Etiqueta: Tiago Franco

  • Um ano de PÁGINA UM

    Um ano de PÁGINA UM


    Quando o Pedro Almeida Vieira, director do PÁGINA UM, me explicou o conceito de um novo projecto jornalístico e me convidou para aqui escrever com regularidade, logo no início desta história, fiquei dividido.

    Por um lado, fico sempre contente com a possibilidade de escrever, já que essa É a minha maior paixão na vertente profissional. Por outro, tinha as minhas dúvidas sobre a sustentabilidade de um projecto que dependia integralmente dos leitores.

    Não sou jornalista, a minha formacão é noutra área, mas sempre me pareceu que o mundo da imprensa era dominado por dois ou três grupos, e algumas publicacões que, ao longo dos anos, mais ou menos alinhadas, se iam aguentando. E claro, sempre com publicidade paga, o que, desde logo, garantia o silêncio em algumas temáticas.

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    Crónica “Visto de Fora”, desde 12 de Fevereiro de 2022.

    Portanto, em teoria, a ideia do Pedro era óptima, mas a sua execucão prática parecia-me algo romantizada. Ainda assim, resolvi aceitar o convite, essencialmente porque o nosso director “é um tipo sério” – foi esta a frase utilizada para o descrever, quando uma amiga comum nos pôs em contacto algures durante a pandemia.

    Um ano depois, e cerca de 150 textos mais velho, percebo o quão enganado eu estava.

    O PÁGINA UM é, na minha opinião, uma história de sucesso, até ao momento. Tornou-se, em muito pouco tempo, o jornal mais lido entre os novos projectos que apareceram fora da chamada “imprensa mainstream”, e até para os consagrados da praça, serviu várias vezes de fonte para notícias de primeira página – sem que nos fizessem a fineza de referir o nome, mas isso são outros quinhentos paus, como se diz aqui na margem sul.

    Com uma equipa pequena, o PÁGINA UM conseguiu fazer jornalismo de investigacão, sem amarras ou condicionamentos, e obter furos que foram depois repetidos por outros. Sem perder a qualidade da escrita ou a devoção pela verdade, o nosso jornal abanou quem precisava de ser abanado e questionou quem tinha respostas para dar. Sem nunca entrar no sensacionalismo bacoco ou nas teorias da conspiração que lhe retiraria credibilidade. Foi, essencialmente, uma redacção que, com curtíssimos meios, andou, neste primeiro ano, atrás da notícia e não a fazer de repetidor e tradutor de agências noticiosas estrangeiras.

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    Rubrica “Recensão Eleitoral”, entre 16 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 2022, sobre as eleições legislativas.

    E, de facto, tudo isto é possível apenas porque o financiamento é garantido por quem nos lê. Não há tabus, não há temas proibidos, não há necessidade de escolher notícias. A liberdade é total.

    Pessoalmente, tem sido um enorme prazer assistir ao crescimento do PÁGINA UM, e tentar, na medida das minhas possibilidades, ajudar na caminhada.

    No início de tudo isto disse ao Pedro que não tinha grande jeito para elaborar a escrita de forma a que esta pudesse sair em condições de chegar ao grande público. Nem sequer os temas me aparecem de forma lógica. Eu gosto de escrever em cima do que sinto, e isso, muitas vezes, aparece em forma de desabafo, irritação, estupefacção. Não é o tom que habitualmente se espera numa coluna de opinião.

    O Pedro disse apenas: “tudo bem, escreve o que quiseres, como quiseres”. E de facto assim foi. Por vezes, nem as ****lhadas [N.D. racalhadas] que me saem no meio de um texto mais polémico ele “censura”. Ou seja, tenho mesmo a sensação que estou a escrever para um amigo que me conhece desde sempre, mas, no fim, isto chega a mais gente. De forma pura e sem filtros.

    É essa a magia de escrever com liberdade e sem tentativas de agradar a esta ou aquela corrente de pensamento ou ideologia.

    Isto já me valeu uns insultos, claro que sim, mas também me deu a conhecer pessoas muito simpáticas que me fazem ter vontade de continuar a escrever com regularidade. Ou seja, a experiência do primeiro ano do PÁGINA UM mostrou-me, no fundo, o mundo real, onde o cruzamento de opiniões nem sempre é pacífico, mas, quase sempre, se torna estimulante.    

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    Crónica “Pelota em Pelota”, entre 21 de Novembro e 18 de Dezembro de 2022, sobre o Mundial de Futebol.

    Agrada-me também que o PÁGINA UM se abra a diferentes correntes de opinião, e permita que, entre todos os que aqui escrevemos, se consigam encontrar opiniões literalmente opostas. É na pluralidade de pensamento que crescemos e, certamente, vamos ao encontro de mais leitores.

    Tem sido um gosto e um orgulho fazer parte deste primeiro ano. Assim vocês, leitores, o queiram, e chegaremos ao fim do segundo ano também. 

    Depois de dois anos de pandemia e um ano de guerra (agora no radar de todos) na Europa, 2023 não promete ser muito melhor. A inflação, os baixos salários, as lutas sociais e a volta dos Excesso, garantem desde já um 2023 ao nível dos últimos três anos. Em princípio, continuaremos todos a não ficar bem, mas, com alguma certeza, o PÁGINA UM dir-nos-á o que aconteceu. Antes dos outros.

    Por tudo isto, camaradas do PÁGINA UM, muitos parabéns e obrigado pela vossa dedicação. Continuemos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • E agora, minhas senhoras e meus senhores: o Kosovo

    E agora, minhas senhoras e meus senhores: o Kosovo


    Vi passarem, entre rodapés e notícias de futebol, duas intervenções que me pareceram importantes para antevermos 2023 já a imaginar o que será 2024. A primeira foram as afirmações de um representante ucraniano, opinando que as economias desenvolvidas davam pouco suporte à Ucrânia e que, na visão dele, cada membro da União Europeia deveria dar 0,1% do respectivo produto interno bruto (PIB). Dizia ele que, se fizéssemos as contas, até perceberíamos ser uma gota no oceano dos orçamentos da União Europeia.

    Eu não só concordo com ele como, até, acrescento que o pedido peca por escasso: mas é, por acaso, a Ucrânia algum Ministério da Cultura para ficar com percentagens tão ínfimas de um Orçamento de Estado?

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    Não bastam os 2% do PIB para a NATO, o material e dinheiro enviado pelos países europeus ou até as sanções à Rússia, que nos fazem pagar a mesma energia bem mais cara.

    Portanto, ficamos a saber que não basta empobrecer para garantir a defesa da Ucrânia; é preciso empobrecer por decreto e passar a incluir esta guerra, apenas esta, no planeamento do que fazer com os impostos no próximo ano.

    Há aqui um certo conforto com esta solidariedade europeia, que passou de necessária para obrigatória, seguida de “mais e mais”, vindos de Zelensky e companhia, que a cada dia exigem mais empobrecimento a todos nós para defender uma causa sua.

    Compreendo que o peçam; estão a manter a sua causa viva, mas não percebo porque se sentem os dirigentes europeus no direito de utilizarem livremente os impostos dos seus constituintes, de forma repetitiva, a favor da Ucrânia, mantendo o empobrecimento geral deste lado.

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    Bem sei que ninguém gosta de perder fatias de terreno, mas não nos cabe, a nós europeus, pagar uma guerra sem fim à vista.

    Quem a estimulou (Estados Unidos e Rússia), e quem acreditou no conto de fadas que ouviu (Ucrânia), que a pague ou resolva. Mas já chega de isto sobrar para todos. E já chega de ver Ursula e demais dirigentes europeus baixarem a cabeça a cada nova exigência de Zelensky, como se nós lhes devêssemos algo, ou como se aquela guerra fosse nossa. Lamento pelo povo dos dois lados, mas eles que resolvam as suas diferenças e, de caminho, se vejam livres de Putin e Zelensky.

    Por acaso alguém vê dirigentes palestinianos a exigirem anti-aéreas todos os dias? Acham que levam com poucos rockets? Ou os combatentes no Iémen, bombardeados pela ditadura “nossa amiga” (saudita), lembram-se de os ver em intervenções emocionadas nos parlamentos europeus a exigir armamento pesado?

    Não suporto esta hipocrisia com quase um ano, que se vai vivendo, em redor da Ucrânia. Há um problema para resolver, como em tantas partes do Mundo. O problema não é nosso. Ponto final. Se os deputados europeus começassem a defender os direitos de quem os elegeu é que a democracia agradecia.

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    A segunda notícia que me pareceu interessante, mas para a qual ninguém convidou a Helena Ferro Gouveia para falar, logo não deve ser importante, foi a recente tensão na fronteira do Kosovo com a Sérvia.

    Para a rapaziada mais nova que lê o PÁGINA UM, mas que ainda era pequenina na mudança do século, o Kosovo é um país que resultou de um corte de 20% do território da Sérvia, depois da NATO bombardear civis em Belgrado. Pronto: este é o trailer. Para o filme completo, vejam no Netflix.

    Contudo, a parte importante é esta: um território de um país soberano tinha uma maioria étnica, neste caso albaneses, que achou boa ideia formar um novo país. E conseguiram, com o apoio da comunidade internacional. A mesma lógica (das maiorias étnicas) poder-se-ia aplicar ao Donbass, Catalunha, País Basco, Chechénia, enclaves sérvios da Bósnia, Palestina, Curdistão…

    Epá… por absurdo, se amanhã o Paquistão, Bangladesh, Nepal ou Índia quiserem reclamar como seu o Qatar ou o Dubai, em princípio podem. Os emigrantes destas zonas já devem estar em maioria relativamente aos indígenas.

    Para resolver rapidamente estes problemas na fronteira, e a pressão sérvia, os kosovares pediram adesão à NATO há já algum tempo e, agora, à União Europeia. É o precedente que se abriu com a Ucrânia. Se um país em conflito passa por cima de todos os critérios para aderir, por que razão se deveria facilitar a entrada apenas à Ucrânia? 

    No ranking da liberdade, o Kosovo está ali por perto de países como as Filipinas (não sei se já ouviram falar do seu presidente e das medidas bem democráticas que implementa no país), da Somalilândia, de El Salvador e claro, da Ucrânia. Estão na parte da lista das democracias complicadas e consideradas “parcialmente livres”. 

    Ursula von der Leyen acha este interesse maravilhoso, porque, segundo ela, a União Europeia não está completa sem os Balcãs… Já agora, alguém poderia dizer à Ursula que a União Europeia costuma fazer umas certas “exigências” naquela região. Por exemplo, a Croácia só entrou em 2013, uma década após ter feito o pedido de adesão e depois de ter entregado uns generais por causa da Guerra dos Balcãs. E exigiu ainda mais à Sérvia, que está a marcar passo desde 2009 por não ter feito o mesmo com um batalhão de gente. Aliás, a proximidade de Belgrado a Putin não nasce de inspiracão divina.

    Com o Mundo novamente a caminho de formar dois blocos (ou três, quem sabe), a Europa tenta reunir todas as suas fronteiras e não olha a critérios ou nomes. O Kosovo pode não cumprir nada do que é necessário para integrar o grupo da União Europeia, mas faz parte daquele restrito leque de países onde atacar território soberano e roubar-lhe uma fatia, não é imperialista nem tão pouco errado. É apenas justo e reconhecido por todos.

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    Portanto, perante isso, o que é uma entrada a pés juntos na União Europeia com o árbitro de olhos fechados?

    Por mim, incluímos no negócio a Albânia, a Moldávia, a parte turca do Chipre, o Montenegro e a Macedónia. Depois, ainda esticávamos o bloco mais a sul e, na expectativa de criar um grande bloco, fazíamos o convite ao Sahara Ocidental, Argélia e Líbia. Se nos dessem gás e petróleo, e sem mandarem migrantes nos barcos de borracha, claro.

    Se os critérios servem para pouco, por mim então era só juntar mais pessoal. Imaginem o melão dos liberais quando vissem que, com esta malta toda, e mesmo ultrapassados pela Roménia, acabaríamos ali a meio da tabela para os próximos 10 anos. Sempre com o Ruanda à perna.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A última dança do melhor jogador do Mundo

    A última dança do melhor jogador do Mundo

    Tal como no jogo da meia-final, contra a Croácia, a Argentina começou o jogo da final com um penalti. O quinto da competicão, o segundo seguido a desbloquear a fase inicial de um jogo onde a Argentina foi superior durante 80 minutos.

    A França, abalada pelo inexplicável penalti sobre Di Maria, nunca se encontrou e esteve longe da equipa que se superiorizou em todos os jogos até hoje. Messi conduziu os colegas magistralmente e, a espaços, a França ficou reduzida a uma equipa banal, que se limitou a andar atrás da bola. Di Maria foi um desequilíbrio constante, na asa esquerda, e a bola rodava sempre por Messi, que, com poucos toques, procurou constantemente o ex-benfiquista.

    Com a França a tentar aproximar-se da baliza argentina, o segundo golo acabou por aparecer de forma natural, tal como com a Croácia, num contra-ataque exemplar concluido por Di Maria, que, aos 33 anos, ainda faz sprints de um lado ao outro do campo.

    A aula argentina terminou a 10 minutos do fim, quando Mbappé marcou dois golos de rajada. O primeiro num penalti também bastante duvidoso e o segundo num gesto técnico de difícil execução. O jogo mudou a partir desse momento, e os franceses voltaram a acreditar, encostando os argentinos às cordas nos instantes finais.

    No prolongamento, a Argentina voltou a mostrar coração e ficou novamente por cima da contenda. Messi puxou dos galões e decidiu que este seria, definitivamente, o seu Mundial. 

    Nesta fase, os franceses insistiam essencialmente nas jogadas individuais e deixaram de atacar como equipa. Os cruzamentos para a área desapareceram e a troca de Thuram por Giroud, um perigo no jogo aéreo, revelou-se pouco acertada por parte de Deschamps.

    Os 10 minutos finais do prolongamento foram de nervos e de imprevisibilidade, com a França a atacar e a Argentina a controlar a posse como podia. Di Maria passou 15 minutos a chorar. Ora porque marcava Messi, ora porque marcava Mbappé. Não consigo imaginar o que sente um profissional num momento destes.

    O empate aos 117 minutos de jogo, conseguido pelo hat-trick de Mbappé, garantiu a montanha-russa de emoções. Nos dois minutos finais, a Argentina ainda teve uma oportunidade na cabeça de Lautaro, mal concluída, e Kolo Muani, completamente isolado em frente a Emiliano Martinez, falhou quase na última jogada do encontro o golpe de teatro que daria o 4-3.

    Depois de um jogo absolutamente épico, seguiu-se a lotaria dos penalties. Aliás, lotaria não. Ganha quem não treme, e a Argentina não tremeu. Martinez voltou a provar que é um especialista na matéria e os jogadores franceses não tiveram a frieza para seguir os passos de Mbappé que, por três vezes, facturou da linha da grande penalidade.

    Assim, 36 anos depois, a Argentina consegue colocar Messi ao nível de Maradona, e, provavelmente, terá garantido a oitava Bola de Ouro com uma despedida de sonho.

    O Mundial do Qatar termina com um vencedor que não tinha a melhor equipa, mas possuía mais alma e, como se percebeu, o ainda melhor jogador do Mundo.

    A última dança de Messi foi, por isso, perfeita. Parabéns ao génio e aos fãs argentinos que, como se percebe pela paixão, também são de outro planeta.

    Até 2026!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A lei do mais forte

    A lei do mais forte

    Termina o sonho marroquino, de forma mais ou menos natural, frente ao grande favorito da competição. Ainda o relógio não tinha chegado aos cinco minutos e já a selecção francesa estava em vantagem com o golo de Theo Hernandez. Pela primeira vez, os leões do Atlas estiveram a perder neste Mundial e tiveram que sair do conforto do bloco baixo.

    A primeira parte foi de total controlo francês, e até o selecionador marroquino voltar ao 4-3-3 habitual, pensei que a coisa ficasse resolvida cedo.

    Destaque para Antoinne Griezmann, longe das tácticas de maratonistas impostas por Simeone, a fazer outro grande jogo na distribuição e ligação entre a defesa e o ataque.

    Por norma, os destaques na equipa francesa são os velocistas da frente e a eficácia de Giroud, mas se perderem tempo a ver a movimentação de Griezmann, e a forma como desce no terreno para receber e distribuir, observam como se está a criar um número 10 de eleição. 

    Mesmo a perder, Marrocos não parecia interessado em sair defesa, chegando a ter 11 homens atrás da linha da bola. Os lances de perigo resumiram-se, na primeira parte, às bolas paradas.

    Na segunda parte houve, finalmente, risco. Os marroquinos mostraram que também sabiam atacar com qualidade e jogar no meio-campo adversário. En-Nesyri, que marcara contra Portugal, saiu aos 66 minutos depois de tocar três vezes na bola durante todo o período que esteve em campo. 

    França joga de forma simples: dois ou três toques e a bola está na área adversária. Seja por arrancadas de Mbappé, idas à linha com cruzamentos para Giroud ou progressão em tabela, não escolhem o clássico “controlo da posse”, que significa que os centrais tocam 200 vezes na bola a cada ataque iniciado.

    Ora, esse controlo exasperante, como feito por Portugal, significa que equipas como Marrocos podem ficar de cadeirinha à espera de uma bola para aliviar perto da baliza a cada cinco minutos. Com França, tinham sarna para se coçarem a cada 30 segundos.

    Chega à final uma das equipa que jogou sempre para ganhar e que, de forma consistente, foi sempre superior aos adversários.

    Sábado teremos, não a final sonhada pela FIFA, mas certamente a final entre a melhor equipa do torneio e a equipa que não desperdiçou as oportunidades que lhe foram surgindo pelo caminho.

    Espera-se, portanto, um jogo épico.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A magia do directo à portuguesa

    A magia do directo à portuguesa


    Em Campo Maior, numa rua cheia de lama, com carros ao monte, há pessoas de galochas e pás na mãos, encasacados até à cabeça, recolhendo o entulho e empurrando a água para as entradas de esgoto.
    Percebe-se, em apenas cinco segundos, o que estão ali a fazer.

    A jornalista, obrigada a criar qualquer coisa para o directo, aproxima-se, obriga um dos senhores a parar tarefa e atira-lhe a pergunta do milhão de dólares:

    “Então, o que estão aqui a fazer?”

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    O camarada alentejano levantou os olhos da enxada, olhou para a jornalista e deve ter pensado num “f***-se!! O que é que te parece que estamos a fazer??”. Mas respirou, lembrou-se que tinha ali uma câmara, e disse, de rajada e em volume aceitável: “LIMPEZAAA!”

    Os directos são um mistério para mim. Nunca percebi o interesse de, por exemplo, ter alguém numa cidade a 1.000 quilómetros de uma frente de batalha para entrar à noite, em directo do hotel, a tempo de nos contar o que alguém lhe disse que está a acontecer a oito horas de carro dali.

    Compreendo, obviamente, o interesse da reportagem em directo, que nos traz as imagens do que está a acontecer. Mas a necessidade extrema de criar conteúdo com interesse informativo nulo, para além de deixar uma sensação de vergonha alheia, acaba apenas por atrapalhar quem, de facto, está a tentar fazer algo de jeito.

    A história de Campo Maior fez-me lembrar um dos incêndios deste Verão, quando uns jornalistas, da CNN julgo, tentavam entrevistar bombeiros enquanto estes apagavam o fogo, o que é, só por isso, bizarro. Acabaram por ouvir, entre corridas desesperadas, que “têm que desviar o carro para o camião conseguir passar”.

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    Ou pior, quando perguntavam a populares o que por ali faziam, num incêndio junto ao Fundão, se a memória não me falha, e uma senhora, a carregar baldes de água, lhes disse: “se largassem o microfone e agarrassem nuns baldes é que era de valor!”

    Que informação relevante é que pode dar um popular, no meio de uma aflição, a quem precisa de encher uns minutos de directo? Não entendo, a sério que não.

    Mas pior do que as horas de irrelevância informativa, é a estratégia editorial. Seja qual for o tema, desde que apareça como novo, é espremido até à exaustão, como se deixasse de existir mundo a partir desse momento informativo.

    Quando a covid-19 rebentou tínhamos directos do aeroporto de Lisboa para acompanhar a chegada dos portugueses que tinham sido evacuados da China. O pessoal médico estava vestido com uns fatos da NASA, como naquele filme Outbreak dos anos 90 (com Dustin Hoffman), e lá atrás da rede de protecção, as câmaras das televisões faziam o zoom possível para nos mostrar qualquer coisa.

    Dois anos com directos dos hospitais, conferências do Infarmed, powerpoints do Costa, vacinas do almirante, regras e mais regras. Polícias na rua a correr com velhotes que comiam sandes num banco de jardim, restauração na falência, palminhas nas varandas. Mal nos apercebemos que já havia rockets no Donbass.

    Nos Verões são os incêndios, nos Invernos as cheias. Enquanto acontecem, temos horas e horas de directos, debates, diagnósticos do que está mal (matas, num caso, e sarjetas sujas, no outro) para, um ano depois, repetirmos todo o processo: directo, debate, diagnóstico. Pelo meio, mete-se o Natal e os directos passam para os centros comerciais ao som de Mariah Carey ou Wham.

    Chega a guerra a de 2014 até 2022 foi só o aquecimento e durante meses temos tanques no quintal e mapas de ocupação. Desaparece o resto do Mundo novamente. Acaba a covid-19 de forma oficial.

    Em Novembro, a guerra acalmou para ligarmos aos diretos do Qatar. Até a selecção portuguesa ser eliminada, ninguém se magoou em Donetsk. Por essa altura, interessou saber tudo, mas mesmo tudo, que Ronaldo disse, pensou, fez, disse mas não fez, pensou mas não disse, disse mas não queria dizer, e todas as demais combinações.

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    É importante massacrar um jogador até que já ninguém, nem sequer entre os seus colegas, consiga ouvir falar mais no tema. É importante não discutir o que joga ou podia jogar uma equipa de 25 e criar, em vez disso, uma gigantesca onda negativa em torno de uma equipa que, afinal, todos queríamos que vencesse.

    O golo marroquino acontece e o São Pedro começou a castigar o território ibérico. Os mouros estão de volta. Há água por todo o lado, carros a boiar, casas alagadas, cidades transformadas na Veneza dos subúrbios.

    Percebo a gravidade, os problemas e os dramas, mas, tal como nos demais temas, o Mundo volta a desaparecer. Como se, com tantos recursos de recolha de informação, cada linha editorial só conseguisse lidar com um tema de cada vez. Ou até como se, para representar uma calamidade, seja necessário entrevistar pessoas que limpam as ruas em cada aldeia do país. Vi um directo do Muxito. Do Muxito!

    Para vós que sois menos versados em cultura urbana da margem sul, o Muxito era uma mata que, na minha juventude, era conhecida por ser um sítio de paragem para profissionais de um ramo profissional muito antigo, ligado à venda de sensações cutâneas. Não é uma zona que tenha visto os seus primeiros líquidos nesta enchente.

    black and gray microphone

    E enquanto escrevia isto, pensando que então que terminara o texto, notei que o directo regressou a Campo Maior e apanhou outro senhor. O homem estava a carregar móveis, cheio de lama na cara e nas mãos, e, mal lhe cheira a pergunta, vira as costas ao jornalista que, para desenrascar, diz: “as pessoas não querem falar, mas as imagens falam por si”.

    Aleluia irmão!, aleluia!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eis um astro servindo o colectivo

    Eis um astro servindo o colectivo

    Vai tomando forma uma final entre duas das mais regulares equipas do torneio. Uma delas já lá está. A Argentina, que começou mal, e tremeu na fase de grupos, tem vindo a subir de rendimento neste Mundial, chegando, nesta altura, com Messi em altíssimo plano, a fazer jogar toda uma equipa sem excesso de vedetas.

    Messi parece estar a fazer tudo para se despedir deste palco com a taça a caminho de Buenos Aires. Corre, dribla, remata, vai no um para um. Sem a velocidade de outros tempos, Messi é, aos 35 anos, o motor da selecção argentina e o factor diferencial que torna um conjunto de bons rapazes numa equipa que foi capaz de chegar à final do Mundial.

    No papel existiam pelo menos cinco selecções com plantéis melhores: França, Espanha, Inglaterra, Portugal e Bélgica. No relvado, apenas duas foram constantes nas boas exibições: Inglaterra e França, que acabaram por se encontrar nos quartos-de-final.

    A Argentina chega à final sem apanhar nenhum dos candidatos pelo caminho, e não se pode queixar da sorte dos adversários ou da fortuna do jogo; basta ver o segundo golo contra a Croácia, às três tabelas. Ou dos penalties desbloqueadores, que apareceram em metade dos jogos. Contudo, há que dizer que os argentinos têm feito pela vida e, às costas de Messi, jogaram sempre como equipa, a partir do jogo com o México. Têm mérito, por isso, e, na minha opinião, chegam merecidamente à final pela sua eficácia e pragmatismo.

    É certamente o desfecho de sonho para aquele que muitos consideram o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Pessoalmente, como adepto da modalidade, fico contente que equipas ultradefensivas, como a Croácia, fiquem pelo caminho. Vamos aos estádios para ver golos e jogadas de ataque, e não para um martírio de passes laterais e controlo de bola.

    Mesmo sabendo que defender 90 minutos já valeu a Portugal um título europeu, não gosto quando o anti-jogo vence. É desvirtuar o sentido do jogo.

    Em tempos longínquos, quando a nossa selecção jogava ao ataque, também provámos o veneno grego, que devolvemos em 2016, em Paris.

    Pode-se até ganhar a jogar como o Portugal de Fernando Santos, a Croácia ou Marrocos fazem, mas estas equipas não fazem grande serviço à modalidade ou aos fãs.

    A Argentina foi claramente superior no jogo de hoje contra a Croácia e, por isso, mereceu, sem grande contestação, marcar presença na final. E Messi, provavelmente o ainda melhor jogador do Mundo, prova que um galáctico pode servir os interesses de um conjunto.

    Agora, espero que Marrocos regresse para casa, que significa remeter-se para o confronto pelo terceiro lugar, e liberte o palco da final para duas equipas que gostam de jogar futebol.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A crónica que eu não queria escrever

    A crónica que eu não queria escrever

    Ao intervalo do jogo com Marrocos, o meu filho dizia-me que ia chorar se não conseguíssemos marcar, pelo menos, um golo àquele conjunto acantonado de 11 defesas.

    Para mal dos meus pecados, o puto chorou, e bem.

    Fernando Santos deu meia parte de avanço com uma embrulhada de ideias que ninguém percebeu. 

    Se antecipou uma ultradefensiva formação marroquina com saídas rápidas, qual foi o sentido de jogar com Ruben Neves como único médio defensivo? Foi sempre ultrapassado em velocidade, e não é, nunca foi, um médio de combate que equilibrasse o meio-campo. Para ter apenas um trinco em campo, William ou Palhinha seriam as opções naturais.

    Diogo Costa comprometeu com uma saída à Ricardo e os defesas passaram 45 minutos a lançar a bola, em profundidade, nas costas dos defesas. Tantas vezes insistiram nesta jogada que deduzo que fosse estratégia. Nunca tinha visto bombardeamentos para as costas de uma defesa que está toda fechada, com 10 homens em 30 metros. É uma inovação tática, certamente.

    Ao intervalo, Fernando Santos tentou corrigir e mexer na equipa. As entradas de Cancelo, Ronaldo e Leão foram positivas, mas não chegaram.

    Portugal voltou ao ritmo que nos habituou na era de Fernando Santos. Passes para o lado e para trás, lentidão, previsibilidade. Poucos cruzamentos bem tirados e aqueles que lá chegaram foram desperdiçados pelos jogadores. 

    Bruno Fernandes, em frente à baliza, preferiu atirar-se para o chão do que tentar rematar. Lembro-me de duas defesas do guarda-redes marroquino, a primeira aos 82 minutos. Os últimos 30 minutos foram passados com 50 passes entre os centrais e o Bernardo Silva, até que a bola chegasse inevitavelmente à área adversária sem grande perigo.

    Marrocos fez o que sabe fazer bem: defender e perder tempo. Os árbitros, argentinos, mostraram pouca qualidade (vou ser simpático) para um jogo de quartos-de-final de um Mundial. Ótavio parece-me puxado na área e o constante anti-jogo marroquino foi largamente premiado. 

    Mas não foi pelo árbitro que Portugal perdeu. Foi pela mediocridade do seu jogo que, à excepção do confronto com a Suíça, foi sempre aquilo a que as equipas de Fernando Santos nos habituaram: deprimente. 

    Quando Portugal apanha equipas que jogam em bloco baixo, é sempre o cabo dos trabalhos, porque defender 90 minutos e jogar para o pontinho é o nosso ADN há anos. Quando é preciso triturar o adversário, a equipa não tem rotinas para tal.

    O meu filho queria que este fosse o Mundial de consagração de Ronaldo. Para ele, Ronaldo representa o orgulho de uma Nação e seria mais do que justo sair de Doha com a taça nas mãos. Estava inconsolável.

    E sem saber, tinha mesmo razão. Este era o Mundial onde, pela primeira vez, apenas uma equipa melhor do que a nossa estava em prova. Podíamos ter sonhado com algo mais.

    Espero que Santos nos faça agora um favor; ou dois: que pague os impostos e que dê lugar a quem não tenha medo de ganhar. 

    Entretanto, no França vs. Inglaterra não houve surpresa. Com uma arbitragem ainda pior do que a do nosso jogo, protagonizada por um fraquíssimo árbitro brasileiro, Mbappé e Giroud marcaram a diferença no ataque francês. Os ingleses aumentaram o tamanho do fantasma dos penalties e o troféu insiste em não voltar a casa.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma surpresa no dia dos velhinhos. E um Sebastião.

    Uma surpresa no dia dos velhinhos. E um Sebastião.

    Tenho muita dificuldade em compreender como se endeusa uma equipa que passa 120 minutos a defender e faz um – apenas um – remate enquadrado com a baliza.

    A Croácia de Modric joga como uma orquestra afinada sem alguns instrumentos. Conhecem as suas limitações e jogam com elas.

    Apoiados num excelente guarda-redes com queda para os penáltis, com um Lovren em grande forma a comandar a defesa, um incansável Perisic na ala e um meio-campo pautado por Kovacic e o eterno Modric, a Croácia troca a bola e defende até à exaustão, fazendo acreditar que pensa nas grandes penalidades desde o apito inicial.

    Tendo em conta que, em quatro desempates em campeonatos do mundo, venceram sempre, começo a pensar que talvez seja mesmo estratégia. 

    Este era o Mundial desenhado para Neymar aparecer. Com as habituais estrelas em fim de ciclo – excepto Mbappé –, esperava-se que Neymar, aos 30 anos, assumisse finalmente o papel de líder de uma geração. Tal como Romário em 94 ou Ronaldo em 2002, Neymar tinha que ser “o cara”. E não foi.

    O Brasil tentou furar a bem organizada defesa croata que, ao contrário da Coreia, não defendeu com pouca gente e soube dar o favoritismo a quem o tinha. Sempre lento e com poucas ideias, o ataque brasileiro criou poucas oportunidades e quando apareceram na cara de Livakovic, o guardião croata defendeu tudo, deixando-me a pensar como é que ninguém o tirou ainda do Dinamo de Zagreb.

    Foi de Neymar o lampejo que criou o golo brasileiro, mas estes croatas com sete vidas, conseguiram que Petkovic, um limitadíssimo avançado que tinha perdido todas as bolas até então, acertasse o único remate na direcção da baliza de Alisson.

    Nos penáltis, os croatas fizeram o costume e não falharam. Neymar escondeu-se e não assumiu a quarta e decisiva grande penalidade.

    Segue em bom ritmo a selecção croata que, de empate em empate, lá vai seguindo. Onde é que já vi fortuna desta? Ah, já sei! Na Grécia de 2004 e no Portugal de 2016.

    A Croácia tem um estilo de jogo que adormece e que dificilmente seduz um adepto de futebol. Mas vão jogar as meias-finais de um Mundial pela segunda vez consecutiva.

    Como dizia o meu avô, “essa é que é essa” (vá-se lá perceber o futebol).

    Depois da surpresa inicial, imaginei que Holanda e Argentina proporcionassem um espectáculo interessante. São duas boas equipas que, nesta altura, jogam muito pouco e estão quase ao mesmo nível. 

    O jogo não teve grande história. Não me lembro de uma oportunidade de golo holandesa até aos 75 minutos e, de certa forma, a partida parecia resolvida com um passe de génio de Leonel Messi e um penálti perfeitamente escusado sobre Acuña. O desenho da assistência de Messi no primeiro golo devia fazer parte dos compêndios. 

    Contudo, Wout Weghorst, lançado aos 79 minutos, veio revolucionar a partida com dois golos, o segundo no último minuto de jogo, num autêntico golpe de teatro que levou tudo para mais um prolongamento e o drama dos penáltis.

    A festa acabou por ser argentina, mantendo viva a hipótese da final de sonho.

    O destaque do dia, para mim, foram Modric e Messi que, aos 37 e 35 anos respectivamente, são, de longe, os melhores jogadores das suas selecções. Jogam, fazem jogar, correm, ganham o lugar pelo rendimento. Não há justiça no desporto, há rendimento. 

    Vou lendo na imprensa portuguesa algumas cautelas com Marrocos, referências ao D. Sebastião e até a lição defensiva que a Croácia nos deu.

    Meus amigos, a Croácia defende com 11 no meio-campo, Marrocos defende com 11 na grande área, saindo para o contra-ataque com um avançado que não teria lugar no Paços de Ferreira. Até ao momento, sofreram apenas um golo e passam os 90 minutos enfiados na baliza. Tudo certo.

    Dito isto, o respeito pelos adversários é obrigatório. Agora, medo de encontrar Marrocos nos quartos de final de um Mundial, tenham lá paciência. A disparidade de talento nas duas equipas é abismal.

    Saiu-nos o brinde, agora não tenham é medo de ganhar. E se começarem a tremer, chamem o Ronaldo. Que o rapaz nasceu para dias destes. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Autoeuropa: recusaram 5,2% e fizeram muito bem

    Autoeuropa: recusaram 5,2% e fizeram muito bem


    Portugal vive um momento de alguma convulsão social com greves em diferentes sectores praticamente todas as semanas. De entre os vários “fogos”, chamou-me à atenção aquele que vai crescendo na Autoeuropa, onde, em plenário, os trabalhadores votaram contra o pré-acordo laboral que incluía um aumento de 5,2%.

    Acompanho a vida da Autoeuropa com alguma atenção há pelo menos 17 anos, a exacta quantidade de anos que levo desde que ali deixei de trabalhar e decidi emigrar. Conheci por lá pessoas extraordinárias e fiz amigos para a vida, pelo que notícias como esta – ou críticas, em geral, aos trabalhadores que por lá andam há duas décadas (ou mais) – obrigam-me quase sempre a uma leitura um pouco mais cuidada.

    A Autoeuropa é utilizada pelos Governos, abusivamente na minha opinião, como empresa modelo das exportações portuguesas e das boas relações laborais entre administrações e trabalhadores. Se a importância da Autoeuropa para o produto interno bruto (PIB) nacional é uma pura questão matemática – e não há muito por onde discutir –, o mito de os trabalhadores estarem cheios de regalias, ou que as condições de trabalho são óptimas, é algo que nunca percebi muito bem de onde veio.

    Não sei se o caro leitor alguma vez passou por uma linha de montagem, onde tudo é feito ao segundo, sem poder parar, com tempos controlados para comer, ir à casa de banho ou apanhar ar. Linhas onde os volumes de produção obrigam a trabalhar noites inteiras com consequências directas para a vida familiar. Linhas com um trabalho repetitivo, anos e anos a fio, a troco de mil e tal euros – visto por quem está cá fora como “muito bom”, porque 75% do país só leva 900 euros para casa.

    A eterna discussão sobre nivelarmos por baixo e pensarmos que, se eu estou na lama, por que razão deveria o meu vizinho ter o pescoço de fora.

    Estamos a falar de uma empresa que responde a uma casa-mãe onde os funcionários recebem três vezes mais pelo mesmo tipo de trabalho. Uma empresa onde um engenheiro, ao fim de 20 anos de dedicação, pode nem ter conseguido uma progressão salarial de 1.000 euros líquidos.

    E todos os anos a fábrica de Palmela está entre as melhores do grupo, mas, quando chega a altura dos aumentos, o que é que acontece? Soluções criativas. Ora são os “down days”, em troca de dinheiro, ora são os aumentos para as calendas gregas, ora são promessas de mais projectos, e aí sim, outras soluções.

    É claro que todos percebemos a dinâmica da coisa. As multinacionais mexem-se para onde a mão-de-obra é barata, o benefício fiscal existe e o trabalho fica feito. São as regras do negócio.

    No meu actual trabalho, vejo equipas espalhadas pela Índia, China e Ucrânia. Está tudo engatado, atrasos e problemas que não acabam (quem diria que um gajo a fugir de bombas não se consegue concentrar?!), mas o capital aumenta, os gastos são menores e o lucro dispara. Em Portugal, e com a Autoeuropa, é assim desde que me lembro.

    Lembram-se, aliás, do último VW, novo, bem barato que compraram? Pois, imagino que não, porque não existe. Os preços dos modelos vão acompanhando a inflação, ano após ano, com a sempre actual conversa dos custos de produção, mas, espante-se, os trabalhadores ficam essencialmente na mesma.

    Quando recusam uma proposta de aumento de 5,2% num ano em que a inflação real já vai em dois dígitos, o que eles estão a dizer, alto e bom som, é que percebem o mundo em que vivem. E estão a mostrar coragem, porque no sector privado, obviamente, o risco de perda de emprego é maior.

    Aliás, se se derem ao trabalho de ler as caixas de comentários dos vários jornais que falaram sobre a proposta chumbada pelos trabalhadores da Autoeuropa, podem atestar o que aqui escrevo. A onda de críticas da sociedade civil aos trabalhadores é gigante. Perdi a conta ao número de pessoas que os condenava ao desemprego, que falava na Opel da Azambuja, ou que lhes dizia que 5% era óptimo nos dias de hoje.

    O papão de “fechar e ir para outro sítio” deve existir desde o dia em que lançaram a primeira pedra na Quinta do Anjo. Ouvi essa ameaça não sei quantas vezes nos cinco anos que por lá passei, e à conta dela aceitámos dias de folga em vez de aumentos salariais de jeito. Entre a minha entrada em 2001 e saída em 2006, julgo que a diferença no salário líquido não chegou a 30 euros. Lembro-me de nos agarrarmos ao argumento de “é uma merda, mas é seguro”.

    Ora, o que mudou entretanto? Pouco. O grupo VW continua a ser um dos maiores do Mundo, a fazer lucros enormes e a espalhar fábricas de baixo custo por países pobres, pagando salários de jeito apenas na casa mãe (Wolfsburg) e nas demais fábricas do grupo (Audi, etc.) que estão em território alemão, onde os sindicatos não brincam em serviço.

    Bem sei que a VW não inventou a roda ou o capitalismo selvagem. O lucro é maior onde a mão-de-obra se vende por menos, e, no momento em que essa mão-de-obra fica mais cara, o capital vai para nova morada em busca de mais mão-de-obra barata. O ciclo é conhecido, está estudado e todos, a começar pelos trabalhadores da AutoEuropa, percebemos que fazemos parte dele.

    Agora, em consciência, cada um de nós, de preferência colectivamente, deve lutar contra essa ganância que nos leva direitos e qualidade de vida, a troco de lucro, com a promessa de um emprego e umas migalhas para pagar contas. É pouco, é muito pouco.

    Se a VW ameaçar, pela quinquagésima sétima vez, que vai explorar outros, ainda mais pobres, pois que vá. Se a força do nosso trabalho é tudo o que temos para a troca, não a podemos oferecer décadas a fio. Não podemos ver o custo de vida a subir exponencialmente e os salários, ano após ano, a serem uma envergonhada réplica do ano anterior.

    Algum dia acabam os povos para explorar e, nesse dia, começam as negociações a sério e a partilha de riqueza de forma justa. Quanto mais depressa lá chegarmos, melhor.

    Portanto, recusaram 5,2% e fizeram muito bem. Portugal não deve continuar a ser conhecido como um país onde a competência se vende barata. A Autoeuropa é, de facto, um exemplo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • A dia em que Fernando Santos não jogou para o empate

    A dia em que Fernando Santos não jogou para o empate

    Ao décimo quinto dia do Mundial, finalmente, uma extraordinária exibição da selecção portuguesa. Fernando Santos mexeu na equipa, mostrou coragem e ganhou em toda a linha.

    O talento dos jogadores portugueses soltou-se e jogaram como se estivessem na rua, sem constrangimentos tácticos e calculismos desnecessários quando se tem um grupo com tanta qualidade.

    A Suíça ainda ameaçou nos primeiros 15 minutos, mas a partir daí só deu Portugal, como sói dizer-se. As trocas rápidas e o futebol envolvente amassaram a equipa helvética.

    Gonçalo Ramos, Félix, Otávio e William foram sublimes. Pepe esteve imperial. Dalot não tremeu e Guerreiro apareceu nos espaços abertos por Félix, de cada vez que este baixava para receber a bola.

    Félix jogou e fez jogar. Esteve solto, sem medo de ter a bola e sem obrigação de a passar sempre para o mesmo sítio. Simeone, o seu treinador no Atlético de Madrid, deve ter aprendido algo esta noite.

    Numa noite absolutamente perfeita, Rafael Leão saiu do banco aos 85 minutos ainda a tempo de marcar o melhor golo da partida. Que alegria, que irreverência, que futebol de sem regras que Portugal jogou esta noite. E que qualidade tem uma equipa para se dar ao luxo de ir ao banco, a poucos minutos do fim, buscar o melhor jogador do campeonato italiano.

    No dia em que, por fim, Portugal disse aos adversários que também está no Qatar, a Espanha foi para casa, depois de falhar três penalties frente a uma aguerrida selecção de Marrocos. Para quem viu esse jogo, ficou a sensação que com um ponta de lança de primeira água (que Cheddira obviamente não é), nem aos penalties a Espanha teria chegado, tal foi a quantidade de oportunidades desperdiçadas.

    Depois de um playoff para aqui chegar e uma fase de grupos sem exibições de encher o olho, Portugal está a um jogo com Marrocos da meia-final do Mundial.

    E, desta vez, também por “culpa” de Fernando Santos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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