual trabalho no norte da Europa. Uma infeliz coincidência que, ainda assim, ilustra perfeitamente os tais 30% que desapareceram.

    the wing of an airplane flying over a city

    Somos sete (daqui a 15 dias seremos oito) engenheiros formados em Portugal que tomaram a decisão de emigrar ainda na casa dos 20 anos. Eu, o mais velho, ainda cheguei a trabalhar em Portugal cinco anos, mas já os restantes, muito mais espertos do que eu, começaram logo num sítio onde a força de trabalho é recompensada com salários decentes.

    Estamos a falar de gente que adquire os seus conhecimentos na Escola Pública, financiados pelos impostos, e que, em muitos casos, vão utilizar esses conhecimentos adquiridos em Portugal para o desenvolvimento económico de outro país qualquer.

    E já agora – e este é um detalhe importante, pelo que vou observando na minha área: são profissionais com uma formação de excelência que, uma vez fora de Portugal, com as portas que conseguem abrir à custa dessa mesma formação, ficam com o caminho de regresso praticamente vedado. As hipóteses de carreira que nos são oferecidas nos países desenvolvidos, desculpem-me a honestidade, envergonham aquilo que é expectável em Portugal.

    No nosso país chegamos a um ponto em que tudo está errado. A cultura de trabalho, a necessidade de marcar hierarquias, a limitação da criatividade, a burocracia em lugar da produtividade, os salários miseráveis.

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    Quando saí de Portugal, ainda Pedro Passos Coelho não nos tinha sugerido emigrar. As diferenças para a Europa civilizada eram mais fáceis de disfarçar. Lembro-me de ter pensado em emigrar porque queria ver qualquer coisa diferente. Acho que, no fundo, queria viajar. Estava convencido que dois ou três anos depois estaria de volta a Lisboa para vestir um daqueles fatos que nos exigiam para estar a trabalhar atrás de um computador. Ao fim desses mesmos três anos, já o meu filho tinha nascido fora de Portugal e o regresso passou a ter mais impedimentos.

    Já não eram só as condições de trabalho, mas também as regalias da paternidade. Também aí estamos a um mundo de distância. Os dois ou três anos passaram a 18 e, durante esse tempo, nada mudou de relevante em Portugal. Quer dizer, fizeram-se mais estradas, aquilo que os sucessivos Governos continuam a vender como “progresso e desenvolvimento”. Alguém continua a vender-nos a ideia de que, num país com 650 por 200 quilómetros, o crescimento económico aparece antes de termos 40 auto-estradas, Scuts e IPs espalhadas por todo o lado com portagens infindáveis. Ninguém ainda se deu ao trabalho de verificar que os países mais desenvolvidos no Norte da Europa não têm propriamente uma grande rede de auto-estradas, excepção feita à Alemanha por ser zona de passagem para todas as rotas do comércio.

    Por isto tudo, hoje… o que pensará um miúdo que sai de uma Universidade e percebe que os salários disponíveis não chegam sequer para ser independente e autónomo? A dúvida é sempre entre ficar perto de família e amigos a contar trocos para sobreviver ou, em alternativa, fazer o sacrifício de emigrar e deixar de ter preocupações com contas. Sim, sacrifício.

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    Emigrar acaba sempre por ser um sacrifício. Ou na altura da partida ou quando percebemos que o regresso é impossível. Foi isso que os restantes sete que trabalham comigo fizeram. Ganharam independência e autonomia antes de completarem 23 anos. Não precisam de viver com os pais, não dependem da formação de um casal para dividirem as contas de uma casa e são integrados num ambiente de trabalho onde todo o crescimento depende apenas da competência e da dedicação. Podem de facto chegar a algum lado pela via do trabalho se assim quiserem. Não é esse o cenário mais comum em Portugal.

    Diz o Expresso que 30% das pessoas entre os 15 e os 39 anos estão fora do país. Isto significa que não só o mercado de trabalho é afectado como a natalidade do país se ressente (ainda mais). O acaso de termos uma das populações mais envelhecidas da Europa e a taxa mais alta de emigração, como compreenderão, não é mera coincidência.

    Há 20 anos que me deito a pensar o que seria o nosso país se, em vez dos desastrosos investimentos na rodovia e nas construtoras do regime ou no resgate da banca, se tivessem construído creches públicas, tornado o ensino verdadeiramente universal e aumentado os salários para níveis de Primeiro Mundo?

    Li esta semana que o salário mínimo passou, aqui ao lado em Espanha, para 1.100 euros. Mas o que me espantou verdadeiramente foi perceber que apenas 5% dos espanhóis recebem esse salário. Em Portugal quase 75% das pessoas trazem para casa 900 euros ou menos – ou seja, não estamos longe de ter quase o país todo a receber o salário mínimo. O mais incrível é que partimos nesta corrida dentro da União Europeia ao mesmo nível de Espanha. Hoje somos, na melhor das hipóteses, o envergonhado parente pobre.

    desk globe on table

    Portanto, não há três soluções para estancar a saída de jovens do país. Ou se aumentam os salários para cobrir o absurdo custo de vida ou se reduz drasticamente, pelo menos, o custo da habitação e da Educação.

    Não se pode esperar que um casal fique num país onde o salário médio são 1.100 euros e uma creche, uma prestação de um carro, a renda de uma casa, energia e alimentação não deixam nada no bolso para viver. Limitamo-nos a trabalhar para pagar contas. Por mais que se goste do sol, do céu azul e da sardinha a pingar, ninguém quer passar 17 anos a estudar para andar os 40 anos seguintes a ver se chega ao fim do mês. A vida é e tem de ser algo mais do que isso.

    Voltamos sempre ao ponto crucial desta história toda que são as opções políticas. Portugal passou décadas a desviar subsídios europeus para uma clientela (para não lhe chamar corrupção) sem ter preocupações de verdadeiro desenvolvimento. Somos o caso de estudo na União Europeia para o que falhou. Há 30 anos que os nossos Governos se limitam a gerir fundos sem com isso contribuir verdadeiramente para o crescimento do país. São opções. No fim do caminho estão sempre as nossas escolhas. O Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) trilharam este caminho.

    a view of a bridge over a body of water

    Hoje, ontem, e provavelmente amanhã, Portugal escolhe fazer estradas e embelezar hotéis para receber turistas. Entretanto, aqueles que por cá nasceram, vão-se afogando em impostos, salários vergonhosos e custos de vida absolutamente incomportáveis. E vão-se embora.

    Quem é que os pode criticar? Eu não, certamente.

    Chegará o dia em que seremos oficialmente a Republica Dominicana do continente europeu – e estaremos divididos entre aqueles que ficam cá a servir à mesa e aqueloutros que voltarão, a cada Agosto, para matar saudades.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • A mediocridade garantida até 10 de Março

    A mediocridade garantida até 10 de Março


    Quando Marcelo Rebelo de Sousa anunciou a data das eleições legislativas para 10 de Março, lembro-me de ter pensado que seria um martírio termos quatro meses de campanha eleitoral. Mas estava longe de imaginar esta a pobreza franciscana, desde que António Costa anunciou o seu despedimento.

    Nestes tempos, há uma luta quase deprimente, entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), para fazerem prova da sua honestidade. Andamos há um mês a fazer a “revisão da matéria dada” e a contar os “tutti-fruttis” que cada um destes partidos traz para a mesa das negociações.

    pair of pink boxing gloves

    Hoje, enquanto escrevo, discute-se a compra de acções dos CTT por parte do Governo PS e a renovação da casa de Montenegro, que, na realidade, foi uma construção de um prédio novo. Amanhã, deve começar a aparecer a participação de Pedro Nuno Santos na empresa da família, e lá para a semana que vem deve voltar a privatização da TAP e o frete feito ao Neeleman.

    Os dois partidos que tomam todas, mesmo todas, as decisões, que foram moldando a realidade portuguesa desde 1976, e que desperdiçaram rios de fundos europeus em estradas, corrupção e clientelismo, chegam a 2024 sem nada para dizer excepto apontar os roubos do vizinho.

    Mas faz sentido… E sabem porquê? Porque no essencial, cada um destes partidos do ‘centrão’, serve para criar carreiras aos seus quadros, garantir um emprego para a vida em redor de altos cargos públicos e, já agora, enriquecer alguns dos seus membros. É preciso gritar muito e apontar o dedo, dando a ilusão que se tenta marcar a diferença quando, em rigor, PS e PSD são faces parecidíssimas da mesma moeda.

    Vejam como as principais caras do PS são as mesmas, década após década. Gente que não passou um dia  a trabalhar noutra coisa que não fosse um cargo público arranjado pelo partido. Pessoas que se sentam a opinar e legislar a vida de milhões de portugueses sem nunca terem contacto com as dificuldades do mercado de trabalho, de um empréstimo bancário, da luta por uma casa.

    Há casos de filhos de antigos ministros ou altos quadros do PS que, mal saíram das universidades, já estavam em lugares elegíveis nas listas de deputados. Regionais, nacionais, não importa. São carreiras garantidas, zero idas a entrevistas de emprego, a mediocridade garantida e perpetuada nas costas dos ‘papás’ e do cartão do partido. Gente sem um dia de vida passado na realidade, e que nos tenta convencer que conhece as nossas dificuldades e até sabe quais são as soluções para os nossos problemas.

    Como é que alguém que nunca foi a uma entrevista de trabalho, que teve uma casa oferecida pelos pais, que teve passagem facilitada na universidade e que foi colocado numa assembleia, a legislar sobre temas que desconhece, me pode entender e/ou ajudar? Como é que medíocres destes se perpetuam décadas na função pública em cargos de decisão, entre PS e PSD? Como?

    Enquanto o PS “faz a renovação” com os filhos dos que por lá andam desde 1980, o PSD cria alianças em reuniões onde estão, e tomem nota, Nuno Melo, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Estão a um Freitas do Amaral, versão original, de fazer bingo do século XX.

    Enquanto se digladiam com a ilusão da honestidade e nos dão a ideia de um combate político, vão, isso sim, tratando da vida e evitando qualquer compromisso. Casos como o do tutti-frutti são importantes porque nos explicam aquilo que é a divisão do poder, ao longo de décadas, entre dois partidos. Os pactos de não agressão, a divisão da riqueza, a garantia que todos conseguem roubar do mesmo pote. Essa é a realidade da ascensão ao poder em Portugal e é isso, em resumo, que explica o atraso do país. Isso, e tratar da vida dos membros dos partidos, das suas carreiras, da garantia de emprego e prosperidade. E sem qualquer compromisso real com os eleitores. Já nem se dão ao trabalho de disfarçar com uma ou outra proposta. É um vazio de ideias; uma mediocridade que se arrastará penosamente até Março.

    Não é fácil sair disto, porque não há renovação na cena política. Não há espaço para quem vem de fora e não depende de aparelhos partidários. Não há como sair disto, mas é relativamente fácil perceber como aqui chegámos. Basta pensarem que partimos ao lado de Espanha nesta corrida, há quase 40 anos, e hoje eles são uma potência e nós um dos países mais atrasados da Europa. Os fundos correram em toda a Ibéria. Mas enquanto Espanha desenvolvia o tecido produtivo, nós financiávamos a indústria do betão, as parcerias público-privadas (PPP) das estradas e jovens agricultores que queriam comprar jipes e renovar os montes.

    No meio deste marasmo de ideias, aparece o Chega e a Iniciativa Liberal (IL), outro deserto de propostas, mas absolutamente essenciais na formação de uma coligação de poder com o PSD. A única diferença entre estes partidos e o actual poder, é que tanto IL como Chega ainda não tiveram hipótese de chegar ao pote. Quando lá estiverem, farão o mesmo ou pior. Com a agravante de tanto IL como Chega terem, na sua génese, a missão de desviar o máximo de dinheiro possível dos serviços públicos para os privados. No fundo, fazerem aquilo que o PS já começou a fazer com este Orçamento do Estado e aplicarem a machadada final no SNS e na Escola Pública.

    brown and white round hole on white sand

    Restam Livre, Partido Comunista Português (PCP) e Bloco de Esquerda, que parecem ainda ter algum compromisso com os trabalhadores e as condições de vida, sendo que duas destas forças já se manifestaram positivas quanto a futuras coligações de esquerda. Contudo, a avaliar pelas sondagens, as suas votações serão bastante baixas.

    Vivemos a realidade da mediocridade na política portuguesa e, segundo percebo, boa parte dos portugueses acha que a solução para os problemas da democracia virá de um partido anti-democrático que nem quadros consegue arranjar (o Chega), ou outro que, ao fim de alguns anos, ainda nem conseguiu concordar com uma visão política ou uma ideia que aguente mais do que 15 dias (a IL).

    Estamos de facto a entrar no restaurante que serve mau vinho e a achar, convictamente, que a água da sanita é o acompanhamento alternativo perfeito para o bacalhau do almoço.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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