Etiqueta: Tiago Franco

  • Ó Jorge… ¿Por qué no te callas?

    Ó Jorge… ¿Por qué no te callas?


    Carlos Queiroz viu-se envolvido numa série de polémicas por causa da situação política no Irão. Primeiro, com jornalistas e as suas perguntas sobre o regime; e agora com Jurgen Klinsmann que, na BBC, disse que a vitória do Irão sobre o País de Gales tinha acontecido graças à pressão exercida sobre os árbitros.

    Devo confessar que não tenho grande impressão sobre o trabalho de Carlos Queiroz. Depois daquela final do Mundial de Juniores em 91 – disputada num Estádio da Luz repleto com 120 mil almas, entre as quais a minha, a gritar a plenos pulmões depois do penalti vencedor batido por Rui Costa –, não me lembro de nada relevante. Ou como lhe gritou Ronaldo, a partir da linha lateral no Mundial de 2010, depois de mais uma substituição desastrosa, “assim não dá, Carlos!”

    Carlos Queiroz

    Mas, nesta polémica, está ele carregado de razão. Se a cada conferência de imprensa os jogadores e treinadores do Irão têm de fazer uma análise política, militar e social – que em muito ultrapassa aquilo para que foram ao Qatar (jogar à bola, lembremo-nos) –, é justo que, como diz Queiroz, comecem a interrogar os selecionadores norte-americano e inglês sobre a retirada do Afeganistão e a colocação dos talibã no poder. Ou, acrescento eu, inquiram Tite sobre a desflorestação da Amazónia durante os quatro anos de Bolsonaro. Ou, porque não, perguntem ao francês que dirige a Arábia Saudita o que acha sobre os bombardeamentos no Iémen e o embargo ao país anfitrião. Olha, e já agora: que tal questionar o selecionador do Qatar sobre as condições de trabalho proporcionados aos migrantes asiáticos no país?

    Então temos ali tanto material bom para uma aula de Ciência Política e Cultura Geral e, aparentemente, ficamo-nos pelo regime iraniano para o Queiroz comentar, enquanto os restantes treinadores apenas têm de justificar o 4-4-2 com médios basculantes? É pena que assim seja. Podíamos, de facto, aprender muito com o futebol e as conferências de imprensa dos treinadores a comentar política.

    man in black suit jacket standing in front of people

    Até a FIFA tem alguma dificuldade em manter a cara nesta polémica. Em certo dia, diz a FIFA que o Mundial não é sítio para política, pedindo o fim das manifestações pelos direitos humanos ou pela defesa da comunidade LGBTQIA+. No dia seguinte, afinal, já se podem fazer declarações e decisões políticas, afastando a Rússia de qualquer competição. Não sei se algum dos jogadores russos enviou um rocket algures.

    Também já se vê que se pode discutir regimes se for o do Irão. Já não se pode discutir se for de um dos Estados do petróleo no Médio Oriente ou se for necessário retirar um invasor de território asiático e colocá-lo a jogar nas provas europeias da UEFA.

    Portanto, ser permitido misturar política com futebol depende do alvo e do dia da semana.

    Mas o Jurgen Klinsmann não se contentou com as suspeitas lançadas sobre a arbitragem e também fez comentários sobre a cultura iraniana, misturando-a com a sua forma de jogar. Assim uma espécie de racismo, que no caso alemão uma pessoa nem leva a mal, porque leu alguns livros de História. Klinsmann, ex-selecionador norte-americano, curiosamente o adversário com quem o Irão discutirá o apuramento, e actual funcionário da FIFA, faz o que pode pelo lado de fora. Coloca pressão numa equipa que já joga com um enorme peso nos ombros, desafiando o regime e sem qualquer culpa na situação política que se vive no seu país.

    Jurgen Klinsmann

    Klinsmann é por isso, um escroque. Para não lhe chamar algo que Alberto João Jardim designaria como sinónimo de bastardo.

    Queiroz, repito, não faz o meu tipo, mas, desta vez, está carregado de razão e espero que vença o próximo desafio. A um homem que um dia tirou o Paulo Torres para colocar o Pacheco, e dar-me, dessa forma, um dos melhores dias da minha vida, devo pelo menos a justa solidariedade.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma pausa no racismo

    Uma pausa no racismo


    Assistia ao Arábia Saudita vs. Polónia, um chatíssimo jogo, onde os polacos provaram que jogam muito pouco (ainda devem estar a tentar perceber como ganharam) e os sauditas, apesar dos bons princípios de jogo e vontade extra demonstrada, exibiram pouco acerto no momento de finalizar.

    Para me distrair, inventei um passatempo que consistia, essencialmente, em encontrar uma mulher nas bancadas repletas de apoiantes sauditas. Não passei do primeiro nível, e comecei então a pensar nos restantes jogos que tinha visto mas noutra perspectiva.

    A vitória da Suíça contra os Camarões foi com um golo de um camaronês. Não foi um autogolo: Breel Embolo é um ponta-de-lança suíço mas nascido em Yaoundé, que se situa a 4.800 quilómetros da helvética Berna.

    O empate dos Estados Unidos frente ao País de Gales saiu dos pés de um filho da Libéria. A vitória francesa frente a uma excelente Dinamarca, hoje e sempre, às costas de uma constelacão africana. A Holanda impôs-se ao Senegal com um golo de origem togolesa.

    Ou até o nosso Rafael Leão, criado no bairro da Jamaica, entre vários emigrantes africanos; foi ele que selou a vitória sobre o Gana.

    Numa altura em que por todo o lado se vão construindo muros, o futebol tem o poder de, por momentos, incluir toda a gente. Um prazo curto, bem sei, definido pela hipocrisia reinante.

    Ainda assim, por uns momentos, todos festejamos o mesmo. O Ventura comemora um golo de um miúdo do bairro da Jamaica, em vez de o mandar para a terra dele. Até aposto que comemorou os golos do cigano em 2016.

    A Le Pen passa a semana a gritar contra a vinda de magrebinos, mas depois, durante o Mundial, grita pelo Benzema ou pelo Zidane.

    O Trump andava a fazer um muro para impedir os mexicanos de aparecerem no Texas, mas se algum hispânico marcar um golo no mundial, em princípio, vai levantar os braços. Se souber que está a decorrer um Mundial de soccer, claro.

    O Lukaku disse numa entrevista que quando a Bélgica perdia e ele falhava um golo, a imprensa do dia seguinte referia-se a ele como o filho de congoleses. Quando acertava era o belga.

    O Zlatan Ibrahimovic queixava-se de algo parecido. Se corria tudo bem, era o melhor jogador sueco de sempre; quando partia qualquer coisa, era o temperamento dos Balcãs.

    No fundo, no fundo, o mundo da bola não é diferente da realidade que nos rodeia. Emigramos, mudamos de país, adoptamos outras culturas, deixamos gerações noutras paragens.

    Quem defende um Mundo cheio de divisões e povos puros, não suporta essa mistura, não aguenta gente diferente, línguas desconhecidas. Passam três anos e onze meses a gritar contra emigrantes. Depois chega o Mundial e durante um mês somos todos um. Ninguém quer saber de cores desde que a bola entre.

    Assim que se entrega a taça, e voltamos à vida do quotidiano, recomeça o racismo e a crítica a todos que chegam de algum lado na procura de uma vida melhor.

    Nesta Europa que escolhe os muros, confesso que me sabe bem este mês de inclusão. É falsa, é hipócrita mas vemos de facto sociedades de nações em funcionamento.

    Falta gente inteligente e educada, que perceba que pessoas não se dividem, misturam-se. E falando em gente educada, partiu hoje um cavalheiro, um desportista de eleição e um jogador que sempre admirei. Lamento o desaparecimento tão precoce do bibota Fernando Gomes. E também por isso, deixo aqui os meus sentimentos à família enlutada. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os 1000 euristas e os entreténs do Froes, do Milhazes e do Rui Santos

    Os 1000 euristas e os entreténs do Froes, do Milhazes e do Rui Santos


    Sou um defensor do sistema progressivo de impostos e da sua aplicação em benefício da população, com prioridade para os três pilares de qualquer sociedade civilizada: Educação, Saúde e Segurança Social.

    Nunca concordei com taxas fixas de contribuição por as considerar injustas, e também, por princípio, nunca defendi uma redução de impostos, porque significaria condenar a Escola Pública ou o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ou talvez ambos.

    Contudo, os últimos anos fizeram-me mudar um pouco esta visão, pelo menos em Portugal. No país para onde emigrei, a Suécia, esta teoria é aplicada com sucesso. Impostos progressivos, altos a partir dos 3.500 euros e sempre aplicados a favor dos contribuintes.  Educação universal grátis, desde a creche até às universidades. Saúde pública e gratuita, onde até o dentista está incluído (até aos 26 anos). Apoio social nas pensões, no desemprego e na paternidade. Para mim, isto é o ponto de partida, o mínimo, para que um contribuinte sinta que faz sentido pagar impostos. Nunca conheci, em 18 anos aqui, um trabalhador que não gostasse de pagar impostos na Escandinávia.

    Em Portugal, são anos, décadas, de Governos cuja receita para combater o défice é apenas uma: aumentar impostos. Pior do que isso, o retorno para os contribuintes é cada vez menor. Lembro-me de há 20 anos os créditos à habitação terem alguns benefícios em sede de IRS. Lembro-me de universidades sem propinas. Lembro-me de estradas sem portagens. Lembro-me de transportes públicos, combustíveis e casas com preços aceitáveis.

    Em três décadas, em Portugal, e especialmente nos grandes centros, atingiu-se o patamar europeu para os custos de vida, mas ficou-se pelo nível africano de rendimentos. Os salários não crescem, os impostos multiplicam-se, o Orçamento de Estado é cada vez mais para as clientelas, bancos e construtoras; e menos para quem paga impostos. É um sufoco. Quando penso na vida que os 1000 euristas fazem em Portugal – ou seja, a grande maioria –, fico com uma sensação de falta de ar, de angústia, de sobrevivência.

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    E por isso, pela primeira vez, sou obrigado a concordar com Carlos Guimarães Pinto, que na Assembleia da República exigiu uma baixa de impostos aos 1000 euristas. A expressão é dele, e eu acho-a feliz. A inflação trouxe um jackpot de impostos ao Governo português, e já tinha escrito aqui, no PÁGINA UM, que esse rio de dinheiro inesperado tinha de ser usado a favor da população.

    A minha proposta inicial tinha sido uma ajuda nos créditos à habitação, porque considero que será essa a maior despesa das famílias. Mas uma redução da carga fiscal retirada ao salário também seria uma boa medida, provavelmente melhor, porque deixaria mais dinheiro no bolso, hoje e sempre, permitindo algo que defendo, desde sempre, que é uma divisão mais justa da riqueza.

    Insisto, contudo, na ideia de que só concordo com esta implementação em Portugal porque, como se percebe ao fim de décadas, os impostos são cada vez menos revertidos a favor dos contribuintes.

    Num sítio onde o dinheiro fosse bem aplicado, eu seria totalmente contra uma redução fiscal. Mas, em Portugal, uma pessoa tem de se render e observar a realidade: se o Estado, enquanto guardião dos nossos impostos, não nos garante, sequer, Escola Pública e Saúde Pública de qualidade, então, bom, é melhor de facto que as pessoas fiquem com dinheiro no bolso para o aplicarem como bem entenderem.

    people raising hands with bokeh lights

    Claro que isto significa ainda pior Escola, ainda pior Saúde, ainda pior Segurança Social, mas, convenhamos, quantas décadas mais é que vamos andar a pagar bancos, clientelas, estradas e políticos corruptos com ajustes diretos a empresas de amigos? Sem Justiça que funcione em tempo útil, e com uma corrupção que consome todo o erário público, é preferível que cada 1000 eurista tenha, pelo menos, dinheiro para chegar ao fim do mês.

    O Estado português fica com cerca de 30% de um salário de 1.000 euros. Na Suécia, essa é a carga fiscal de um salário quatro vezes maior. Portanto…torna-se um pouco indefensável a carga fiscal que se aplica aos baixos salários portugueses. E ainda se percebe menos como é que perante o congelamento de carreiras na Função Pública e os aumentos muito abaixo da inflação no sector privado, a população continua impávida e serena, a reclamar das greves ou das lutas dos trabalhadores.

    Entretidos com as palestras do Froes sobre a covid-19, do Milhazes sobre o Donbass e agora do Rui Santos sobre o Qatar, vamos deixando para segundo plano o facto inquebrantável de estarmos cada vez mais pobres.

    Meus amigos, a Roménia em 2024 ultrapassará Portugal. Repito-vos: a Roménia. Pelo andar da governação e políticas de desenvolvimento, se o Burkina Faso entrar para a União Europeia, temo que em cinco anos nos apanhará.

    people in a city during daytime

    Não há ninguém aí que queira partir qualquer coisa?

    Hoje o tempo é de união, mas também de garantir que os impostos deixam de ir para o BES, para a Lusoponte, para os ajustes directos aos maridos das ministras, para os ajudantes de secretários de Estado com 21 anos, para os empresários amigos, para a família do autarca que quer fazer obras no largo da igreja, para as viagens de Falcon até ao Qatar. O tempo é mesmo de gritar, de ir para a rua, de começar a exigir algo mais em concreto. Ou os impostos baixam ou os salários sobem. Desse lado já não se vive, sobrevive-se. É essa a realidade.

    Por isto tudo, é tempo de lutar, e de exigir que as elites governantes, simplesmente, deixem de nos roubar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Anda campeão, dá-lhe, dá-lhe!

    Anda campeão, dá-lhe, dá-lhe!


    Eis a verdade! Fernando Santos surpreendeu e inovou, respondendo a um pedido irónico feito na minha crónica de ontem. Na conferência de imprensa disse, em tom descontraído, que o 11 era mais do que expectável. Não! Não! E não! Entrar com dois avançados e apenas um trinco – sendo que Ruben Neves habitualmente até joga na posição 8 –, mesmo contra uma das selecções mais fracas da competição, é um salto de gigante para o seleccionador nacional. E isto tem de ser dito.

    Ao contrário do Brasil, que sabe que tem a sua maior força no ataque e roda seis ou sete avançados durante o jogo, Fernando Santos aposta habitualmente em rodar seis ou sete médios para garantir que a bola não sai dali. Tite usa o que tem e arrisca-se a ganhar; Fernando Santos mostra medo do que tem e fica feliz a empatar.

    O Gana apresentou-se contra Portugal em versão Arouca. Com 11 homens à saída da área e um bloco tão baixo que foi difícil apanhar Diogo Costa na imagem durante os primeiros 45 minutos. Se é penoso ver este tipo de jogo nas ligas nacionais, num Campeonato do Mundo chega a ser deprimente. Valeu a festa nas bancadas.

    Portugal fez aquilo que sabe melhor: passar para o lado até adormecer o adversário, os espectadores, os árbitros e os camelos que estavam estacionados à saída do estádio. Não há vivalma que aguente tanta lentidão de processos e tão pouca procura pela baliza.

    Ronaldo teve as duas primeiras hipóteses e mostrou que continua a saltar muito, mas a acertar pouco. Félix esteve mais preocupado em cair do que lutar pela bola, e até ao golo, numa excelente oferta da defesa, não fez nada que justificasse a sua inclusão. Bernardo Silva e Bruno Fernandes pautaram, bem, o jogo da equipa. Otávio lutou e foi bastante útil no meio-campo.

    A defesa comprometeu, e Danilo, em particular, tremeu desde o primeiro minuto. Cancelo nunca arriscou no um para um e acabou sempre a ir à linha para voltar a passar para trás ou para o centro.

    Fernando Santos voltou a respirar aos 56 minutos, quando, depois dos ganeses passarem o meio-campo duas vezes, William Carvalho entrou. Com dois trincos e o resultado em 0-0, o nosso selecionador voltava à sua zona de conforto.

    Rafael Leão entrou a 13 minutos do fim, numa altura em que o jogo estava 1-1. Portugal marcou um minuto depois, por João Félix, e novamente, três minutos volvidos pelo próprio Rafael Leão, que, antes de rematar, já sorria adivinhando onde acabaria aquela bola.

    Entretanto, João Cancelo optou por dar mais alguma emoção à partida, oferecendo um segundo golo à selecção ganesa, e já nos descontos, Diogo Costa, fez o possível para entrar nas epic failures do Youtube.

    Enfim, jogamos pouco. Jogamos muito, muito pouco. Pela frente tivemos uma equipa que procurou o empate desde o primeiro minuto e que será, provavelmente, o adversário mais dócil deste grupo. Para além da vitória e do salto do Ronaldo com o Messi a ver, o grande destaque da partida de ontem acabou mesmo por ser os comentários do Paulo Futre. “Anda campeão!”, “força, força, vai para cima!”, “vamos, menino, vamos!” – esta é a banda sonora que todos queremos ouvir em momentos íntimos da nossa vida. Futre tocou-a num Mundial, em horário nobre. É o maior!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Hoje: sem desculpas

    Hoje: sem desculpas


    Passei a manhã toda a ouvir: “às 16 horas, Portugal entra em acção”. Permitam-me discordar.

    Portugal entra em acção todos os dias, entre as 8 e as 9 da manhã, quando cinco milhões de pessoas trocam 8 horas do seu dia por menos do que 900 euros líquidos ao fim do mês. Ou quando um batalhão de professores de português, espalhados pela diáspora, picam o ponto em cada manhã. Ou quando centenas de enfermeiros portugueses entram ao serviço, todos os dias, em hospitais ingleses.

    Ou até, aqui na minha cidade de Gotemburgo, quando largas dezenas de engenheiros, vindos de todas as partes do território nacional fazem mais uma linha de código para desenvolver tecnologia de ponta. São os milhões que trabalham desse lado e os milhões espalhados pelo Mundo que entram em campo, cada dia, para dignificar o estatuto de um povo.

    Mais logo, às 16 horas, em verdade, vão entrar em campo um conjunto de milionários, liderados por outro milionário que, para além de incompetente, gosta pouco de contribuir para o Estado social, já que pagar impostos não parece ser com ele. O futebol move mundos e paixões, mas, aqui e ali, convém não perdermos de vista quem nos realmente representa.

    O meu filho, que passou o dia a gozar com o amigo argentino (acho que desde os 5 anos que discutem quem é o melhor entre Messi e Ronaldo), dizia-me “agora espero que o Fernando Santos não faça asneira”.

    Eu disse-lhe que, com todo o respeito pela selecção do Gana, se uma equipa como a portuguesa não conseguir ganhar à sexagésima primeira classificada do ranking mundial, então é melhor pararem de gastar dinheiro dos impostos e regressarem, sem muito barulho, às mansões de onde saíram.

    Lembrei-me da entrada em competição da selecção de 2002, que também tinha uma geração de ouro no auge da forma, vindos de um europeu magnífico. O tal onde, 20 anos depois, já podemos dizer claramente que o Abel Xavier meteu a mão na bola e ofereceu um penalti a esse rapaz, de bons pés, chamado Zidane.

    Nesse mundial de má memória, a selecção estreou-se com uma derrota contra os Estados Unidos, por 3-2. Um país que até ao presente dia ainda não sabe o nome da modalidade e acha que futebol é uma coisa que se joga com um melão, capacetes e almofadas nos ombros.

    Lembro-me de, no calor da derrota, alguns jogadores dizerem que entraram nervosos pela espera de vários dias. Tinha sido uma das últimas equipas a entrar em campo. Ora, é exactamente a situação da nossa equipa hoje. Uma das últimas a entrar em competição e a ver selecções mais fortes como Argentina, Alemanha, Bélgica, Croácia e até Holanda, em sérias dificuldades frente a adversários mais fracos.

    Quero só dizer que, se a coisa correr mal, não usem essa desculpa. Já tem 20 anos e não envelheceu bem.

    Como qualquer português que gosta de futebol, passei o dia a imaginar o 11 de Fernando Santos. Arrisco o seguinte:

    Diogo Costa, Cancelo, Pepe, Ruben Dias e Nuno Mendes na defesa, Um meio-campo de “segura até não dar mais”, composto por William Carvalho, Ruben Neves e Otávio, com Bernardo Silva e Bruno Fernandes mais soltos a tentarem meter a bola em Ronaldo, o único com apetência no 11 para chegar a um cruzamento, numa equipa que o mais parecido que tem com extremos são os defesas laterais.

    Depois, Fernando Santos dirá a Ruben Neves para evitar remates de longa distância, como aqueles que faz na Premier League, não vá aquilo dar em golo.

    Félix, Rafael Leão, Gonçalo Ramos e todas as opções que existem para tornar esta selecção numa trituradora de ataque, ficarão guardados para queimar tempo aos 83 minutos, quando Portugal estiver a ganhar 1-0, ou para os 60 minutos, caso Portugal esteja a perder por 1-0.

    No meu íntimo, tenho a secreta esperança de, sabendo que esta é a sua última competição à frente da equipa lusa, o nosso Fernando decida arriscar e não ficar na História como o treinador mais medroso que orientou, provavelmente, a melhor e mais talentosa geração de jogadores portugueses de sempre.

    Se ele entrar com Rafael Leão, Ronaldo e Félix na frente, deixando o meio-campo entregue a Bernardo Silva, Bruno Fernandes (ou Otávio) e apenas um trinco, retiro tudo o que escrevi e deixo aqui umas loas amanhã ao nosso engenheiro, que não gosta de impostos.

    Certo, certo, é que, mesmo que a selecção nacional entre em campo com Diogo Costa, Ronaldo e nove trincos, ainda assim, terá a obrigação de vencer a equipa do Gana.

    Diria mais: num grupo com Gana, Uruguai e Coreia do Sul, tudo o que não seja o primeiro lugar, é falhar.

    Já vai sendo altura de cumprirem, no campo, o estatuto que carregam.

    Sem desculpas. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz

    No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz


    Ao quarto de dia de competição, e no momento em que escrevo, três selecções confirmaram credenciais: Espanha, Inglaterra e França. É certo que nenhum deles defrontou adversários com grandes créditos, mas, ao contrário de Argentina e Alemanha, que também defrontaram equipas teoricamente mais fracas, não deixaram qualquer dúvida sobre quem seria o vencedor.

    A equipa inglesa parece prometer algo mais do que o habitual, dispondo uma geração que foi finalista no último Europeu e acabou o Mundial de 2018 em quarto lugar. Inglaterra é, para mim, um mistério constante nestas competições. Pensar-se-ia que, para quem inventou este jogo, deveria ver o sucesso bater-lhe mais vezes à porta. Mas não. Mais de um século depois, tudo se resume a um Mundial bem “caseirinho”, o tal de 66, e sucessivos falhanços fora dessa bolha.

    Durante muitos anos, as selecções inglesas eram um reflexo do típico jogador inglês: pontapé para a frente e luta pelo ar. Fossem eles do Cazaquistão, e dir-se-ia que era chutão para o ar – mas como em Inglaterra, já se sabe, tudo se faz com algum chá, o estilo era definido por ser um futebol mais “vertical” ou “directo”, como dizia o saudoso Gabriel Alves.

    No fim do século XX – veja-se o Mundial de 98, em França –, a selecção inglesa começou a aparecer com jogadores que não castigavam tanto a bola: Beckham, Ince, Scholes, Owen, McManaman, Fowler, a que se juntou a enchente de dinheiro que desabou na Premier League, fez com que a competição interna inglesa começasse a atrair os melhores jogadores e treinadores do Mundo.

    Há uma clara evolução no jogador inglês, também por essa explosão da Premier League, e hoje, em vez do enfadonho “jogo vertical”, Inglaterra apresenta intérpretes capazes de segurar, rodar, driblar. Aproximou-se dos princípios de jogo que apenas selecções com jogadores mais tecnicistas tinham.

    Hoje, liderados por Harry Kane e com Mount, Foden, Sterling, Saka, Rashford, Alexander-Arnold, Grealish, entre outros, já é outra música. As últimas duas competições mostraram que têm qualidade. Resta saber se conseguirão confirmar os bons indicadores neste Mundial… e mostrarem-nos como é que um país inventa um jogo para apenas o compreender 100 anos depois.

    Entretanto, neste grupo E, e depois da surpresa oferecida pelo Japão – vencendo a Alemanha por 2-1 –, teremos uma segunda jornada explosiva, onde os alemães serão obrigados a vencer a Espanha de Luís Enrique, que joga naquele irritante tiki-taka que já ninguém suporta, mas poucos conseguem contrariar. Num Mundial onde tantos jogadores emblemáticos se despedirão, Manuel Neuer corre o risco de ir bem mais cedo para casa.

    Nestas competições que centram agora a atenção do Mundo, e fazem com que tudo o resto pareça parar (deixei de ouvir falar na Ucrânia), há uma autêntica legião de jornalistas, analistas e ex-jogadores que vão comentando. E noto, por vezes, nos painéis portugueses uma certa arrogância no tratamento aos intérpretes.

    Vejo assim jogadores que tiveram carreiras pouco mais do que medíocres a falarem de quem está entre a elite, e num Mundial, como se soubessem sequer o que aquilo é. E pior: ouço jornalistas a falarem de internacionais pelos seus países com um desprezo que me envergonha.

    Assim, enquanto Espanha triturava a Costa Rica (7-0), via eu, na Sport TV, o Miguel Prates a ir ao Olimpo de cada vez que Busquets ou Gavi tocavam na bola.

    Já quando esta chegava a Azpilicueta, o nosso Miguel dizia: “pois, com Azpilicueta tem de ser mais feijão com arroz” – que é uma forma cool dos comentadores actuais, quando não usam a palavra da moda “diferenciado”, se referirem a um jogador de quem se espera apenas bola no pé, passe simples, recebe e toca. Nada de inventar, porque pode partir um tornozelo.

    Ora… eu acho que é preciso ter mesmo uma falta de noção para estar sentado, num estúdio de televisão, a dizer que outro homem, que por acaso está no 11 de uma selecção como a espanhola, e que há 10 anos é titular do Chelsea (não é do Portimonense), e que ganhou todos os títulos nacionais e internacionais de clubes, é um gajo de “feijão com arroz”.

    A jogar no sofá e a mandar postas de como seria se nos levantássemos, não há pai para nós. Somos “diferenciados” nessa arte. E “verticais”, mas rasteirinhos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O bromance e os outros, incluindo o Engenheiro

    O bromance e os outros, incluindo o Engenheiro


    Há uma história ligeiramente hollywoodesca nos bastidores deste Mundial com guião de sonho, escrito para que um dos dois maiores da História da Ludopédia, Cristiano Ronaldo ou Messi, se despeça da elite com o título que lhe falta. O drama está garantido, porque, enfim, não há possibilidade de ex aequo, pelo que, na última oportunidade que a idade lhes proporciona, somente um poderá ser coroado.

    Para os fãs que se dividem pelos dois ídolos – tal como Mundo se dividia em dois blocos na Guerra Fria –, as restantes selecções estão lá para fazer número. Ronaldo e Messi estão ali, e estão ali para encerrar definitivamente o duelo, e assim determinar quem será o number one da História.

    Reconheço ser o bromance mais interessante deste Mundial. E, no plano teórico, Ronaldo parte na frente. Explico porquê.

    Messi é, neste momento, um jogador que ainda faz a diferença em campo. Vemo-lo na selecção e esta época no Paris Saint-Germain. Com Neymar e Mbappé a acompanhá-lo na frente de ataque, tem sido ainda assim Messi a brilhar mais. Na Liga dos Campeões, no Estádio da Luz, foi Messi que marcou o ritmo e a atirou a contar.

    Quanto a Ronaldo, continua a ser o melhor avançado do Mundo, dentro da área, mas já pouco acrescenta à equipa. Mesmo na selecção, onde joga o tempo que quer, tem atrapalhado mais do que ajudado nos últimos meses. No seu clube, o Manchester United, nem vale a pena falar, porque esta época pouco ou nada tem jogado. Independentemente das incompreensíveis decisões de Ten Haag, Ronaldo já não é o que era. É um facto.

    Ainda assim, devo dizer que pertenço ao grupo de portugueses que acha que Ronaldo tem o direito de exigir o seu lugar, mesmo quando o corpo já não ajuda. Eu lembro-me o que eram as presenças em Mundiais e em Europeus antes de Ronaldo e depois de Ronaldo. A memória não pode ser curta ao primeiro trambolhão.

    Fosse o futebol um jogo individual e não teria dúvida que este seria o Mundial de Messi. Contudo, a equipa que estás atrás de Ronaldo é incomparavelmente superior à da Argentina. Ou seja, no papel, se Ronaldo “encostar” nos passes que os outros 10 lhe vão fazer, tem sérias hipóteses de chegar ao ouro.

    Há anos que digo isto e mantenho essa opinião: Portugal tem uma das melhores equipas do mundo. Entre o Euro 2016 e o Mundial 2018, entraram nomes como Ruben Dias, Raphael Guerreiro, Renato Sanches, Bernardo Silva, Cancelo, Gonçalo Guedes, Diogo Jota ou Bruno Fernandes. A que se juntaram mais tarde João Félix, Nuno Mendes, Vitinha, Palhinha, Diogo Costa, Dalot e Rafael Leão. Ficaram veteranos como Ronaldo, Pepe, William ou Danilo.

    No papel, posição por posição, só encontro uma selecção mais recheada – a França – e outras de igual nível – a Bélgica e a Alemanha. Todas as outras são, na minha opinião, piores equipas do que esta geração de jogadores ao serviço de Fernando Santos.

    E é aqui, no treinador, que as outras selecções dificilmente ficariam pior servidas do que a nossa. É este o maior risco para a história de sonho de Ronaldo.

    Portugal tem uma equipa verdadeiramente de luxo, que deveria jogar sempre, mas sempre, a massacrar qualquer adversário, excepcão feita à Franca, Alemanha, Brasil e Bélgica. Contra qualquer outra, a palavra de ordem teria de ser apenas uma: atacar.

    Mas com Fernando Santos, isso não é possível. O seleccionador nacional joga para o empate, para a defesa a todo o custo, para o pontinho ou o milagre do contra-ataque. Entre rezas à santinha e uma fé desmedida no losango defensivo do meio-campo, que o acompanha desde os tempos do Estoril, a capacidade de Fernando Santos em aproveitar a qualidade dos jogadores é quase nula.

    Por isso, e por mais fraco que sejam os grupos de qualificação, consegue sempre ir aos playoffs, onde a sorte o acompanha – a Itália que o diga, que até lhe fez o favor de perder com a Macedónia.

    Foi assim no Euro 2016, onde um golo tardio da Islândia nos colocou na fase seguinte, num grupo absolutamente miserável, onde contra Áustria, Islândia e Hungria, Fernando Santos não conseguiu ganhar um jogo.

    Foi assim na qualificação para este Mundial onde, a ganhar em casa contra a Sérvia, começou a defender aos 50 minutos, acabando por perder no último minuto, seguindo para um playoff que poderia ter corrido mal.

    Foi assim na Liga das Nações contra uma Espanha débil, onde um empate bastaria e onde desistiu de atacar ao fim de 45 minutos.

    Quando vi Diogo Costa a defender quatro penalties seguidos na Liga dos Campeões só imaginei a felicidade de Fernando Santos, a fazer contas aos empates que poderia ter no Catar. Se pudesse, Santos jogaria com Diogo Costa, Ronaldo, quatro centrais e cinco trincos.

    Dito tudo isto, e ainda assim, e com uma equipa tão boa, e mesmo com Fernando Santos a atrapalhar, acho que Ronaldo parte ligeiramente à frente de Messi, nesta corrida a dois.

    E a Arábia Saudita – conhecida ditadura do bem, que já decretou um feriado para o dia de amanhã – parece querer dar-me alguma razão.

    Agora é pedir aos nossos rapazes que ouçam bem, mesmo bem, o que o Engenheiro lhes diz. E depois, façam exactamente o contrário.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Isto não é o Record. E a moral é para os pobres, também aviso já!

    Isto não é o Record. E a moral é para os pobres, também aviso já!


    O diretor deste jornal acha que não tem sarna suficiente para se coçar e resolveu pedir-me para fazer uma crónica diária sobre o Mundial. Até começar a escrever estas linhas, não sabia de que forma deveria abordar um evento futebolístico num jornal que não pretende rivalizar com o Record (e, ainda bem, digo eu) e uma competição onde, até ver, a bola é mesmo o que menos interessa.

    Ninguém percebe muito bem por que raio se joga um Campeonato do Mundo num país que não respeita os direitos humanos e onde a democracia é um elemento tão estranho como a própria bola.

    Felizmente, eu tenho a resposta: porque eles pagaram para isso; e a FIFA não é – roubando as palavras de Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Banco – uma instituição de caridade.

    E, meu caros, sejamos claros: se os qataris compram o Paris Saint-Germain, os emiradenses compram o Manchester City, os sauditas compram o Newcastle e os russos compram o Chelsea, e todos, em tempos diferentes, concorrem em competições da FIFA e da UEFA em desigualdade de circunstâncias com a concorrência, devido à sua capacidade financeira, porque deveria o Mundial ser diferente? O dinheiro tudo compra, a moral é para os pobres.

    Como dizia Lobo Xavier, na SIC Notícias: “não há prova de que tenham morrido 6.500 trabalhadores na construção dos estádios”. Podem ter sido só 6499, acrescentaria eu. Ainda vou investigar se ele também tem umas estufas em Odemira.

    Aproveitando a justa indignação com o evento, sugeria assim que não guardássemos a nossa revolta apenas para o desporto-rei. Tentemos contribuir para o fim da barbárie em intervalos menores do que quatro anos.

    person playing soccer

    E, pensando em países que não respeitam os direitos humanos, ou que não são grandes fãs de democracias, diria que podíamos:

     a) não comprar t-shirts da Adidas feitas no Bangladesh;

     b) não comprar bolas da Nike cozidas por miúdos no Paquistão;

     c) não comprar iPhones porque são feitos na China;

     d) não andar de carro a combustão porque o petróleo veio provavelmente de uma ditadura;

     e) não andar de carro eléctrico porque o lítio foi sacado a uma região pobre deixando os malefícios para os locais; 

     f) não ir de lua-de-mel para a Tailândia;

     g) não comprar copos no IKEA feitos na Turquia;

     h) tomar banho de água fria porque o gás português vem da Argélia;

     i) deixar as especiarias indianas em paz.

    Portanto, é só dar cabo da lista de Natal, mudar hábitos alimentares, voltar a andar de metro e regressar à Moviflor, e a coisa faz-se.

    Depois do dia 18 de Dezembro, o tal em que o nosso Fernando nos prometeu que receberíamos a selecção em festa, há que manter a coerência.

    Feitas as apresentações, falemos de bola então… Mas amanhã…

    Ontem, subiu ao relvado o Qatar e, hoje, no segundo jogo do Mundial, digno de nota só a selecção do Irão a ser trucidada por uma rajada capilar britânica.

    Até ver, não houve grande história para contar, e o único facto de relevo parece ser uma fotografia de um jogo de xadrez entre Messi e Cristiano Ronaldo.

    Que abertura de Mundial teria sido. Mas veio o Morgan, e também foi bom.

    Até amanhã.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha

    Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha


    As atenções no conflito ucraniano passam agora para a mesa das negociações e, até nesta temática, conseguimos formar barricadas de opinião. Discute-se sobre quem está de boa-fé ou a quem um acordo de paz não interessa.

    Por vezes, fico com a sensação de que nos embrenhamos tanto num tópico, que acabamos por perder o contacto com a realidade e, sem querer, assumo, estamos a debater a paz como quem troca o Rossio pela Avenida da Liberdade no Monopólio.

    red and yellow abstract painting

    Nesse caso, do Rossio, todos sabem que é mau negócio, mas no caso das conversações de paz, poderíamos baixar o nível de arrogância e tentar vestir a pele de quem está no terreno. 

    Dos vários discursos que ouvi, o prémio “pimenta no cu dos outros é refresco” vai para o major Isidro de Morais Pereira, que anda há seis meses a vender a receita da NATO para conflitos de longa duração. Dizia ele que, neste momento, um acordo de paz não faria qualquer sentido para a Ucrânia, porque, segundo a doutrina dos conflitos, o tempo seria desfavorável aos russos e a iniciativa estava do lado ucraniano. Traduzindo, queria ele dizer que o poder negocial da Ucrânia aumentaria com o tempo e o inverso aconteceria com os russos.  

    Esta é a posição de quem analisa o conflito a 5.000 quilómetros de distância e que, quando chega a casa, vê paredes inteiras, aquecimento e a família dentro de portas. Tenho alguma dificuldade em conceber que quem está na linha da frente, a morrer todos os dias (seja de que lado for), pense lá no seu íntimo que é melhor aguentar mais um mês ou dois a fugir de bombas para o Zelensky ou o Putin terem mais cartas para meter na mesa.

    yellow and red round plastic

    É um pouco aquele pensamento das elites que se dignam a pensar e escolher como deve a plebe morrer. Aguentem, vão morrendo mais uns pais de família em nome do melhor timing de negociação. E não se preocupem porque, se faltar dinheiro, há mais uns milhões de europeus para esmifrar. Para tudo, menos o Inverno frio, as elites parecem ter uma solução. Sempre, obviamente, à custa do couro alheio.

    Pessoalmente, acho que, não se evitando a guerra, um acordo de paz deve ser o objectivo desde o primeiro dia. Mas aceito que deve ser um pensamento utópico. Há que ir matando uns quantos pobres por dia até que os milionários que nos dirigem decidam que a altura de falar chegou. Assim como assim, também temos pobres para dar e vender, estamos só a escoar produto.

    Zelensky apresentou uma lista de exigências para se sentar à mesa que é uma espécie de máquina do tempo para um dia qualquer de dezembro de 2013. Russos fora do país, territórios devolvidos, fim dos ataques, reparações e mudança de regime [ou pelo menos outro a decidir que não Putin].

    Para muitos, esta é uma lista realista e justa porque, lá está, a Ucrânia foi invadida. Concordo com esse argumento, o de voltar tudo ao que era, mas isso transformar-me-ia num negacionista da guerra. Já me bastou a experiência com os confinamentos…

    red white blue and yellow round textile

    Tendo existido a invasão, e tendo a Ucrânia perdido territórios, a realidade é essa, pelo que, chegar com uma lista exigências ao nível de “vamos fingir que não aconteceu nada”, é o mesmo que dizer que não se quer negociar.

    Se a Rússia aceitasse as exigências do Zelensky para se sentarem… iam discutir o quê? Se o pagamento seria feito em rublos ou dólares? É que não haveria muito mais para discutir.

    E repito: justo seria a total retirada russa sem perdas de território para a Ucrânia, mas, normalmente, não é esse o cenário depois de uma invasão de uma potência mais forte. E, numa guerra, vence o mais forte, não o mais justo.

    Bem sei que, neste momento, aplicamos um filtro histórico para condenar o invasor, enquanto nos 70 anos anteriores não nos preocupámos muito com o tema, quando o invasor tinha as nossas cores, mas é assim que, normalmente, estas coisas acabam. Regra geral, com o nosso consentimento.

    Portanto, nesta luta de barricadas pela moral adquirida em 2022, eu pergunto, de forma pragmática: qual é a solução?

    blue and yellow striped country flag

    Ainda há quem acredite nas conversas da Ursula do “as long as it takes” (leve o tempo que levar)? Os alemães já avisaram que o stock de armas está em baixo, os italianos já não têm nada para dar, os americanos também já começam a apertar o bolso.

    Os indianos, chineses e turcos fazem negócios com os russos, sendo que os turcos jogam nas duas frentes. Os bálticos, sempre afoitos na condenação aos russos, como se viu no “míssil russo que caiu a Polónia”, já vão nos dois dígitos de inflação.

    Portugal envia equipamento que não funciona, os iranianos produzem armas para os russos, a Escandinávia está com um custo de vida descontrolado, o Sul da Europa está cada vez mais pobre e, na Alemanha, vão-se fazendo negócios à margem da estratégia europeia para garantir empregos e menos convulsão social.

    Neste cenário de catástrofe, repito a questão: qual é a solução? Até quando podemos pagar esta guerra que não nos diz respeito? E, por favor, não me venham falar em democracias, que é para não ter que ir buscar a posição da Rússia ou da Ucrânia no ranking das democracias até ao dia 23 de Fevereiro de 2022. 

    walking person holding blue and brown striped banner

    Quantas vezes temos que ver o aumento da prestação da casa, perder empregos ou ficar sem comida na mesa? Quantos russos ou ucranianos pobres é que têm que morrer mais na frente da batalha? Digam-me, qual é a solução que não esteja presa a um acordo de paz?

    Eu vejo três hipóteses:

    a) chegam a acordo agora e a Ucrânia perde territórios;

    b) chegam a acordo mais tarde e a Ucrânia perde territórios, mais soldados morrem e mais europeus empobrecem;

    c) a NATO entra oficialmente no conflito, havendo a hipótese de os ucranianos recuperarem o terreno todo. Morrem muitos mais soldados, empobrecem muitos mais europeus. Estamos na III Grande Guerra.

    Perdoar-me-ão os moralistas que acordaram para a História das Nações em 2022, mas, visto daqui, a escolha é tremendamente simples. Para hipocrisia, já me chegaram os 20 anos em que a Europa apertou a mão ao Putin e com ele fez todo o tipo de negócios, sem querer saber de democracias ou teorias imperialistas.

    São, somos, cúmplices do que se está agora a passar. Já que não o soubemos evitar, tenhamos pelo menos a capacidade de lhe colocar um fim.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Salivando por uns mísseis russos caindo na Polónia

    Salivando por uns mísseis russos caindo na Polónia


    Desta vez, o rodapé de breaking news fazia mesmo sentido: tinham caído mísseis russos em território polaco e, por isso, na CNN Portugal reunia-se um painel de sete ou oito comentadores, desde generais da NATO a comandantes de coisas, a especialistas de comunicação. Até a Helena Ferro Gouveia lá estava como especialista em comentários de Helena Ferro Gouveia… Percebi logo, de imediato mesmo, que aquilo era uma breaking news mesmo de break.

    Ainda tentava perceber onde ficava Przewodów, uma vila no leste da Polónia, e já na CNN Portugal se debitavam todas as teorias. Aliás, para ser sincero, não eram assim tantas teorias, era apenas uma: os russos atacaram um país da NATO.

    Depois, mostravam prudência, eram cautelosos com as palavras, tentavam arranjar justificação, mas, em momento algum, se ouviu que o envolvimento da NATO no conflito traria essencialmente vantagem à Ucrânia.

    O comandante João Fonseca Ribeiro (SEDES) ainda disse que, dada a distância de Lviv à fronteira, seria pouco provável que uma anti-aérea lá chegasse. Usou até, para efeito de comparação, um ataque a Lisboa que fosse defendido na Nazaré.

    Um dos especialistas em comunicação dizia, acrescentando ao porquê dos russos atacarem a Polónia, que eles precisavam de mostrar a sua força depois da perda de Kherson. O general da NATO, Isidro Morais Pereira, teorizava que este era o modo habitual de actuação das forças russas. A cada perda no terreno, retaliavam indiscriminadamente. Portanto, a Polónia era consequência da humilhação em Kherson.

    No fundo, todos culpavam os russos do ataque e procuravam uma justificação para o sucedido que encaixasse nesta narrativa.

    Por esta altura, já eu tinha localizado Przewodów no mapa, e mantinha a estupefacção por ninguém questionar o óbvio: qual a vantagem russa numa intervenção da NATO neste conflito? Pois… nenhuma. Então, porque atacariam os russos um território protegido pelo artigo quinto? Não parecia fazer qualquer sentido.

    Escrevi então, na noite de 15 de Novembro, o seguinte:

    ———“Enquanto ouço uma verdadeira constelação, pergunto-me, porque iriam os russos disparar mísseis para um território da NATO, no final de uma guerra que já tinham no bolso? (Segundo o amigo Joe)

    Parece algo estupidamente surreal e um gigante tiro no pé do Kremlin, que faria desta forma um enorme favor à Ucrânia – e um péssimo serviço ao resto da Europa.

    Ainda assim, sem dizerem muito, porque nada sabem nesta altura, os comentadores de serviço admitem apenas uma hipótese. Surprise, surprise.

    Há até alguma excitação. Pode estar aí finalmente a III GG”——–

    Era essencialmente o que me parecia ouvir. Um certo salivar com a possibilidade de um conflito global e muito pouca lógica no raciocínio.

    Escrevi no PÁGINA UM, no artigo anterior, o que me pareceu que tinha acontecido em Kherson, e por isso não me vou repetir. Mas admitindo essa tese, que Kherson foi uma moeda de troca para que os ucranianos se sentassem à mesa, já pressionados pelo acordo com os Estados Unidos, que vantagem teriam os russos nesta escalada?

    yellow and blue wooden fence

    As negociações de paz trariam certamente territórios para a Rússia. A entrada da NATO no conflito seria provavelmente a única forma da Ucrânia não perder partes do Donbass e a Crimeia. Portanto, a situação criada era totalmente desfavorável aos intentos dos russos. Não fazia sentido. Era totalmente contraproducente.

    Faço aqui uma pausa para explicar algo de que venho sendo criticado frequentemente. O facto de eu achar estranho um ataque russo num país da Aliança, não quer dizer que defenda a invasão de Putin, não quer dizer que eu queira que um regime destes tenha ganhos com esta guerra e muito menos quer dizer que eu menospreze mortos, venham de onde vierem.

    Nunca, jamais, em momento algum o meu lado será o do invasor, venha ele de Moscovo, Telavive ou Washington.

    Agora, não me parece é fazer muito sentido construir análises baseadas naquilo que gostaríamos que acontecesse. Há meses escrevi que as sanções económicas trariam problemas à Europa e que essa não seria a forma certa da União Europeia se posicionar. Ontem, no encontro do G20, um representante inglês disse que a culpa da inflação na Zona Euro era da Rússia. Afinal, em que ficamos?

    gray concrete statue of man

    Não eram as nossas sanções que iam destruir a Economia deles? Portanto, uma coisa é querer derrotar o invasor, o que em princípio todos queremos; outra coisa é concordar no caminho para lá chegar.

    Lamento muito que não tenhamos a capacidade de separar o ideal da realidade, mas, também por isso, é que os especialistas e jornalistas no terreno nos devem informar no melhor das suas capacidades. Se repetidamente a realidade desmente quem nos traz a informação, como é que podemos tomar como bons os canais de propaganda? Digo isto sem qualquer ironia porque eu quero acreditar no que ouço. Quero que as dúvidas que qualquer um de nós tem, em tempos difíceis, sejam debatidas sem clubites.

    Eu quero, em resumo, que alguém me explique por que razão o Kremlin lançaria mísseis sobre a Polónia, quando se preparava para meter territórios no bolso. E notem, eu não fico contente com a perda de território por parte da Ucrânia, mas era essa a mais do que provável realidade, logo, partindo dessa premissa…em que cabeça mais tresloucada do comando russo caberia um ataque à Polónia? Não fazia qualquer sentido. Zero.

    Mas as bases estavam lançadas e as sentenças estavam dadas. Menos de 12 horas depois, na madrugada de dia 16, já a Associated Press, a presidência norte-americana e mais não sei quantas fontes diziam que os mísseis que atingiram a Polónia eram ucranianos, provavelmente dos seus sistemas de defesa. Os tais da Nazaré…

    grayscale photo of concrete houses

    Como é que uma pessoa que espera e desespera pelo fim da guerra, que tem a vida afectada por isto, e que vê com alguma angústia o futuro, pode confiar num bando de falcões que se reúne, em horário nobre, para salivar por mais armas, dinheiro, pobreza ou intervenções da NATO? De que me serve acreditar em quem apela à paz, mas vive da guerra?

    A falta de credibilidade está mais do que comprovada, resta saber como é que vão agora disfarçar a incompetência.

    Uma noite, outra, para esquecer, em direto, na CNN Portuga… Também já não é notícia, não é?.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.