Etiqueta: Tiago Franco

  • Costa, que já foi hábil, agora é só trapalhão

    Costa, que já foi hábil, agora é só trapalhão


    Ouvi João Miguel Tavares a dizer que achava que o direito à propriedade privada era mais importante do que o direito à habitação. É um pensamento lógico, diria, numa pessoa que se revê em políticas liberais. Embora não goste de excluir direitos, devo reconhecer que, em última análise, não concordo minimamente com essa frase.

    Se a decisão for entre uma casa desocupada que pertence a um privado e uma pessoa que dorme ao relento, não há grande debate – pelo menos para mim.

    O meu problema em toda esta discussão sobre a habitação passa no que há para fazer, antes de retirar a propriedade privada para a fornecer a alguém que vive debaixo da ponte.

    António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Mas antes de entrar nesse debate, faço aqui um parêntesis para discutir a questão das casas devolutas. Aqui a minha opinião é radicalmente diferente e bem mais penalizadora para a defesa do direito à propriedade privada. Há muito que defendo que o Estado deve expropriar privados que deixam imóveis a cair. Seja qual for a razão: desinteresse, falta de capital, desacordo em partilhas. É indiferente.

    A partir do momento em que uma casa, um edifício, um imóvel qualquer, passa décadas desocupado, sem qualquer manutenção – e vai resistindo aos elementos da Natureza até ser apenas uma parede no meio do entulho –, eu defendo que as autarquias assumam a sua posse, o encargo da sua recuperação para aluguer ou venda futura. O agravamento do IMI não é suficiente para evitar os milhares de imóveis em ruínas que vão poluindo visualmente o país.

    Ou seja, mesmo admitindo que nenhuma das propostas de habitação anunciadas por António Costa – talvez retirando os Vistos Gold – chegue a qualquer lado, a medida anunciada para as casas devolutas seria altamente prejudicial para o Governo. Não só assumiam os encargos das obras de recuperação como ainda pagariam uma renda aos proprietários. Isso seria uma forma directa de atribuir subsídios e valorizar o património de quem nunca fez nada por ele. Ou seja, seria um benefício directo, pago por todos, a uma parte da população que paga.

    brown and white concrete houses

    O Estado deve, de facto, recuperar os imóveis e metê-los no mercado de aluguer, mas o dinheiro gasto, que é do erário público, deve significar que a propriedade passa para a esfera pública. O contrário seria apenas um negócio de leão para alguns e mais um calote para a maioria.

    Voltando ao debate inicial – de ser necessário pedir aos privados com casas habitáveis e desocupadas que as coloquem ao serviço do Estado num regime de arrendamento –, parece-me um péssimo negócio para todos. Desde logo para os privados, que não devem ter grande interesse em negociatas com o Estado, que não é propriamente conhecido por ser bom pagador e muito menos ser ágil a executar. Imagino conflitos com os inquilinos mediados pelo Governo português. Uma pessoa até transpira só de pensar.

    Para quem precisa de casa também não vejo grande mais-valia ao ter, na prática, que lidar com dois senhorios, ainda que de forma indirecta.

    man in purple suit jacket using laptop computer

    E para nós, contribuintes em geral, também é uma medida bastante desinteressante, porque o preço do arrendamento, ao valor de mercado, seria na mesma elevado, com o Estado a pagar a diferença. Portanto, mais dinheiro dos contribuintes para pagar a especulação imobiliária.

    Mas o pior mesmo desta medida é a sua absoluta inutilidade e mostrar uma extraordinária falta de vergonha. Por que razão vem António Costa pedir casas a quem as comprou, em vez de dar o exemplo e reconverter o parque imobiliário público, devoluto, desocupado ou pouco utilizado, e colocando-o depois no mercado de arrendamento com preços reduzidos? O Estado já é o dono, alguns imóveis nem de obras precisam e assim podia-se controlar os preços sem ter de indemnizar fosse quem fosse. Visto assim, conseguiam-se mais casas com menos dinheiro dos impostos. Tenho a sensação de que em Portugal não gostamos de estradas rectas; precisamos sempre de adicionar umas curvas que ninguém pediu.

    Estava a pensar nisto, e lembrei-me que tenho de dar uma volta por Lisboa, no próximo regresso a Portugal, e fazer um levantamento de alguns imóveis públicos sem qualquer utilização. Mas claro, já nada se inventa neste mundo, e poucos dias depois da conferência de António Costa, já corriam pelas redes sociais fotos de imóveis desocupados ou devolutos com o selo do Estado.

    brown and white wooden table beside sofa chair

    Nesta última semana perdi a conta ao número de escolas fechadas, prédios desocupados, antigas repartições públicas, sedes de instituições que deixaram de o ser, casas térreas da GNR, do guarda disto ou do vigia daquilo. E o mais engraçado é que muitos destes prédios localizam-se no centro de Lisboa ou do Porto, onde aparece a maior parte dos pedidos de habitação. São as duas principais cidades do país e as suas cinturas urbanas que sofrem mais com esta temática da habitação, porque, como se compreende, também é ali que se concentra a maior parte da população portuguesa.

    Veja-se. Todos os dias surgem mais, todos os dias há alguém que faz mais um levantamento. Em duas semanas, de livre iniciativa e apenas por andar na rua, cidadãos anónimos conseguiram fazer o que o Estado português parece não conseguir. Há tantos, mas tantos imóveis públicos prontos a habitar com duas ou três idas ao IKEA e, eventualmente, pequenas obras, que não se compreende o que foi António Costa sequer fazer à apresentação do programa Habitação Mais.

    Se o Governo português quisesse, de facto, resolver o problema da falta de habitação, o primeiro passo teria sido mexer a enorme máquina burocrática e fazer um levantamento das casas que já pertencem ao Estado e que poderiam ser utilizadas. Depois disso, punham as mãos na massa e tratavam de construir fogos de habitação social.

    abandoned concrete house

    Mas, em vez de simplificar e usar os recursos existentes para resolver o problema das famílias que precisam já de uma casa, agora, o Governo português meteu-se numa embrulhada de burocracia e complicações legais, arriscando, com alguma certeza, nada ter para mostrar daqui a uns meses.

    Visto assim parece aquela lógica, usada nos tempos áureos de Santa Comba, de criar uma comissão para garantir que tudo ficava na mesma. Pergunto-me, por isso, se António Costa quer mesmo resolver o problema ou se tenta apenas agitar os braços para que acreditemos que algo está a ser feito.

    Quão estúpidos, pensará este homem, outrora hábil, que nós somos?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ucrânia: o que mudou em um ano? Eu respondo: essencialmente, nada

    Ucrânia: o que mudou em um ano? Eu respondo: essencialmente, nada


    Não quero entrar em grandes considerações sobre os discursos de Biden e Putin, agora que se completa um ano sobre o início da invasão russa, porque foram mais ou menos óbvios para quem os ouviu.

    No essencial, Putin falou para os russos, repetindo a narrativa de que foram empurrados para este conflito, e apelando ao patriotismo na defesa do país. Duas partes perigosas foram realçadas, a saída do acordo nuclear, que é mais uma forma de pressão para que o apoio à Ucrânia cesse.

    Pela primeira vez, que me lembre, Putin falou na defesa das fronteiras históricas. Ora. isso já é um embrulho maior, porque deve meter a Moldávia e coisas do género.

    blue and brown hand painting

    Já Joe Biden falou para o Mundo e vendeu uma ilusão que nem Zelensky deve ter acreditado: no fundo, a promessa de que a Rússia não vencerá nada na Ucrânia e mais um pacote estratosférico de dinheiro para acumular à dívida externa ucraniana. Ou seja, os Estados Unidos querem continuar a lucrar com esta guerra, que tem sido um excelente negócio, até ver. Enfraquecem os inimigos de sempre, vendem energia à Europa e ganham uma fortuna com as armas.

    Portanto, nada de novo: há que continuar a combater até ao último ucraniano e a empobrecer a Europa.

    O que me espanta nisto tudo são as análises tranquilas feitas por quem já fala em conflito nuclear como se estivéssemos a discutir se a pizza deve ou não levar ananás.

    Na CNN Portugal, dizia um professor – confesso que não me lembro o nome, mas tinha um discurso calmo e perceptível – que, se um confronto nuclear tivesse início, seria o fim da Rússia. E explicava a simples razão para tal vaticínio, pois a população da Rússia concentrava-se em três cidades: Moscovo, São Petersburgo e Vladivostok. A partir daí, a restante população estava espalhada pelas estepes da Sibéria, viviam em cabanas e vestem peles de tigre. Já nos Estado Unidos, este cenário não se verificava, porque a população se espalhava por muito mais cidades.

    Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia.

    O jornalista agradeceu a intervenção do professor, a quem disse que era sempre um gosto conversar e aprender com ele. Quanto a mim, como também gosto de aprender, fui ver as populações por cidade em cada um dos dois países.

    Os Estados Unidos têm cerca de 18 milhões de habitantes em quatro cidades: Nova Iorque, Los Angeles, Chicago e Houston. Já a Rússia tem essa população dividida por apenas duas cidades: Moscovo e São Petersburgo.

    Depois, podemos ver que os Estados Unidos têm mais cinco cidades com a população acima de um milhão de habitantes. enquanto a Rússia tem 14 cidades acima dessa fasquia.

    Assim à primeira vista, nessa análise de despejar bombas e matar a eito, até parece ser mais complicado fazê-lo na Rússia. Mas isto sou eu a dizer, que não sei quantas bombas nucleares são precisas para matar 1 milhão de pessoas.

    Vladimir Putin, presidente da Rússia.

    Esta discussão, confesso, é profundamente desinteressante, mas já que é tema em horário nobre, seria pelo menos útil que não nos continuassem a contar a história de que os russos se dobram facilmente.

    É que eu ainda estou para perceber duas coisas no meio deste conflito. A primeira é saber como nos andaram a vender, meses a fio, que os ucranianos, quais espartanos, andavam a dizimar os mal equipados russos, sem motivação e liderança. Eu li mesmo que seria indiferente mandarem mais reservistas para o terreno, porque seriam todos dizimados. Em que momento da História é que os russos foram dizimados? Contam assim tantos?

    Hoje, quando é óbvio para todos que a Ucrânia está presa por arames no campo de batalha, seja lá qual for o pedido da semana feito pelo Zelensky, a narrativa é a mesma. Enquanto a Europa se encolhe no apoio de tanques, a Rússia produz 40 por mês. Mas continuamos a ouvir discursos alucinados que rejeitam as negociações e que garantem a vitória ucraniana.

    Expliquem-me, como é que isto é possível?

    Joe Biden, presidente dos Estados Unidos.

    Como é que se termina esta guerra sem Zelensky salvar a face e Putin também? E, por favor, poupemo-nos às moralidades do invasor.

    Esse tema foi discutido N vezes, todos sabemos quem invadiu, todos sabemos quem não devia ali estar e todos compreendemos que o Ocidente joga uma cartada com vidas ucranianas (de outros invasores nunca quiserem saber, que me lembre).

    Portanto, sabendo toda a verdade, a razão e o certo a fazer, há ainda alguém que imagine que a guerra se termina no terreno? Como?

    Zelensky faz, e bem, o que pode para manter a Ucrânia na agenda sem cair em esquecimento. Mas mesmo que os Estados Unidos e alguns países europeus mande, armas de meses a meses, alguém acredita que conseguiremos mais do que um impasse eterno? Uma situação como a que a Coreia vive há décadas?

    people gathering on street during nighttime

    Percebo o odioso de deixar que Putin fique com uma fatia de terreno ucraniano, mas continuo a não conseguir ver, um ano depois, uma forma de vencer esta guerra sem que esta se transforme em guerra global. E mesmo assim tenho as minhas dúvidas.

    A China, que andou discreta até agora, assumiu agora um lado e juntou-se aos parceiros de sempre. A tal “Rússia isolada” está cada vez mais forte e já tem apoios em três continentes

    Não vou voltar a explicar que a forma como vejo a realidade não se traduz em apoio ao invasor. Gosto de repetir isto para que não restem dúvidas. Mísseis russos em Kiev ou israelitas em Gaza, representam para mim a mesmíssima coisa. Um invasor.

    Mas isso não me impede de ser prático na procura de uma solução. E não vejo, continuo a não ver, um ano depois, que isto se resolva no campo de batalha. A não ser que pensem numa guerra global, com intervenção da NATO e… mesmo assim não sei.

    wheat field

    Até ver, NATO, Estados Unidos e União Europeia (alguns países, não todos) parecem interessados em prolongar e garantir esta transformação no modo de vida dos europeus, o seu empobrecimento e a continuação da carnificina a Leste. O negócio continua a falar mais alto.

    Não acredito, por um segundo, que Biden e seus discípulos acreditem numa vitória ucraniana. Mas acredito que queiram continuar a vender essa ilusão.

    Aliás, na verdade, eles são, até ver, os únicos vencedores desta guerra.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mais habitação, uma mão (que parece) cheia de nada

    Mais habitação, uma mão (que parece) cheia de nada


    Depois de ouvir a apresentação do programa “Mais Habitacão”, fiquei com a mesmíssima sensação das conferências com medidas novas no tempo da covid-19: não percebo metade e, no fim, tenho mais perguntas do que respostas.

    Tirando aquela parte de ir sacar casas devolutas, tudo o resto é voluntário. Incentivos fiscais para quem quiser passar de alojamento local para arrendamento, ou 0% na taxação de mais-valias para quem quiser vender ao Estado. E se não quiserem? Montam-se tendas nos Jerónimos? Qual é o plano B nesta estratégia que depende da vontade alheia?

    dresser beside sofa

    Depois vem o cálculo do tecto das rendas: o valor da última somada à inflação anual e tal. Ora, em muitos casos, o problema está no início dessa frase: “valor da última renda”. Em princípio, foi essa que se tornou incomportável. Percebo a intenção, mas não sei se se ajuda alguém com essa fórmula de cálculo.

    Aos bancos é dito que serão obrigados a disponibilizar uma taxa fixa de juro… mas não dizem é quanto. Já na última vez que os bancos foram obrigados a renegociar créditos, na verdade não aconteceu nada.

    Esse é aliás um dos registos deste Governo: morosas apresentações públicas com medidas avulso, muitas com dúvidas na sua realização prática e, depois de acabada a teoria, pouquíssima concretização cá fora no mundo real.

    Por exemplo, sobre o mundo real, eu gostava que nesta hora em que o Governo apresentou medidas que ninguém percebe, tivesse começado por nos explicar, talvez, quantas famílias fizeram pedidos de casas, quantas estão sinalizadas nos bancos por rendas em atraso, quantas acções de despejo meteram senhorios em tribunal. Ou seja, números para percebermos do que estamos a falar e do que precisamos. São 100 casas? 1.000? 10.000? Um milhão?

    photo of canal between houses

    António Costa diz que as licenças de construção vão ser simplificadas, e menos burocracia será necessária para se arrancar com a construção. Acho óptimo. Mas quem é que isso ajuda? Os construtores, imagino. Ou, depois de feitas, essas casas vão para o mercado de rendas acessíveis?

    Também não percebi a reabilitação coerciva de casas devolutas. O primeiro-ministro diz que não é uma expropriação. Ai não? Então vão só recuperar a casa, metê-la a alugar e devolver a quem a deixou cair? Ui… já estou a ver os montes devolutos que se vão recuperar no Alentejo.

    E quando o Estado diz que vai comprar casas ao preço do mercado, dentro de uma tabela qualquer (dito pela ministra da Habitação) sem taxar mais-valias, o que é que isso significa em concreto? Eu começo logo a imaginar os amigos dos amigos que andam em redor destas elites que nos governam, a embolsarem pequenas fortunas, com isenção de mais-valias e sacos azuis para a reforma.

    É um defeito português, assumo, este de imaginar um esquema possível a cada nova regra. Mas com a experiência acumulada de assistir a desvios do erário público e enriquecimento ilícito da classe política, alguém me censura se começar a procurar buracos na narrativa?

    Marina Gonçalves, ministra da Habitação, António Costa, primeiro-ministro, e Fernando Medina, ministro das Finanças, na apresentação do pacote legislativo para a habitação na passada quinta-feira.

    Não ouvi nada, na conferência de imprensa, sobre casas desocupadas (habitáveis e não devolutas), mas já li qualquer coisa sobre leituras de luz e água para saber o quão ocupada é a casa anualmente. É capaz de ter sido um sonho e não uma coisa real. Tenho ouvido com cada disparate que, por vezes, já não sei diferenciar a realidade da ficção.

    Para já, e posso estar enganado, fiquei com a sensação de que este conjunto de medidas pode ser uma mão-cheia de nada, caso os bancos e os proprietários não colaborem. O fim dos Vistos Gold parece-me ser, de claras, a medida mais positiva. E a recuperação de casas devolutas também, se for bem aplicada. O resto é um “logo se vê”.

    Honestamente, sem a pura e dura construção de habitação social, não estou a ver como se resolve o problema das famílias que, por esta ou aquela razão, ficaram sem casa. É uma questão de opção, digo-o há anos. Menos BES, menos PPPs e menos auto-estradas e mais habitação, caso o artigo da Constituição seja para ser levado a sério.

    grey concrete ruins near green trees at daytime

    Consegui aguentar uma hora e 15 minutos da conferência de imprensa, até ao momento em que o Costa diz que o PRR – ao qual um jornalista tinha sugerido ir buscar dinheiro – não é uma conta-corrente ou a “mesada dos nossos pais”.

    António… olha bem, o PRR é, sem tirar nem pôr, a mesada dos nossos pais. Os velhotes chamam-se Urbano e Erica, já nos dão mesada há 35 anos e nós, perto dos 40, não há maneira de sairmos de casa e de os convidarmos para um jantar num daqueles sítios onde se come de garfo e faca.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Índia, uma história amorosa (e de odiosa tradição)

    Índia, uma história amorosa (e de odiosa tradição)


    As conversas começavam quase sempre com um “tu não percebes, vocês europeus não percebem”. Era a forma de ele me explicar que não existia a hipótese de se casar por amor.

    Ele é o Rohit, um miúdo que conheci aos 24 anos, no primeiro emprego que teve na Suécia. Era um entre uma legião de engenheiros que chegam aos países nórdicos para preencher os milhares de empregos que a população local não tem capacidade para corresponder.

    Desde o primeiro dia que mostrou três interesses muito fortes: fazer os pais felizes, ver montanhas e comer galinha com arroz, o famoso byriani da sua Hyderabad natal.

    Não sei quantas vezes vi este rapaz a comer byriani ao almoço. Umas centenas, certamente. 

    Ainda assim, o grande objectivo da vida era fazer os pais felizes. Disse-me variadíssimas vezes que a sua geração seria a última a sofrer. Casaria com quem os pais escolhessem e aos filhos daria total liberdade para escolherem as companhias para a vida.

    Durante anos escondeu uma paixão que tinha em Gotemburgo: Anna vinha da mesma cidade, trabalhava no mesmo sector e era amiga desde sempre. Tinham feito o percurso entre a escola em Hyderabad e o mercado de trabalho em Gotemburgo, juntos.

    Os pais não aceitariam o casamento, dizia ele, de cada vez que tentava convencer-se de que não valia sequer tentar. Eram de castas diferentes embora altas. Rohit e Anna não fazem parte da Índia que vemos nos filmes. O mundo deles é separado da realidade por muros altos e condomínios privados verdejantes.

    Os anos foram passando e fomos saltando juntos de projecto em projecto. Em todas as equipas onde trabalhei desde 2017, sugeri a contratação do Rohit. Desde logo porque é um excelente companheiro de jorna, mas, principalmente, para o poder proteger das agruras do mercado que não se compadecem com dramas indianos.

    O stress causado pela situação de não poder estar com quem queria, trouxe-lhe anos de noites mal dormidas, várias idas ao médico por doenças que apareciam não se sabia de onde, e, de quando em vez, risco de despedimento por causa das fugas para a Índia para acalmar os pais e tentar convencê-los que aquele era o caminho certo.

    Um dia telefona-me a pedir que vá com ele ao médico. Estava convencido que ia ouvir que tinha cancro e não queria estar só. Fomos juntos e, felizmente, era apenas um hospital privado que cobrava por cada consulta, mesmo aquela de três minutos para lhe dizer que não tinha nada.

    Perdi a conta ao número de situações destas que foram acontecendo ao longo dos anos. Certo dia atirou-se para o mar e, uma vez lá dentro, disse-me “a propósito, eu não sei nadar”. Depois de o “rebocar” para terra, passei a hora seguinte a ensiná-lo a boiar. Outra vez foi a conduzir um carro com caixa manual.

    Algures no tempo, o meu filho disse-me que parecia que tinha adoptado o Rohit. De certa forma, foi o que aconteceu com ele, a alternar a forma como me chamava: ora “velho rezingão”, ora “baba”.

    Até que cedeu à pressão e disse à Anna que nunca mais a queria ver. Iria cumprir o desejo dos pais, já não aguentava o drama 24 horas por dia. Nessa altura disse-lhe que estava a cometer um erro. Percebendo ou não, mesmo com os óculos europeus postos, só via a parte prática da coisa. Ele é um emigrante, vive 95% do tempo longe dos pais… Que raio importam as tradições?

    Disse-me que seria expulso de casa e rejeitado pela família. É muito drama junto, a que acresce o facto de ter de aturar uma mulher escolhida por outros.

    Se já é difícil acertar quando escolhemos no decorrer normal da vida, quanto mais quando aparecem num catálogo de qualidades e capacidades.

    Repeti. O drama não era o que a família pensava, mas sim a perda de um amor para a vida.

    Começou a ir a entrevistas e a conhecer as “pretendentes”. Nenhuma interessava. O pai fez muita força com uma candidata que vinha de famílias próximas do primeiro-ministro. Rohit ficaria garantido para a vida.

    Num sistema de castas não existe elevador social. Dinheiro puxa dinheiro, miséria puxa miséria. 

    Ele disse que não queria saber. De nada. Dinheiro, posição, as candidatas. Queria ver montanhas, ser feliz e livre. E comer byriani.

    Engonhou o mais que pode e Anna, curiosamente, fez o mesmo. Durante um ano foram rejeitando todas as hipóteses, até que Anna disse que esperaria por ele o tempo que fosse necessário. 

    É aqui que tudo muda e Rohit decide ir contra a família. Mais um ano de drama com cortes de relações, mais doenças e intermináveis conversas telefónicas ou viagens à India.

    Estamos em período de covid-19 e eu sento-me em frente à nossa chefe de equipa, de então, para a convencer a não despedir o Rohit.

    white concrete castle near body of water

    O avô aconselha o pai para que expulse o filho da família. Que raio de avô valoriza mais as tradições do que o neto? Sacana do velho, está aqui ao meu lado, enquanto escrevo isto, na Índia, com cara de poucos amigos.

    As ameaças são tantas por parte da família que Anna resolve desistir. Tem perto de 30 anos, e isso, em linguagem de tradição, significa que “ninguém a quer”.

    Rohit pede-me que escreva uma carta ao pai dele e fale com a Anna. Encontramo-nos num bar e, depois de duas cervejas, ela está convencida de que desistir não seria opção. Felizmente, não está habituada a beber, porque, se fosse uma portuguesa, ao preço da cerveja em Gotemburgo, aquela sessão tinha ficado pela hora da morte.

    Chegamos ao dia 15 de Fevereiro, a data escolhida sem consentimento do pai do noivo. Data que deixa a noiva a poucos dias de completar os 30 anos e casar, ainda, “dentro do prazo”. O pai de Rohit aparece no evento, cumpre a tradição, faz o seu papel, sem dirigir uma palavra à família da noiva. 

    two men walking on street

    O ambiente é pesado. O casamento dura três dias e os momentos estranhos sucedem-se. 

    Rohit aproxima-se de mim, com a cabeça cheia de arroz, depois de um ritual aos deuses de duas horas e diz: ” e agora, já percebes?”

    Disse-lhe que sim. Percebo. Percebo que vai voltar para a Suécia com a mulher que ama. Casado. E com a bênção dos deuses. Todos os três mil que devem existir.

    O amor venceu a tradição.

    Essa é que é a notícia. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma semana em modo Clara Ferreira Alves

    Uma semana em modo Clara Ferreira Alves


    Esta semana escrevo em condições um pouco mais difíceis, com pouco acesso à Internet, entre aeroportos e noites mal dormidas. Acompanho ainda de mais longe o que se vai passando em Portugal, mas, sempre que consigo uns minutos ligado “à rede”, oiço mais um disparate. Ou é coincidência e azar meu, ou, então, é o disparate que tem mais destaque sem que eu perceba porquê.

    Carlos Moedas, reagindo ao incêndio na Mouraria, que vitimou duas pessoas e revelou as deploráveis condições de vida de outros tantos, dizia que só deveríamos aceitar novos imigrantes com contratos de trabalho. Não sei se perceberam, mas a dado momento desta história deixaram de ser duas vítimas mortais do acidente e passaram a ser dois imigrantes, dois indianos.

    Vi inclusivamente quem tivesse escrito que, afinal, o fim dos alojamentos locais tinha aberto lugar para ocupações de indianos, paquistaneses, nepaleses. Como se entrassem em casa das pessoas sem pedir. Como se não pagassem uma renda. Como se não fossem eles a viver em condições degradantes.

    O discurso de Moedas confundiu-se com o de Ventura, que por sua vez se alinhou com o de Montenegro. Há cada vez menos linhas vermelhas entre PSD e Chega, e vai ficando óbvio o que aí vem nas próximas legislativas. Uma coisa é certa: os indianos ao monte na Mouraria são responsáveis pelo estado de degradação das casas naquela zona. Não só vêm para cá roubar empregos de sonho no UberEats como ainda ficam com as casas decrépitas dos bairros lisboetas… Um flagelo, não é?, que urge acabar…

    Apanho uns minutos no aeroporto seguinte, e eis uma portuguesa, a viver na Síria, a queixar-se aos microfones da RTP da falta de solidariedade depois do terramoto. Todas as ajudas chegam à Turquia e para a Síria, segundo ela; e nem uma equipa com um caniche se vê aparecer. A solidariedade é sempre aquele pau de dois bicos fácil de explicar, mas difícil de compreender.

    Três aeroportos depois, chego ao Bahrain, uma pequena ilha no meio do Golfo Pérsico, sensivelmente do tamanho de Berlim. Um país riquíssimo, com apenas 1,5 milhões de habitantes, dos quais quase metade são imigrantes dos vizinhos asiáticos mais pobres: indianos, filipinos, paquistaneses, nepaleses e todos os que aceitam viver na escravatura moderna que representam as cidades emergentes nos desertos da Península Arábica.

    De Riade a Manama, de Doha ao Dubai, o conceito é o mesmo: cidades futuristas feitas para atrair americanos e europeus, promessas de oásis verdejantes no meio do deserto com todos os luxos em países onde a água é um bem escasso; e ali ao lado, bairros degradados que abrigam a metade da população que é explorada e que aceita esta vida, porque, apesar de tudo, ainda conseguem enviar dinheiro para as famílias.

    Não há conversa sobre a dignidade ou sequer sobre as condições de trabalho. Foi tema durante o Mundial devido à visibilidade do evento, mas há mais de 10 anos que já vejo esta realidade. Em Doha, no Dubai, em Abu Dhabi e agora no Bahrain. É a escravatura do século XXI para deleite dos turistas, dos investidores, da minoria da classe média alta que por aqui passeia em carros enormes e com gastos de combustível que, na Europa, nos dias de hoje, seriam apenas absurdos.

    Acresce que a ponte que liga esta ilha ao território saudita, transforma-a numa espécie de Algarve onde os vizinhos, com mais restrições do outro lado, vêm passar fins-de-semana, beber sem controlo e fazer barulho com potentes carros. Imagino que seja por isso que num espaço tão pequeno existam centenas de alojamentos e, pelo que observo, tentam aumentar o país criando várias ilhas artificiais. Para quem já passou no Dubai, o Bahrain caminha para lá com cerca de 10 anos de atraso. Mas a receita é a mesma.

    Visito a principal mesquita da cidade (Al Fateh Grand Mosque) e constato o habitual de cada vez que entro num templo religioso. Seja de que fé for, nada do que oiço faz sentido ou encaixa na forma como vejo o mundo. Lá fora, pelas portas gigantes de madeira indiana trabalhada à mão, consigo ver trabalhadores em condições miseráveis, debaixo de um sol abrasador, a construir um novo arranha-céus, provavelmente com salários pouco decentes.

    Lá dentro, no local de devoção, explica-me o guia que todas as carpetes, feitas com lã de ovelha, vieram da Irlanda do Norte, os candeeiros chegaram de Viena e Paris, o mármore é italiano. A mesquita, com espaço para sete mil pessoas, custou vários, variadíssimos, altares das Jornadas Mundiais da Juventude, quando foi construída na década de 80.

    Diz-me o senhor que a responsabilidade mais importante de um muçulmano é a devoção. Diz o profeta, nas Escrituras, que “criei cada um de vocês para que me pudessem adorar”. E é isso que é aceite. Devoção e adoração nas preces diárias. A responsabilidade de cada crente, segundo a explicação. Ajuda do profeta, em caso de necessidade, um direito de cada muçulmano.

    Eu oiço, oiço e oiço, mas não questiono. Sinto-me num mundo paralelo quando o senhor me explica que o profeta é responsável por tudo o que vemos. Aquelas paredes, aquelas construções, tudo. Lembro-me também daquele senhor que disse, a propósito de terramotos, que os engenheiros civis portugueses mentiam muito nas construções que validavam. O que dirão os do Bahrain então? Fazem cálculos de estruturas, levantam aquelas paredes e cúpulas e, no fim, o Profeta é que assina.

    Faz-me lembrar aquela vez em que, ao lado de um casal coreano em Belém, na Palestina, um guia local apontou para o céu e disse: “aqui passou a estrela que anunciou o nascimento de Jesus Cristo”. O coreano ao meu lado levantou a máquina e tirou uma fotografia a uma estrela que, dizem, ali passara dois mil anos antes.

    Tudo isto me faz impressão. Nada disto faz sentido para mim. Mas vou. Oiço, tento perceber como pensam, no que acreditam ou de que forma se relacionam com o mundo. Muçulmanos, cristãos, hindus, budistas… No que a religiões diz respeito, sou de igual forma ateu para todas.

    Leio algures que os portugueses passaram nesta ilha, no século XVI, na altura em que queriam garantir as rotas no Golfo Pérsico com fortificações no Omã e, aparentemente, nesta ilha. Lá está um forte português, muitíssimo bem conservado, como uma das principais atracções do país. Curiosamente, conseguem manter e rentabilizar uma relíquia feita por nós, algo que, a avaliar pelas muralhas que vão caindo no Alentejo, não parecemos ter grande interesse em fazer dentro de portas.

    Ao quinto aeroporto, vários Xanax e copos de vinho depois, tal Clara Ferreira Alves nas suas histórias de viagem, chego finalmente à Índia. A tempo de assistir à conclusão de uma história de amor, um casamento proibido entre castas diferentes e não aceite pelas famílias.

    Outra realidade com uns séculos de atraso e que, à luz de um europeu, não faz sentido. Mas faz para mim, que acompanhei durante anos os dramas de quem lutou para que este dia chegasse, e que aceitou ir contra tudo por amor.

    Um dia disse-me o meu amigo: “Não sei se o meu pai lá estará no dia do casamento… Podes ficar ao meu lado?”. De modo que fui comprar mais uma caixa de Xanax. Não perderia isto por nada.

    A história, as cores, as lágrimas e os cheiros, no próximo texto.

    Até lá.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Monotema: esse massacre que nos esfrangalha as notícias

    Monotema: esse massacre que nos esfrangalha as notícias


    “Parem tudo o que estão a fazer: temos jackpot!” Esta é a frase que imagino sair da boca de um editor-chefe numa redacção portuguesa poucos minutos depois de uma catástrofe. Depois, consoante o tamanho da desgraça, a máquina começa a funcionar sem pudor durante dias, semanas ou meses. Vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, sem parança, sem limites, muitas vezes sem interesse.

    O massacre é tal na exploração da dor e do sofrimento alheios que, a partir de certo momento, tudo nos parece igual, banalizamos a perda, já nem ligamos à morte. Contabilizamos números, especulamos sobre o que podemos e fazemos o sofrimento render de forma pornográfica.

    O recente terramoto no sul da Turquia, junto à fronteira com a Síria, é uma calamidade de uma dimensão que me custa sequer a imaginar. Mais de seis mil edifícios colapsaram e, até ver, o número de vítimas mortais já ultrapassou a barreira dos nove mil. Ao fim de três dias ainda se procuram sobreviventes por debaixo de toneladas de betão.

    Como espectador do fenómeno, há sem dúvida um par de informações que gostaria de perceber: a rapidez das forças de resgate para chegarem ao local; as condições geológicas daquela zona e o seu risco sísmico; em caso de ser uma área onde os sismos são comuns, o que tinha sido feito para preparar um cenário destes ao nível da construção e do resgate; que países estão a ajudar no terreno e como.

    Sabendo de antemão que o sismo afectou cidades já de si massacradas por pobreza e guerra (uma delas, por exemplo, é Alepo, na Síria), também seria interessante saber de que forma a comunidade internacional se está a juntar para enviar ajuda financeira.

    Bem sei que ninguém pediu tanques Leopard por aqueles lados, mas em princípio também vão precisar de uns trocos. Li algures que o regime talibã enviou 160 mil dólares. Se gente sem grande consideração pela vida, e mais pobres do que os afectados, conseguem fazer qualquer coisa, espero que a Ursula, o farol da liberdade e da solidariedade, possa fazer uma vaquinha em Bruxelas e enviar qualquer coisa mais substancial.

    Apesar do interesse da notícia e dos seus desenvolvimentos, o que observo na comunicação social portuguesa, em especial nos canais de informação 24 horas, é uma repetição da estratégia do monotema, levando qualquer espectador à exaustão e ao desinteresse. São horas e horas de transmissão com comentários de gente que parece que está a ler nos búzios, histórias paralelas sem interesse nenhum, e a cada 10 horas lá aparece um facto que realmente conta ou um desenvolvimento da situação real. É preciso uma paciência de Jó para levar com intermináveis directos na esperança de perceber alguma coisa sobre o que está aquela gente a passar.

    É um “remake” da covid-19, da Ucrânia, do Ronaldo, das cheias, dos emigrantes em Odemira, da TAP, da invasão dos apoiantes do Bolsonaro ou do Trump, dos incêndios, do Brexit, do funeral da rainha, dos bilhetes dos Coldplay… eu sei lá.

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    Quando é que começou esta moda do monotema?

    Quando eu era miúdo só havia um canal (sim, meninos, a vida já foi bem melhor) e lembro-me que, enquanto gramava a pastilha dos desenhos checos do Vasco Granja só para ver a Pantera Cor-de-Rosa ou o Dartacão, ouvia notícias variadas e não tinha tempo para decorar nada. Hoje, com centenas de canais, todos parecem dizer o mesmo horas e horas a fio. Com melhores ou piores especialistas, técnicas menos ou mais apuradas na arte de encher chouriços, ou mesmo sem qualquer vergonha no que toca a rentabilizar o sofrimento humano, fico sempre com a sensação que, visto por quem alinha as notícias, quanto mais sangue, melhor.

    Dei por mim a ouvir uma discussão sobre o “e se fosse cá?”, a propósito do terramoto turco. É algo muito português e que nos leva a ver o mundo pelo nosso umbigo. Precisamos muito de ter um pé em cada drama alheio, até para podermos estabelecer um novo caminho de medo, especular mais umas horas num estúdio de televisão e, se possível, criar uma realidade alternativa de ses, que vendam mais uns litros de sangue.

    Nós somos o país que faz notícia de um cão de água português no jardim do Obama, e que fala de como seria se Putin chegasse a Lisboa, umas horas depois dos russos meterem os pés no Donbass. No terramoto do Japão ou no tsunami da Tailândia, imaginamos cenários semelhantes no Chiado ou no Tejo. Adoramos divagar. Somos um povo de poetas.

    printing machine

    Um engenheiro civil português explicava a desgraça que acontecerá em Lisboa no próximo sismo de 1755, porque, nas palavras dele, os seus colegas são ligeiramente aldrabões, mal pagos e assinam obras sem grandes vistorias de segurança. Portanto, estamos no trilho para a catástrofe. Imagino que o homem saiba do que fala – quem sou eu para duvidar –, mas pergunto-me: de que forma é que isso nos ajuda a perceber o que está a acontecer na Turquia?

    Noutra emissão, perguntava o pivot a uma das comentadoras que costuma falar da Ucrânia (deduzo que estejam com falta de pessoal), se a Turquia não iria apoiar menos algumas áreas afectadas onde a maioria era curda. Ou seja, deixar que o betão fizesse o trabalho por eles e chegar lá com os bombeiros daqui a duas semanas só para recolher os corpos.

    Ora… este nível de pergunta já é ao nível da lama, mas o que se espera, verdadeiramente, que a comentadora de serviço faça para além de especular um bocado ou tentar inventar um lugar-comum qualquer que não soe tremendamente estúpido? Assim de repente, lembrei-me dos comentadores que juravam que o governo sueco, enquanto “matava” velhinhos com covid-19, estava a tentar poupar nas pensões de reforma…

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    Ouvi ainda discussões sobre a demora do Governo português a enviar ajuda, ou até entrevistas a bombeiros super-felizes e excitados com a hipótese de entrarem em acção porque, cito, “treinámos a vida toda para isto”. Dito a sorrir! Tudo serve para vender, a morte é um dano colateral.

    Com uma montanha de cimento e ferro, restos de um prédio que desabara, e um homem lá em cima com uma rebarbadora a tentar libertar alguém, a jornalista pergunta a um especialista da GNR: “diga-nos, o que estamos a ver aqui?”. O homem, com esforço, passou os cinco minutos seguintes a explicar como são importantes as máquinas pesadas para levantar blocos de cimento. Não fosse alguém pensar que era trabalho para os Avengers ou até para o Godzilla.

    Decididamente, não consigo perceber o interesse de encher horas de emissão com 0% de informação. Seja em que tema for. Não compreendo bem em que altura do desenvolvimento humano entrámos nesta estrada. Ao fim de dois dias desisti de acompanhar, porque simplesmente se tornou insuportável. Não consigo aturar mais 5 minutos de venda de sofrimento alheio em horário nobre, e acabo por procurar outras fontes, nomeadamente imprensa escrita, para compreender o que por ali vai acontecendo. Interessa-me perceber quantas pessoas vão encontrando com vida, já que é essa a informação essencial, sem ter de ouvir horas de emissão e discussões repetidas sobre o sexo dos anjos.

    2 white egg on persons feet

    Era isso que imaginaria que um canal noticioso me daria: notícias. Curiosamente só ouvi o número de sobreviventes da boca do Erdogan – e este não é rapaz que eu costume confiar muito, mas, à falta de melhor, tenho de acreditar que já salvaram mais de oito mil pessoas. Fico contente por elas, e não consigo sequer sonhar aquilo pelo que passaram e o que lhes deve ir na cabeça neste momento.

    Por fim, espero que a solidariedade apareça, em força, para turcos, curdos e sírios. Gente que, por aquelas paragens, já está habituada a sofrer, mesmo quando não é notícia.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um passeio dos banqueiros pelo Colombo: dava jeito!

    Um passeio dos banqueiros pelo Colombo: dava jeito!


    Corria o ano 2000, se a memória não me falha, quando vi uma senhora a entrar num autocarro, ali para os lados de Union Square, em Nova Iorque. Tinha o aspecto de quem fazia da rua o telhado de casa. Numa mão carregava uma garrafa embrulhada num saco de papel, e na outra um gorduroso Big Mac. Lembro-me de ter pensado que aquela coisa, cuja utilidade nunca percebera nos filmes, o saco de papel à volta da garrafa, existia mesmo.

    Falando enquanto alguns pedaços de pão lhe iam caindo da boca, a senhora vociferava sobre as condições de vida e o custo da alimentação. Gritava, para que todos ouvissem, que era mais barato comer no McDonalds do que ir ao supermercado e cozinhar. Isto, claro, partindo do princípio que conseguiria encontrar uma cozinha onde pudesse confeccionar qualquer coisa.

    Time Square, New York during daytime

    O que me pareceu caricato na altura, na inocência dos 20 anos, era a disparidade entre os rios de dinheiro distribuídos ali ao lado em Wall Street e a quantidade de pessoas nos quarteirões adjacentes que, tal como aquela senhora, resumiam as suas posses ao que o McDonalds conseguisse embalar. Comia-se por quatro dólares. Era, de facto, mais barato do que ir ao supermercado comprar qualquer coisa com menos óleo e plástico.

    Duas décadas depois, estamos lá outra vez. Não apenas na meca do liberalismo, mas também na Europa que, outrora, já foi mais justa e solidária na distribuição de riqueza.

    Lembrei-me desta senhora quando saí do supermercado, ontem, com 300 gramas de mirtilos e 500 gramas de uvas, a troco de 10 euros. Por norma o meu filho come os mirtilos como se fossem água e, desta vez, quando o vi abrir a mão naquela caixa de fósforos, como se estivesse a tirar pipocas, disse-lhe: “vai como calma que estás a comer pepitas de ouro”.

    Pelo preço das uvas e dos mirtilos, poderíamos ter almoçado os dois um Big Mac, e assim tudo o que consegui foi um complemento para adicionar ao iogurte e tentar disfarçar o aborrecimento que é a oferta de derivados num supermercado sueco.

    Quero eu comer Big Macs? Nem por isso. Preferia bifes da Jonet ou framboesas daquelas que nos chegam de Odemira, de preferência sem pele de nepaleses explorados. Mas constato que o Mundo está a entrar numa espiral de pobreza, para a qual, até ao momento, só ouvi a “solução” de que em 2025, por artes mágicas da Economia (são todas), a inflação voltaria aos 2% – e, quem sabe, por essa altura, até poderemos comer um melão ou uma manga em terras frias.

    Depois de dois anos sem nos podermos mexer, sobram agora mais dois suportados por papas, bolachas, arroz e pêra-rocha. Quem saiu da covid-19 sem camada adiposa extra ainda vai a tempo de se candidatar durante o período em que a Lagarde mandar no Mundo.

    Todos os dias me faço a mesma pergunta: o que acontecerá quando um número razoável de pessoas não tiver habitação, comida e ajuda social? Começam a roubar? Começam os protestos em massa? Começa a revolução?

    No meio destes pensamentos corriqueiros de um anónimo pai de família, leio as declarações do CEO do Santander que, resumidamente, não notava grandes mudanças nos créditos da classe média e que os padrões de consumo se mantinham, como, por exemplo, jantar fora à sexta-feira. Deduzo que por aqui se depreenda que, como ainda há consumo, a inflação não está a baixar tão depressa como se desejaria.

    person standing beside stroller

    Bom, bom, era que nos fechássemos todos em casa, e de lá saíssemos apenas para produzir e gerar lucros para outrem. Nada de viver – isso deixemos antes só para os ricos. Pedro Castro e Almeida (estes gajos precisam sempre de três nomes) ainda disse que as poupanças durante a pandemia da covid-19 estavam a ajudar a que os padrões de consumo não se alterassem.

    Intriga-me esta frase, e já a ouvi a vários economistas. Como é que se poupa com 900 euros líquidos por mês? É que é esse o salário máximo de três quartos dos portugueses. Expliquem-me como é que se poupa a esmola a que chamam salário? Temos quatro milhões de Houdini?

    Tenho uma certa curiosidade – mórbida confesso – para ouvir uma conversa entre banqueiros. Um dos requisitos de tal estirpe parece ser a total falta de contacto com a realidade em simultâneo com a sensibilidade de um elefante numa loja de porcelanas. É difícil, mesmo com alguma imaginação, pensar numa frase mais estúpida de ser dita por um milionário num período como aquele em que se vive em Portugal.

    É importante que percebamos o que se vive em Portugal. Mais de 40% das pessoas estão no limiar da pobreza antes das transferências sociais. Ou seja, num regime político como aquele que o Chega ou a Iniciativa Liberal defendem, praticamente metade da população estaria no limiar da pobreza.

    Neste cenário, com gente a sofrer diariamente e com salários que não chegam ao fim do mês, eu espero, a bem da sanidade mental, que se por acaso vos der gosto ir jantar fora, que o façam. À sexta, ao sábado, à quarta. Quando vos apetecer.

    Esta coisa de se achar que a classe trabalhadora deve viver para produzir riqueza para os outros e, sempre que faz algo fora desse percurso (casa-trabalho), está a viver acima das suas possibilidades ou a pisar terrenos que não são seus, nem chega a ser um pensamento burguês, de tão rudimentar que é. Aliás, é mesmo pensamento de um filho da puta, que acha que quem trabalha só está no planeta para servir os interesses do capital e de banqueiros como ele.

    Aqui há uns anos, enquanto Pedro Proença passeava no Colombo, ali em Lisboa, um adepto do Benfica cruzou-se com ele. Para quem não sabe quem foi Pedro Proença, era uma espécie de Artur Soares Dias na primeira década do século XXI. Mesmo método, mesmo patrão, mesma recompensa… O adepto que o reconheceu, depois de lhe perguntar o caminho para a FNAC, ofereceu-lhe um voucher de desconto para usar no dentista – e, assim, conseguiu refazer-lhe o corta-palha.

    person walking inside building near glass

    Pergunto-me se o Salgado, o Ulrich – o do “ai-aguenta-aguenta” –, o Gonçalves, o Loureiro e este Castro e Almeida não se cansam de jogar golfe na Comporta e não sentem vontade, aqui e ali, de ir dar uma volta ao Colombo. Ou ao Corte Inglés, que é mais requintado.

    São momentos mágicos, e surpresas ao virar de uma esquina, que podem estar a perder. Sem necessidade – até porque são gratuitos e dados de boa vontade.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dia em que a Mariana sonhou com a Bielorrússia

    O dia em que a Mariana sonhou com a Bielorrússia


    Gosto de Mariana Mortágua. É para mim a melhor e mais bem preparada dirigente do Bloco de Esquerda. Raramente diz coisas com que discordo largamente, mas, quando assim sucede, é com estrondo e a várias milhas náuticas ao lado.

    Com a falta de casas e o problema das rendas elevadas, Mortágua veio então achar que uma boa solução seria obrigar os senhorios a arrendarem e, não satisfeita, propôs a colocação de um tecto máximo no valor mensal. Segundo ela, o direito à habitação tem de ser mais importante do que o direito à propriedade.

    Mariana Mortágua

    Vejo vários problemas nesta proposta, embora, de facto, concorde que o direito à habitação deva ser prioritário relativamente à propriedade. O primeiro obstáculo que me ocorre é este: um senhorio vê a prestação do banco subir por causa das taxas de juro e, com algum jeito, fica com uma renda alta, faraónica e quase incomportável. Se o tecto for inferior a esse valor tem, ainda assim, de alugar a casa e pagar para alguém lá viver?

    Depois, como é que se permite o direito à propriedade privada, mas se diz às pessoas o que fazer com ela? Não faz muito sentido. Eu sei que a Mariana Mortágua não tem responsabilidades de governação, mas isto parece uma forma de colocar o contribuinte a resolver os problemas do Estado. E a forma de os obrigar é com um agravamento fiscal qualquer?

    Depois de impostos de selo, IMT, IMI e todas as taxas e taxinhas que cobram a quem compra uma casa, ainda se sacava mais qualquer coisa? É, de facto, de bradar aos céus imaginar que a classe média-baixa, a tal que compra uma casa, ainda tem alguma coisa no bolso para ser sugado.

    Se esta sugestão passasse a lei, emigrantes como eu, que vivem entre dois países, teriam de passar a acampar ou comprar anuidades em hotéis.

    O Governo que andou a distribuir vistos gold e a contribuir para os preços absurdos da habitação ou até a autorizar alojamentos locais em cada esquina, contribuindo para a voracidade do lucro fácil e mais famílias na rua, podia e devia ter antecipado esta situação. Não acordámos em 2023 com rendas elevadas e uma bolha imobiliária formada pela especulação. Há pelo menos uma década que andamos a ver isto.

    Aquilo que poderia então a camarada Mariana sugerir em vez de querer decidir sobre a propriedade alheia? Podia, por exemplo, elaborar uma lei que impedisse que uma só pessoa tivesse várias casas e vivesse de rendas. Não é nada original, já existe há décadas na Suécia e foi uma das formas de combater a falta de habitação. Por estes lados, uma pessoa não pode manter mais do que uma casa numa cooperativa de habitação. Em caso de mudança de morada tem até dois anos para se libertar da casa anterior. Se fosse o PCP a sugerir algo do género seria uma medida estalinista; sendo uma prática de “louros”, deduzo que já não choque ninguém. A mim pelo menos não incomoda e, de facto, liberta mais casas para o mercado. E com mais casas disponíveis, lá está, os preços baixam. Ou não sobem tanto, vá.

    Esta parece-me ser uma forma perfeitamente legítima de limitar o direito à propriedade com a qual concordo. Precisamos de uma casa para viver; não precisamos de várias para lucrar.  

    Outra ideia para a Mariana seria, de facto, copiar a solução das cooperativas de habitação. Uma vez mais recorrendo ao exemplo escandinavo (não gosto de o fazer mas é tão óbvio que tenho mesmo de o usar), conto uma história do século passado: quando os suecos perceberam que não havia casa para todos (o que neste fim de mundo gelado é um problema), criaram cooperativas de habitação. Dali resultaram casas simples, de linhas direitas, em quantidade suficiente para a população. Foi uma opção política. Casas em vez de estradas.

    Como tudo na vida, o dinheiro não estica. Volto ao mesmo. Em Portugal multiplicámos PPPs, Salgados e Ferreiras do Amaral. Na Suécia construíram-se casas, escolas e hospitais. Opções. Sempre opções. A intenção foi boa, as pessoas passaram a ter um tecto decente (a especulação depois rebentou com os preços mas é uma história para outro dia).

    Ora… Portugal podia fazer o mesmo. Menos web summits, menos jornadas do Papa, menos resgates ao BES e menos apoios ao Mário Ferreira. Mais casas simples, de linhas rectas, com janelas grandes e chão revestido a madeira para evitar o frio.

    Opções políticas; daquelas que já deviam ter sido tomadas quando o Cavaco começou a sonhar com auto-estradas; daquelas que a Mariana, hoje, com 40 anos de atraso, devia pensar e levar à Assembleia da República, em vez de vir apertar quem já está cheio de nódoas negras.

    Nota final: Entretanto, por “necessidade de orientação”, quis testar a ferramenta da moda, o ChatGPT, perguntando-lhe directamente: “A deputada Mariana Mortágua tem razão quando defende que os senhorios deveriam ser obrigados a arrendar as suas casas?

    A resposta veio pronta:

    Como modelo linguístico IA da OpenAI, não tenho opiniões pessoais. Cabe aos legisladores e à sociedade decidir sobre questões legais e éticas, como essa. No entanto, pode-se argumentar que, em um mercado de aluguel [o ChatGPT aparentemente escreve em português do Brasil], a obrigação de arrendar casas por parte dos senhorios pode resultar em uma distribuição mais equitativa do acesso à habitação e ajudar a reduzir a crise habitacional em algumas regiões. No entanto, também pode ser argumentado que tal medida restringe a liberdade do proprietário e pode desincentivar a construção de novas casas. É importante levar em conta as perspectivas econômicas, sociais e legais ao debater essa questão“.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nascer numa ambulância? É muito melhor em Portugal do que na Suécia

    Nascer numa ambulância? É muito melhor em Portugal do que na Suécia


    Na Suécia, faço o que posso para evitar hospitais enquanto o meu filho se esforça, todos os anos, para irmos acompanhando as obras do hospital pediátrico. A cidade de Gotemburgo tem apenas três hospitais, sendo que um deles, o mais virado para a pequenada, está em obras ao estilo da Sagrada Família. Já me esqueci quando começaram e não faço ideia se lhes verei o fim.

    Sempre que lá entro vou a reclamar da vida. Ora traz um pé amassado, um braço inchado ou qualquer outra marca de guerra resultante de futeboladas disputadas com temperaturas negativas. Certo como o destino, vou ter de passar pelo raio-x, e isso num hospital que parece um estaleiro significa que vou andar a fazer os 800 metros obstáculos.

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    Começo num edifício para dar entrada da ocorrência. Uma espécie de recepção e primeira triagem. Já conheço a cantiga de cor e segue-se, por norma, a caminhada para o bloco “lá de baixo”, onde está a radiologia. Por fim, atravesso outras duas ruas para que o puto seja visto por um médico, num terceiro edifício, aí a uns 600 metros de distância.

    Estivéssemos nós em Nassau e nada disto seria problemático, mas na Escandinávia, no pico do Inverno, andar ao pé-coxinho a fazer voltas olímpicas entre rajadas de vento, neve e temperaturas negativas, é todo um filme de terror.

    Rezo-lhe pela pele, em silêncio, quando me lembro que sou eu que o incentivo a não ficar em casa a olhar para um ecrã.

    Raramente vejo muitas pessoas nas salas de espera; começo a constatar isso. Macas espalhadas por corredores nunca vi mesmo, nestes 17 anos que por cá ando. E vou decorando um cheiro característico, nas salas, nos corredores, nos consultórios, que não é mau. Tudo está limpo. Há muito espaço disponível. Não vejo funcionários a receberem gritos nem situações de desespero. Para hospital, disfarça bem. Ou pelo menos daquilo que me lembro das urgências da minha juventude passada no Santa Maria, em Lisboa.

    Fico, ainda assim, aborrecido com o tempo que ali passo. Uma, duas e às vezes três horas. Depois lembro-me que em Portugal demoraria cinco horas até fazer um raio-x e outras cinco para ver um médico – e respiro fundo. Também não sou grande fã de médicos escandinavos.

    Estava habituado a entrar num consultório e acatar ordens. Aqui perguntam-me o que acho. Ora, por muito amigo que seja de opinar, não tenho grande talento para identificar maleitas no corpo humano pelo que, quando vejo um amigo de bata branca, quero que ele me explique tudo, não me pergunte nada e, de preferência, que o faça sem ir ao Google.

    Noto que arriscam diagnósticos sem fazerem muito exames para pouparem no orçamento e aí, também, sinto-me mais confiante com a escola portuguesa que manda vir 200 exames e depois vai excluindo hipóteses. Mas compreendo que do ponto de vista da sustentabilidade crie mais complicações.

    A falta de confusão nos hospitais suecos e o acesso à saúde por parte da população, com menos médicos por habitantes do que em Portugal, é conseguido à custa de um sistema de triagem mais ou menos oleado. Primeiro telefonamos e recebemos indicações do que fazer em casa. Se for mais espinhoso, vamos para o centro de saúde. Se for mesmo agreste ou fora de horas, vamos para o hospital.

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    Lembro-me, por exemplo, de quando o meu filho ainda era bebé, ligar desesperado para a linha de apoio para perguntar o que fazer ao fim de dois dias de febre alta. Do outro lado da linha, uma enfermeira toda calma disse: “Espere mais 24 horas. Se a febre não passar ao fim de três dias, já pode ir ao hospital”.

    Em Portugal teria ido ao fim de três horas, aqui fui ao fim de três dias. Não faço ideia qual estará correcto, mas percebo que o facto de evitarem que pessoas constipadas vão para as urgências, deixa espaço para o hospital estar disponível para quem de facto precisa de lá ir. Deve ser, por isso, que nunca vi gente espalhada pelos corredores ou a morrer enquanto esperava numa maca, como vi no Garcia da Orta.

    Imagino que seja uma questão racional e de alguma lógica, ainda que emocionalmente nem sempre se apresente como óbvia. No fundo, trata-se de gerir os recursos existentes da melhor forma possível. Não é perfeito o SNS sueco, traz de quando em vez umas irritações, mas claramente funciona. Uma visita ao hospital não é um martírio de 10 horas, a alternativa nunca é um privado que nos leva couro e cabelo. E o custo para uma criança é zero. Mesmo zero. Nem uma taxinha que se veja.

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    Sempre que volto para casa, venho a pensar nas opções que cada país faz. No fim das contas é sempre uma opção política, uma visão de futuro, uma estratégia de desenvolvimento. Estas coisas não acontecem aos trambolhões. São opções. A sustentabilidade do SNS sueco faz-me perceber que não destruir o nosso teria sido apenas uma questão de opção política durante décadas. E porquê? Porque a Suécia, face a Portugal, consegue garantir cuidados de saúde a uma população mais ou menos igual à nossa, com menos hospitais, menos médicos e equipamento de primeira linha.

    Serão mais espertos do que nós? Não. Têm apenas outras prioridades e fizeram escolhas diferentes.

    Como é que o fazem? Bom, para começar, investindo quase o dobro do que Portugal investe em saúde pública por habitante. Pura opção política, à qual se junta um nível de corrupção bem menor, que nestas coisas da distribuição do dinheiro dos impostos é sempre uma mais-valia.

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    Outra forma de perceber como chegamos aqui é ver onde Portugal escolheu gastar mais do que a Suécia. Por exemplo, durante a década de 90 e a primeira deste século, Portugal gastou entre 1% e 1,5% do PIB em estradas. Já a Suécia, no mesmo período, gastou entre 0,5% e 0,7% do PIB. Confirmo que, em 2023, as estradas portuguesas dão 15 a 0 às suecas.

    Temos um pavimento rodoviário que parece a pele da Salma Hayek depois do banho de leite de orca. Isso ninguém nos tira e, com propriedade, se dirá que, a nascer numa ambulância, seja então em Portugal onde o alcatrão é mais direito e o recém-nascido não corre o risco de cair da marquesa num solavanco inesperado.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Raspe-se uma parede no Vaticano

    Raspe-se uma parede no Vaticano


    Em Maio de 2022, por responsabilidades parentais, dei comigo meio perdido numa pequena igreja plantada no meio do Atlântico, a ouvir um grupo de escuteiros que cantava várias melodias com a palavra “senhor”. Não sou grande ás da religião, mas julgo que se referiam a Ele. Perguntei aos crentes que cruz enorme era aquela de que todos falavam, ali exposta, e simpaticamente explicaram ao ateu que era a cruz que andava pelo Mundo todo, durante anos, até chegar ao local de uma das jornadas da juventude, que em 2023 aconteriam em Lisboa.

    A minha relação com a religião, qualquer uma, é de profunda e interessada distância. O que penso sobre o tema daria outro texto, daqueles bons para levar pancada de criar bicho, e como tal fica para outro dia. Percebi nesse concerto, olhando para a dita cruz, que algures em 2023, Lisboa seria invadida por miúdos com mochilas, fiéis ferverosos e o simpático Francisco com a sua entourage

    A primeira coisa que me lembro de ter pensado foi como alojar este pessoal todo. Lisboa já rebenta pelas costuras no Verão pelo que, mais 100.000 visitantes, concentrados em três dias, era coisa para fazer mossa. Não voltei a pensar no tema até porque, como se perceberá, não está no meu radar de interesses.

    Até que comecou esta discussão sobre o palco dos 5 milhões.

    Devo dizer que não percebo bem a gritaria da última semana. Quer dizer, percebo no conceito de coisas feitas em cima do joelho à portuguesa, mas quem debate o tema parece estar a viver uma supresa quando já sabemos, desde 2019, que nos tocaria organizar a coisa. Enquanto ouvia os 380 debates sobre o tema, pensava por que nos tínhamos metido nisto. Não temos dinheiro para mandar cantar um cego e vamos organizar paradas para o Papa, pela alma de quem? Alguém imaginou que a coisa se faria por uma sandes de courato?

    Para um ateu é mesmo dinheiro atirado à rua e por isso procurei encontrar conforto na narrativa da recuperação da área. De facto, aquele descampado no Trancão é algo inóspito e eu sou daqueles que gosta da nova cara de Lisboa. Não quero saber se foi o Costa, o Moedas, o Medina ou o Soares. Se Lisboa fica mais bonita, não serei eu a falar mal. Agora… quando vi o desenho do palco, já fiquei com mais dúvidas quanto à recuperacão do espaco e, principalmente, da reutilizacão da estrutura para outros eventos. O que é que se faz num palco cheio de rampas e com aquela cúpula com uma cruz? Um skate park para seminaristas?

    person wearing white cap looking down under cloudy sky during daytime

    Fiquei realmente preocupado quando ouvi Manuela Ferreira Leite dizer que aquela estrutura traria retorno para a cidade. É que eu sou de uma geracão que ouve há 25 anos como o cimento traz retorno ao país.

    Foi a Expo98, que, para lá da óbvia requalificacão de uma antiga lixeira, trouxe dinheiro a construtores e patos bravos do imobiliário.

    Depois foi o Euro 2004 que dotaria o país de estradas e infra-estruturas vitais (tínhamos pouquíssimas estradas nessa altura, e ainda nos deslocávamos de charrete pelos pastos), e o resultado foram quatro monos espalhados por Faro, Aveiro, Coimbra e Leiria, sem jogos ou público e com custos de manutenção incomportáveis.

    Perdi a conta às auto-estradas, SCUTs e IPs que seriam essenciais para o desenvolvimento do interior, litoral, centro, sul, norte, este e oeste. Algumas estão às moscas, com o Governo a compensar as concessionárias, naquelas PPPs que nos levam há décadas à ruína.

    person sitting on concrete seawall

    Veio entretanto o Paddy e a sua Websummit, com um patrocínio de milhões do erário público português. Aqui a promessa era da criacão de empregos e atração de investimento. O Paddy ficou rico, os putos nerds trabalham como voluntários num evento onde uma entrada custa uma pequena fortuna e empregos, bom, talvez uns recibos verdes nos hotéis das redondezas.

    Portanto, quando me dizem que vão dar uma lavadela na cara do Trancão para receber o Papa, ainda consigo engolir. Quando voltam com a conversa do retorno, tenho a certeza que é mais um daqueles fados malandros.

    Qual luz divina, também à boa maneira portuguesa, a presa de última hora resulta em mais não sei quantas trapalhadas. Três empresas apresentaram projectos para a construcão do Papódromo e venceu a mais cara, com menos material reutilizável (uma das solucões era com contentores como o estádio do Qatar), por acaso da Mota-Engil, presença habitual na órbita do Estado.

    Outra coincidência engraçada é Paulo Portas, esse engenheiro civil de águas profundas, estar agora na administração da Mota-Engil. Tudo legal, tudo como manda o livro do Antigo Testamento, tudo abençoado. Mas é aquela volta na maionese, sempre com os mesmos actores, empresas e baldes de cimento.

    brown wooden stick on brown wooden table

    Há 30 anos que vejo as mesmas pessoas, quais satélites na órbita dos contribuintes, aos saltos entre cargos, mas sempre, sempre, com acesso a fatias enormes do Orçamento do Estado.

    Já se vende uma semana em Fátima a 8.000 euros, num hotel local, para as datas das jornadas. Quartos privados a 2.000 euros por dia e outras loucuras do género. Os católicos já levantam as forquilhas dizendo que quando se fez a nova mesquita de Lisboa, ninguém se queixou (o que não é verdade, por acaso).

    A minha questão é esta: tirando a hotelaria e os patos bravos do cimento, o que é que se ganha com este evento pago por nós? Este e, já agora, os outros feitos num país onde 40% da população está na pobreza. Não quero ser demagógico, mas com tanta gente a precisar de habitação social, não se arranjava melhor destino para os 40 milhões que o evento nos vai custar?

    É legal, bem sei. É uma opção política num país laico, certamente. Não podia o Banco do Vaticano fazer uma vaquinha e raspar uma ou outra parede para entregar o ouro à Mota-Engil? Isso é que seria uma multiplicação dos pães bonita de se ver. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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