Etiqueta: Tiago Franco

  • É tempo de ir para a rua 

    É tempo de ir para a rua 


    Quando ouvi António Costa a anunciar as linhas gerais do Orçamento de Estado fiquei com alguma expectativa. Escrevi, nessa altura, que o cálculo da inflação parecia muito optimista, mas a subida do salário mínimo para 900 euros, num espaço de três anos, mostrava alguma abertura ao diálogo.

    Quando Medina assumiu as rédeas da apresentação, no dia seguinte, já fiquei mais inseguro. Por um lado, ele anunciava protecção às famílias com créditos à habitação, enquanto, ao mesmo tempo, dizia que os bancos apenas seriam obrigados a responder a pedidos de renegociação de crédito. Ora, uma “obrigação de responder” é uma mão cheia de nada e limitar-se-ia a confirmar, por escrito, o futuro das famílias.

    Fernando Medina, ministro das Finanças, a entregar formalmente o Orçamento de Estado para 2023 ao presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva…

    A banca continuaria protegida. À medida que toda a Oposição foi detalhando o Orçamento, ficou mais claro o que ali estava. E se dúvidas tivesse, ficaram desfeitas com a rapidez com que os patrões chegaram a um acordo na concertação social.

    Alguns produtos alimentícios sofreram aumentos reais entre 9 e 18%. Material escolar subiu em cerca de 16%, combustíveis à volta de 17% e a energia mais de 20%. Portanto, nesse cenário, o acordo significa apenas que os reformados e os funcionários públicos com vencimentos acima do salário mínimo vão, na realidade, perder, e muito, poder de compra.

    Já vários partidos da Oposição se manifestaram contra o Orçamento. Da esquerda à direita, ninguém parece muito interessado em votar a favor, ainda que por razões diferentes. Segue-se o esperado pela parte de quem não assinou este acordo, a CGTP, e a contestação, que agora recomeçou este fim-de-semana, já tem novas datas marcadas. A rua voltará a trazer a voz do descontentamento.

    … e que teve uma inopinada queda em directo para as televisões.

    Se a realidade dos preços mostra que a inflação estimada pelo Governo é um sonho de uma noite de Verão, torna-se relativamente simples perceber que sem aumentos na casa dos dois dígitos, dificilmente a classe média conseguirá recuperar o poder de compra. E quando digo classe média refiro-me a qualquer pessoa que receba 1.000 euros, aquilo a que na Europa do Primeiro Mundo se designa por “pobre”.

    Portanto, já estamos com a fasquia incrivelmente baixa, mas corremos o risco de a ver descer ainda mais. E por lá ficar longos anos.

    Há, no entanto, algumas coisas, raciocínios bastante simples, que favorecem o argumento de quem está na rua a lutar por aumentos reais dos salários. É um facto que os preços aumentaram e que, em virtude disso, não só o lucro das empresas cresceu como, por consequência, o Estado arrecadou um jackpot de impostos à boleia da inflação.

    Portanto, o dinheiro existe, está lá. Saiu em maior quantidade da carteira dos trabalhadores para pagar a escalada de preços, transformou-se em lucro das corporações, e daí passou a imposto extraordinário para o Estado. Certo? Até aqui ainda não precisamos de um Nobel da Economia.

    Agora, o verdadeiro problema começa quando o Governo não quer devolver o que arrecadou, ainda por cima se considerarmos a urgência que as famílias vivem. É que aqui não existem grandes hipóteses para quem quer manter a decência e ajudar os trabalhadores no mundo real, não apenas num mar de intenções escarrapachado num PowerPoint.

    O Governo pode baixar os impostos às empresas e garantir que estas transferem esse dinheiro para os aumentos dos salários, e deve, como empregador que é, usar os impostos extraordinários que recebeu e aumentar os salários dos funcionários públicos, na exacta medida da inflação.

    Ao não fazer, a fundo, nenhuma destas medidas, o que o Orçamento de Estado está a conseguir é, na prática, transferir o dinheiro dos trabalhadores (salários) para o capital (lucros das empresas), e depois a usar os impostos arrecadados para, na melhor das hipóteses, abater dívida pública. Ou, na pior, distribuir pelas clientelas do costume.

    Traduzindo por miúdos, este Orçamento vai empobrecer uma população que já é pobre, vai enriquecer (mais) quem já é rico e vai criar um fundo de maneio bem jeitoso para alimentar a elite que vive na órbita do Estado.

    person holding brown leather bifold wallet

    Ainda por cima, os economistas da praça já nos avisaram que, ao contrário do que nos foi vendido, a inflação não será passageira. Uma vez que a população se reajuste para pagar preços escandalosamente altos, as corporações não os trarão para o valor pré-guerra. Poderão não ficar tão altos como hoje, mas certamente que a adaptação será feita do nosso lado. Os mercados, os famosos mercados, não reduzem preços; quando muito não os aumentam tanto.

    Portanto, quando os funcionários públicos vão gritar para a rua e exigir que o dinheiro arrecadado (a eles) volte em boa parte para eles, estão a assumir uma luta justa, lógica e a única que não nos deixará ainda mais pobres. No fundo estão a disputar uma batalha, esta sim, que diz respeito a todos os portugueses que trabalhem por conta de outrem. Era bom que por uma vez percebêssemos onde devem estar as nossas prioridades.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os pesos, dois, e as medidas, várias 

    Os pesos, dois, e as medidas, várias 


    O relato desta guerra nas “nossas” televisões (ou noutras, como a impoluta BBC, por exemplo) parece um derby comentado na Sporting TV nos saudosos tempos do Bruno de Carvalho. Não sei se passaram por essa experiência de parcialidade doentia, mas, para quem gosta de tesourinhos, recomendo.

    Ora, sobre um conflito entre dois (ou três) países estrangeiros, eu esperaria nas redacções menos paixão e mais factos. É mesmo mas mesmo difícil encontrar informação dos dois lados. Não ligo muito a propaganda russa ou ucraniana; porém, gostava honestamente de ter algumas notícias credíveis. Esperava, pelo menos que na União Europeia nos deixassem saber o que se vai passando nesta guerra, que a todos afecta. Sem perceber o que lá se passa é quase impossível perceber para onde caminhamos. Sim, porque nesta miséria vamos caminhando juntos.

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    Há dois ou três generais que, nas televisões portuguesas, nos vão dizendo que “no lado mau” não estão todos mortos ainda, enquanto a esmagadora maioria das notícias e dos comentadores passam as 24 horas do dia a explicar como a Rússia está encostada às cordas.

    Neste particular, estou a ficar um fã assumido de Helena Ferro Gouveia, porque me faz sonhar, e alegra a minha vida com pacotes de felicidade de 10 horas. Normalmente, este é o tempo que demoramos a perceber que a Helena não sabe nada do que está para ali a dizer, e que a realidade lhe acaba a mostrar que aquele seu curso de liderança na Academia Militar não faz, enfim, nem fez, pois bem, milagres.

    Antes do ataque à ponte de Kerch, dizia a comentadora, repetindo uma ideia antiga, que os russos estavam com tanta falta de equipamento que andavam a desempacotar caixotes da II Guerra Mundial. No dia seguinte, o exército russo incendiou 17 cidades ucranianas com cerca de 180 misseis, alguns para entreter as defesas aéreas, e outros, de alta precisão, para alvos específicos.

    blue and yellow flag on pole

    Se era este tipo de material que o Putin tinha nos caixotes que voltaram de Berlim em 1945, já compreendo como é que se safaram com o Hitler. Estavam 70 anos à frente do seu tempo tecnológico.

    Seguiu-se o Rogeiro, com uma teoria que o ataque à ponte com o camião armadilhado poderia ser um trabalho interno russo que justificasse o ataque do dia seguinte. É um raciocínio legítimo e até caricato. A avaliar pela ironia e alegria de Zelensky, que fez piadas sobre o céu nublado da Crimeia, posso então acrescentar, à Teoria Rogeiroana, que não só os russos rebentaram a própria ponte e mataram cidadãos seus, como ainda disseram ao Zelensky que tinha sido obra dos serviços secretos ucranianos, para que ele não perdesse o orgulho nos seus.

    Virá alguém agora dizer que é uma técnica clássica de contra-informacão da Guerra Fria, muito típica do KGB. E quem é que estava no KGB na Guerra Fria? Pois… o Vladimir. E assim forma-se um enredo à James Bond em menos de nada – é só querer muito.

    Mas melhor do que nos dizerem que aos russos já só restam pedras e catapultas, vendo-os a disparar 180 mísseis no dia seguinte do Donbass a Lviv, é a forma como se festeja a morte de uns – os que se afogaram na explosão da ponte – e se condena a morte de outros – resultado dos mísseis de resposta.

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    No Leste europeu, as questões de moral e os valores estão bem definidos. Russos morrem aos magotes, e porque querem; ucranianos morrem, poucos, e só se tiverem azar. Festejamos as primeiras, lamentamos as segundas.

    O que se diria, no Ocidente civilizado, se famílias desfilassem para tirar fotografias em frente a um quadro comemorativo com a ponte a arder?

    Cheguei a ouvir que o ataque à ponte tinha sido “espectacular” e a resposta “bárbara”. No fim, e como sempre, o que vejo há alguns meses são diferentes formas de escalada no conflito e uma vontade ardente dos Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia de continuar a armar um lado da guerra, como disseram os seus três líderes, “pelo tempo que for necessário”. Na verdade, é uma metáfora para dizer “enquanto os povos europeus conseguirem pagar”.

    Discute-se agora também a proporcionalidade dos ataques. É o mesmo tipo de argumento que usam quando os palestinianos respondem com pedras a carros blindados. Um dia disse-me um israelita, sem se rir: “que culpa temos nós de ter investido no melhor sistema de defesa anti-aérea do mundo e de não sermos afectados pelos rockets de Gaza? Eles que investissem também!!”. E continuou com grande eloquência, dizendo: “se eles só têm fisgas e pedras, que não ataquem alguém com um arsenal maior!”

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    Nesse caso em concreto, é bom lembrar, ninguém quer saber quem invade quem. Ninguém paga para o invadido se defender. E não, não é whataboutismo… é sem tirar nem pôr a mesma situação. Com um início semelhante, um invasor e um invadido, e um fim ligeiramente diferente. O invasor é que recebe o apoio da comunidade internacional e o invadido vai viver para uma gaiola, sem piar muito.

    Já no Donbass e na Crimeia essa teoria não funciona. Quem tem o maior arsenal não o deve utilizar sob pena de entrar no “clube das bombas pela guerra”, uma vez que já todos sabemos quem tem a patente das “bombas pela paz”.

    Mas o que mais me impressiona é o espanto e a indignação que por cá se faz com a resposta russa. Andam há meses a dizer que a extrema-direita e a oligarquia do Putin dominam o poder na Rússia – é um facto. Que o homem não é de confiança – é outro facto. E que tem, para além de armamento nuclear e um exército enorme, aspirações imperialistas – também parece real. Mas, mesmo assim… acham boa ideia “cutucar onça com vara curta”, como diriam os nossos irmãos brasileiros.

    Não percebo. Todos parecem, de facto, achar que os russos estão fracos e sem botas para os soldados. E não sei bem como…

    Entretanto, para ajudar na “festa”, com a escalada da violência, e mísseis apontados agora a outras cidades europeias e americanas, entra o lunático do Lukashenko em cena. Alguns dos mísseis deste último ataque partiram de território bielorusso, oficializando de certa forma a aliança que já era mais do que assumida.

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    Numa comunicação feita para que Zelensky e a NATO percebessem os passos seguintes, Lukashenko afirmou que o ataque de resposta à ponte pareceria uma brincadeira, comparado com o que ele faria caso os ucranianos tocassem num metro que fosse da Bielorrússia; e para o seu povo disse que a Ucrânia e a NATO preparavam uma invasão à Bielorrússia.

    Não é difícil perceber, pelo tamanho da alucinação, que Lukashenko está a ler um discurso preparado por Putin, e que, a partir de agora, o seu envolvimento no conflito será real. Portanto, a cada semana que nos dizem que os russos estão desmoralizados e sem armas, eles sobem um nível e rebentam mais qualquer coisa.

    Enquanto isso, começo a achar que as análises da Helena Ferro Gouveia já passam em horário nobre, e com legendas, em Kiev. E o Zelensky não deve perder uma.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Faz sentido pagar impostos em Portugal? Eu respondo! 

    Faz sentido pagar impostos em Portugal? Eu respondo! 


    Uma das coisas que tenho aprendido com esta colaboração no PÁGINA UM é que nem todos apreciam que se exponha uma opinião. Vejo nos meus textos, ou de outros colegas, pedidos para uma “opinião isenta”. Não sei bem o que é uma opinião isenta, mas presumo que entre na mesma categoria da água em pó ou bolas de Berlim sem açúcar. No fundo, alguns de nós não procuramos ler visões diferentes seja do que for. Queremos é a nossa opinião reproduzida nos órgãos de comunicação social. E se não for assim, enfim, então não é isenta.

    Serve este preâmbulo para dizer que espero continuar a ser merecedor da vossa leitura, em especial quando não concordam com o que aqui é escrito. É para isso que existem colunas de opinião, para que possamos debater e não para alimentarmos caixas de ressonância. 

    person wearing black framed sunglasses

    Portanto, vamos a isto. Hoje acordei a pensar nos impostos que cada um de nós tem de pagar em Portugal. Isto numa altura em que se discute uma possível baixa para as empresas e ajuste nos escalões de IRS. Parece ainda que o Governo está interessado em conseguir um aumento de 5% para os salários médios e uma subida para 900 euros no salário mínimo em 2026. Sem saber o que dará a concertação social, diria que não é uma proposta muito má. O perigo está na inflação estimada (4%) que é manifestamente optimista.

    Os impostos que todos pagamos são importantes; na minha opinião, absolutamente basilares numa sociedade civilizada. E é por isso que me pergunto, ao dia de hoje, se continuam a fazer sentido em Portugal.

    Esclareço a inversão de pensamento.

    Sempre defendi um modelo de sociedade solidário, assente em impostos progressivos. Ou seja, quem tem mais, paga para quem tem menos, tentando-se de alguma forma equilibrar a distribuição de riqueza, mas, essencialmente, financiar um conjunto de serviços que são a marca de qualquer país desenvolvido, que procure a justiça social e se insira no Primeiro Mundo. A saber: educação, saúde e solidariedade social.

    person using black computer keyboard

    Tudo o resto pode e deve ser discutido, mas, na minha opinião, são estas as três áreas prioritárias onde se deve investir o dinheiro dos contribuintes. Não quer dizer que o Estado Social termine aí – quer apenas dizer que deve começar aí.

    Esta é uma forma de quem paga, quem no fundo suporta o Estado, ver o retorno dos seus descontos. Começa nas creches gratuitas e em quantidade suficiente para todas as famílias, segue na assistência médica, seja um pediatra ou um dentista, e termina no apoio ao desemprego ou nas pensões garantidas. Se estas premissas estiverem garantidas, então o sucesso na gestão do erário público está garantido. O contribuinte vê de facto o retorno e sente que a carga fiscal faz sentido.

    Onde vivo a maior parte do ano, esta é a realidade. O Estado Social não termina aí, vai muitíssimo mais longe, mas estes três pilares estão garantidos há décadas. Foram agora um pouco abanados nas últimas eleições, e há notícias que o apoio ao desemprego poderá ser alterado, mas, até ver, a realidade é que a maioria dos habitantes na Suécia ficam contentes por pagarem impostos.

    Ao fim de quase 18 anos aqui ainda não conheci uma pessoa que dissesse o contrário. Portanto, é possível ter uma carga fiscal alta e, mesmo assim, ficar contente depois de a pagar.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    Em Portugal entrámos numa fase em que, honestamente, estamos cada vez mais longe da realidade. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem vindo a ser completamente desbaratado desde 2012, e durante a pandemia levou o golpe de misericórdia. Creches gratuitas são uma gota no oceano e todo o percurso escolar tem um custo elevado para as famílias. Um casal que queira ter filhos em Portugal acaba a fazer contas de quantos filhos pode ter. Ou se pode sequer ter algum. Isto num país envelhecido e com uma urgência assinalável em ter jovens que engrossem o mercado de trabalho.

    Devo dizer, a título de comparação, que nunca comprei ao meu filho qualquer livro escolar, computador ou material de apoio. Não faço ideia sequer quanto custam. A Segurança Social está constantemente debaixo de suspeita no que concerne à sua sustentabilidade e os apoios no desemprego, pequenos como os salários, seguem uma burocracia pouco aconselhável e desesperante.

    Temos, no entanto, as melhores estradas da Europa, as maiores parcerias público-privadas (PPPs) que nacionalizam o prejuízo e privatizam o lucro, uma banca que vive do erário público e uma infindável clientela que vagueia em torno dos sucessivos Governos do centrão. É mais ou menos simples perceber que as prioridades portuguesas na gestão do dinheiro dos contribuintes não são aquelas que se espera de um país que se quer civilizado. Daí a pergunta, se valerá a pena pagar tantos impostos?

    Cada vez mais pessoas aderem aos seguros de saúde, quase todos pagam uma renda para deixarem os filhos na creche e, caso percam o emprego, trocam o baixo salário por um baixíssimo subsídio de ajuda.

    Esta realidade é preocupante porque mostra o falhanço dos sucessivos Governos e abre espaço para o populismo de alguns partidos políticos que aproveitam para cavalgar a onda. Com a demagogia da preocupação com o povo, exigem a redução de impostos vendendo a ideia de que tudo será mais fácil com mais dinheiro do salário no bolso.

    Aquilo que na verdade eles querem fazer é que aquele dinheiro que é entregue ao Estado e que deveria ser utilizado em serviços para todos nós, passe a ser entregue aos grupos privados. Sejam eles de hospitais, seguradoras, colégios ou planos de poupança e reforma. Nós ficamos com o mesmo dinheiro ou, provavelmente, com menos. Mas os grupos privados que apoiam e financiam estes partidos ficam bem mais ricos.

    A abertura para este tipo de discurso acontece exactamente porque os nossos governos, todos, têm sido péssimos gestores dos fundos europeus e dos impostos dos portugueses. Somos cada vez mais pobres, pagamos cada vez mais impostos, recebemos cada vez menos serviços. Portanto… como não perceber a subida dos partidos populistas assentes no descontentamento da população?

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    Em vez de uma rede nacional de creches optámos por uma rede nacional de auto-estradas (já lhes perdi a conta). Nunca um país tão pequeno viu tanto alcatrão a gerar dinheiro para as clientelas. Começou com a maioria do Cavaco e nunca mais acabou. Rios e rios de dinheiro entregues às construtoras, à banca, aos gabinetes de advogados, às empresas dos amigos que fazem estudos para aeroportos. Uma elite que atravessa gerações e que já fez da distribuição dos fundos comunitários uma profissão de sucesso.

    Entretanto, a classe média continua com salários médios que rondam os 1.000 euros, e, ainda há poucos anos, o salário mínimo andava nuns vergonhosos 500 euros. Agora estima-se que possa chegar a pouco mais de 700 euros em 2023. Portanto, andamos sempre a substituir miséria por pobreza. E daqui não passamos.

    Portanto, quando nos perguntamos se faz sentido a carga fiscal em Portugal, para continuar a alimentar corrupção e amigos do regime, a resposta é não, não faz. É preferível que cada um fique com o salário no bolso e entramos numa selva de individualismo.

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    E é esse o modelo sustentável no longo prazo? Não, também não. É olhar para o norte da Europa e perceber que não.

    Aquilo que faz falta, mesmo, é ter governantes honestos e que, por uma vez, coloquem o bem-estar da população à frente das clientelas. Alguém que nos faça pensar que pagar impostos em Portugal não é um exercício de masoquismo. Parece ser uma utopia, bem sei. E talvez seja mesmo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nós nunca desiludimos os senhores do poder 

    Nós nunca desiludimos os senhores do poder 


    Abro o correio sem grandes esperanças de ler algo interessante. E por correio, atenção, refiro-me à caixinha que está na rua com o meu nome e para onde enviam, ainda, papéis dentro de envelopes. Já não se escrevem cartas de amor pelo que a probabilidade do carteiro me trazer algo interessante é, assim, tremendamente reduzida.

    Mas ontem tinha lá duas cartas informativas. A primeira vinha da companhia que fornece o aquecimento da casa, avisando-me que, a partir deste mês, aumentaria os preços em 6%. A segunda, com aquele carimbo azul inconfundível, vinha do banco com a notícia que a taxa de juro do crédito à habitação se aproximava agora dos 5%. Há meses que notas destas voam por todo o lado. Aqui, aí, no meu correio, no do vizinho. Há uma infinidade de problemas que a Europa atravessa e que, mais ou menos, nos vai afectando a todos.

    six assorted-color mail boxes

    De repente, vejo o Continente, o Velho, de pernas para o ar por causa de uma pandemia que, afinal, matou tanto como a pneumonia, e de seguida uma guerra que começou a chamar a atenção do Mundo (já que o seu início foi bem anterior à pandemia) e que rebentou com a Economia na Zona Euro.

    Pessoalmente, desde 2020, já vi o salário ser cortado duas vezes, o preço da habitação a subir e o custo de vida a disparar, especialmente no sector da energia e dos transportes. Abastecer o carro, no país com o litro de gasóleo mais caro da União Europeia, passou a ser um espectáculo de masoquismo – e ir a casa, um luxo incomportável.

    Tudo isto me faz meter um pouco em perspectiva os planos de vida. Ou o que eu imaginava serem planos de vida. Ao fim de 18 anos longe de quase tudo o que é importante para mim, tinha pensado que esta vida com a casa às costas estaria a entrar no seu último capítulo. Ou pelo menos fiz as escolhas profissionais que o iriam permitir no curto prazo.

    Mas, de repente, tudo está em risco. De um simples telhado a um regresso a casa. As dificuldades causadas à população europeia afectam quase todos, ou vá, aqueles que dependem do seu trabalho para se sustentarem.

    É por isso, mais ou menos óbvio, até algo egoísta, assumo, que a cada dia eu deseje o fim da guerra no Donbass, seja de que forma for. Ouço as notícias com alguma ansiedade e, por mais que queira acreditar no que me vão dizendo, há sempre qualquer coisa que não encaixa, que não bate certo e que, aparentemente, não tem grande correspondência no terreno.

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    Há uns meses, não me lembro quantos, via reportagens diárias onde soldados ucranianos diziam que sem as armas de longo alcance não teriam a mínima hipótese contra os russos. Nessa altura, a proporcão era de um canhão para dez e, no terreno, os russos tinham tropas cinco vezes maiores.

    De repente – deduzo que depois das armas de longo alcance terem chegado –, o exército ucraniano passou a ser constituído por membros da Marvel. Todo o equipamento russo é antiquado, os soldados mal preparados e, nas recentes palavras do Zelensky, os novos recrutas, dos tais 200.000 que foram mobilizados, já estão a morrer nas ruas da Ucrânia. Todos os dias há tanques russos destruídos e, apesar de nos jurarem que eles não conseguem produzir novos, voltam a rebentar mais uns quantos na manhã seguinte.

    Do lado ucraniano não há baixas, nem material perdido nem, aparentemente, gente que não quer estar ali. Os russos podem aparecer com 100.000 ou um milhão que serão todos carne para canhão.

    Os bravos ucranianos são o mais parecido que já vi com os Espartanos, portanto, enquanto tiverem 300 bem armados, os russos não têm grandes hipóteses.

    A isto juntam-se dois lados diferentes da mesma história. Quando, em Abril, os ucranianos fugiam pela fronteira da Polónia e o Zelensky os obrigava a ir para a frente, não eram carne para canhão. Estavam muito motivados e, como se percebe, iam até à fronteira polaca apenas apanhar balanço para a guerra. Já quando os russos fugiam pela fronteira da Geórgia, era um sinal de que o Putin estava isolado e que os reservistas não estavam para o aturar.

    blue and yellow striped country flag

    Tenho a sensação que a informação me chega com algumas perdas – para usar um termo da minha área de formação –, ou então, em português mais corrente, sinto que me estão a pedir para comer gelados com a testa.

    Porque…se Putin quer obrigar toda a gente como fez Zelensky, porque não fecha simplesmente as fronteiras e permite que tenham saído 190.000 pessoas? Não devem ter passado todos na calada da noite. O que é que custa dizer, para o lado de cá, nas nossas televisões, que russos e ucranianos não estão propriamente interessados em morrer na guerra? Isso muda o moral de quem assiste, deste lado, no sofá?

    É que, convenhamos, a minha ansiedade está ligada com o fim da guerra e, portanto, quando ouço todos estes relatos heróicos de como os russos estão a recuar e os ucranianos a recuperar terreno, fico a imaginar que o fim está próximo. Mas depois lá aparecem mais russos, mais tanques, mais canhões e, quando nos metemos a pensar, percebemos que a Rússia controla uma área do tamanho de Portugal há vários meses. Fico com a sensação que nos contam só algumas partes da história.

    Já ouvi uma analista, julgo que Helena Ferro Gouveia, dizer que cerca de 80% do exército russo teria sido dizimado. Pergunto, como é que aguentam os 1.000 km entre Lugansk e Sevastopol? Com rezas e muita fé?

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    Eu entendo que guerras se fazem com propaganda e compreendo que cada lado conte a sua história para animar os combatentes. Mas temos nós, absolutamente irrelevantes no conflito, que conhecer apenas um lado da narrativa? Não é mais ou menos óbvio que os russos não são os bananas, equipados com cantis de vodka e penicos na cabeça, que o Rogeiro nos quer fazer crer todas as noites? E não é também claro que, quanto mais tempo tudo isto durar, mais nós empobreceremos e mais afectadas serão as nossas vidas e as nossas famílias?

    É que nem a classe dirigente ajuda. Quando se pensava que o Reino Unido tinha atingido o seu “momento Trump” com Boris Johnson, eis que aparece a senhora Truss, uma neo-liberal, que diz, sem se engasgar, que se tivesse a Europa investido mais em armamento e escolhido parceiros energéticos fiáveis, não estaríamos agora nesta situação. Como? Importa-se de repetir?

    Emanuel Macron disse numa cimeira de líderes mundiais que por causa do boicote ao óleo russo, já tinham avisado os sauditas que era necessário produzir mais. Entretanto, a nossa estimada Ursula que nos garante que a guerra não pode parar, foi a correr assinar um tratado com o Azerbaijão para substituir o gás russo. Eis-nos aqui com a Arábia Saudita e o Azerbaijão, democracias confiáveis e de primeira água, que, só por acaso atacaram, respectivamente, o Iémen e a Arménia recentemente…

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    Portanto, o que esperar dos próximos meses? Em princípio continuar a ouvir que os russos estão de gatas e contar as aldeias libertadas, uma a uma. Quando a coisa abrandar, como aconteceu agora, fala-se durante cinco dias sobre Lyman, com a ajuda de cinco generais que nos explicarão, 30 vezes, a sua importância estratégica.

    Pelo meio a Lagarde sobe mais 0.5% as taxas de juro, e ficam mais umas centenas, das classes desfavorecidas, sem casa própria. A inflação chega aos dois dígitos (como no Reino Unido) e os salários são devorados pelo custo de vida.

    Os Estados Unidos seguem a política de intimidar russos, norte-coreanos e chineses. A Ucrânia pode ser uma boa fonte de receita com a venda de gás e de armas, mas, bom, mesmo bom, era alargar o conflito a Taiwan e Pyiongyang. Não temo ainda problemas que cheguem.

    Pelo meio chegam notícias, em rodapé, de milhões de deslocados na Somália que tentam fugir à seca onde, por causa da falta de produção local e o aumento dos custos de importação, meio milhão de crianças está em risco de morrer à fome.

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    Reparem: em pleno século XXI, meio milhão de miúdos arriscam morrer de fome num planeta onde milionários velhos gastam biliões dos impostos em armamento. E nós assistimos a isto achando que a guerra pelo Donbass é o nosso maior problema, a nossa causa e, aparentemente, a razão certa para justificar o nosso empobrecimento.

    Dificilmente as elites, que nos controlam, conseguiriam escrever um argumento tão bom se deixadas à sua sorte. Mas foi também precisa a nossa colaboração, alienação, desinteresse e, diria até, ignorância. E senhores, com a precisão de uma pancada de esquerda do Federer, uma e outra vez, nós, de facto, nunca os desiludimos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A popa do Tato no olho do furacão 

    A popa do Tato no olho do furacão 


    Depois da anexação dos quatro territórios do Donbass pela Rússia, dizem-nos os especialistas que entrámos na rampa de lançamento para a III Guerra Mundial. Explicam-nos que a partir daqui os russos terão um justificativo para usar outro tipo de armamento para defender “os seus territórios”.

    Começam agora as discussões sobre o direito internacional, fala-se no exemplo dado pelo Kosovo e a anexação não é reconhecida por ninguém. Ou quase ninguém. Ursula von der Leyen diz que não é tempo de pedir paz, mas sim de derrotar a Rússia. Os Estados Unidos garantem que o Nord Stream deixará de funcionar. A União Europeia coloca-se ao lado da Ucrânia e continua a enviar dinheiro e armas. No Velho Continente todos escolheram os seus lados. Até a Hungria e a Sérvia.

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    Para quem não dormiu nas aulas de História, há um cheirinho a 1938 no ar. Ali nos bastidores do Apocalipse.

    A inflação aproxima-se dos dois dígitos, há muitas famílias europeias já em dificuldades antes do primeiro tiro nos seus territórios. Russos fogem do seu território para evitarem a chamada. Tal como ucranianos tinham feito na Primavera. O “salto” também é actual neste século.

    Confesso a minha preocupação e tento, o mais possível, ouvir as diferentes fontes de informação para perceber o que aí vem. Até porque, aqui na Suécia, não vivo assim tão longe das fronteiras russas.

    No meio desta aflição, e completamente mergulhado no que aí virá, dou com Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, a indignar-se na RTP pelo fim das medidas de isolamento no combate à covid-19. Jura-nos que o risco é muito grande e que não isolar pessoas infectadas pode ser o fim. O Tato não quer que a covid-19 passe e seja tratada como a pneumonia. O Tato não quer que o tema saia da agenda. O Tato, no fundo, não quer perder o emprego.

    Tato Borges

    Confesso que até o percebo: afinal, com guerras e quejandos, a malta não vai ter dinheiro para comprar carros eléctricos. Com jeito até voltam a pedalar como em 1940. E isso também me aborrece, porque, lá está, o meu salário depende da “transição energética”. Sim, é tanga, mas paga as contas.

    O Tato parece o gajo que, no olho do furacão, está preocupado com a intensidade do gel que lhe segura a popa.

    Mas Tato, my friend, we have bigger fish to fry. Fazes como nós todos, e vais trabalhar. Menos palco. Menos terror de pacotilha. Menos jackpots para os laboratórios. Agora há mesmo um problema sério para resolver e não vai lá só com (tuas) vacinas.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Nord Stream é afinal um queijo suíço 

    O Nord Stream é afinal um queijo suíço 


    A guarda-costeira sueca descobriu a quarta fuga no Nord Stream. Aquilo já não é bem um pipeline, um tubo – é mais um queijo suiço.

    Submarinos russos foram avistados no local (terá sido no “sailRadar24”?), mas estes garantem que estavam só de passagem para ir ao bacalhau na Noruega.

    A União Europeia diz que toda a Europa está sob ataque com estas sabotagens no Nord Stream.

    Os americanos dizem que a Europa não se deve preocupar porque estas fugas não afectarão o fornecimento e, portanto, o Inverno será quentinho. Mais caro, mas quem sabe, bem quentinho. Para alguns.

    Eu, que gosto de ser prático nestas coisas, dou por mim a pensar se a Van der Leyen & Cia. não deveriam ter pensado em reduzir a dependência da energia russa antes de começarem a escrever os sucessivos pacotes de sanções.

    Eu sei que é difícil reverter, em 15 dias, as duas décadas que andámos a lambuzar os ditos do Putin, mas, quer dizer, ou se percebe a realidade da dependência, e somos mais cuidadosos nas entradas à campeão no jogo de poker; ou “cagamos” nisso tudo, tatuamos #ukraniaForever nas nádegas e rebentamos a Europa toda para os salvar.

    Uma das duas.

    Agora esta pose de arrogância da União Europeia, a trocar de ditaduras para salvar o Inverno, enquanto vai brincando aos ricos com a mesada do pai, e deixando a conta para o povo, a quem nada perguntou, é que me está a dar cabo dos nervos.

    A von der Leyen, a Lagarde, o Biden, o Putin, o Zelensky e os demais milionários que se juntem num jogo de pingue-pongue, a duas mãos, para decidir quem fica com os campos de trigo ou as saídas para o mar. Para combinarem onde é que a NATO monta acampamento e até onde a Sibéria chegará. Para chegarem a acordo sobre qual dos impérios poderá explorar mais as pessoas nos próximos 50 anos, ou se dividem entre eles, distribuindo os lucros pela elite reinante.

    Epá… já estou por tudo: façam o que quiserem. Até um concurso de quem mija mais longe com aquelas próstatas velhas. Mesmo a da Lagarde.

    fawn pug covered by Burberry textile between plants

    Agora, deixem de matar miúdos que se estão a borrifar para o Donbass e que não ganham nada com a exploração das matérias-primas. E principalmente, chega de mandar a conta para a classe média que, de Lisboa a Estocolmo, de Roma a Helsínquia, terá de pagar toda esta porcaria.

    Eu quero que o Putin vá onde o Milhazes manda. E o Zelensky. E a Lagarde. E o Biden. E a von der Leyen, sobre a qual o director do PÁGINA UM se queixa de seguir sempre com gralhas.

    Penso no que impede as novas gerações, envolvidas directa ou indirectamente nesta guerra, de se revoltarem e retirarem do poder a esta elite corrupta que os faz pagar com a vida ou com o salário as suas ambições de poder.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Caldeirada à Abrunhosa 

    Caldeirada à Abrunhosa 


    A minha memória não é grande coisa, e ainda bem. Tirando os repetidos escândalos na banca, que nos perseguem há mais de uma década, vou esquecendo tudo o que vou lendo ao fim de pouco tempo. Gosto de atribuir essa falha à minha memória, mas há a hipótese, também real, do volume de cambalachos em Portugal ser de tal monta que, se torna humanamente impossível guardar espaço de processamento mental para todos.

    Parece que, a cada semana, temos mais um Mário Ferreira, mais um Rendeiro, um novo Vara, um aprendiz de Relvas. E antes que apareça o Leitor Provedor da Verdade a clamar por provas, adianto-me: tudo parece ser legal. É essa a beleza do nosso sistema. Tudo parece ser legal e, provavelmente, será.

    Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial

    Noticiou o Observador que duas empresas, detidas pelo marido de Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, receberam cerca de 133.000 euros dos fundos comunitários, de um total de 303 000 euros que foram entregues a Portugal.

    Aparentemente, não há nada ilegal em receber dinheiro público de instituições tuteladas pela mulher. O comentador Sebastião Bugalho, sempre afoito na defesa de dinheiro público em bolso privado, dizia na CNN que um empresário em Portugal tem de recorrer a fundos europeus porque, cito, “há pouco capital no país”. E que, nesse cenário, não poderia ser prejudicado por uma simples certidão de casamento. O amor não olha a subsídios…

    Compreendo o jovem Sebastião – e, aliás, pela primeira vez até consigo concordar com cinco palavras oferecidas por ele. De facto, há pouco capital em Portugal, mas, como se percebe, não afecta maridos de ministras. E é nesse ponto que estas histórias me deixam sempre intrigado.

    stack of books on table

    A apregoada meritocracia raramente chega às manchetes dos jornais. Já casos aparentemente legais e difíceis de compreender, na lógica da moralidade, são o pão-nosso de cada dia.

    Só esta semana ficámos a saber da entrada no curso de Medicina da Universidade Católica de uma aluna sem média, mas filha de um benemérito… Perdão: um benemérito insigne. Os beneméritos ainda ficam à porta da Católica.

    Entretanto, Paula Amorim, uma das herdeiras do império, dizia no podcast de Balsemão, com um violino triste ao fundo, que teve que abandonar os estudos aos 19 anos para assumir um lugar no Conselho de Administração da empresa do pai. O drama, o horror, o mérito dos genes de uma teenager que, coitada, começa pelo topo sem passar pelas etapas dos comuns mortais.

    E agora temos uma empresa criada em 2020 pelo marido de uma ministra do centrão a conseguir receber, apenas dois anos depois, 133.000 euros de fundos comunitários. Parece aquela história do filho do Sérgio Figueiredo que, em menos de dois anos como empresário, já recebia um milhão de euros da Câmara Municipal de Lisboa presidida pelo amigo Medina.

    Tudo isto será certamente legal. Obviamente, veremos os papéis que precisamos e alguma página do Código Civil nos dirá que tudo aquilo está óptimo.

    Mas é um carrossel que nunca pára, não é?

    A História de Portugal na União Europeia é muito isto. Em vez de se usarem os fundos comunitários para criação de riqueza – o que, aliás, enfim, era a premissa inicial –, escolhemos andar mais de três décadas a enriquecer uma elite com as maiores fatias do bolo, e largamos, aqui e ali, umas migalhas para o povo. Passámos a ser gestores de subsídios com os partidos do centrão a revezarem-se na distribuição pelas respectivas clientelas.

    O português médio tem de passar o inferno burocrático para receber as esmolas anunciadas com pompa por António Costa em tempo de pandemia e/ou guerra.

    Já a um marido de uma ministra ou a um filho de um director de uma televisão, basta-lhes criar uma empresa no Simplex, e passados dois anos começa a chover fundos comunitários. E nem sequer é o primeiro marido de uma ministra ou o primeiro filho de um director. E não serão os últimos…

    close-up photo of assorted coins

    O povo embrulha-se em sangue para não perder casa, salários mínimos ou para cumprir critérios que lhes permitam um apoio de 125 euros. E fazem-no massacrados por uma carga fiscal absolutamente incompreensível, sobretudo se pensarmos nos serviços que acabam por não ser disponibilizados em troca dessas contribuições.

    Mas para quem está no sítio certo, no aparelho do poder e naquela minoria que vai, de facto, gerindo a riqueza que chega ao país, tudo isto são notícias de rodapé, vistas pelo canto do olho, enquanto se procura o saca-rolhas que abrirá uma reserva de 2009.

    E que por mais coincidências com aspecto de escândalo, nós vamos continuar a encolher os ombros, e continuar a pensar como é que o Ronaldo falha aquela “merda” com a baliza aberta…

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mentirosos pela Verdade 

    Mentirosos pela Verdade 


    Passei o fim-de-semana a construir um bunker e a actualizar as reservas de papel higiénico, pelo que consegui ler pouco daquilo que vocês escreveram. Mas ouvi muito, porque, para me armar em tecnológico, tenho sempre o Bluetooth ligado às orelhas.

    Se fosse fazer um ranking do que mais gostei, à la Catarina Furtado nos tempos do Top+ (we go way back!), diria que o mais tocado esta semana foram os Mentirosos pela Verdade.

    man in black shorts standing on beach shore during daytime

    Os Mentirosos pela Verdade são um clã – sem o sonho do GTI, atente-se – que patenteou, ali desde Abril de 2020, a Verdade Única e Universal (VUU).

    Eram as pessoas que, em Maio de 2020, nos juravam que a Suécia matava velhinhos para poupar nas pensões. Ou que eram criminosos por não fecharem escolas (com 0% de mortes por covid-19). Ou, ainda, que colocavam a Economia antes das pessoas.

    Entretanto, quando a factura chegou a Portugal, tanto em dívida como no número de mortos, lá acabaram por perceber as evidências e começaram a gritar com o Governo pela falta de apoios para debelar a crise.

    A mesma crise que aplaudiram e agradeceram, sentados nas varandas, durante o confinamento.

    Entretanto a Suécia saiu da pandemia de pé, e, de joelhos, os Mentirosos pela Verdade foram em busca de novo tema.

    aurora borealis over body of water during nighttime

    Chegada a guerra da Ucrânia e novo palco para verdades inquestionáveis. Desde logo, o novo conceito de solidariedade. Temos que ser parte activa. Se não formos, apoiamos Putin. Se questionarmos porque andámos 70 anos a ignorar outros invadidos, somos whataboutistas. Se não tivermos particular admiração por nenhuma das “democracias” no Donbass, somos cúmplices.

    Se apoiarmos refugiados ucranianos, devemos fazê-lo porque eles não escolheram a guerra. A russos não podemos, porque, lá está, eles não fizeram nada para a evitar.

    Afinal, o que é que lhes custava entrar no Kremlin e rebentar com aquilo tudo? O Tom Cruise conseguiu essa proeza, na Missão Impossível 4? Não deve ser assim tão difícil! Tão impossível!

    Se homens ucranianos choram na fronteira da Polónia, porque o Zelensky lhes fechou a fronteira, apoiamos o Zé. Se homens russos choram na fronteira da Finlândia, porque a Sanna lhes fechou a porta, apoiamos a Sanna.

    blue and brown hand painting

    Se a NATO envia armamento pelos seus estados-membro e a União Europeia suporta financeiramente, e, apenas graças a essa ajuda, a Ucrânia consegue resistir, logo surgem os Mentirosos pela Verdade a insistir que este é um conflito entre dois países.

    Quem não defende a invasão, mas também não quer ver a União Europeia envolvida, recordo, é um putinista. Lembro-me que no auge do whataboutismo diziam os analistas Mentirosos pela Verdade que os ucranianos estão mais perto, e que nada daquilo era comparável à Faixa de Gaza, lá tão longe onde o Criador (louro de olho azul) foi perder as botas entre as palhas em que dormia.

    A mesma verdade já não se aplica a russos – e compreende-se. São louros, mas estão geograficamente mais longe de Bruxelas. Especialmente aqueles da Sibéria que, ainda por cima, são meio achinesados. Estavam a pedi-las. Que fujam para Ulambatar e comecem uma tribo nómada.

    people having rally in the middle of road

    Hoje dizem-nos que o referendo no Donbass é ilegal. E acertam. É factual. É uma tentativa tosca e despudorada de anexação e violação do direito internacional.

    Em seguida falam os membros da NATO dizendo que se o Donbass for anexado, a reacção dos parceiros será rápida e poderosa.

    Dos parceiros que não participam, não financiam, não planeiam e não contribuem para a guerra… É isso, não é? Por favor, não se esqueçam desta parte.

    Não deve ser fácil, de facto, ver o Mundo só com duas cores. Mas, se for esse o caso, junta-te ao clã. A vida é muito mais fácil. As certezas quase eternas. Quase, aviso.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Alerta CM: chantagem do Império 

    Alerta CM: chantagem do Império 


    Enquanto vou conduzindo para a Suécia (sim, sou um emigrante old school que ainda não se converteu aos aviões), vou pensando nesta coisa dos bluffs políticos. 

    Não precisamos deles para vender jornais e fazer Alertas CM, mas depois exigimos que o bluff seja mesmo bluff, porque o contrário atrapalha-nos mais a vida. 

    Confusos? Também eu. Mas vamos aqui pensar em círculo como se estivéssemos numa reunião dos A.A. 

    closeup photo of dices

    Quando Putin disse que a NATO se estava a aproximar do quintal, ninguém quis saber, porque, obviamente, ele não teria coragem de largar uns mí­sseis. Afinal, a Rússia estava decrépita e refém de uma pequena economia… 

    Reparem que nesta discussão importa pouco o que é propaganda ou realidade. Até se dá de barato a argumentação utilizada, que todos percebemos ser apenas uma desculpa para um braço-de-ferro entre impérios. Ou vá, um I’m back à disputa do domínio mundial, versão Kremlin. 

    O que quero para já reter desta conversa é que ele, Putin, avisou que as negociações da Ucrânia com a NATO teriam consequências. E tiveram. Julgo que ao fim de sete meses, milhares de mortos, uma pazada de refugiados e várias taxas de juro depois, podemos todos concluir que aquele lunático não estava a brincar. 

    six fighter jets

    Agora, enquanto se prepara um referendo para anexação de partes do Donbass que, já todos vimos, fará parte da narrativa seguinte de “ataques em solo russo” para justificar o uso de armas nucleares, volta a história do bluff

    Ouvi ontem na CNN, RTP e SIC, diversos analistas com uma ideia comum: Putin não terá coragem de despejar uma bomba atómica. Até ouvi, de boca um pouco mais aberta, que, quando muito, faria umas explosões nucleares controladas. Umas cargas mais pequenas, pelo desprezo da descrição, ali umas coisinhas de carnaval sem aquele cheiro a bufa. 

    Não sou grande jogador de póquer e não arrisco análises sobre intensidades de bluffs, mas fico sempre espantado com a ligeireza com que se julgam as palavras de um gajo que já não tem nada a perder. Ou que, como provam estes sete meses, não é grande jogador de cartas e parece não ter grande vontade para recuar. 

    grayscale photo of person holding glass

    Se ele diz que a Rússia tem o maior arsenal nuclear do Mundo (é factual esta parte, espero não estar a dar uma grande novidade), e que o usará em caso de ataque em território nacional (que daqui a umas semanas terá uma parte do Donbass), porque insistimos nós na conversa do bluff? Ainda não morreu gente suficiente? 

    Putin disse no seu discurso à Nação que, caso o Ocidente continuasse a fornecer armas à Ucrânia, o conflito tenderia a escalar e passariam ao nível de armamento seguinte. A corja de velho encabeçada por Biden disse logo que, tudo bem, ele que venha que a NATO continuaria a fornecer a Ucrânia. O que se percebe.

    O cheiro a churrasco de uma ogiva em Kiev, em princí­pio, não atrapalha o aroma de um barbecue em Washington e, nesse sentido, Biden até vê com bons olhos pedrada da grossa no Leste europeu. Isso transformado em venda de armas, energia para a Europa ou, até, enfraquecimento do contrapoder russo, é Chopin para os ouvidos do Biden. Mas em piano, note-se, não violino como o Santana Lopes pensava existir…  

    yellow and black road sign

    Li uma crónica com um argumento que me pareceu também fazer sentido. Dizia que não podemos ceder à chantagem do nuclear porque, desde Fevereiro, sempre esteve em cima da mesa e, seguindo esse raciocínio, estarí­amos sujeitos a que qualquer potência nuclear invadisse territórios quando bem lhe apetecesse. Concordo, em absoluto. Agora, o Alerta CM aqui é que (rufem os tambores!) já é assim que o Mundo funciona. Estão a ver essa parte? 

    Quando os Estados Unidos decidem invadir o Afeganistão porque uns sauditas lhes rebentaram dois prédios, fazem-no porque… podem. Quem é que se vai meter em frente daquele arsenal e dizer: “olha­, tentem antes o diálogo!”. 

    Se os israelitas carregados de armas nucleares ocupam territórios há 70 anos é porque, lá está, têm poder bélico para isso.

    Se os kosovares arranjaram um paí­s podem agradecer a uma “força de defesa”, por acaso também nuclear, que bombardeou os sérvios (pela paz, eu sei!).

    people gathering on street during nighttime

    A guerra civil na Sí­ria terminou quando uma potência nuclear entrou no conflito e a outra, que apoiava os rebeldes, achou melhor recuar.

    A Líbia derrubou o regime quando um exército mais poderoso invadiu o território sem que ninguém lhe fizesse frente.

    O Tibete deixou de ter voto na matéria quando um dos maiores exércitos do Mundo achou que era tempo de anexar.

    Os curdos não conseguem definir fronteiras porque ninguém se atreve a confrontar um exército com o poderio do turco.

    Ou seja, em resumo, desde o império romano, passando pelo Alexandre o Grande, vikings, os mongóis no século XIII e a armada invencível espanhola, no século XXI ainda é a força que dita leis. 

    brown wooden bench on brown sand during daytime

    Espero continuar no domínio do banal e não estar a trazer novidades a ninguém. Portanto, quando se diz que não vamos ceder à chantagem do nuclear a minha resposta é, vamos. Vamos pois. Aliás, não temos feito outra coisa ao longo dos séculos. Manda quem a tem maior, neste caso ogiva. 

    Claro que me poderiam dizer: “ó Tiago, mas o Putin é um imperialista do pior, bem pior do que os outros a que já nos habituámos a obedecer e não podemos deixar passar; há que ficar na miséria e torrar tudo na Ucrânia”. Ora, vam’lá a ver: pessoalmente, o Putin mete-me tanto asco como qualquer parceiro europeu que lhe andou a apertar a mão (ou que ainda apertam dentro da União Europeia, seria engraçado discutirmos isso um dia). E as guerras criadas pelo imperialismo russo prejudicam-me tanto como as guerras financiadas ou criadas pelo império americano.

    As tangas que usam para as invasões são essencialmente as mesmas, embora o marketing americano seja melhor. Por exemplo, no Iraque, estivemos ali até à última para saber se apareciam as armas de destruição maciça ou não. Parecia o fim de uma novela na TVI e aquela incerteza de quem casa com quem. 

    Já o disse várias vezes que se tiver que abdicar da minha vida, pelo menos quero escolher a causa. E se o objectivo é empobrecer e comprometer o futuro de uma geração para libertar outros povos e mostrar solidariedade, então, se não se importam, eu gostaria de começar por quem sofre opressão não há sete meses, mas sim há 70 anos. 

    Querem os poderes mundiais continuar a combater uma guerra até ao último ucraniano, paga pelo endividamento dos europeus? Muito bem. Suspendam os pagamentos dos créditos bancários e metam as taxas de juro no… ia escrever aquela palavra com duas letras, a primeira um C e a última a quinta vogal do abecedário, mas isto é um jornal de respeito.

    Já nos basta a inflação e a perda de salários reais que, como qualquer economista vos dirá em 75 palavras e termos técnicos, corresponde ao empobrecimento geral das populações. 

    Portanto, se chegamos aqui praticamente de joelhos, sugeria que, quando outro maluco fala em bombas nucleares, façam o favor de não usar metáforas com jogos de casino como se isto fosse lá longe. 

    Não é. Nem longe e, provavelmente, nem bluff

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um debate nos ares por três nefelibatas professoras

    Um debate nos ares por três nefelibatas professoras


    Não sou grande companhia de viagem quando estou num avião. Encosto-me à janela, e tento dormir, para que o relógio avance sem eu dar por ele. Detesto andar de avião, mas faço-o com uma regularidade assinalável há uns bons 35 anos. Num mundo desenhado por mim, a ferrovia e as pontes atravessavam continentes. Mas adiante – não nos percamos nas minhas fobias.

    Entrei no avião que me traz para casa, aqui na pequena ilha de Santa Maria. Conhecemo-nos quase todos, percebe-se quando vem “gente de fora” só pelo recheio das filas. Fiz o meu número habitual, capuz na cabeça, um primo qualquer do Xanax na boca e uma musiquinha que me embalasse. Vejo o Cristo-Rei, depois a Linha de Cascais, e já está, mar a perder de vista para as próximas duas horas. O sol na janela vai-me aquecendo e começo a adormecer.

    low angle photo of airliner and buildings

    Um ruído ali perto vai-me incomodando. Aumento o volume da Garota de Ipanema, e foco-me no sono. Não funciona e olho para trás onde, a duas filas, três reformadas com colares de madre pérola discutem a guerra na Ucrânia.

    Aos poucos, as vozes das estimadas senhoras vão substituindo a de António Carlos Jobim. Um tom nasalado que ecoa por toda a cabine, e que não deixa ninguém indiferente.

    Não são idosas como a minha avó, entenda-se. Não são mulheres do campo. São daquelas que, como diria Maria Francisca, tinham empregos muito bons em escritórios. Para a minha avó qualquer pessoa que trabalhasse num sítio com janelas tinha-se dado bem na vida.

    Note-se que estava um dia de calor, húmido e quase tropical, mas elas não abdicaram dos fatos com saia e jaqueta, daquele tecido grosso e quente, enfeitado com um broche de jóias na lapela. Ainda são da geração que se veste, a preceito, para viajar.

    white airplane flying in the sky during daytime

    Pela propagação das ondas de som, eu apostei em professoras reformadas. Repararão, os caros leitores, que ao fim de umas décadas de profissão os professores, aqueles que entretanto não ficaram malucos, desenvolveram uma espécie de surdez que os leva a falar sempre aos berros. Ou, como diria o meu sogro quando a mulher, também professora, fala ao telefone: “para que usas o tablet quando podes só gritar e eles ouvem-te do lado de lá?”

    De modo que o estilo me era, de alguma forma, familiar.

    Nesta altura já tinha perdido a Elis Regina e até o Vinicius. Só ouvia as senhoras que, com alguma pompa, davam uma aula aos restantes 160 passageiros. Desisti da bossa nova e passei para a fila de trás, para ficar mais perto da fonte do saber. Foi nesta altura que percebi que ia ter tema para o PÁGINA UM.

    “Que horror aquele massacre em Izim ou Izum ou lá como se chama aquilo”, dizia a professora principal, a que falou durante as duas horas sem pausas para água.

    As duas assistentes concordaram, acenando com a cabeça e emitindo um síncrono “hum-hum”. E continuava na análise. “Onde é que já se viu matar gente assim? No meio do nada?”

    flying airliner plane during daytime

    E uma das assistentes tenta meter um paninho quente com um “bom… é uma guerra, já se sabe, há crimes todos os dias”.

    A professora-rainha não ficou contente com a tentativa de argumentação e contra-atacou: “Todos os dias? Mas tu achas que os ucranianos também matam e torturam como os russos? Não te lembras do que aconteceu quando o Napoleão tentou invadir a Rússia? Mataram aqueles franceses todos e fartaram-se de lhes roubar cavalos e comida?”

    Por esta altura, pensei que a estridente anciã tivesse visto, em directo, a batalha de Krasnoi, quiçá na CNN, tal era o à-vontade com que relatava as barbáries que os russos tinham infringido ao invasor francês.

    Percebi também que era um pouco indiferente a posição em que os russos estivessem, invasores do Donbass ou invadidos por Napoleão, o seu destino deveria ser a guilhotina. Sempre e em qualquer situação.

    “E agora é igual! Antes roubavam cavalos ao Napoleão, agora roubam máquinas de lavar ao Zelensky”, continuou a professora em análise profunda. “São uns desgraçados que nem sabem o que ali estão a fazer, o Putin não lhes diz nada… não ouviste o que disse o Milhazes ontem?”.

    white biplane

    Abriu a boca a professora mais calada, entretida até então com a sandocha de bolo lêvedo e a bolacha mulata, oferecidas pela SATA como amostra de produtos regionais. “Mas se o Milhazes diz que a informação não chega à Rússia, como é que ele sabe tanto? O homem não viveu lá 40 anos?”.

    A reitora começou então a perder o rumo da aula, e interrompeu: “Mas tu não vês que ele vinha regularmente a Lisboa e ia fazendo actualizações? Agora, imagina aqueles desgraçados lá no meio da Sibéria, que nunca viram um gira-discos, quando se apanham ali em Donetsk com tanto para roubar!”.

    A outra assistente que parecia querer dar mais luta disse: “bom… Donetsk também não seria propriamente Tóquio, não é que os ucranianos andassem a exportar tecnologia e tal. Também eram outros desgraçados sujeitos a governos corruptos e pouco democráticos. Enfim, uma miséria pegada!”

    “Então achas que por serem pobres também, e o governo ser corrupto, já podiam ser invadidos e mortos?”, disse a professora-chefe, já com o tom nasalado a rebentar pelas costuras e o piloto a ouvir parte da aula. “Não, não acho que devam ser invadidos, mortos ou sequer incomodados. Os ucranianos ou os russos. Acho que velhos decidem guerras e os novos morrem nelas”, tentou rematar uma das assistentes para voltar ao bolo lêvedo.

    gray hardside luggage

    “Ahhh… lá estás tu com as tuas conversas bonitas! Já não vais ao Avante desde 78, mas ainda repetes esses chavões! Tens que tomar partido! Quem invade nunca tem razão!”, lá ripostou a catedrática.

    Entrou então a apaziguadora na conversa e disse: “é nestas alturas que fico feliz por não vivermos num país corrupto, com imprensa livre, que não se mete em guerras ou aparece nos Panama Papers”. E voltou para a bolacha mulata, que molhou no chá de tília.

    Encerraram elas por ali o debate, com a certeza de a sua informação, aquela que lhes chegava, ser total, verdadeira, sem hipótese de contraditório.

    Acreditando que há bons e maus numa guerra, que impérios do bem são amigos e impérios do mal são opressores.

    Dizendo, a professora-chefe, que “não podíamos parar de ajudar até todos os russos estarem no chão”. Os tais russos bárbaros que também o eram quando Napoleão, e bem pelo que percebi, os tentou invadir. Não podemos baixar os braços e desistir. Nós, todos, os ocidentais que recebemos a informação completa e sabemos, ao minuto, os horrores da guerra vividos pelo lado bom.

    two man carrying backpacks during daytime

    Elas, sem renda de casa para pagar, sem juros da Lagarde, com a reforma garantida para os próximos 25 anos (diz o Costa) e com dinheiro suficiente para, em conjunto, visitarem as ilhas dos Açores, desembarcaram felizes e com a sensação de dever cumprido.

    O moral ficou em alta. Todos temos que ajudar, dê por onde der, custe a quem custar. Menos elas, claro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.