Etiqueta: Tiago Franco

  • Ucrânia: um rodapé do Pontal

    Ucrânia: um rodapé do Pontal


    Entendo que Zelensky não pode deixar que os holofotes se apaguem. O pior que pode acontecer ao povo ucraniano, depois da guerra que não se evitou, é serem esquecidos. No fundo, o pior que podemos fazer ao povo ucraniano é fazermos, essencialmente, o que fazemos a todos os outros povos: passar ao drama seguinte quando o sangue se torna velho.

    Assim que a cortina se fechar, os russos terão palco e espaço para agirem como bem lhes apetecer. A velha teoria de o tempo ser ainda o maior aliado do exército russo.

    Não tenho qualquer opinião formada sobre Zelensky, para lá de um rapaz que foi apanhado nos Panama Papers e que era governante de uma democracia pouco saudável quando os verdadeiros donos do Mundo resolveram usar o quintal dele.

    E antes que me apareçam os puritanos da ordem, asseguro que Putin só não está nos Panama Papers porque não precisa deles para nada: esconde o dinheiro que rouba na Sibéria. O Panamá é para totós que ainda não a sabem fazer bem feita.

    Noto o desinteresse na causa ucraniana a cada dia que passa. Já não é novidade, já não é tão dramático, já nem dá tantos directos. Na verdade, ainda é mais dramático, mas quem não vê é como quem não sente. A História do Mundo Ocidental.

    Pelo meio, Zelensky vai dando uns tiros nos pés como, por exemplo, exigir que todos os cidadãos russos sejam bloqueados onde quer que vão. O Zé e a Maria de Vladivostok, que nem sabem onde fica o Panamá, não podem ir ao Intermarché de Tóquio, que fica mais em caminho do que o Pingo Doce de Moscovo.

    Uma guerra feita por velhos ditadores que Zelensky, amigo dos cancelamentos de partidos, quer que seja culpa de populares.

    Até os mais acérrimos defensores da guerra começam, paulatinamente, a assinalar as vezes em que Zelensy mete água. Na Vogue, nos cancelamentos, nos pedidos de mais sanções.

    Diga-se que, ainda assim, eu concordo com ele: é preciso que não se deixe arrefecer o assunto e que se vá discutindo a causa. Venha de onde vier o tema, o que importa é não deixar cair no esquecimento.

    Mas, deste lado, as sanções já pesam. A malta das bandeirinhas também se aborrece com a inflação, com os juros, com os impostos, com o custo da energia. A Ucrânia começa a ter costas muito largas para a comoção diária que nos exige.

    É preciso lembrar que a nossa natureza é não querer saber. É olhar para o umbigo. É largar um “coitados”, e depois fazer scroll down.

    Ontem, enquanto Luís Delgado – o homem das análises se chove-molha – falava na SIC sobre a festa do Pontal, os apelos de Zelensky apareciam em rodapé. Mais sanções e exigências, ali a 200 à hora no fundo da televisão, e apareciam imagens em loop com Montenegro de camisa branca e dois dedos no ar.

    Quando algo já só surge em rodapé, ao mesmo tempo que se mostra a Festa do Pontal – que é tão relevante para o país como a Festa da Nossa Senhora da Aparição da Nazaré –, é porque já atingiu o estatuto de refugo noticioso.

    Como disse inicialmente, interessa-me pouco Zelensky ou os seus gritos. Como ainda menos me interessa Putin e as suas certezas ou loucuras imperialistas. Tenho é pena dos mesmos que, desde Fevereiro, vão perdendo casas, vidas, amigos e familiares, em nome de uma guerra que nunca foi sua.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Somos o Rohit da União Europeia

    Somos o Rohit da União Europeia


    Sempre que aparecem estatísticas com as desigualdades salariais europeias – da União entenda-se, que isto de acharmos que a Europa começa e acaba em Bruxelas dava um romance –, lembro-me do Rohit.

    Rohit era bom rapaz, um tipo simpático e competente, emigrante indiano, meu colega na Suécia que, durante anos, se sentia indignado com a diferença salarial face aos seus pares.

    Expliquei-lhe, vezes sem conta, como funciona o mercado empresarial, do Primeiro ao Terceiro Mundo, sempre dependente de mão-de-obra barata.

    man in green crew neck t-shirt sitting on black office rolling chair

    Por que razão “importariam” trabalhadores da Índia para lhes pagarem o mesmo que a um trabalhador sueco? Pela mesma razão que na Índia importam mão de obra do Bangladesh.

    O capital não tem fronteiras nem preconceitos. Desde que exista alguém ainda mais miserável, seja onde for, a receita funciona. A cada revisão salarial, sempre que a multinacional sueca onde trabalhávamos lhe perguntava: “o que podemos fazer para te fazer feliz?”, ele respondia “salário”. A mim dizia, “Tiago, eu não nasci rico, tudo o que tenho para vender é a minha força de trabalho e não gosto de fazer caridade”.

    Nunca aconteceu. O Rohit nunca recebeu algo parecido com o salário dos colegas que trabalhavam menos. E que sabiam menos, detalhe importante. Mais do que aqueles que nasceram no sítio certo, com uma tez mais clara. Foi-se embora dois meses depois de mim.

    Na União Europeia, nós somos todos Rohits. Nós, portugueses, claro.

    Entrámos na União Europeia com um salário muito mais baixo – dois terços da média, se não me engano. E hoje, 35 anos depois, a média portuguesa é de metade da média europeia. Não há quem pense nestes números numa União que nos devia equilibrar por um patamar superior?

    Bem sei que os sucessivos governos cometeram erro atrás de erro nas apostas de investimento e desenvolvimento, mas há algo a que dificilmente fugiríamos: numa União Económica, alguém tem que fornecer a mão de obra barata. Para uns terem excedente financeiro, alguém tem que ficar no vermelho. Ou, como diz um amigo meu, economista liberal, o dinheiro é finito: se entra num lado, é porque saiu de outro. Eis a teoria da manta que passeia entre os pés e a cabeça.

    Ora, o nosso papel nesta União Europeia começou por ser o de fornecer fábricas baratas para produção de tudo um pouco. Três décadas depois, e com a população mais formada, passámos a ser poiso de financeiras, multinacionais de engenharia e todo um tecido empresarial que procura cursos universitários a troco de 1.000 euros mensais.

    Um negócio da China se me perguntarem.

    Ao mesmo tempo, as confederações de empresários vão defendendo que, em Portugal, mais salário apenas se vier com mais produtividade. Isto num povo que já é dos que mais horas trabalha na Europa e que vai acreditando que os baixos salários são uma inevitabilidade e, até, culpa de quem trabalha 40 horas por semana.

    Já ninguém acha estranho que a classe dirigente, gestores e administradores, independentemente da sua produtividade, tenham salários europeus de Primeiro Mundo. Aliás, quem não se lembra dos gestores do “BES bom” (Novo Banco) que, quando intervencionados com dinheiros públicos, se arrogavam no direito de distribuir prémios milionários?

    blue and white flags on pole

    A União Europeia serviu para nos trazer estradas e impostos de Primeiro Mundo, corrupção e salários de Terceiro. Ao mesmo tempo, cria uma clientela que já não vive sem subsídios europeus.

    O nosso problema nunca foi a falta de conhecimento, como se percebe pela quantidade de cérebros que oferecemos à emigração. E muito menos a falta de trabalho, como dirá qualquer empregador de um português para lá de Badajoz.

    O problema foi, é e será – ontem, hoje e sempre – o silêncio com que combatemos a injustiça e a facilidade com que nos acomodamos a viver com migalhas. Herança da ditadura, dizem uns. Falta de mundo, acho eu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Volta covid, a Ucrânia já não vende

    Volta covid, a Ucrânia já não vende


    Gustavo Tato Borges, que julgo ser o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, disse em Novembro de 2021 que a pandemia só acabaria quando o Mundo todo fosse vacinado.

    Neste tipo de declarações fico sempre baralhado com termos como “o Mundo todo”. “Comunidade internacional”, por exemplo, sei que costumam ser para aí uma dezena e meia de entre as quase duas centenas de países. “Mundo todo”, por norma, costuma ser, vá lá, os países da União Europeia, da América do Norte, o Brasil, a Argentina, o Japão, a Austrália, a China, a Nova Zelândia, a Rússia e Singapura. Essencialmente, quem marca presença em campeonatos do mundo, é bom com números ou fornece cenários à Hollywood.

    doctor holding red stethoscope

    Ora, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em Maio deste ano apenas 57 países tinham vacinado cerca de 70% da sua população. Não é preciso referir mas, diz lá, países na sua maioria com dinheirito para os melões.

    Portanto, nas palavras do camarada Tato, a pandemia nunca acabará. No mesmo ano, o famoso 2021, também nos disseram que a pandemia se transformara em endemia e, portanto, agora havia que viver com a bicheza, tal como fazemos com os outros 1.000 vírus que mastigamos diariamente.

    Eu não percebo nada de vírus, e muito menos consigo diferenciar especialistas de especialistas pela verdade, mas aprecio vidas normais e aborrecidas, pelo que escolho aqueles que me dizem “é seguir e deixarem-se de merdas”.

    Ora, o Tato apareceu ontem, se a memória não me falha, num jornal qualquer da manhã, ali entre os programas do Goucha e do Cláudio Ramos, a dizer para nos prepararmos para o Inverno nas escolas.
    Para já, tudo bem, nada de máscaras e tal, janelas bem abertas enquanto o sol bate, mas assim que a nortada chegar e o primeiro puto espirrar – ou “espilrar” como diziam lá nos encontros de família –, há que acatar medidas de contenção.

    blue and brown hand painting

    Espirros para casa, suspeitas de constipação logo para isolamento e consoante a quantidade de casos, pode-se voltar ao ensino online. Máscaras, certamente, e continuar a lavar as mãos, aquilo que já se devia fazer sem pandemia, também entram no cardápio.

    Ora, “vamlá a ver”, é para viver com isto ou não? É para assoar e seguir caminho, ou para ser tratado como uma constipação musculada que transporta o Apocalipse?

    Antes do Verão, os especialistas renegados pelo Infarmed dizem que a vida é para continuar sem restrições, mantendo os cuidados naturais que todos devemos ter perante infecções respiratórias. Por exemplo, não sei se antes da covid-19 vocês tinham o hábito de esfregar a cara no colega de carteira enquanto ele espirrava ou se assoava. Eu sempre apostei na distância, antes de me dizerem que tínhamos que fechar restaurantes e abrir fábricas, porque este vírus era dotado de variantes que não se manifestavam em lugares de produção.

    É um vírus que, aliás, vê a vida um pouco pelos meus olhos. Gosta mais de zonas de lazer do que locais de trabalho. Quem é que o pode criticar?

    woman in black jacket holding white paper

    Morre gente como nunca neste país – e não por causa da covid-19 –, estamos vacinados com as 500 doses de reforço, já deixámos os miúdos a apanhar bonés na escola durante dois anos, vamos pagando a fatura do endividamento do Estado com os sucessivos confinamentos e… não aprendemos nada?

    Os suecos com menos mortes, e infinitamente menos dívidas, é que continuam a ser os malucos desta história porque abrem as escolas aos miúdos?

    Quando é que nos livramos deles? Dos especialistas, entenda-se…

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A China e o meu (e talvez o vosso) umbigo

    A China e o meu (e talvez o vosso) umbigo


    Dei por mim a pensar na caldeirada que se está a montar com a China, mas numa perspectiva mais umbiguista. Sim, em determinados momentos da vida, eu sou apenas um gajo prático que tem contas para pagar.

    As sanções à Rússia – vendidas como uma medida para acabar com a guerra – serviram apenas para empobrecer quem estava do lado de cá. A estas seguiram-se os aumentos das taxas de juro e a redução dos salários por cortes directos ou pela via da inflação.

    woman holding tummy

    Pessoalmente, já tinha levado um corte salarial de 5% durante a pandemia (nunca reposto), e agora, por causa do “aumento dos custos causados pela guerra”, levei outro. Ou seja, desde 2020 que trabalho mais mas acabo a vender o meu esforço por menos, sem que o lucro dos meus empregadores se reduza. É uma matemática peculiar que me leva a pensar que estes dois anos e meio de confinamentos e guerras serviram, essencialmente, para reduzir o valor da mão-de-obra.

    Mas não devo generalizar. Aquilo que aconteceu, a mim e demais camaradas da minha área, aqui em Gotemburgo, pode não ser um mal global. Quiçá, a maioria de vós, vai-se a ver, foi aumentado para lá da inflação. Oxalá que sim.

    Mas dizia, estes dois anos e meio serviram, pelo menos, para piorar a qualidade de vida e reduzir o preço a que vendemos o nosso trabalho. No meu caso, isso é particularmente preocupante, porque não tenho, nunca tive, emprego para a vida. Tenho contratos de trabalho de 6 ou 12 meses, que são renovados consoante o meu desempenho e o estado da Economia. Como eu, estão uns quantos milhares ou milhões – não serei certamente o “inventor da roda”.

    Ora, em primeiro lugar, aborrece-me que lutas entre impérios me deixem a fazer contas de cabeça sobre o mês que se avizinha.

    man holding box

    Eu condeno a invasão russa e, de seguida, condeno as medidas cegas impostas pela União Europeia a mando dos Estados Unidos, que, essencialmente, prejudicaram os povos europeus.

    A Rússia, que se financiou na União Europeia durante anos, agora vende para a Ásia; portanto, o negócio segue, e nós, que não temos nada a ver com o Donbass, ficamos a pagar a factura na energia, nos combustíveis, nos salários e na inflação.

    Fosse eu um pouco mais nortenho e mandava o Putin, o Biden, o Zelensky e a von der Leyen para a puta que os pariu, mas, como tudo o que consegui foi um avô de Braga, prefiro conter-me nos impropérios.

    E enquanto vamos todos fazendo uma ginástica monstruosa para compensar as decisões de uma elite milionária que nos dirige, resolvem abrir nova frente com a China, a troco de mais umas vendas aos senhores da guerra.

    No caso da costa oeste sueca, do hub tecnológico que por lá se desenvolve há 10 anos, essencialmente assente em investimento chinês, isto é o prenúncio do apocalipse.

    photo of assorted-color Chinese lanterns inside room

    Pensando assim, de repente, nas empresas chinesas ou com capital chinês que operam em Gotemburgo, conto mais de 20 mil empregos, estando outras a chegar à região e a construir centros de desenvolvimento.

    A última coisa que quero é passar os próximos anos a repetir 2020 ou 2022, porque uma cambada de velhos ricos querem brincar às cortinas de ferro com vidas humanas e abarbatar mais uns hectares de matérias-primas. Se os chineses em vez de construírem centros de engenharia e pontes em África, começarem a produzir tanques e bazucas para responder ao chamamento dos americanos, passaremos todos a ter problemas bem maiores do que ouvir o Froes a gritar por mais vacinas ou o Milhazes a ensaiar as narrativas dos 40 anos de solidão.

    Reparem, aliás, no detalhe das crises. Não as vivemos todos da mesma forma. Na Alemanha, os sindicatos paralisam tudo e exigem aumentos acima da inflação – vejam a Lufthansa, por exemplo. E isto num país onde o corte de energia da Rússia está a deixar a indústria em risco. Mesmo assim, os trabalhadores são a voz mais forte. Nós, em Portugal, vamos apenas perdendo direitos, salários e condições de vida. Vamo-nos acomodando às sobras. Portanto, não estamos, nem nunca estivemos, todos no mesmo barco.

    Mas se é para rebentar tudo, e largarmos os empregos e as vidas ditas normais, em nome do Apocalipse, então, se não se importam, eu gostava de decidir com quem quero ser solidário. A quem quero oferecer o esforço de ter que abdicar da vida pela qual trabalhei.

    brown wooden dock on body of water during daytime

    Escolheria que fôssemos bater às portas dos israelitas e mostrássemos a nossa solidariedade para com os palestinianos. Depois seguíamos a mesma estrada de pó e íamos dar uma mão aos curdos para se ver se lhes arranjávamos umas fronteiras.

    Agora, para quem Taiwan fornece os chips, se a Rússia fica com a península que outrora deu como presente, ou se o gás do banho dos alemães vem pelo Nord Stream ou em barcos enviados de Boston, interessa-me muito pouco.

    Em resumo, se pudessem parar de matar gente em nome dos interesses financeiros de uma elite – e, pelo caminho, arrefecer essa sede de nos irem ao bolso –, já não ficaria a faltar tudo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Mário amuou…

    O Mário amuou…


    Mário Ferreira amuou e já não quer os 40 milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Disse, numa declaração à imprensa, que a campanha levada a cabo por Catarina Martins e Ana Gomes tinha sido indecente. Embora nenhuma delas seja a fiel destinatária do meu voto, o que fizeram, em especial Catarina Martins, foi perguntar aquilo que qualquer um de nós, se tivesse voz pública, perguntaria.

    Ora, a empresa de Mário Ferreira garante agora que irá fazer o aumento de capital com fundos próprios em vez de recorrer ao empréstimo do PRR. A verdadeira questão é então: porque não o fez logo de início?

    Por que razão decide um milionário gastar 28 milhões para ir 11 minutos ao espaço e depois recorre, sem qualquer pejo ou vergonha, a um empréstimo estatal de 40 milhões para financiar a sua empresa? A resposta é simples: porque pode.

    Em Portugal, o risco do empreendedorismo é um mito. Histórias como a de Mário Ferreira, os empresários que estão sempre no sítio certo e desde sempre com os contactos certos, vão-se repetindo e raramente descobrindo. Não há nada ilegal, é o argumento repetido. Mas não precisa de ser ilegal para ser imoral.

    Tal como nos negócios do BES, sobre os quais Salgado diz não se recordar.

    O lucro foi sempre privado, o prejuízo sempre público. Luís Filipe Vieira terá sido o caso mais emblemático. Contraía empréstimos monstruosos, construía prédios e vendia os apartamentos. Beneficiava da especulação imobiliária e do acesso fácil ao dinheiro do BES para enriquecer ou, nas palavras dele, para ser um “homem que subiu a pulso”.

    No dia em que tudo rebentou, a dívida foi dividida por 10 milhões de pessoas. Um daqueles jantares em que, comendo sardinha ou bifanas, todos pagámos lagosta.

    É esta a essência portuguesa dos milionários do regime: o acesso a fundos que o comum dos cidadãos não tem. Se o BES me emprestasse 500 milhões, como fez ao Vieira, mesmo sem ter uma construtora, julgo que também o conseguia multiplicar. Sem sair de Lisboa, diga-se.

    Interessa-me pouco que Mário Ferreira concorra a apoios públicos. Aliás, até percebo que o faça. Quem é que quer arriscar dinheiro do seu bolso quando pode usar o que é de todos?

    Preocupa-me, isso sim, que a tão afamada comissão que ia controlar o destino dos dinheiros da bazuca, ache normal dar metade do orçamento previsto para o turismo a um só empresário, que, por acaso, tinha esses fundos em capital próprio.

    Se não fosse o escândalo da viagem ao espaço e toda a celeuma pública, Mário Ferreira teria embolsado tranquilamente um empréstimo estatal, deixando várias pequenas e médias empresas sem nada.

    Como é que isto acontece, quem é que controla os dinheiros da bazuca, como é que é possível que este empréstimo tivesse sequer sido aprovado e por que admirável coincidência o grosso dos dinheiros públicos aparecem sempre na órbita de empresários amigos?

    Bem sei, perguntas que jamais serão respondidas enquanto os governos se alternarem na distribuição dos fundos.

    A sociedade civil fez barulho, e Catarina Martins capitalizou-o. E fez bem, acrescente-se. O problema português nunca foi a falta de dinheiro, mas sim a forma como este é canalizado. Ao fim de 30 anos de subsídios europeus (ou empréstimos), continuamos a usar esses rios dourados para enriquecer uma pequena elite e alimentar uma clientela fixa, enquanto o português médio continua pobre. O salário médio em Portugal é um salário miserável à escala da Europa que se encaixa no Primeiro Mundo. Repito: o salário é miserável.

    people holding shoulders sitting on wall

    Enquanto isso, os Mários Ferreiras, bem colocados, vão usando os milhões próprios para brincarem aos Bezos, e o Estado, com dinheiro de todos nós, vai alimentando as suas empresas.

    Resta-nos desejar boa viagem ao Mário e rezar pelos sucessos da Douro Azul. Tanto está garantida a magia dos 11 minutos que aguardam o Mário no espaço como é elevada a probabilidade de nos chamarem a pagar quando a coisa descambar.

    Cada um nasce para o que nasce. Estudassem – ou tivessem andado na jotinha certa.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)

    P.S. Senti alguma vergonha alheia quando ouvi Mário Ferreira a dizer que todos os portugueses deviam ter orgulho nele. Pergunto…porquê? Por ser um utlizador da tecnologia desenvolvida por outros? Por ser um turista de luxo num tipo de “charter” aberto apenas a uma pequena elite? Por pagar para andar? Ou por ter a sua própria televisão a cobrir o “feito”?

    Só existe em todo aquele processo um “feito” e esse foi conseguido pelas equipas de engenharia que desenvolveram os foguetões. De resto, são apenas recursos e mais recursos gastos por uma elite de milionários, em viagens absolutamente insignificantes, e pagas a um preço que nos deveria envergonhar: há crianças ainda a morrerem à fome no Planeta que, durante 10 minutos, os Mários vão observar ao longe.

    E sim, o dinheiro é dele, faz o que quiser e até o pode gastar a acender charutos, que a ninguém diz respeito. Desde que seja, de facto, dinheiro dele e não sacado ao erário público, é-me absolutamente indiferente. Mas por amor da santa, endeusar um gajo que pagou para andar num carrossel de luxo e comparar a “epopeia” à do Fernão de Magalhães, está ao nível daquele orgulho luso, apenas porque, nos jardins da Casa Branca, os Obama passeavam um cão de água português.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Querida Nancy, não te esqueças de passar em Pristina

    Querida Nancy, não te esqueças de passar em Pristina


    Tenho desde há alguns anos o objectivo de me reformar na casa dos 50 – ou vá lá, não precisar de trabalhar de sol-a-sol, todos os dias. Para isso acontecer preciso que dois astros se alinhem. Primeiro, que os meus filhos sejam mais ou menos independentes rapidamente – não há cá saídas de casa aos 35. Segundo, que a Economia do Mundo não se dissolva em guerras, e eu não precise de andar a pagar juros altíssimos até aos 120 anos de idade.

    No fundo, procuro uma vida como a de Nancy Pelosi, a senhora que, aos 82 anos, tem uma espécie de part-time, razoavelmente bem pago, que lhe permite viajar pelo Mundo sem grandes problemas.

    building during day

    Acho mesmo muito positivo que uma anciã americana, em vez de passar os seus últimos anos a aborrecer-se na Flórida, prefira ver o Mundo, nomeadamente o Sudoeste Asiático, que é, de facto, fabuloso.

    Confesso, porém, que já me chateia um pouco ver que essa mesma cidadã contribua para causar problemas que, provavelmente, ficarão por cá a serem resolvidos quando ela já estiver a fazer tijolo num parque cheio de flores e frases bonitas.

    Nancy Pelosi disse, em visita oficial a Taiwan, que “os Estados Unidos não vão abandonar o seu compromisso com a ilha”. Nancy, ouve lá, qual compromisso? Quem é que vos pediu fosse o que fosse? Qual é o compromisso dos Estados Unidos com um território cuja independência o governo americano não reconhece desde 1979?

    Se fosse o papa Francisco a visitar o Taiwan e a meter o peito de fora, mostrando apoio contra a tirania, tudo bem… O Vaticano reconhece a independência do Taiwan. Ou se Kausea Natano chegasse à Formosa e dissesse que trazia quatro batalhões, também não me opunha…

    Ah, não estão a ver quem é Kausea Natano? É o primeiro-ministro do Tuvalu, país perdido na Polinésia, que também reconhece a independência de Taiwan.

    Agora, Nancy Pelosi e os Estados Unidos, que andam há décadas de mãos dadas com os chineses e com os integrados de Taiwan no bolso, querem mostrar apoio a quê e a quem?

    Nancy Pelosi parece um vendedor de aspiradores Rainbow, a bater de porta em porta, tentando convencer os inquilinos do Mundo como 2.000 euros podem ser um excelente investimento contra os ácaros. O problema é que o aspirador que ela tem para vender custa bem mais do que 2.000 euros e, em vez de ácaros, limpa vidas.

    Qual é a necessidade de abrir as hostilidades com a China numa altura em que esta ainda balança entre o silêncio e o apoio à Rússia na guerra da Ucrânia?

    Tirando o José Milhazes, e talvez o Nuno Rogeiro, qualquer outra pessoa perceberá que esta visita, a primeira em 25 anos de um representante do Governo norte-americano, é uma pura e simples provocação à China.

    Como se o conflito no Leste Europeu, as mortes associadas e o empobrecimento das populações no Velho Continente não encerrassem dramas e problemas suficientes, ainda temos que levar com a política externa norte-americana, sempre ávida de novos tiroteios a quem possam vender umas balas.

    A China, como seria óbvio, já respondeu à provocação e fez exercícios militares ao largo de Taiwan, com disparos reais. Depois da crise dos cereais em Odessa, aproxima-se a escassez de chips e circuitos integrados.

    Não tarda, e estaremos todos a comer alfaces ao pequeno-almoço e a trocar computadores por blocos de notas. Isto enquanto a inflação nos vai cortando salários e os bancos vão surripiando o que podem com juros.

    green and red pagoda temple

    Sim, por favor Nancy, não te distraias dos compromissos e garante que toda a gente ouve essas conferências de imprensa de apoio ao Taiwan. O Mundo está calmo, a vida tem sido um mar de rosas desde 2020, as populações ainda não empobreceram o suficiente. Por obséquio, arranjem-nos mais guerras, mais directos do “teatro de operações”, mais taxas de juro altas e contribuições extraordinárias para o “esforço de guerra”.

    A política externa dos Estados Unidos, seja feita por democratas ou republicanos, é essencialmente a mesma, desde que me lembro de ser gente. Extrair recursos alheios, controlar governos, incentivar guerras para vender armas, destruir para vender soluções de construção. Trump – que eu achava o presidente mais idiota da História – resolveu reconhecer Jerusalém, a cidade dividida, como capital de Israel, contribuindo para o aumento dos conflitos na região. Um pirómano no meio de palha seca.

    Biden, aparentemente menos ignorante, resolve provocar os chineses e semear novas guerras, enquanto a Europa sofre ainda as consequências de uma guerra a Leste, sem solução à vista.

    A opinião pública divide-se novamente e as trincheiras estão formadas. De um lado, os “verdadeiros democratas”, para quem a Rússia e a China são tiranias e devem ser castigadas (enquanto a democracia saudita, aliada, vai compensando os barris perdidos); do outro, malta como eu, que só não quer ter que levar com inflação, escassez e juros altos, para uns velhotes milionários brincarem ao Risco num tabuleiro real.

    Acho sempre piada à arrogância ocidental que nos convence, consoante os interesses instalados, quais são as ditaduras boas e más. A China, produtora de absolutamente tudo o que usamos e um amigalhaço do Ocidente para lá colocar fábricas com mão-de-obra barata, está agora no caminho para ser uma tirania.

    aerial photography of concrete roads

    Tal qual a Rússia, que era uma parceira excepcional para mandar gás e petróleo para as democracias da União Europeia, que não estavam interessadas num presidente que há 20 anos se perpetuava no poder ou financiava a extrema-direita europeia.

    Pessoalmente, nunca tive dúvidas sobre o que representam as potências. Sejam elas chinesas, americanas ou russas. Mas não sou hipócrita ao ponto de achar que um bloco é puro e outro conspurcado, e muito menos achar que o Mundo é melhor com apenas uma potência vigente.

    Aliás, na minha área profissional, vivendo longe de Portugal, é relativamente difícil trabalhar seja para quem for e fugir de empregadores ou capital oriundo desses blocos.    

    Acrescento, para os mais desatentos e fãs das democracias à la carte, que recomeçaram as tensões entre o Kosovo e a Sérvia. A Sérvia, lembre-se, está alinhada com a Rússia e com a China. Estão a imaginar a loucura de um conflito tripartido, desde o mar da China a Donestsk, passando pelos Balcãs?

    Imaginem as décadas de filmes que Hollywood poderia fazer com um conflito desta magnitude. Spielberg, Coppola, Tarantino, Sam Mendes, etc.. Óscares, discursos emotivos, palmas de apoio, enquanto os comuns, como nós, vão empobrecendo e adiando a vida.

    Entretanto, espero que Nancy Pelosi dê um saltinho a Pristina no regresso. Oportunidades destas não se perdem.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O aprendiz do arquitecto Saraiva e o alvo do costume

    O aprendiz do arquitecto Saraiva e o alvo do costume


    Tenho um lema de vida que raramente me desilude – e que, aliás, se mostra relativamente simples, tanto que pode ser levado à prática por qualquer cidadão menos dado a “bandeiras da vida”: ler o Henrique Raposo no Expresso e fazer o contrário.

    Tal como as gaivotas em terra anunciam tempestade no mar, as crónicas do Raposo anunciam um jovem arquitecto Saraiva em potência.

    fountain pen on black lined paper

    Não falha, por uma vez que seja, esta teoria. Ao fim de quatro frases escritas pelo Henrique Raposo, penso como será o seu contrário, e de imediato dou com o senso comum. É maravilhoso.

    Desta vez, juntando-se ao coro do momento, o Henrique questionou como seria possível que os artistas portugueses continuassem a actuar na

    Desta vez, juntando-se ao coro do momento, o Henrique questionou como seria possível que os artistas portugueses continuassem a actuar na “Festa do Putin”, nome por ele atribuído à Festa do Avante.

    Festa do Putin”, nome por ele atribuído à Festa do Avante.

    Há aqui dois pontos interessantes para análise.

    Primeiro, o Avante deixou de ser, desde 2020 pelo menos, um evento que marca a reentré política em Setembro, para passar a ser tópico de discussão entre Maio e o Outono. Ou porque em 2020 e 2021 era um sítio óptimo para apanhar covid-19, ou, em 2022, porque passou a ser a Festa do Putin.

    O segundo ponto de análise é que, certo como o destino, quem por norma tenta boicotar o Avante com acusações de apoio a ditaduras, faz, ele próprio, a política de cancelamento e quer promover a anti-democrática censura.

    Eu acho isto bastante interessante. O conceito de democracia feito à medida das nossas necessidades.

    Mas atenção especial ao ligeiro toque a hipocrisia nas narrativas escolhidas.

    Durante anos, longos anos, a União Europeia fez todo o tipo de negócios com a oligarquia russa. A Alemanha, por exemplo, motor europeu, escolheu ser parceira no sector energético enquanto lhes vendiam armas. Quem não se lembra do nosso Sócrates a fazer jogging na Praça Vermelha? Ou do nosso Paulinho das Feiras (Portas) a vender Vistos Gold para cidadãos russos? Ou até, do nosso Cotrim de Figueiredo, presidente do Turismo de Portugal nos idos de 2014, a anunciar a aposta no mercado russo e na atracção de rublos, enquanto o Donbass era invadido por separatistas apoiados por Putin?

    Mas… o PCP é que apoia Putin.

    Adivinhem lá, quem é que foi contra os Vistos Gold em 2012 – quando PSD/CDS os criaram – e voltou a pedir o seu fim em 2022? Acertaram! Foi o tal PCP, aquele que dizem que apoia Putin, mas não queria dar borlas a cidadãos russos, dois anos antes da invasão do leste ucraniano. Isto há coincidências…

    O centrão político português, e alguma direita, andaram com o regime de Putin ao colo. Tal como todos os países da União Europeia. Ou tinham interesse em receber gás e petróleo, ou queriam investimento russo nas suas cidades ou, em última análise, procuravam charters de russos no Verão junto às suas praias.

    Durante esse período o regime de Putin calou os chechenos, roubou a Ossétia e Abecássia à Geórgia, invadiu a Crimeia e o Donbass. Ninguém quis saber, business as usual.

    Acordaram todos em 2022, a tempo do Avante. Podia ser pior.

    reflection of city lights

    Ontem vi Vitorino Salomé a ser interrogado na SIC Notícias pelo “crime” de ir actuar na Festa. A jornalista tentou fazer a mesma pergunta de 10 maneiras diferentes. Vitorino não abanou e disse-lhe: “O Avante sempre esteve aberto a todas as correntes. Eu penso pela minha cabeça, eu sou o meu próprio comité central”.

    Mas a moda está lançada. Passou por Dino Santiago, seguem-se as declarações dos Mão Morta e as ameaças à cantora brasileira Bia Ferreira. Tudo em nome da verdadeira democracia e da liberdade de expressão, como se compreenderá.

    Depois de embarcar no coro anti-Avante – a tendência da semana –, Henrique Raposo presenteia-nos, portanto, com mais uma brilhante crónica, agora sobre a varíola dos macacos. Diz o vate que, para nos protegermos, devemos afirmar que é uma doença de homossexuais, ou, “paneleirices lá deles” como queria escrever, mas o editor do Expresso não deve ter deixado.

    Não falha o Henrique. Nunca. Raposo para um lado, bom senso para o outro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Escola à la carte

    Escola à la carte


    Quando decidi ver a entrevista exclusiva da SIC ao “casal de Famalicão” (os tais que foram para tribunal por causa das aulas de Cidadania), tinha expectactivas consideravelmente baixas. O caso já tem uns anos e as posições dos ditos – ou do pai, vá!, que a mãe parece falar só quando a deixam – são amplamente conhecidas.

    Confesso que não percebo o que leva uma família a fazer uma guerra tão grande por causa de algo tão simples e banal, mas entendo ainda menos o que teriam na cabeça quando aceitaram aquela entrevista. Obviamente, previsível seria ficarem expostos como um bando de retrógrados – que, convenhamos, até provavelmente serão –, e dificilmente a dita entrevista traria qualquer benefício para a sua causa. Por mais idiota que esta fosse, acrescento.

    Ana e Artur Paula Mesquita Guimarães foram entrevistados pela SIC.

    Se uma conversa de 30 minutos for filmada, e posteriormente transmitida, enfim, todos temos a hipótese de tentar perceber a argumentação; contudo, se apenas alguns excertos das respostas forem facultados, entre comentários de jornalistas e de alguns especialistas, a nossa percepcão é radicalmente diferente.

    Ora, a SIC optou pela segunda via, criando assim, nos espectadores, uma opinião sobre aquela família ao mesmo tempo que, em teoria, lhes dava voz.

    Digo de antemão que estou contra a posição daquela família – e todo o discurso daquele pai me parece inenarrável. Ainda assim, não gostei de ver um tribunal popular em formato de entrevista.

    Aquilo que me parece realmente interessante discutir, em vez de nos focarmos no discurso beato deste casal, é tentarmos perceber a resolução deste imbróglio. Ou seja, não nos ofuscarmos com a árvore e perdermos de vista a floresta.

    brown wooden table and chairs

    Neste caso, a floresta é a caixa de Pandora que se abrirá caso algum tribunal deixe uma família decidir a que disciplinas devem os filhos assistir. Podemos discutir programas escolares, debater conteúdos e até, quem sabe, alargar o centro de decisão para lá das paredes do Ministério da Educação.

    Também me parece um bom debate perceber que tipo de ensino e que conteúdos farão sentido no ensino secundário em pleno século XXI.

    Nada contra esse debate. Contudo, a partir do momento em que um programa é decidido, por quem foi eleito para o fazer, deve ser cumprido. Ou como diria o capitão Nascimento do BOPE: “missão dada, é missão cumprida, parceiro“.

    Uma referência a filmes brasileiros com o Wagner Moura serve sempre para desanuviar o ambiente.

    Mas falava eu em Pandora e caixas, porque será esse o caminho, se algum tribunal deste país der razão aquele casal devoto da Opus Dei.

    Se eles puderem decidir, livremente, que os filhos não devem assistir às aulas de Cidadania – ou, nas suas palavras, não alinhar em palhaçadas, porque haveria a hipótese de irem a um museu onde o banco tem a forma de uma vagina –, o que nos impede de continuar essa estrada?

    Se, daqui a 10 anos, os livros de História relatarem a invasão russa da Ucrânia e um pai achar que aquilo foi mesmo uma “Operacão Especial”, pode fazer idêntico pedido para que o seu rebento seja dispensado da disciplina?

    boy in green sweater writing on white paper

    Ou um terraplanista pode pedir passagem administrativa a Física?

    O Mário Machado pode isentar os filhos do capítulo do Holocausto? E um vegan pode decidir se assiste à explicação sobre a cadeia alimentar ou não?

    Um angolano, guineense ou moçambicano, residente em Portugal, pode optar por não ouvir falar na Guerra Colonial?

    Já agora, um aluno que tenha pais brasileiros, tem mesmo que ver aqueles desenhos do Pedro Álvares Cabral a chegar ao Brasil e a ser recebido em festa pelos nativos que lhe ofereciam cestas de fruta?

    E a comunidade indiana em Portugal, pode saltar aquela parte de Goa e das igrejas católicas lá plantadas?

    O Ventura vai poder anular a inscrição se insistirem em falar naquela manhã de 25 de Abril de 74?

    O Nuno Melo poderá reclamar quando os filhos descobrirem que o aborto é legal ou que tourada não é diversão?

    O Cotrim ficará aborrecido se algum dos filhos ouvir falar do crash da bolsa de Nova Iorque em 1929 e começar a perder fé nos mercados muito cedo?

    Os netos do Jerónimo não poderão ouvir falar da Primavera de Praga?

    silhouette of child sitting behind tree during sunset

    As caricaturas – ridículas bem sei – servem apenas para ilustrar até onde poderemos ir, nisto de misturar as nossas convicções, ideologias ou crenças com aquilo que é o programa oficial da Escola Pública. Eu também não compreendo por que razão a Religião e Moral é leccionada em escolas de um país laico, mas, se se decidiu que faz parte do programa, a discussão termina aí.

    Podemos sim, sempre, discordar e discutir programas. Aliás, devíamos discuti-los mais. Agora, deixar ao critério de cada família o que as crianças e jovens devem aprender na escola, já me parece mais perigoso e um incentivo ao caos no Ensino.

    Professores mal pagos e desmotivados, alunos que terminam os anos sem aprenderem tudo o que era esperado, índices baixos de aproveitamento a Matemática e Português, carreira docente absolutamente estagnada, passagens de alunos mais facilitadas para enchermos as estatísticas da União Europeia, alto abandono escolar, crianças prejudicadas pelos confinamentos impostos durante a pandemia, etc., etc. – isto, sim, são problemas reais a mais para um sistema tão débil num país que insiste em investir mais no alcatrão do que na formação das próximas gerações.

    Com tantos fogos por apagar, esperemos que os tribunais não vistam, também, a pele de incendiário. Dar razão jurídica às teses dos “pais de Famalicão” seria a mecha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Estocolmo, “esse” último bastião comunista

    Estocolmo, “esse” último bastião comunista


    Entre fogos e ondas de calor, parece ter escapado à comunicação social portuguesa uma importante vitória de um conjunto de trabalhadores perante as suas entidades patronais.

    É, aliás, um reflexo dos tempos informativos e das estratégias de comunicação: somos massacrados semanas a fio com um, e um só, tema.

    Durante dois anos, só ouvimos falar em covid-19.

    people sitting on chair in front of table while holding pens during daytime

    Há pouco mais de um mês, Portugal ainda era o país com mais mortos por milhão de habitantes da União Europeia e um dos que registava mais casos diários, mas os directos dos parques de estacionamento dos hospitais já tinham sido substituídos, desde Março, por jornalistas de capacete em Kiev.

    Entretanto começaram a puxar fogos às matas – um clássico lusitano de Verão como é o emigrante que regressa ao som de Tony Carreira – e lá se acabaram as ligações a Kiev.

    Chegou a seguir a “praga do aeroporto de Lisboa”, com directos para discutir o número de dias que os passageiros não mudavam de cuecas.

    Depois de descobrirmos que afinal a Portela estava igual ao resto do Mundo, por causa dos despedimentos pós-covid no sector, passámos à onda de calor.

    Agora vemos cada nuvem de fumo, cada Canadair na barragem, cada bombeiro a tropeçar no repórter da CMTV. E pergunto-me qual será o tema 24/7 depois dos incêndios…

    CRT TVs on rack

    Mas voltando ao início: entre labaredas e morteiros, escapou-nos uma vitória laboral. Neste caso dos pilotos da SAS – a companhia escandinava que serve a Suécia, Dinamarca e Noruega.

    A história conta-se rapidamente. Durante a pandemia, com os aviões no chão, o Governo sueco (e os vizinhos também) despejaram um rio de dinheiro nas empresas, com gigantes como a Volvo, Ericsson e SAS à cabeça. A micro-empresa onde trabalho também foi ajudada – e, portanto, sou o caso prático em como esse dinheiro chegou a todo o lado.

    Se a memória não me falha, foi qualquer coisa como 2 mil milhões de euros a ajuda prestada pelo Governo sueco às empresas.

    A teoria era simples. Tal como em Portugal ou em qualquer outro país da União Europeia, os Estados garantiam com este financiamento que trabalhadores impossibilitados de exercer funções não ficavam sem o seu ganha-pão. No caso da aviação, com praticamente tudo parado por imposição governamental, a ajuda era mais do que óbvia, justa e necessária.

    truck parked near commercial airplane on airport

    Ora, mas o que fez a SAS com o dinheiro do lay-off? Dispensou 450 pilotos e aplicou um corte salarial aos que ficaram. Onde é que já viram isto? Exacto! Na TAP.

    E se prestaram atenção, foi prática corrente um pouco por toda a Europa. Por isso, agora, todos, ou quase todos, estão em dificuldades para cumprir as exigências do mercado com o regresso dos passageiros e a normal procura por bilhetes.

    Perante isto, os pilotos da SAS, de forma concertada, saíram pelo seu pé. Foram mil pilotos, para ser mais exacto. Durante 15 dias deixaram a SAS à beira da falência com um prejuízo diário entre nove e 12 milhões de euros. Ao fim de 10 dias, a companhia já tinha cancelado 2.500 voos e perdido cerca de 120 milhões de euros. Um A320 novo, para usar a “moeda local”.

    Depois de duas semanas de greve, a companhia finalmente cedeu. Não só no corte salarial, mas também na re-contratacão dos 450 pilotos dispensados. Agora, depois de ter percebido que uma companhia não existe sem os trabalhadores, a administração da SAS vai a correr aos mercados buscar dinheiro fresco para se financiar e recomeçar as operações. A reestruturação já não será feita à custa dos trabalhadores.

    person holding airplane control panel

    Eu lembro que os países escandinavos são quase sempre representados na comunicação social portuguesa (ou nos cartazes da Iniciativa Liberal, vá!) como bastiões liberais e exemplos da flexibilidade nos direitos laborais. Agora, depois desta retumbante vitória dos sindicatos, imagino que a Suécia seja a nova Venezuela, e Oslo a nova Havana cheia de Teslas.

    Podemos, assim, daqui tirar três conclusões.

    Primeira: nem todos os povos aceitam sentados o que o patronato lhes impõe.

    Segunda: injustiça alguma resiste a um movimento organizado de trabalhadores.

    Terceira, eventualmente mais difícil de encaixar: os mais ricos também o são porque nunca desistiram de lutar pelos seus direitos.

    E a nós, o que é que nos falta?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gostava de explorar nepaleses mas não consigo

    Gostava de explorar nepaleses mas não consigo


    Ando tentado a lançar-me na agricultura do mirtilo e das framboesas e, enquanto não arranjo três nepaleses para explorar – como o Macário Correia (alegadamente) –, vou-me entretendo a procurar um veículo para carregar caixotes, pranchas, bicicletas e todas essas coisas que um jovem agricultor precisa nas ilhas de bruma. Ou apenas para percorrer as estradas sem cair nas crateras a que por aqui se chamam, carinhosamente, de buracos.

    Fui visitar o senhor J, conhecido comerciante na minha ilha. O senhor J já deve uns bons 10 anos à reforma, mas gosta de trabalhar. Diz quem o conhece que não deixa cair uma moedinha no chão e que raramente perde um bom negócio. Entre as latas que rodeiam a oficina tinha para lá duas ou três carrinhas a cair de maduras que serviam os meus propósitos. Velha e barata, eram as qualidades desejadas.

    O senhor J sorriu e disse-me que tinha ali uma em excelente estado, apenas com 30 anos. Ia passar-lhe uma água seguida de sabão e estava pronta para vender por 10.000. Seria 8.500 para mim, porque tinha andado com o meu sogro na escola. Eu pensei afincadamente durante uns bons centésimos de segundo, tempo de sobra para perceber que estava a ser enrolado. Disse-lhe: “Senhor J, 8.500 por uma carroça com 30 anos e 300.000km?” Ao que ele respondeu: “Isso não interessa! Eu também tenho 75 anos e ainda mexo bem!”

    Com a informação de que o senhor J ainda conseguia saltar sempre que preciso, vim-me embora e julgo ter usado um ou outro impropério para descrever, ao meu sogro, o que achava do amigo de escola.

    Invariavelmente, acabo as minhas pesquisas e conversas com um “como é que é possível?”. Aqui e ali assumo alguma irritação, nada de muito grave; só aquele “f******, mas está tudo doido?” da praxe.

    green van on road during daytime

    Depois do senhor J, corri outros comerciantes, falei com particulares, meti anúncios. De todos recebi respostas que, de facto, o respectivo ferro-velho era melhor do que os vizinhos – e, por menos de 10.000 euros, só um skate.

    Fiz o comparativo devido para o mercado onde vivo (Suécia), e concluo que a mesmíssima velharia que procuro custa cerca de um terço do preço cobrado em Portugal. A Suécia, onde as pessoas ganham em média três vezes mais, pagam três vezes menos por um carro velho.

    Portanto, a culpa não é do senhor J ou de qualquer outro vendedor. A culpa dos preços faraónicos é da carga fiscal absolutamente surreal.

    De facto, sempre que dou uma perninha no recrutamento do meu empregador e entrevisto portugueses a caminho de uma vida no Ártico, vem algures no processo a pergunta sobre o custo de vida.

    A minha resposta, já gasta, e repetida 500 vezes, é de que tudo, à excepção do supermercado e do vinho, é mais barato ou tem um custo idêntico ao português. A conversa dos carros surge sempre como exemplo da carga fiscal, tal é a diferença, absolutamente pornográfica, de preços.

    black and silver laptop computer

    Não é propriamente uma grande revelação se vos disser que nos primeiros três meses de 2022, no top 5 de carros mais vendidos em Portugal estão 3 Peugeot, um Renault (Clio) e um Citroen (C3).

    A carga fiscal é tão grande que para a bolsa de um português, um Renault Clio com um motor de um corta-relva é um luxo que, quase novo, custa mais de 20.000 euros. Na Suécia, o mesmo carro, com zero quilómetros, custa menos 3.000 euros.

    Nas ilhas portuguesas, onde resido, a este cenário dantesco juntam-se os custos do transporte. O resultado final é tão disparatado que acabamos a discutir preços de carros com 20 ou 30 anos e quatro voltas dadas ao Mundo como se tivessem saído das fábricas ontem.

    O drama maior nem é a carga fiscal disparatada, mas o facto de esta não reverter em função dos contribuintes. Pagamos em Portugal por impostos noruegueses, mas recebemos serviços do Zimbabué.

    Se uma Toyota de 1985 custasse 10.000 euros por causa da carga fiscal, mas depois os putos, aqui da freguesia, tivessem uma creche gratuita, tudo bem. Agora quando a carga fiscal se destina a tapar buracos do BES, do Rendeiro e das PPPs, eu já tenho alguma dificuldade em aceitar tais disparidades.

    De modo que fico um pouco limitado nesta minha aventura agrícola, e não estou bem a ver como posso ser um gestor de unicórnios decente. Nem os meus pais me ofereceram hectares, como fizeram em tempo útil os do Macário, nem o Estado me dá uma folga com os impostos sobre o ferro-velho. E julgo, é só uma suspeita, que nada do PRR me cairá no bolso.

    Não é, enfim, Macário quem quer. Há que aguentar e ir desviando dos buracos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.