Etiqueta: Tiago Franco

  • O show do Pastor Ventura com o sangue afegão

    O show do Pastor Ventura com o sangue afegão


    Quando soube da morte de duas pessoas às mãos de um agressor armado com uma faca, em plena luz do dia em Lisboa, fiquei chocado. Não é, infelizmente, o tipo de notícia rara nos dias que correm, mas não costuma ter a capital portuguesa como local da ocorrência.

    Daqui da Suécia, desconhecia totalmente o Centro Ismaili, ou a sua comunidade, e, como tal, escuso-me a engrossar o rol de pessoas que elogiaram a sua accão na integração de emigrantes. Estou certo que fazem um trabalho louvável, e não será esse o objecto deste texto.

    person hands with black liquids

    Parto da tragédia como ponto de análise. Duas pessoas foram assaltadas no seu local de trabalho e assassinadas. Há várias questões que a partir desse momento são importantes para o debate. Tudo isso passou para segundo plano assim que se soube a identidade do autor do crime: afegão. 

    Pessoalmente, comecei a fazer contas aos minutos que faltariam para a primeira intervenção de André Ventura. Como é óbvio, ele não desiludiu. Um afegão em Lisboa envolvido num crime é tudo o que a extrema-direita precisa para começar a cavalgar a onda do populismo.

    Contudo, não estiveram sozinhos na empreitada. Vi um ex-inspector da PJ que à pergunta “por onde deve começar a investigação”, começou por responder que “os políticos abrem as fronteiras e vendem o sonho do El Dorado europeu”. 

    O ódio e o xenofobia começam a ser sentimentos normais, até corriqueiros, nesta Europa que vai levantando muros todos os dias.

    A quantidade de disparates, de incitação ao mais básico racismo e de falta de sensibilidade foi de tal forma grande nas horas seguintes ao crime que, no fim, acabámos por não perceber o que interessava (as razões daquele crime) e cedemos o palco a demagogos que vivem da exaltação da raiva.

    A meio do dia vi que tinham convidado Ventura para um debate numa televisão. Quem é que tinha alguma dúvida do discurso que aquele energúmeno ia debitar? E que mais-valia é que podia trazer à conversa, para lá de pedir votos em cima do sangue derramado? 

    Foi quase penoso de ouvir. Mas, aposto, foi eficaz como faca quente em manteiga; aquele discurso de ódio cativou mais uns votos.

    Entre os argumentos mais idiotas está o de acolher gente que foge de guerras ou de países árabes. A primeira pressupõe que, se chegam de zonas de conflito, estão todos malucos e de faca nos dentes. O padre que acompanha o Ventura e lhe dá a mão, provavelmente, ainda não teve tempo de lhe explicar que é exactamente pela guerra que precisaram de fugir. Se a NATO ou as potências vigentes pararem de lhes bombardear o quintal, pode ser que não precisem de vir para o “El Dorado europeu”. É questão de, no confessionário, o André abrir os olhos enquanto lhe fazem o desenho.

    O outro soundbite forte é que “não é a mesma coisa receber um brasileiro ou um paquistanês”. Esta conversa faz-me lembrar as gritarias dos ciganos e do RSI e, quando se foi ver, os beneficiários daquela fortuna de 100 euros eram uma gota no oceano. Ora, com os “emigrantes que não são de bem”, a conversa é a mesma. Portugal tinha uma quota de 10 mil lugares para refugiados e acolheu pouco mais de mil.

    group of children standing on grass field during daytime

    Ou seja, por mais que o Ventura grite, a realidade é que nem a fugir de rajadas de metralhadora os refugiados escolhem Portugal como destino. Mesmo assim, os poucos que cá vêm parar têm que levar com as bandeiras do Chega e ser usados como bode expiatório. Todos os dias há assaltos de “emigrantes de bem”. Todos os dias há problemas com portugueses. Mas se um crime é levado a cabo por um afegão, está a generalização feita a sírios, paquistaneses, iraquianos e aos outros afegãos todos. 

    Aquele energúmeno – julgo que é um nome aceitável para o desempenho – até chegou a dizer que o PS e PSD tinham votado a favor da lei que tinha permitido que este homem, depois de ver a mulher morrer num campo de refugiados da Grécia, tivesse conseguido chegar a Portugal com os três filhos menores. 

    Como o país está a envelhecer – julgo que essa estatística André Ventura saberá –, ainda se deu ao luxo de dizer que devemos acolher emigrantes mas apenas alguns: os que vêm trabalhar e contribuir para o país, não os que fogem de zonas de guerra. É um conceito engraçado, porque, se a memória não me falha, os louros que fugiram da Ucrânia vinham contribuir; já os que fugiram dos Talibã, nem tanto. Mas é curioso que nos tempos do PSD, o mesmo André defendia que devíamos receber os refugiados sírios.

    É uma solidariedade à la carte, ao sabor do vento das redes sociais e sempre, mas sempre, ao encontro do que pode trazer mais uns votos.

    group of people walking on pedestrian lane

    Ventura diz, como diz sempre a cada desgraça, que o Governo tem sangue nas mãos, porque permitiu que este homem entrasse no país. Mais lógico seria afirmar que ele, por cada discurso de incentivo ao ódio, fica com as mãos ensaguentadas de cada vez que um crime racial acontece. E esses, ao contrário do ataque no Centro Ismaili, não são tão raros nos tempos que correm.

    Alguém me explicará como é que um partido sem ideologia ou ideias próprias, para lá do racismo e do ódio, chegou um dia a terceira força política de um país de emigrantes, como é o caso de Portugal.

    E como é que, num dia de absoluto drama e sofrimento para as famílias envolvidas, o homem mais citado, visto e ouvido é o Pastor Ventura?

    Trilhamos caminhos perigosos. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um russo e um chinês entram num bar onde já estava um americano

    Um russo e um chinês entram num bar onde já estava um americano


    Ouvi, descansada e tranquilamente, a notícia de que Vladimir Putin tinha ordenado o transporte de umas quantas bombas nucleares e dez aviões para o território da Bielorrússia.

    Até despejei mais um bocado do Periquita Reserva que tinha ali ao lado, só para ver se não perdia o momento de descontracção.

    Isidro Morais Pereira foi o primeiro a deixar-me descansado porque, segundo ele, não havia aqui nada de novo. Desde logo, porque há muito que os russos têm ogivas nucleares em Kaliningrado, ali mesmo nas barbas da NATO e, nem por isso, o mundo parou. Muito bem.

    yellow and black road sign

    Juntamente com o seu companheiro de painel, Armando Marques Guedes, garantiu-me, novamente, que a Rússia estava cada vez mais isolada, que tinha cada vez mais mortos e menos material de combate.

    Todo este discurso de Putin é apenas uma gigantesca manobra de propaganda com o bom do Armando, um divertido especialista em relações internacionais, a garantir que Xi Jinping já tinha dito ao Vladimir que bombas atómicas, nem pensar.

    Depois de Nuno Rogeiro, que falava com Zelensky por interposta pessoa, temos agora o Armando, que comunica com o Xi por pombo-correio.

    O momento alto da noite ficou guardado para a citação de Biden que, nas palavras do Armando disse: “if you’re thinking about using nuclear weaponsDON’T“. (Se está a pensar em usar armas nucleares… Não o faça.)

    Parou para respirar e acrescentou: “e, depois, o Biden reforçou… DON’T… e voltou a dizer, pela terceira vez… DON’T!! Ora… isto é que é uma ameaça a sério!”

    depth of field photography of man playing chess

    De modo que enchi mais um bocadinho o copo e fiquei a pensar. Mexer bombas e aviões de um lado para o outro, enfim, é propaganda. Já dizer três vezes “don’t” é que é para um gajo se encolher todo.

    O meu problema com estes filósofos, é que há um ano que me andam a vender que os russos andam descalços e isolados e, quando damos por ela, por lá continuam a morrer e a matar, com os chineses pelo braço e nós, na nossa retórica idiota, a pagar tudo com dinheiro que não temos e a comprar combustível indiano feito com petróleo russo.

    A quantidade de países que se une ao eixo China-Rússia é bem maior do que o “mundo ocidental”. Até os sauditas começam a mudar de lado, mas nós, de Madrid a Varsóvia, continuamos a vender a fábula da Rússia isolada. Faz-me lembrar a história de um amigo que não gostava da cidade do Porto, mas nunca tinha saído de Lisboa.

    Como a alucinação ainda não tinha atingido o clímax, eis que aparece Helena Ferro Gouveia dizendo que, para já, não havia sinais visíveis de qualquer movimentação de bombas portanto, estaríamos no reino da bazófia de Putin.

    red blue and yellow ceramic figurine

    Longe de mim duvidar da Helena, mas talvez o prazo dado (até Julho) seja uma das razões para não verem, nos satélites, bombas a mexer três dias depois do anúncio. Mas é só uma ideia.

    Entra a discussão sobre o tipo de armas nucleares, e aqui é que fico mesmo anestesiado. São tácticas, segundo a Helena, não têm grande perigo de radioactividade. Tenho a sensação de a ter ouvido falar em exames de raio-x como termo de comparação mas posso estar enganado.

    Nesta altura, só queria encontrar a garrafa o mais depressa possível e, admito, desviei um pouco a minha atenção. Pelo que percebi, uma arma nuclear táctica pode ter entre 1 a 100 quilotons, sendo que cada quiloton corresponde a 1000 toneladas de dinamite.

    A bomba de Hiroshima, por exemplo, tinha 15 quilotons. Portanto, estas armas nucleares tácticas que os russos ameaçam entregar à Bielorrússia têm capacidade para matar muita gente na explosão, mas poucos de cancro.

    Caution text overlay

    Era essa a mensagem da Helena. Sim, de facto podem morrer mais umas pazadas de ucranianos num espaço de minutos mas, atenção ao lado positivo, poucos vão ao pé coxinho para o instituto de oncologia de Kiev.

    Ainda ouvi alguém explicar – já não me lembro quem porque por essa altura nem a garrafa via – que o que os russos fazem agora é algo que os americanos já fizeram há muito, quando distribuíram 150 ogivas por seis países europeus: Bélgica, Holanda, Itália, Turquia e outros dois que não me lembro.

    E, sendo assim, tudo bem. De bluff em bluff, as ogivas vão passeando e arejando as ideias.

    Durante as últimas duas décadas, os americanos controlaram o mundo a seu belo prazer e agora, russos e chineses também querem uma fatia do bolo. Se pensarmos na história recente, do Afeganistão à Síria, do Iraque à Líbia, não há uma grande vantagem em ter uma única superpotência a decidir o destino da humanidade.

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    Não sendo possível o ideal – ou seja, povos que se preocupam com o seu quintal sem quererem dominar os vizinhos –, é pelo menos preferível ter poder e contrapoder de forma a que a balança se vá ajustando.

    É pena que este novo estabelecimento das superpotências seja feito à custa do sangue dos mais pobres. Sejam eles ucranianos ou russos. Não passam de peões num jogo muito maior onde, até ver, apenas americanos e chineses poderão sair a ganhar.

    Por mais que nos tentem vender, há um ano, que um dos lados está de joelhos, a realidade diz-nos que não é assim. Chegámos a um beco sem saída, nem Putin nem Zelensky têm condições para sair desta situação com uma vitória clara nas mãos (sem que a NATO ponha as botas no terreno) e o sacrifício dos anónimos segue a um ritmo diário.

    Agora, dizem-nos que esta escalada, óbvia, no conflito, não é um risco mas sim propaganda.

    Propaganda? Acreditemos, pois.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Se não fosse a TAP, a dona Maria teria uma parede caiada

    Se não fosse a TAP, a dona Maria teria uma parede caiada


    O meu camarada Luís Gomes não ficou contente com a resposta ao artigo sobre a TAP, e resolveu voltar à carga. Desta vez, esgotados os argumentos sobre o debate inicial (privatizar ou não, era essa a discussão), resolveu alargar o espectro da conversa para as ideologias políticas pincelado com alguma filosofia da evolução dos povos. Pelo meio, ainda me brindou com os meus sonhos de poder que, até aqui, eu próprio desconhecia.

    Não sei se o Luís aprecia futebol, e se estava lá no dia em que Carlos Queiróz substituiu o Paulo Torres e deixou a ala direita para o Paneira fazer miséria, naquela noite gloriosa dos 6-3. Um erro do qual Queiróz nunca recuperou, diga-se.

    green tennis balls on tennis court

    Ora, o meu companheiro de jornal fez algo parecido. Deixou o flanco aberto que agora, com a educação possível, tratarei de usar e abusar.

    O Luís desiste de falar na TAP ao fim de um parágrafo sem responder às questões básicas da contenda. Importações e exportações. Empregos. Fornecedores nacionais. Rotas com a diáspora que ninguém quer. Era nesta piscina que devíamos nadar, e o Luís, como qualquer bom amante dos mercados, explicar-nos-ia como é que a coisa se fazia com as Ryanairs que chantageiam por subsídios dos Governos europeus.

    Em vez disto, o Luís opta por encetar um papiro de discurso clássico “Paulo Portas do tempo das feiras”. O título é auto-explicativo, mas eu dou uma achega. Quando Paulo Portas sonhava ser qualquer coisa mais do que o presidente de um partido de betos anafados (julgo que “anafado” ainda se pode dizer sem ofender todEs), corria todas as feiras do país com um boné de pastor. Por lá, entre peixeiras e as sessões da Assembleia da República, gritava aos microfones que o dinheiro público mal gasto em sítio X seria magnificamente aplicado no sítio Y.

    Normalmente o sítio X era um elefante branco qualquer e Y, quase sempre, uma velhinha chamada D. Maria que precisava de ajuda para caiar umas paredes e substituir umas telhas para não dormir com pingos na testa.

    white, red, and green airliner

    Gosto muito da palavra “caiar”, desde que o meu bisavô, o primeiro empreendedor da família, fazia esse pó branco menos lucrativo do que o outro e alimentava a minha avó com as receitas da labuta. Eu não estava lá, mas contaram-me.

    O Luís ao sacar de um “clássico Portas” nos seus tempos da lavoura (que saudades desses concertos de pandeireta no Bolhão), cai obviamente na mesma esparrela. Depois de convencer meio-mundo que ele, o Portas mais fraquinho, gostava de contas certinhas, chegou ao Governo e foi o que se viu. Alô Tridente….estás à escuta? De repente, as donas Marias esvaneceram-se nas brumas das sardinhas bem fresquinhas, e o Paulo, o amigo Paulo, desatou a comprar submarinos e a tirar fotocópias em barda.

    O X do Luís é a TAP e o Y as empresas e os empresários onde ele, como se compreende, está incluído. Portanto, estamos aqui numa embirração que nos leva a concluir que, sem a TAP, o Luís poderia ter mais alguns benefícios fiscais. Compreendo, pois, que esteja contra este aborrecimento de se tentar salvar uma das companhias que mais cria riqueza em Portugal. Mas isto ainda piora, Luís. Mesmo que a TAP não existisse e usássemos todos a Carris para chegar a Madrid ou a Transtejo para Boston, mesmo assim o dinheiro não iria para aliviar a tua carga fiscal e de restantes amigos do Lions Club.

    Com elevado grau de certeza, o dinheiro iria para a banca, para mais umas Tecnoformas, uma ou outra PPP, vários secretários de Estado, algumas adjudicações a empresas de amigos numa autarquia qualquer perto de Gaia, em palcos papais… enfim, em tudo e um par de botas. Mas não chegaria ao alívio fiscal. Nem às creches ou ao aumento do salário mínimo. Muito menos ao SNS. 

    close-up photo of assorted coins

    Portanto, Luís, seria gasto na mesma, perdido nas teias de interesse e de corrupção sem que o país beneficiasse com isso. Ora, por muito que isso custe a engolir, pelo menos com a TAP está a ser gasto em algo que serve o país e que traz riqueza. Espero que por esta altura do nosso debate – pelo menos esta parte – esteja apreendida.

    Há ainda a insistência na casca de banana do financiamento público ao longo dos anos. O Luís não se cansa de ser Queiroz, e obriga-me assim a novo cruzamento do Paneira para o Isaías.

    A União Europeia proibia a ajuda às companhias de bandeira. Ponto final. As excepções foram todas aprovadas. A última delas, repito, depois de dois anos de paragem, por causa da covid-19, e foi igual para todas: Lufthansa, SAS, Air France, British, ITA, e por aí fora.

    Todas com prejuízos, todas resgatadas, todas a voar hoje. Algumas low cost foram no vento dos mercados; as companhias de bandeira não. Espero que também não seja preciso explicar porquê. Uma coisa é serviço público, outra é vender bilhetes para andar no carrossel da feira da Cruz de Pau. Ao fim de 15 dias a feira vai para outra paróquia; já o serviço público fica enquanto… existir público. O primeiro é irrelevante; o segundo é essencial.

    gray and white airplane on flight near clear blue sky

    Isaías faz o segundo; agora de perna esquerda perante um Lemajic desprotegido 

    Este pedaço de prosa do Luís deixou-me a pensar:

    Em relação à ‘superioridade moral’ que exibe, em particular o “argumento de paga quem usa é o típico de quem defende uma sociedade não solidária”, ajuda-me a compreender o seu fascínio pela eugenista Suécia. Trata-se de um país protestante, cultura que deu origem a todas as ideologias totalitárias, como o socialismo, o comunismo, o fascismo e o nazismo. Julgo que o Tiago se encontra entre as duas primeiras.

    Agradeço, desde já, a oportunidade de ficar fora do restrito clube das suásticas: é gente com talento para a decoração de corpos na perspectiva do utilizador, e até com jeito para línguas, já que escrevem sempre em alemão, mas de facto não são bem a minha praia.

    Já o socialismo e o comunismo deixam-me algo na expectativa, porque dependem do interlocutor e das respectivas confusões. Pelo que vou lendo nas palavras do Luís, parece-me que ele será um dos que juram a pés juntos que Portugal vive num regime socialista e que Putin, esse comunista marafado, segue os ensinamentos de Lenine. De modo que fica sempre difícil meter pensamentos numa gaveta e catalogá-los.

    Mas posso tentar. Aquilo que eu defendo é relativamente simples de compreender, julgo eu. Acredito num modelo de sociedade em que todos têm o básico indispensável para uma vida com dignidade. Básico significa comida, um tecto e educação. Defendo que os impostos, progressivos, devem ser aplicados a favor dos contribuintes, começando na satisfação das necessidades básicas descritas anteriormente. Defendo Educação (verdadeiramente) universal como pilar da Economia e um sistema social que protege os mais carenciados, seja por doença ou por circunstâncias da vida que os levam a perder o rendimento vindo do trabalho.

    Estando isto garantido pelo erário público, sou aberto a discutir as prioridades seguintes. O nome da ideologia para isto deixo ao critério do Luís. A Suécia, que não me fascina particularmente, conseguiu colocar muitas destas coisas em funcionamento, pouco depois de saírem da miséria e de deixarem de comer batatas de manhã à noite. Não deve ser rocket science.

    Aquilo que eu não defendo, certamente, é aquela que me parece ser a ideologia do meu companheiro economista: uma espécie de selva do salve-se quem puder. Um mundo regulado por mercados que, acrescente-se, neste século parecem não conseguir acertar o passo. Um mundo onde nos cobram menos impostos e cada um cuida de si. Uma sociedade onde a perda do emprego representa o fim da vida. O liberalismo desenfreado como aquele que se pratica nos Estados Unidos, onde dezenas dormem nas mesmas ruas onde os executivos fazem o jogging matinal. Também vi, ninguém me contou. Tal como os fornos de cal do meu bisavô.

    person in red sweater holding babys hand

    Já que o Luís parece não ser fã dos liberais portugueses, e em cada linha que escreve transpira individualismo, arrisco que será esta a sua ideologia. Deixem-me ganhar dinheiro em paz que pagarei as minhas próprias idas ao hospital (da CUF). Os outros que se orientem. Criem unicórnios. Todos.

    A referência a ditaduras, como exemplos onde o bem comum se sobrepôs ao indivíduo, é um pau de dois bicos. Percebo que vem em todos os crachás dos liberais essa conversa da liberdade individual, mas, neste caso, é facílimo encontrar exemplos de sociedades pensadas para um todo onde a força individual está presente.

    Os nórdicos funcionam assim. São ensinados a pensar como um colectivo onde cada um é parte integrante. Isto significa que ninguém fica para trás, mas nem por isso se deixa de premiar o mérito e esforço individual. É ver quantas pequenas empresas são criadas, os impostos que são pagos, o peso do sector público (30% dos empregos) e a quantidade de multinacionais que este país deu ao Mundo. E tudo partindo de uma base colectiva.

    O mundo, ao contrário do que o Luís parece acreditar, não se divide no individualismo ou ditaduras fascistas. Há muito campo para explorar pelo meio.

    cars parked in front of building during daytime

    Quando o Luís me apelida de indivíduo dominante e árbitro de um bem maior com aspirações de poder, fico de facto baralhado. A nossa agradável discussão começou com o meu companheiro a juntar-se ao coro dos que arrasam a TAP, pedindo o seu encerramento e condenando à miséria uns milhares de trabalhadores. Já para não falar nas perdas para o próprio país.

    Eu só defendi exactamente o contrário. Ou seja, a manutenção dos empregos e do serviço ao país. Visto daqui, o árbitro que pretende dominar e alterar vidas alheias, não pareço ser eu. Estou certo que ainda chegaremos aos judeus escravizados por Cleópatra e ao momento em que o camarada Moisés abriu o Mar Vermelho (ou foi só no filme?), para justificar a entrega da TAP ao grupo da Iberia.    

    Agrada-me ainda assim, em toda esta conversa, perceber que o Luís conseguiu pedir a venda da TAP e a substituição dos seus serviços pelo misterioso “mercado”, com o mesmo número de argumentos que o Ventura usou para defender o padre amigo. Bola, como diria o poeta da Reboleira.

    O resto, fica para um jantar… Pago pelo meu amigo empreendedor.

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Democracia à francesa

    Democracia à francesa


    Sou um grande fã da forma como os franceses aplicam a democracia. Se lhes mexem nos direitos, vão para a rua partir tudo. Podem não ser grande coisa quando se metem em guerras para estragar o que é dos outros mas, nas ruas de Paris, ninguém parte material como eles.

    Se me perguntarem, acho que estão a prestar um favor à sociedade e, de certa forma, a dar uma lição de cidadania. Depois de Sarkozy ter passado a idade da reforma de 60 para 62, o bom do Emanuel quer repetir a graça até aos 64.

    Um sindicalista de origem portuguesa, radicado em terras de França, como a nossa Linda de Suza, dizia aos microfones da RTP que a lei que o governo francês tentava aprovar era um roubo declarado à classe trabalhadora. Segundo ele, bastaria aumentar os impostos em 1% às 60 maiores fortunas francesas para cobrir o rombo no fundo de pensões.

    people protesting

    Não tenho dados para confirmar a conta, mas não é muito difícil de acreditar, uma vez que o princípio é quase sempre o mesmo. Trabalhadores de base, como nós, têm que trabalhar cada vez mais anos para garantir reformas não particularmente altas.

    Trabalhadores de elite, por exemplo como Manuel Pinho, podem passar décadas a receber uns milhares livres de impostos, vindos de uma offshore qualquer e, quando chegam à idade da reforma, têm um valor acumulado de tal ordem que ninguém lhes diz até que idade precisam de trabalhar.

    Para os restantes, não funciona bem assim. Somos esmagados com cada vez mais impostos ou, como se diz por aqui na Suécia, “ninguém enriquece a trabalhar”. Depois de uma vida a cumprir um contrato social de descontos, esperando que no fim da caminhada nos seja devolvida uma percentagem do salário em forma de pensão, as regras são alteradas. O tempo de trabalho aumenta porque, é esta a justificação recorrente, a população está a envelhecer.

    Pergunto: a culpa disso é de quem trabalha? Os jovens que não conseguem sair de casa dos pais por causa dos salários miseráveis, são culpados de não terem mais umas centenas de euros para pagarem uma creche?

    a man holds his head while sitting on a sofa

    Bem sei que é nas ruas de Paris que o fogo arde agora mas, quando aqui há uns anos a função pública viu a idade da reforma passar para os 67 anos, o argumento foi exactamente o mesmo. Reparem, eu não digo que não seja factual. Percebo a matemática da coisa.

    Mas, se em vez de andarem sempre a aumentar os anos de trabalho para resolver o problema do excesso de velhos, começassem antes a apostar em políticas de incentivo à natalidade, não seria mais eficaz?

    A conversa liberal neste tema irrita-me profundamente, com o estafado argumento do mérito para não se ir buscar mais impostos aos milionários. Há sempre um esperto que aparece com aquela conversa que ninguém sabe se existiu entre o Otelo e o Olof Palme, a propósito de acabar com os ricos versus acabar com os pobres.

    Nada me move contra um milionário mas não entendo a vergonha ou a defesa da carga fiscal ao mesmo. Qual é o problema de taxar mais as grandes fortunas? Por acaso algum milionário criou fortuna sem o trabalho dos outros? Qual é o problema de devolver uma parte em obrigações sociais?

    a close up of a typewriter with a tax heaven sign on it

    Quem defende que não se toque nas grandes fortunas são aqueles que, por norma, andam lá perto e beneficiam com os esquemas. São os mesmos que defendem paraísos fiscais, gestão privada com investimento público ou aquela frase que me leva às lágrimas: “empresas é que criam riqueza e postos de trabalho”.

    Ao fim de 22 anos de trabalho, nunca vi um prédio vazio a criar seja o que for. É isso uma empresa. Um prédio vazio. Já quando o enchem de pessoas, de facto, aquilo começa a criar qualquer coisa.

    Toda a lógica deste sistema de elites é perfeitamente absurda e altamente penalizadora para a esmagadora maioria da população. Senão, vejamos. 

    Os trabalhadores são afogados em impostos e obrigados a pagar os excessos das elites. Seja na forma de resgate à banca, depois destes jogarem no casino com os depósitos, seja, por exemplo, nos lucros da Amazon, depois dos governos nos obrigarem a estar dois anos em casa e a encomendar vidas online. 

    people working on building during daytime

    O mesmo sistema que permite isto, compete entre si, de país para país, para que as empresas paguem os mínimos impostos possíveis (Irlanda e Holanda na Europa, por exemplo, onde estão as empresas do PSI20).

    Há sempre uma forma de aumentar os lucros através de engenharias fiscais, passando por paraísos totalmente legais que, no fim, vão aumentar os dividendos de donos e accionistas. Lá está, pessoas que criam fortunas com base em especulação e trabalho de terceiros.

    No meio disto tudo, temos a maioria silenciosa a trabalhar para garantir os lucros e a receber uma ínfima parte do que gera. Ainda levam com as culpas de terem poucos filhos e contribuírem para o envelhecimento da população.

    Para a dor ser ainda maior, temos que ouvir alguns idiotas úteis a defenderem, em horário nobre, que empresas servem para dar lucro e como tal, há que não atrapalhar a vida dos ricos.

    person standing near the stairs

    Parece não haver grande consciência sobre a enorme distância social entre um trabalhador de base e um CEO, um accionista (daqueles com fatias que se vejam) ou um dono de uma empresa.

    Lembro-me sempre de uma empresa pequena com a qual lidei, ali da região de Setúbal, com apenas 80 funcionários onde os trabalhadores da linha de montagem (a maioria) recebia pouco mais do que o salário mínimo (menos de 500 euros na altura) e o CEO cerca de 10 vezes mais. Isto numa micro-escala. Nas multinacionais detidas por milionários esta diferença é quase incalculável.

    Qual é o problema de puxar esta minoria, com lucros absolutamente pornográficos criados nos braços dos outros, para a realidade do quotidiano e taxar, de forma mais justa, as grandes fortunas? Fogem para paraísos fiscais? Por que permitem os governos, sequer, a existência de paraísos fiscais?  

    group of person on stairs

    Não se trata de ideologia mas sim de pura justiça social na distribuição da riqueza acumulada. Ela não caiu do céu e muito menos foi obra de um indivíduo. Que tabu é este e que medo têm os governantes desta minoria que controla a riqueza do planeta?

    É mais fácil meter polícias pobres, cuja idade de reforma também aumentará, a bater em trabalhadores que lutam pelos seus direitos do que ir atrás de quem acumula o capital?

    Não perceberá a polícia de choque, nas ruas de Paris, que está no lado errado da barricada?

    E já agora, percebemos nós, portugueses calmos e passivos (a não ser que o golo tenha sido em fora-de-jogo), que os franceses estão a fazer o que toda e qualquer população devia fazer de cada vez que nos chamam para pagar os dislates das elites?

    Nós somos a maioria. Deveríamos ser nós a ditar as regras.

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Às tantas ainda chega uma hora em que se começa a partir coisas…

    Às tantas ainda chega uma hora em que se começa a partir coisas…


    Não sei se tiveram a oportunidade de ver o debate entre Cotrim de Figueiredo e Duarte Alves, a propósito do (alegado) aproveitamento das grandes cadeias de distribuição para inflacionarem ainda mais os produtos, em nome do lucro fácil.

    Se não viram, puxem a box para trás e vão ver (SICN), porque é uma lição de como ser eficaz na mensagem política.

    Cotrim de Figueiredo fez o que se esperava dele e defendeu o lucro a todo o custo. Ou melhor, tentou explicar-nos a naturalidade das receitas extraordinárias sem que isso significasse um aumento das margens por parte das distribuidoras.

    10 and 20 banknotes on concrete surface

    Não foi o primeiro, e certamente não será o último, a tentar convencer-nos que o aumento dos produtos básicos apenas reflecte a inflação e os custos de produção. Pedro Marques Lopes, entre outros da direita mais ou menos liberal, tentam explicar com ideologia aquilo que a Matemática não permite.

    Duarte Alves, que é inteligente e consegue ler um relatório e contas, não tem metade do paleio e da lábia compressora com que Cotrim defende as suas ideias – ou ideais, vá. A cada frase debitada com o aumento do custo de produção do alimento X, Cotrim tentava mostrar um aumento semelhante nas prateleiras do supermercado. Finalizava cada frase com um “não estou aqui para defender as grandes superfícies, mas…”.

    Mas não fez outra coisa que não fosse culpar a cadeia de produção pelos aumentos e isentar os grandes grupos de distribuição.

    Pelo meio ainda fez uma piada, sugerindo a Duarte Alves que ligasse ao seu amigo Putin e lhe pedisse para desocupar a Ucrânia, para que a inflação voltasse ao que era. Duarte Alves, que é bom rapaz, mas a quem falta o tão famoso killer instinct, podia ter lembrado ao Cotrim que amigo, mas amigo a valer, era ele quando andava a distribuir e publicitar Vistos Gold pelos endinheirados russos, aí há uns bons 10 anos, quando era presidente do Turismo de Portugal.

    Cotrim é aquilo tipo de escroque que usa a semântica, e já agora, uma boa preparação de dossiers, para repetir mentiras como se fossem verdades.

    goods on shelf

    A questão essencial desta narrativa dos liberais e dos afoitos defensores da Jerónimo Martins é a seguinte: se o preço na prateleira reflecte apenas o aumento dos custos de produção – sugerindo, pois, que os supermercados também absorvem parte do impacto –, como é que os lucros aumentam relativamente ao ano anterior?

    Como é que os produtores se queixam de margens mínimas e não conseguirem manter a produção?

    E como é que os trabalhadores em toda a cadeia de produção não viram aumentos reais?

    Não há mais ninguém que veja que a conta não bate certo?

    Os únicos que, comprovadamente, aumentam os ganhos são os supermercados, mas os avençados vão-nos repetindo que é pelo meio da cadeia que o dinheiro se perde. Então… se se perde, como é que se multiplica no fim?

    Parece um rio misterioso que passa a riacho ali no meio, praticamente seca e, no fim, se transforma num oceano. Considero-me um optimista, e até acredito nas benesses da Matemática, mas esta história parece mais um auto-de-fé.

    aerial photography houses

    Rodeados de casos destes, e de ataques diários, os portugueses deixam de consumir ou sequer de conseguir pagar as despesas da casa. Salários que chegam ao fim do mês vão sendo notícia. O Governo português toma uma medida acertada, finalmente, de atribuir uma ajuda imediata para que os mais necessitados consigam pagar a renda.

    Pode ser um penso rápido e não fechar a ferida – o problema é estrutural, todos sabemos disso, mas há milhares de famílias que deixaram de conseguir pagar as suas habitações e comer decentemente.

    E eis que aparece novamente o Banco Central Europeu (BCE), sempre pela inenarrável Lagarde, para umas reguadas nos Governos da Zona Euro, pedindo-lhes que acabem com as prestações sociais.

    A teoria é que ao injectarem dinheiro nas famílias, a sua capacidade de consumo aumenta e, dessa fora, as políticas do BCE são menos eficazes. Ou seja, pagar a renda de casa já é consumir. A esmola que vai ser dada a famílias em dificuldades para que não percam o telhado, é visto pelo BCE como capacidade de consumo. De que forma? Deixam de pagar a casa e vão comprar vinho verde?

    lighted high rise building near body of water at nighttime

    Não chega empobrecer. Não chega atingir a loucura com o desespero de não saber o dia de amanhã. Não chega pagar uma guerra escolhida por outros. Temos de ficar na rua, a céu aberto, completamente de gatas no que sobra de dignidade humana.

    E é ainda mais engraçado que pessoas como Cotrim de Figueiredo, ou todos aqueles que defendem os donos do capital, nos digam há décadas que o salário mínimo não pode ser aumentado por decreto. Já o lucro das multinacionais, o custo das nossas casas, a grandeza do nosso empobrecimento, a diminuição dos nossos salários, não só podem como são, ciclicamente, decididos por decreto.

    Puta que os pariu! A essa minoria que controla o acesso ao capital, e que nos faz matar por migalhas. Pobre classe trabalhadora que demora a perceber que é ela a maioria, é ela a detentora do conhecimento, e é ela a dona da verdadeira força.   

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A TAP é de todos, mesmo de quem não voa nela

    A TAP é de todos, mesmo de quem não voa nela


    Há uma boa dezena de anos, quando ia buscar o meu filho à creche, tinha por hábito estacionar no parque em frente, sem pagar, entrar no edifício e sair, quatro minutos depois, com ele pela mão. Esta rua ficava no meio de uns pastos, não tinha saída e o trânsito – se é que lhe podia chamar assim – limitava-se aos carros de pais que iam fazer o mesmo que eu.

    Nunca vi ninguém a ir à máquina do parquímetro, até porque essa acção demorava mais a cada pai do que ir buscar o respectivo descendente. Certo dia, quando chego ao carro, vejo uma multa afixada. 

    Liguei para a EMEL local e uma senhora, extremamente antipática, dizia-me: “aqui na Suécia nós cumprimos as regras”. Na altura, eu não falava sueco, e obviamente percebia-se que era emigrante. A senhora descascou-me de alto a baixo, deu-me uma lição sobre regras de conduta no Primeiro Mundo. Afirmou até, sem sair da sua cadeira, que todos os pais pagavam o estacionamento quando iam buscar as crianças, menos eu.

    top view photo of red and blue convertibles on asphalt road

    Informou-me até que ela, mesmo sem ter filhos, pagava os impostos todos para que “nós” (os mais escuros) pudéssemos ter creches grátis para os nossos filhos.

    Desliguei o telefone pensando que era um selvagem e questionando-me se, de facto, alguém pagava estacionamento por três ou quatro minutos, algo que eu nunca tinha visto nos indígenas que chegavam à creche à mesma hora do que eu.

    No dia seguinte voltei ao local do crime com um bloco de notas. Sentei-me e esperei. Contei o número de pais que lá apareceram, os carros que tinham, o tempo que demoraram e quantos tinham pagado o parqueamento.

    Numa hora inteira que lá estive aquele parquímetro viu cerca de zero coroas, num universo de 50 pais. Escrevi um e-mail ao chefe da senhora – a tal que simpaticamente me tinha informado que eu era um selvagem –, explicando o tratamento ligeiramente racista a que tinha sido sujeito por uma funcionária que pagava impostos para creches sem as usar.

    brown abaca

    Disse-lhe também que tinha visto 50 louros bem selvagens, e que, pelo que me tinha apercebido, ninguém demorava três minutos a ir meter moedas para ficar estacionado outros três minutos.

    O chefe da senhora escreveu-me a pedir desculpa em nome do departamento, retirou a multa e, em seguida, colocou uma placa em frente à creche a informar que o estacionamento era grátis durante 15 minutos.

    Ainda hoje vi a placa, e lembrei-me da frase do meu camarada Luís Gomes, tão gasta e repetida, de que a TAP é sustentada por pessoas que nem voam nela.

    “Hiiiii…. que grande volta foste dar para responder ao discurso liberal que te foi dedicado, por uma pessoa que não gosta da IL, mas fala como eles”. 

    Pois é, meus amigos. Eu não gosto de colocar a mesa de jantar sem compor a decoração: há que criar ambiente para trinchar o peru.

    O argumento de “paga quem usa” é o típico de quem defende uma sociedade não solidária. Eu nunca fui operado na vida e julgo que, em idade adulta, entrei num hospital três vezes para meter gesso num braço, ou um ombro no sítio, depois de umas futeboladas.

    Devo então pagar impostos para o SNS quando há gajos que passam lá a vida?

    Sim, claro que devo. Pela mesma razão que devemos pagar impostos progressivos, para que os que mais recebem possam contribuir para os que menos têm.

    É esse o princípio básico de uma sociedade justa e solidária, com a qual me identifico. O contrário disto é o caos do salve-se quem puder, sem rede social que ampare as quedas. Nem todos podemos ser um CEO por mais que tentemos. Alguém tem de limpar as ruas ou fazer o pão e, nem por isso, têm de estar condenados a uma vida de miséria.

    Tal como o Luís, eu já trabalhei por conta de outrem e por conta própria. Neste momento, faço as duas variantes, uma espécie de pau para toda a obra, dividido por quatro empregos. Ainda assim, a minha actividade não me tolda a visão do que acredito ser uma sociedade justa, com menos degraus e intervalos mais pequenos entre as classes sociais.

    Isso só é possível se todos pagarmos para o bem comum. Algo que aprendi na Escandinávia, com impostos elevadíssimos e um retorno óbvio e de qualidade em serviços públicos. 

    Quando muito, poderia o Luís discutir, se quisesse, era se a TAP tinha interesse público para fazer parte das despesas feitas com dinheiro dos impostos. Essa discussão ainda aceito – a de que muitos que a pagam não a usam, mas enfim, parece-me mais limitada.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    A minha avó nunca entrou num avião da TAP, mas fica radiante de cada vez que um TAP me leva até ela. Quantas Bias – nome utilizado por Maria Francisca Franco –, ainda aos 95 anos, espalhadas por Portugal, não terão um Tiago para ver algures numa das várias comunidades portuguesas ligadas pelas pontes da TAP? 

    Mas, segue o Luís, na tentativa de me responder, com o embrulho de sortidos húngaros na esperança de que, dali, saiam pastéis de nata. [Sou um fã dessa iguaria, devo confessar]. Pensei que já ninguém usasse o argumento de “a TAP não serve o Porto e Faro”, mas enganei-me. Ainda há quem use um não-assunto para tentar arranjar mais um motivo para o seu encerramento.

    A TAP “não serve o Porto e Faro” como a KLM não serve Roterdão, a Ibéria não serve Barcelona e a Lufthansa Hamburgo. Ou a Austrian não serve Salzburgo e a Air France, Marselha. Ou a Brussels não serve Antuérpia e a SAS Gotemburgo.

    Posso continuar por mais cinco linhas, mas acho que a ideia já passou. As companhias têm um hub (normalmente as capitais, sendo a Lufthansa um caso especial) e, portanto, fazem pontes para as restantes cidades. Mas, como se percebe, é a partir do hub que organizam maior parte das saídas. Não é a TAP que faz isto, é a aviação, em geral. Ninguém inventou a roda na Portela.

    Pior do que a conversa de Porto e Faro é a repetição de outro mito já desmentido pelos quatro cantos do Mundo: o de a TAP receber dinheiro “há décadas”. Ora, devo lembrar que tal prática era proibida pela União Europeia e companhia alguma, de bandeira, podia receber financiamento público. Que me lembre, a excepção à regra aconteceu durante a pandemia da covid-19 e, nessa altura, várias companhias foram ajudadas pelos Estados com a autorização comunitária.

    Assim, de cabeça, lembro-me da Lufthansa, da SAS, da Iberia, da TAP e da Air France. Esses dois anos terríveis, em que o poder político decidiu arruinar o sector dos transportes, foi culpa da TAP? O défice acumulado nessa altura é culpa dos trabalhadores da TAP? Não me parece.

    Por que razão devem eles agora pagar a factura? É esse o busílis da questão, que, no diagnóstico feito pelo Luís, não vi qualquer resposta. O que fazer com os mais de sete mil trabalhadores e todos os empregos indirectos que estão nos fornecedores? No fundo, o que fazer com o peso da TAP na nossa Economia? 

    A outra altura em que a TAP recebeu dinheiro público, antes da nacionalização tão criticada, foi quando o Governo de Passos Coelho pagou a um empresário para que a companhia aérea nacional fosse comprada. É mais uma daquelas histórias de homens de negócios que arriscam com o dinheiro alheio. Em termos matemáticos, o risco assumido pelos privados que compraram a TAP foi ali a rondar o elemento absorvente da multiplicação: zero.

    Há uma parte em que concordamos, até porque a vida não é assim tão complicada: o Estado português vai ao bolso dos contribuintes com elevado requinte de malvadez.

    Pessoalmente, não é tanto o valor que me choca, é mais o serviço que nos é devolvido. Para aquilo que são os serviços públicos, hoje em dia, acho que não valia a pena continuarmos a pagar impostos (quase) ao nível da Escandinávia.

    Mas noto que enquanto o Luís faz as contas, e bem, ao que o sr. João do Táxi ou a sra. Joana do Cabeleireiro pagam, já se esquece da calculadora na altura de referir os salários dos trabalhadores da TAP. Repare-se: se os salários são mais elevados, significa que também pagam mais impostos para o sr. João do Táxi. E ainda bem. É assim que funciona uma sociedade civilizada.

    Nós, que não trabalhamos na TAP, nem conduzimos táxis, não devíamos criticar os salários da TAP, da NAV e de mais meia dúzia de sítios que pagam como no resto da Europa de Primeiro Mundo. Aquilo que devíamos, tal como os professores andam a fazer há meses, era exigir uma justa distribuição de riqueza e salários dignos. Não são os da TAP que estão mal, são os outros.

    Mas falemos de alternativas, então, Luís. A TAP, na tua visão, devia ter sido extinta, presumo, antes de entregarem o primeiro cheque ao Neeleman. Garantes tu que, sem a TAP, caso o interesse em Portugal se mantenha, que haverá alguém que faça as ligações. Muito bem: o clássico mercado como solução para o desconhecido.

    E se não houver interesse? Quem é que liga a diáspora ao país, especialmente nas rotas pouco lucrativas? Quem é que garante a ligação às regiões autónomas? E às ilhas mais pequenas? Quem é que liga com os PALOP, onde estão milhares de portugueses?

    No fundo, quem é que faz a ponte com os cinco milhões de lusos e luso-descendentes espalhados pelo Mundo? Num país encostado no fundo da Europa, sem ferrovia e longe de tudo… a solução é depender do interesse alheio?

    Fico incrédulo com as contas feitas dos salários que poderiam outros receber se a TAP não existisse. É um claro caso de indignação selectiva. Estivemos 13 anos a sustentar o BES e nunca vi ninguém a dizer quantos portugueses com o salário mínimo poderiam ser aumentados. Nunca vi uma linha da direita portuguesa a contestar as PPP ruinosas, electricidade em regime de monopólio proibitiva, portagens ou combustíveis. Aliás, até vi liberais no Parlamento – já sei que o Luís não gosta destes liberais, embora pareça muito – a defenderem o cartel das gasolineiras, pedindo menos impostos para eles. Quando o Governo baixou os impostos, as gasolineiras comeram as margens.

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    Ou seja, entre poder político e donos do capital, faz-se o banquete. À direita nada parece incomodar, e até a especulação nos supermercados já os vi defender. O lucro manda.

    Mas ai de nós se defendemos uma companhia aérea num país periférico que, só por acaso, faz verdadeiro serviço público. Aí entramos no sorvedouro de dinheiro público e na raiz do atraso estrutural desde 1985.

    No que toca a prioridades e dinheiro público atirado para a sarjeta, decididamente não estamos a assistir ao mesmo filme. Há um rio de poupanças a fazer e de desperdício para cortar, antes de se pensar na reestruturação da TAP. Que, já agora, será inevitável. 

    Dou um exemplo para ajudar: Ferreira do Amaral saiu esta semana da Lusoponte ao fim de 16 anos. O que teríamos poupado nesta dezena e meia de voltas ao sol se ele não tivesse assinado o contrato de exploração enquanto era ministro das Obras Públicas?  Eu arrisco, para não me esticar muito: uns quinze A320. Em leasing

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O segredo está no estrume de vaca

    O segredo está no estrume de vaca


    Há seis anos, se a memória não me falha, sentei-me com o último chefe directo que tive para negociar o aumento anual de salário. Passavam dois anos desde que ele, algures em 2016, me começara a avisar que já não havia “margem” para mexer em salários e que eu teria, por essa altura, atingido o topo.

    Era, portanto, esperado que eu, aos 39 anos, concordasse em ficar com o mesmo salário, quiçá, até aos 65, idade em que me reformaria.

    Expliquei-lhe, ainda de forma educada nessa reunião, que a “margem” esgotada a que ele se referia era aquela em que ele, a empresa, tinham como modelo de negócio ficar com 35 a 50% do valor gerado por mim.

    Ou seja, a conversa dele começava no lucro garantido de 35% e a partir daí, logo se via quanto mais é que poderia raspar-me da pele. A mim e a outros em idêntica situação.

    A negociação terminou com a exigência, por parte do empregador, de não abdicar do lucro mínimo de 35% e eu, que achava que eles nem faziam o suficiente para receberem 5%, decidi vir-me embora e começar a trabalhar por conta própria. Ou a decidir a quem e de que forma dava margens no valor produzido única e exclusivamente por mim.

    O empregador não ficou contente e, mais tarde, ameaçou-me com um processo em tribunal, que nunca teve pernas para andar. Isto porque, felizmente, a escravatura há muito foi erradicada destas paragens. 

    Ficou-me dessa experiência a ganância desmedida com que se procura o lucro, independentemente de quem trabalha ou de quem merece ser compensado.

    Tenho dito a cada português que aqui chega (Suécia), em busca de uma vida melhor, que nunca se vergue na defesa dos seus direitos laborais e que, especialmente, nunca tenha medo de vender a sua força de trabalho pelo preço justo.

    Para quem vive do seu trabalho não há outra arma contra quem vive do lucro gerado por todos nós. A divisão de riqueza gerada tem que ser justa e, quando não for, a classe trabalhadora deve estar unida.

    Esta conversa das margens veio-me à cabeça quando ouvi as N entrevistas aos presidentes de associações de retalho que foram chamados às televisões para tentarem justificar o injustificável: as enormes margens de lucro com a inflação.

    Entre eles estava Rodrigo Moita de Deus, conhecido lobbysta e presidente da Associação de Portuguesa de Centros Comerciais, que procurava validar o escândalo que semanalmente vemos nos supermercados com o aumento dos custos na cadeia de produção.

    grey shopping cart

    A direita mais liberal não o diz abertamente, porque fica mal, mas apoiam o lucro infinito porque “as empresas existem para dar lucro”. Que me lembre, só Cecília Meireles, já sem funções parlamentares e num debate com Mariana Mortágua na SIC Notícias disse, a propósito dos lucros excessivos da banca que “desconheço o conceito de lucro excessivo”. 

    É o mesmo que dizer que, enquanto se puder aumentar o lucro, importa pouco quando cadáveres se vão amontoando para que os conselhos de administração se elevem nas ossadas.

    Cecília, cujo partido desapareceu, já pode dizer isto abertamente, os restantes actores da direita ainda precisam de fingir que se preocupam com a miséria que vai abraçando os portugueses.

    Toda esta defesa do lucro a todo o custo como conceito e, pior, a patética tentativa de ensaiar uma narrativa de aumento generalizado na cadeia de produção, para justificar aumentos de 70% em produtos do cabaz essencial, honestamente, dão-me vómitos.

    Por acaso, os trabalhadores dessa cadeia de produção foram aumentados em igual proporção? Alguém ouviu falar em aumentos de 30% para os operadores de caixa do Pingo Doce ou 70% para os funcionários da Terra Nostra, que produzem o queijo e o leite nos Açores? Não, pois não?

    Então acabem com essa conversa do aumento dos custos de produção como se não fosse uma coisa localizada em partes dessa cadeia.

    Mas os custos de produção não aumentaram? Sim, claro que aumentaram. As rações para os animais subiram de preço com a guerra da Ucrânia. Os combustíveis também e, obviamente, o transporte de mercadorias ficou mais dispendioso.

    Mas não seria de esperar que esses aumentos fossem divididos (para ser simpático) entre quem produz, quem distribui e quem compra? Seria pedir muito que os supermercados reduzissem um pouco as suas margens ou vá, que as mantivessem, para que a bomba não caísse toda nas mãos dos consumidores que empobrecem a cada dia?

    photo of stacked shopping carts

    Não aguento mais um dia de “passa culpas” ou de tentativas de convencimento da população por parte dos líderes das associações ou CEOs da distribuição. Se as margens de lucro aumentam com a inflação, é porque o impacto é todo absorvido por nós. Por quem trabalha. Ponto final. 

    Se não há aumentos salariais reais (acima da inflação) e se bancos e supermercados apresentam lucros recorde enquanto todos empobrecem, é porque as margens aumentaram e as grandes corporações se aproveitaram da inflação para especular. Ponto final. É isto o lucro excessivo. O momento em que, com a permissão dos governos, há uma transferência direta de dinheiro dos trabalhadores para o capital. É um assalto em termos legais. É isso que estamos a viver.

    O escândalo é de tal forma descarado que dou por mim, aqui na Suécia, a comprar produtos que chegam num camião TIR de Espanha quase ao mesmo preço que o compraria numa grande superfície em Portugal. Mesmo com 3000 quilómetros de gasóleo e operadoras de caixa que recebem três vezes mais do que em Portugal, o aumento não é todo absorvido pelo cliente final. É obra.

    bunch of assorted produce in brown wicker basket

    O Governo, tarde como é habitual, pondera limitar os preços em alguns produtos essenciais. Aqui d’el Rei que se juntam as vozes a gritar pela nova Venezuela e aparece logo um par de economistas a explicar que isso fará alguns produtos desaparecerem do mercado por troca com outro paralelo e de preços mais altos, por causa da redução da oferta.

    Como meus amigos? Como? Vão os produtores deixar de vender bens essenciais? E vivem de quê? O Continente e o Pingo Doce não aceitarão? Óptimo. Voltemos aos mercados e aos pequeno produtores com pequeníssimas cadeias de distribuição. Produtos locais, comércio de proximidade, preços mais baixos, maior divisão de riqueza.

    Qual é o problema? É que se acaba o “lucro excessivo” e isso incomoda a quem manda.

    time lapse photography of cattle cow under clouds

    Dizia hoje um pequeno produtor, no mercado de Espinho, que os preços não eram altos porque precisavam de vender e que esta era a forma de concorrer com as grandes superfícies. Explicou também que o segredo para ter produtos tão bons (os legumes apresentados tinham tamanho avantajado) e frescos era, para além de ele próprio os cultivar, o uso de estrume de gado bovino como fertilizante.

    Ora aí está. Estrume de gado bovino pode ser, afinal, solução de boa parte dos nossos males. Ou de vaca, dito de forma mais corriqueira. Primeiro na terra, para gerar belos legumes e depois, aplicado com alguma mestria, na cara de quem nos obriga a empobrecer para aumentar as fortunas de uma minoria.     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Prova de acesso ao liberalismo: bater na TAP

    Prova de acesso ao liberalismo: bater na TAP


    O meu camarada de jornal Luís Gomes, economista de bandeira liberal, escreveu no seu último texto publicado no PÁGINA UM um conjunto de perguntas que deveriam ser colocadas na Comissão de Inquérito à TAP ou, como ele lhe chamou, “bancarroteira nacional”.

    Eu ainda sou do tempo em que os liberais andavam escondidos no PSD e no CDS e, ainda a medo, combinavam reuniões secretas nos corredores, quando se encontravam com os tapetes debaixo do braço para rezarem virados para os mercados.

    Agora, com um partido próprio e quase duas mãos cheias de deputados, parecem os gajos da Herbalife a vender pastilhas para emagrecer, ou lá o que se vende na Herbalife. Se calhar são ervas, não sei.

    Ainda assim, admito, eu gosto de ler liberais. É o meu guilty pleasure. Um pouco como aquela música das Spice Girls que passava na rádio na década de 90. Uma pessoa batia o pé, mas fingia que não gostava.

    E gosto de os ler porque, se pensarmos bem, a vida aqui no planeta é dura, a luta é constante e os problemas bem reais. Aqui e ali, ler histórias de Nárnia, pelo menos a mim, transporta-me para mundos coloridos e permite-me alhear das dificuldades do dia-a-dia. Dispensá-los-ia, aos liberais, se o Benfica jogasse todos os dias, mas as pernas do Rafa não aguentariam tanta pancada.

    E pancada foi exactamente o que o meu camarada Luís deu na TAP. TAP, é esse o nome, não é “bancarroteira nacional”. Bancarrota nacional foi a década e meia de dinheiro público despejado na banca privada, quando a direita, que incluía os liberais envergonhados na altura, nos garantiu que havia “risco de contágio dos mercados”.

    Milhões deitados numa sarjeta para aguentar uma família de corruptos, manter alguns segredos de Estado e aumentar as fortunas de quem já era rico. Que serviço foi prestado aos portugueses nessa injecção de capital? Nenhum. Conseguiram perder dinheiro investido, ficar sem poupanças, ver administradores distribuírem prémios entre si e hoje, como prémio, lutam contra as taxas de juro para não perderem as suas casas.

    Uma das dificuldades no debate com a nova vaga de liberais portugueses é que, mal nos começam a vender uma teoria, ela já está a falhar num sítio qualquer. Se nos falam em saúde e perguntamos se é o modelo “cada um por si e Deus por todos” que vigora em Meca (EUA), dizem que não, que optam pela versão escandinava.

    Depois, quando percebem que na versão escandinava é tudo público, apontam para os Bálticos. Quando os Bálticos chegam aos dois dígitos de inflação, dizem que o Brasil é socialista. Quando reparam que o Bolsonaro é o Presidente, apagam o vermelho do cartaz e dizem que precisamos de menos Estado.

    Nisto surge a covid-19 e o Cotrim grita com o Costa na Assembleia para lhe dizer que o apoio do Estado às empresas está a demorar muito. A dada altura, uma pessoa pede só para sair do carrossel e decide que o Liberalismo é como uma discussão com a mulher. Um gajo concorda com tudo só para não ter que ouvir mais.

    A TAP, por muito que custe admitir a quem a desdenha, presta um serviço ao país e à economia. Transporta pessoas, dá emprego a vários milhares direta e indiretamente. A lista de fornecedores nacionais da TAP é coisa para fazer mossa ao fundo de desemprego, no dia em que conseguirem acabar com ela.

    E quando digo fundo de desemprego, estou a partir do princípio que a Iniciativa Liberal não será Governo por essa altura porque, se for esse o caso, então refiro-me ao acolhedor espaço que sobrar debaixo da Ponte 25 de Abril.

    O Luis faz várias perguntas, essencialmente sobre medidas de gestão e desperdício de dinheiro, a partir de 2015, altura em que a TAP voltou para a esfera pública. Não há nada de errado com as perguntas, tirando o facto de não incluírem mais um punhado de dúvidas sobre o período anterior e a forma como também pagámos para a TAP ser privatizada.

    Deduzo que não se possa tocar no Governo de Passos. Na narrativa liberal, afinal, Pedro de Massamá era o homem que cortava nas gorduras do Estado. Pelo menos, naquelas que aqueciam os trabalhadores. Já na clientela habitual, nem tanto.

    Mas sem me desviar muito e voltando às questões, elas encerram em si mesmas a razão pela qual me aborrecem textos difamatórios da TAP. É que, por norma, classifica-se a companhia pelos actos de gestão de um punhado de boys, lá colocados por PSD e PS, consoante o momento governativo. E isso é de uma tremenda injustiça.

    person looking up to the flight schedules

    A TAP são milhares de pilotos, pessoal de bordo, assistência em terra, engenheiros de manutenção, técnicos de aeronaves e outros que, na minha opinião, prestam um serviço insubstituível ao país. No fim da lista, lá aparecem meia dúzia de boys engravatados que vão arrastando a companhia para a lama, com o patrocínio do Governo, fazendo da TAP arma de arremesso de qualquer oposição populista e, pior, prejudicando os trabalhadores da companhia que são alheios e todos estes folhetins.

    Mas a TAP, a transportadora nacional que é das poucas empresas que de facto transportam o nome de Portugal pelo mundo fora, não pode ser misturada ou julgada por actos criminosos de gestão de uma minoria. Ou, como se diria num debate televisivo, não podemos mandar o menino fora com a água suja do banho.

    Sempre que um liberal grita pelo encerramento da TAP, sem explicar o que faria com os milhares de desempregados, dizendo que o mercado tratará de ocupar os slots, eu, emigrante confesso, puxo do tapete, aponto-o para Wall Street e começo a rezar aos deuses da mão invisível. Adoro explicacões de como o mercado tudo resolve até percebermos que não é bem assim.

    gate closing signage

    Quando ouço a malta da IL a falar de mercados, penso sempre no gregos da antiguidade que esperavam pelo trovão de Zeus para se aquecerem. A fé é semelhante, tirando a parte de “os mercados” não serem uma entidade divina (para os não-liberais, entenda-se). 

    Por exemplo, o deus dos mercados, no caso do desaparecimento da TAP, funcionaria da seguinte forma:

    a) se turistas quisessem vir para Portugal (procura), alguma EasyJet haveria de aparecer (oferta). Neste caso, portugueses que estivessem na zona de onde partiam os turistas, conseguiam transporte.

    b) se os turistas se aborrecessem dos pastéis de nata ou dos cimbalinos e quisessem ir pregar para outra paróquia (quebra na procura), a Easyjet ia-se embora, a oferta reduziria e os portugueses ficariam com menos hipóteses de se movimentarem.

    Ou seja, Portugal, um país periférico da Europa, sem ligação por ferrovia ao Velho Continente (12 horas até Madrid não contam como ferrovia uma vez que é o tempo para lá chegar de bicicleta) ficaria refém dos interesses financeiros do mercado para ter rotas aéreas. Não é um negócio extraordinário para um povo que tem 1/3 dos seus fora de portas.

    O que dizem os liberais neste caso do risco do mercado? Não há problema porque, nesse caso, o Governo pagaria a uma companhia privada qualquer para garantir rotas com a diáspora. Ora…pagaria quanto? E já agora, companhias pagas por governos é aquilo a que se costumam chamar companhias de bandeira ou seja, a TAP.

    Essa conversa de acabar com a TAP para se pagar à Ryanair (o O’Leary passa a vida a chorar por subsídios e a chantagear aeroportos com taxas) parece a discussão do SNS onde a IL nos tenta convencer que, liberdade, é destruir a saúde pública e fazer o Governo pagar as nossas consultas nos hospitais privados.

    O mantra liberal é sempre o mesmo: desviar dinheiro público para o bolso de uma minoria de magnatas do setor privado. É esta a base da teoria “os mercados resolvem” e aplica-se numa escola, num hospital ou nas asas de um avião.

    Nem vou entrar na discussão da importância que a TAP tem para a comunidade emigrante (que representa 2% do PIB), no serviço que a TAP presta na ligação aos países de língua portuguesa, na coesão territorial com as regiões autónomas, nos prémios de engenharia que recebe ou no facto de estar entre as cinco companhias mais seguras do mundo.

    Era conversa para umas horas e vocês têm que ir à vossa vida produzir, para a mão invisível sacar depois. Nunca uma empresa de tamanho prestígio foi tão mal tratada.

    Miguel Sousa Tavares disse, no seu podcast, que a comissão de inquérito não deveria ter elementos do PS e do PSD. Concordo. Enquanto os outros lá estarão a fazer perguntas, os deputados de PS e do PSD tentarão despachar culpas para o vizinho.

    man sitting on gang chair near window

    Não sei o que sairá desta Comissão de Inquérito à TAP mas pergunto-me, se a solução para evitar mais indemnizações milionárias, nomeações de boys, desvio de dinheiro na compra de aviões e escândalos do género, é mandar milhares de trabalhadores para a rua?

    Ou se ganham os portugueses ao ficarem dependentes dos abutres e do lucro para, no canto da Europa, se conseguirem mexer? Já nem vou mencionar nas idas a casa dos emigrantes ou luso-descendentes, os tais cinco milhões que andam espalhados pelo mundo e que só servem para enviar remessas, pagarem festas de Agosto na aldeia ou serem gozados na praia. 

    Dizem-nos repetidas vezes que a Ryanair transportou milhões de pessoas para o território nacional e por isso podemos dispensar a TAP. O que acontecerá então quando Porto e Lisboa saírem da moda e a TAP não existir? Ficamos como Bratislava ou Liubliana? Capitais onde as low cost levam couro e cabelo por um voo de duas horas?

    A minha pergunta, para o Luís e para os liberais em geral que tentam fechar a TAP desde que Pedro Nuno Santos a resgatou, é a seguinte: porque não exigem apenas uma administração competente para a transportadora nacional? O mantra dos mercados não se aplica na substituição de gestores inúteis?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Manuel Pinho, um alegado vigarista com visão de jogo

    Manuel Pinho, um alegado vigarista com visão de jogo


    Dizia-me o director do PÁGINA UM, depois do meu regresso ao continente europeu e à espuma dos dias, que temas não faltavam, dada a confusão instalada. E, de facto, assim é. A enxurrada de notícias, casos e absurdos são de tal monta que poderia sentar-me a escrever de manhã à noite sem repetir um assunto. Fui ao pote… e tirei a senha… Manuel Pinho.

    É um caso absolutamente genial e um óptimo exemplo dos bastidores da política e do mundo das empresas que gravitam na órbita do Estado. Os famosos DDT – leia-se, Donos Disto Tudo –, cujas histórias nos motivam sempre a produzir e pagar impostos. Especialmente numa segunda-feira.

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    Manuel Pinho foi ministro da Economia do Governo de José Sócrates – o tal que foi tomar banho mais cedo quando fez uns corninhos na Assembleia da República.

    Em 1994, aos 40 anos de idade, Manuel Pinho entrou para o Conselho de Administração do Grupo BES, onde exerceu vários cargos, saindo dez anos mais tarde para concorrer nas listas do PS às Legislativas. Foi nomeado ministro da Economia por José Sócrates. Poucos dias depois de chegar ao cargo, influenciou a ida de António Mexia para a EDP e, ao longo do seu mandato, concedeu vários benefícios indevidos à empresa. Em troca, a EDP sustentou a carreira profissional de Pinho como, por exemplo, aquele curso patrocinado pela eléctrica portuguesa na Universidade de Columbia, para onde Pinho foi pregar depois de sair do Governo.

    Enquanto ministro da Economia ficaram famosas as suas palavras, aquando de uma visita à China, apelando ao investimento em Portugal, porque, segundo ele, éramos “um país de mão de obra barata”. Os chineses acreditaram e vieram tomar conta da EDP e da REN, entre outras empresas. António Mexia continuou a ser o homem certo no lugar certo.

    Manuel Pinho fez um gesto indecoroso em 2 de Julho de 2009 em plena Assembleia da República, e que causaria a sua demissão de ministro da Economia.

    Vários anos depois de sair do Governo, um pouco arrastado pelas acusações a Sócrates, Manuel Pinho foi acusado formalmente de corrupção por ter beneficiado a EDP enquanto ministro. O Ministério Público disse ainda que Manuel Pinho recebia dinheiro do BES para cuidar dos seus interesses enquanto ministro. O BES era um dos maiores accionistas da EDP.

    Foi, por esta altura, que se começou a investigar o património de Pinho, e se descobriu, entre outras coisas, apartamentos em Manhattan. Uma das coisas curiosas em boa parte da classe política portuguesa é a capacidade que têm de multiplicar salários. Não sei se sabem qual é a remuneração de um deputado, de um ministro da Economia ou até de um primeiro-ministro. Posso garantir-vos, porém, que não dá para apartamentos em Paris ou Manhattan.

    Como não há fumo sem fogo, e apartamentos na City não se sorteiam em pacotes de Nestum, descobriu-se que Pinho, durante os seus anos no Grupo Espírito Santo (GES), recebia salários e prémios, através de um esquema de saco azul. Uma trafulhice comum para fugir ao pagamento de impostos com o dinheiro a passar por destinos off-shore. Estima-se em mais de um milhão de euros recebidos por Manuel Pinho sem passar no crivo do fisco (que rei!).

    A fraude fiscal é por demais evidente, mas Manuel Pinho começou por negá-la.

    cityscape of building at daytime

    A história melhorou quando ficámos a saber, também por investigação do Ministério Público que, durante o seu tempo na política, Manuel Pinho recebeu uma avença mensal do BES de 15 mil euros mensais. Cheira a mesada para garantir os interesses do empregador, mas o Ministério Público foi mais longe: acusou Pinho de ser um verdadeiro agente do GES infiltrado no Governo. Pinho nega tudo sem conseguir explicar muito bem que salário era aquele.

    Estas “luvas” do GES nunca foram declaradas por Pinho, vá-se lá saber porquê, mas depois do início da investigação em 2017, e acusação formal em Julho de 2018, o antigo ministro de Sócrates aproveitou uma lei de perdão fiscal para regularizar a declaração do dinheiro recebido. Fê-lo em Setembro de 2018, dois meses depois de ter sido acusado.

    Em 2020 foi acusado de ter sido subornado por Mexia, na EDP e, em 2021, foi formalmente indiciado por corrupção, por favorecimento à Odebrecht na obra da barragem do Baixo Sabor. Ainda em 2021 foi detido para interrogatório e ficou a aguardar julgamento em prisão domiciliária, por se recusar a pagar a caução de seis milhões de euros.

    Agora, em 2023, algum advogado de Manuel Pinho lhe deve ter explicado que era mais fácil assumir o crime de que se podia safar – a fraude fiscal – e defender o mais perigoso – a corrupção. E sabem que mais? É absolutamente brilhante.

    Pinho veio revelar, arrependido como se quer nestas ocasiões, que recebeu dinheiro sem pagar impostos, e que esta era uma prática comum no GES. Ou seja, recebiam todos pequenas fortunas e deixavam os impostos para mim, para ti, para quem os quisesse pagar.

    Lembrem-se que enquanto os administradores fugiam aos impostos e enriqueciam, os contribuintes tiveram de ser chamados a pagar durante 13 anos o caos que lá ficou instalado. Isto é quase poético e revelador da impunidade entre quem verdadeiramente manda e quem deve obedecer.

    Pinho acrescentou ainda que tinha regularizado o dinheiro malparado no tal perdão fiscal de 2018 e, por isso, já não podia ser acusado de nada. Ou nas palavras dele: “o que já está, já está”.

    close-up photo of assorted coins

    Não sou advogado, mas espero que este argumento faça jurisprudência. Imaginem uma sociedade onde a cada roubo, cada crime, cada assassinato se pudesse dizer: “pronto, o que já está, já está… agora há que olhar em frente e seguir caminho”.

    Imaginem um mundo onde a impunidade dos ricos se propaga aos pobres, como se fosse um vírus respiratório. Que maravilha!

    A estratégia de Pinho e dos seus advogados é, de facto, brilhante, porque, tal como nós, eles sabem que estão em Portugal, o país onde é muito difícil ser-se condenado por corrupção. E quando tal sucede é com penas doces.

    Sempre que virem uma notícia de um rico indiciado por corrupção, lembrem-se do desfecho do caso Bragaparques, quando José Sá Fernandes era vereador do Bloco de Esquerda na Câmara de Lisboa. Tentaram comprar o homem para que beneficiasse uma empresa de construção civil com uma obra de um parque de estacionamento em Lisboa. Quiseram dar-lhe uma mala de dinheiro. O deputado fez queixa, dizendo que o estavam a tentar corromper e fez uma gravação com o irmão Ricardo Sá Fernandes.

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    Um tribunal chegou a condenar os dois irmãos a pagar uma multa por gravação ilícita, e um outro tribunal até absolveu o empresário Domingos Névoa porque estaria a tentar corromper quem não tinha tutela nas decisões autárquicas. Ou seja, o dono da mala, para ser condenado, teria de ir a uma reunião de vereadores e perguntar: “Ouçam!!! Quem é que aqui trata do urbanismo?? És tu?? Então toma lá esta mala!!”

    Isto ainda foi corrigido, com Domingos Névoa a ser condenado, mas pelo Supremo Tribunal de Justiça, embora com mão leve: multa de 200 mil euros para não ir para a prisão por cinco meses. E o empresário continuou a sua vidinha, que lhe correrá bem, até porque já este ano comprou o Shopping Cidade do Porto por 28 milhões de euros.

    Portanto, Pinho sabe que jamais cairá por corrupção num país (ainda) de brandos costumes para os corruptos, e como a fraude fiscal está resolvida no perdão, há mesmo a hipótese de sair disto limpinho como um rabinho de bebé depois de três Dodot.

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    Absolutamente brilhante. A prova cuspida de que existe uma justiça para ricos e outra para pobres, até porque pobre nem deve ter dinheiro para ter acesso à Justiça, sendo um bom exemplo o recente chumbo na Assembleia da República da redução das taxas e custas judiciais. Bem sei que é um conceito estafado, mas visto assim de perto, ao vivo, tem sempre outro impacto.

    Como mantemos esta aparente indiferença, e deixamos esta gente safar-se, uma e outra vez, é que continuo sem conseguir compreender.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O ano de 1938 segundo Sérgio Sousa Pinto

    O ano de 1938 segundo Sérgio Sousa Pinto


    Sérgio Sousa Pinto (SSP), em tempos que já lá vão, um jotinha destacado e bem-comportado, está hoje para o PS como o Pacheco Pereira está para o PSD: é a oposição interna. É ele hoje o liberal rebelde que se incomoda com políticas de esquerda, mas que por lá vai ficando, no PS, provando o que há muito já sabemos: aquele S deixou de ser socialista desde que Mário Soares se reformou.

    Fez ele, o Sérgio, na semana passada, um discurso de 12 minutos na Assembleia da República de encher a alma, daqueles que puxam às lições da História para nos alertar sobre o caminho a seguir.

    Vivemos em 1938, segundo SSP, o ano em que França e Inglaterra se acobardaram quando Hitler anexou uma parte da Checoslováquia, onde vivia uma fatia considerável de alemães. Chamberlain, primeiro-ministro inglês de então, assinou o pacto de Munique que garantia a Hitler aquele território sem guerra ou grandes gritarias. Hitler jurava que, depois daquele problema fronteiriço resolvido, estariam concluídas as disputas territoriais da Alemanha nazi na Europa. O continente mantinha-se assim no rumo da paz, sacrificando os cordeiros checos.

    O Donbass – era aqui que SSP queria chegar. O Donbass é a nova Checoslováquia, Putin o novo Hitler, e nós, a comunidade internacional, não devemos ser o novo Chamberlain.

    SSP esqueceu-se de alguns detalhes dessa história relativamente importantes. Por exemplo, que não foi só a Alemanha nazi a trinchar o peru. Polónia e Hungria foram convidadas a retirar umas fatias de território, onde viviam comunidades polacas e húngaras. E não se fizeram rogados. A Roménia também foi convidada, mas recusou por ser uma aliada antiga da Checoslováquia. Os checos perderam território entre três vizinhos, e o que lhes sobrou passou a ser administrado por um governo-fantoche à ordem dos nazis. O Putin de 1938 não estava sozinho nas intenções expansionistas…

    landscape photo of cemetery during daytime

    Esta é uma primeira diferença que não é propriamente um detalhe.

    Contudo, de facto Chamberlain foi enrolado, e Hitler, uns meses mais tarde, começou a fazer olhos ao norte da Polónia (Gdansk) e a exigir o seu regresso ao território alemão. Como sabemos, foi essa invasão que ditou o início da II Grande Guerra, e não só Hitler mentira descaradamente no tratado de Munique como, hoje sabemos, mais do que resolver problemas de fronteira, queria controlar todo o continente europeu.

    Voltemos ao “erro de Chamberlain” – e também de Daladier, primeiro-ministro francês em 1938 que, juntamente com Mussolini e Hitler assinaram o tratado de Munique. O que poderiam eles fazer? Enfrentar Hitler? Como? Em 1938, o exército alemão era, de longe, o melhor, mais bem armado e mais tecnologicamente avançado exército do Mundo. Uns meses depois, em 1939, “varreram” a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo e a França em apenas seis semanas.

    Portanto, diz-me Sérgio Sousa Pinto, o que devia Chamberlain ter feito? Ou o pobre francês que em pouco mais de um mês perdeu o controlo de um dos maiores países da Europa. Deviam ter-se atirado para a frente do rolo compressor e começado a guerra um ano antes?

    grayscale photo of ceramic mugs with coffee

    Eu acho sempre piada a conversas de heróis com o couro dos outros.

    Não fosse o inverno russo e os disparates de Mussolini na Grécia, e queria ver quem é que tinha parado a máquina nazi.

    Voltando ao Donbass e ao argumento de que se Putin não for parado agora, virá desfilar tanques até Paris como Hitler. Permitam-me discordar. O exército russo anda há semanas, senão meses, com mercenários e tudo o que vão arranjando pelo caminho, a tentar tomar Bakhmut, uma pequena cidade com metade do tamanho do Seixal e 70 mil habitantes (antes da guerra).

    Não é gente que eu queira ter por perto, concordo, mas não me parece aquele tipo de pessoal que acaba a obra na Ucrânia e desata a limpar países até chegar a Madrid.

    Aliás, Sérgio, tu próprio não deves acreditar no que disseste porque, eu bem te ouço, ao lado do amigo Sebastião na CNN, a dizer há meses que o Putin está a perder a guerra, que os ucranianos são uns espartanos e que o exército russo é formado por um grupo de bêbados malvestidos e mais mal liderados.

    Portanto, em que ficamos? A Rússia é um gigante com pés de barro, como andas a vender em horário nobre há meses, ou estamos em 1938 e esta versão do exército vermelho, depois do aquecimento na Ucrânia, vai bombardear tudo o que mexe entre Berlim e Lisboa?

    Ao contrário de Hitler, Putin não parece muito interessado em fazer bluffs. O homem já disse que quer o Donbass, a Crimeia, um bocadinho da Moldávia e algumas fronteiras históricas da União Soviética. Compreendes? Ele disse mesmo ao que vai. Nós é que andamos entretidos a discutir o sexo dos anjos e não ouvimos. Ele não quer confrontação directa com a NATO (não é idiota), não quer invadir Bruxelas nem Amsterdão, e já percebeu que se vê grego só contra ucranianos armados pelos americanos. Portanto, o homem não só sabe os seus limites como já nos informou. Ele quer esticar um bocado os pés, arranjar ali uns quintais e meter os vizinhos em sentido.

    É chato? Epá… é. É mais ou menos como os israelitas que foram sacando território na Palestina, no Líbano e no Egipto sem avisar. Também é chato. Mas ninguém pensou que eles, mesmo com as costas quentes, fossem começar a desancar em todos até à Tailândia.

    Mudará a correlacão de poderes se o Ocidente deixar a Ucrânia e a Moldávia caírem? Claro que sim. Os blocos estão a formar-se. Europa e americanos para um lado, enquanto a China, Índia e Rússia estão para outro. África e Ásia pobre com eles, enquanto o Japão, Coreia do Sul, Canadá e Austrália “connosco”. Está a acontecer, Sérgio.

    Agora… estamos a viver 1938? Corremos um risco de guerra global contra o exército mais poderoso do Mundo? Não me parece.

    Ao contrário de 1938, não só as intenções do invasor não estão escondidas como, já percebemos, Putin não quer controlar a Europa, mas sim voltar a ser um dos decisores no Mundo. Tarefa que ficou mais facilitada com a aliança assumida pela China. Estamos mais perto da Guerra Fria do que de uma nova invasão de Gdansk e um conflito global.

    Honestamente, pelo que vou vendo, as hipóteses de uma escalada no conflito (com armas nucleares, NATO, etc.) aumentam, isso sim, enquanto fizermos questão de ir alimentando este conflito.

    brown and gray concrete building during daytime

    Era essa a conclusão do discurso de SSP. Um apelo para não repetir o erro de Chamberlain e “enfrentarmos” o mal, em nome da liberdade das gerações futuras. “Enfrentarmos”, Sérgio? Também vais vestir o kevlar e meter o capacete?

    Por favor, Sérgio Sousa Pinto e demais políticos com direito a palanque. Pelas alminhas, poupem-me a discursos inflamados e heróicos a exigir a luta armada, feita por outros, como resolução dos problemas criados por vocês. Andaram 20 anos a comer na mão de Putin, a fazer negócios, a vender-lhe armas a troco de gás. Agora queres enfrentá-lo? Como? Com a NATO? Com arsenal nuclear?

    Se há coisa em que a História, de facto, se repete é na origem de todas as guerras. Políticos e governantes combinam a chacina onde as elites enriquecem e os pobres vão morrer. Aí sim, talvez estejamos a viver 1938.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.