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  • O salão de festas

    O salão de festas

    Cansado de contar tostões, Inocêncio percebeu, a dada altura, que a pequena herança recebida podia abrir portas a um futuro mais risonho. Transmitida de geração em geração, a propriedade encontrava-se na posse da família desde tempos tão remotos que a sua origem se entrelaçava com a memória da fundação da pitoresca aldeia piscatória.

    Quem, vindo de fora, por ali passava, encantava-se com a beleza da quinta: rústica, singular, autêntica, repetiam. Faltava-lhe, porém, conforto. O que para o humilde e despretensioso Inocêncio era bastante, revelava-se insuficiente aos olhos requintados de quem chegava em busca de uma “autenticidade refinada”.

    As paredes caiadas e as portas de reixa eram lindas, mas a manutenção não dava tréguas; a cozinha, de lume aberto, um encanto, só que o fumo impregnava toda a casa; a cabana, very typical, não fosse a vaca tresandar, seria perfeita;  a água da nora fresca e deliciosa, já torneiras nem vê-las; e, pormenor fatal, ao fundo do terreno, quatro exíguas paredes de madeira a ocultar uma inesperada retrete.

    O que para  Inocêncio era apenas normal, constituía para os visitantes um excesso de autenticidade: suportável em pequenas doses, por algumas horas. Não mais do que isso.

    Ainda assim, foram os estrangeiros — cada vez mais numerosos na região — os primeiros a reconhecer o potencial daquela casa junto ao mar. Tentaram comprá-la por tuta e meia, justificando a pechincha com a extensa lista de obras indispensáveis: picar paredes, rebocar e pintar, substituir tetos e chão, derrubar a chaminé, remodelar a cozinha, instalar casas de banho, erguer uma pérgula na açoteia, mudar portas e janelas… um inventário tão exaustivo quanto conveniente.

    Inocêncio, aconselhado por um amigo dos tempos de escola que agora trabalhava num banco, recusou a proposta. Pediu ele mesmo um empréstimo, fez as obras e converteu a sua herança num amplo salão de festas.

    A inauguração foi um sucesso: rodeados por peças de artesanato e artes de pesca  restauradas e integradas na decoração, os convivas, elegantemente vestidos, deliciavam-se com canapés, petit fours e delicadas flûtes de champanhe.

    Inocêncio, que nunca vira tanta cerimónia, não conseguia entender. Com peixe fresco em abundância, vinho de qualidade à disposição… e eles ali, entretidos a mordiscar umas coisinhas e a molhar os lábios. Mas lá que tinham um ar distinto, isso tinham. Muito bem vestidos. Chiques, sem dúvida.

    Com o passar do tempo, porém, as festas transformaram-se. Os petit fours, que faziam as delícias nos primeiros eventos, desapareceram para dar lugar a outras miniaturas igualmente coloridas: rolinhos de arroz pastoso com peixe cru. Chamavam-lhe sushi. Inocêncio preferia chamar-lhe bolas de “arroz unidos venceremos”. Uma grande mistela, pensava ele. Mas os camones gostavam. Problema deles.

    As festas multiplicaram-se e a sofisticação inicial depressa deu lugar ao excesso. As pirâmides de taças de champanhe foram substituídas por grades de cerveja barata; os canapés vistosos e até o sushi acabaram trocados por fish and chips a escorrer gordura e devorados sem cerimónia.

    O espaço, cada vez mais irreconhecível, revelava-se surpreendentemente lucrativo. Tanto que Inocêncio decidiu ampliá-lo: primeiro uniu o salão às antigas cabanas e depois à casa onde sempre vivera. Ficou um belo mamarracho, é certo, mas a açoteia transformada em rooftop com DJ e música pela noite fora rendia ouro.

    Não se ralava por dormir agora num quarto improvisado no palheiro. Também pouco lhe importavam as noites em claro, o barulho, a agitação e os estragos feitos por clientes embriagados: tudo se compunha, e o lucro compensava.

    Até que as reservas começaram a rarear. O salão de festas perdera o encanto para os turistas: estava descaracterizado, já não tinha autenticidade. O que ali encontravam era igual a tudo o que existia na região, ou até nos países de onde vinham.

    Inocêncio não compreendia como é que tamanho investimento podia ter sido em vão. Tinha remodelado tudo: o espaço estava moderno, requintado, com todas as comodidades e, no entanto, vazio.  Não lhe restou alternativa senão vendê-lo para saldar as dívidas. Da velha quinta não sobrou rasto. No seu lugar ergue-se hoje um cinco estrelas luzente. O antigo anfitrião viu-se reduzido a espetro. Um fantasma que vagueia agora pelo bairro, onde mora num apartamento com vista para a entrada de serviço do colosso envidraçado.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Os teus olhos 

    Os teus olhos 

    Dizem que herdei os teus olhos. Sempre encolhi os ombros, neguei, desviei a conversa. Insistem, garantem-me que não há outros iguais. Respondo que já vi muitos parecidos, que é certamente impressão.

    Hoje, sentada na cadeira, de frente para o meio-rosto do oftalmologista, ouço-o chamar a assistente:

    — D. Isabel, chegue aqui. Ora espreite — diz-lhe.

    Ela aproxima-se, ajeita-se, e eu sem perceber muito bem o que se passa. O que terá ele visto de tão estranho para chamar a senhora?

    — Olhe que estou quase na reforma e nunca tinha visto uns olhos desta cor — conclui.

    — Nem eu — responde a assistente, dando-me em seguida os parabéns, como se se tratasse de um grande feito

    — A quem saiu com estes olhos? — pergunta o médico.

    E respondo, pela primeira vez e quase para dentro, que foi a ti.

    Vejo-me agora ao espelho. Repito gestos e movimentos que fiz centenas de vezes: aproximo-me, aponto luzes, abro completamente os olhos. Fui buscar uma fotografia tua. Procuro a mais pequena diferença que me permita dizer, de uma vez por todas e com segurança, que não são os teus olhos. Mas são: estão aqui, no meu rosto.

    Noto, porém, que, felizmente, herdei apenas os olhos, não o olhar. Porque os teus olhos, diziam, enfeitiçavam. Quantas vezes juraste sinceridade? Quantos te confiaram vidas e bens? Quantas mulheres se perderam neles, fascinadas? Cheguei a acreditar que podias encantar serpentes, se quisesses.

    Mas não foram os olhos: foi o teu olhar. Foi o teu modo de fixar sem pudor, de medir os outros sem compaixão, de atravessar as pessoas como alvos. Os teus olhos eram belos; o teu olhar, devastador.

    Percebo agora que o que receio não é que descubram que herdei os teus olhos: é que confundam o meu olhar com o teu. É vergonha e temor de ter em mim o mais pequeno vestígio de ti.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • O malandro 

    O malandro 

    Fortunato estava rico. Riquíssimo. Fizera um grande negócio. Desses que aparecem uma vez na vida:  um golpe de pura sorte. Não exigira visão, nem talento, nem sequer o mínimo esforço. Vendera a propriedade que herdara havia anos. Vendera-a bem. Muito bem, na verdade. E foi assim que,  de um momento para o outro, aquele homem que nunca tivera um tostão, se viu dono de uma fortuna.

    Engana-se quem acredita que a sorte bate à porta dos que mais trabalham. Que o esforço é sempre recompensado e que um dia os preguiçosos pagarão pelo seu pecado. A velha história da formiga e da cigarra – pura ficção. Coisa de fábula e  de livros edificantes, criados para nos convencer a passar a vida a trabalhar. Não da vida real. Fortunato era a prova viva disso mesmo. O mais acabado exemplo de malandro à face da Terra. Nunca fez nada, nunca quis fazer. Dizia a própria mãe que não valia a água que bebia. E aqui estava ele, abençoado pelo acaso  com o que outros procuram, em vão, durante uma vida inteira de labuta e sacrifício.

    Fortunato nunca duvidara de si próprio. Sabia que tinha nascido para ser rico. Era uma vocação. Um talento que a falta de liquidez o impedia de demonstrar. Chegara a sua oportunidade. Multiplicaram-se os brinquedos – carros desportivos, motas de alta cilindrada, barcos, relógios extravagantes – almoços demorados, jantares principescos regados com vinhos escolhidos a dedo. A mesa cresceu. A cada dia surgiam novos amigos. Pessoas que finalmente tinham tido a oportunidade de perceber o seu requinte, os seus atributos ofuscados pela falta de recursos.  Não havia médico, advogado, juiz ou comerciante de prestígio que ousasse faltar: todos corriam a sentar-se à mesa do ilustre anfitrião.

    Mas, como a água que cai do céu e tomamos como certa, também o dinheiro de Fortunato se sumiu rapidamente. A conta encolhia a olhos vistos e, com ela, o séquito que o acompanhava para todo o lado. Pertences, viagens, aventuras, amigos, tudo foi rareando.

    A riqueza foi-se, a malandrice, essa, ficou. Era o mesmo Fortunato de sempre. É que, ao contrário do que sucede nas fábulas e histórias de embalar, não aprendeu nada com a queda. Pelo contrário, revoltou-se contra a injustiça de regressar a uma condição que não combinava consigo.  Não compreendia como podia o destino ser tão cruel. Até a Ritinha, colega da filha  a quem generosamente pagara o curso e montara casa junto à universidade, sempre tão dedicada, teve de regressar para junto da mãe que adoeceu subitamente.

    Vendeu o imóvel para ajudar nas despesas médicas e partiu inconsolável com a separação. Entre lágrimas, confessou-lhe que talvez tivesse de se desfazer também do jipe e das joias que lhe oferecera, tão difícil era a situação.  Uma tragédia. Uma falta de sorte inexplicável. A revolta de Fortunato era tal, que  o deixou incapaz de trabalhar. Viveu, por isso,  o resto dos seus dias à conta do trabalho da mulher, que teve a honra de sustentar a distinta figura até ao final dos seus dias. 

    Não, no final nem todos têm o que merecem, a lei do retorno universal não existe, a justiça divina é uma miragem, e um malandro será sempre um malandro.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Moderna 

    Moderna 

    Ficar na aldeia nunca fora uma opção. Sempre sentira o apelo de um mundo maior, mais arrojado, vanguardista, e ansiava por vê-lo de perto. Tinha a certeza de que era esse o seu lugar. Dizia, muitas vezes, que a cegonha a deixara ali por engano. Só podia!

    Tudo na aldeia lhe parecia pequeno: os lugares, as distâncias, os horizontes, as mentes das pessoas. 

    O facto de ter sido colocada numa pequena universidade do interior só veio acentuar o desejo de partir à descoberta. Por isso, agarrou sem hesitar a primeira oportunidade de fazer Erasmus. O destino escolhido foi Berlim. Mal podia acreditar que, finalmente, estava prestes a realizar o seu sonho. Chegado o dia, levou uma mala quase vazia — na expectativa de no regresso a trazer cheia de objetos fantásticos —, o computador, um salpicão e um pão caseiro, um casaquinho de malha e um cachecol a condizer enrolado ao pescoço. É que mãe que é mãe não deixa a filha ir para a Alemanha desprevenida e desagasalhada. Nunca se sabe…

    Mal aterrou, a Mimi teve a certeza de ter chegado a casa. Berlim era tudo o que antecipara: enorme, vibrante, excitante, moderna. Uma cidade de acontecimentos marcantes, movimentos arrojados, exposições memoráveis, artistas consagrados. Estava convicta de que dali sairia outra. Já se imaginava a regressar e a deixar todos boquiabertos com a nova Mimi.

    Não perdeu tempo. Ao segundo dia, já tinha adquirido um passe cultural e iniciado a maratona pelos museus e galerias da cidade. Passou rapidamente pela Ilha dos Museus. Fazia parte. Mas os Antigos, os Clássicos e os Românticos eram demasiado literais para o seu gosto: bustos de rainhas de perfil perfeito, guerreiros e cavalos de bronze, naturezas-mortas com flores e frutas eternamente frescas, homens e mulheres a contemplar a paisagem de costas para o visitante. Nada de extraordinário. Qualquer um olha e entende. O que ela queria mesmo era desafiar-se com os contemporâneos, mergulhar no enigma, no conceito, no indecifrável. Desvendar as mensagens que se escondem por detrás de uma disforme mancha azul sobre um fundo branco; de um olho triangular que espreita numa tela amarela com riscas vermelhas; ou de centenas de pinceladas soltas lançadas sobre uma base de serrapilheira. Não os percebia, nem mesmo depois de ler as longas descrições que os legendavam. Mas espantavam-na. Tão ousado. Tão à frente… Ah, se as pessoas da aldeia a vissem ali!

    As obras de arte, essas, nem valia a pena tentar explicar. Aquilo era uma gente que não percebia nada e ainda fazia pouco. O pai aproveitava todas as oportunidades para dizer:

    — Se vires uma banana colada à parede, não deixes apodrecer. Joga-lhe a mão, que estragar comida é pecado.

    Santa paciência! A verdade é que ela também não percebia, mas ao menos tentava e sabia que tinha tudo muito valor. Era uma rapariga persistente. Se ali tinha chegado, não era agora que ia desistir de ser moderna. Durante meses, percorreu galeria após galeria, com a folha de sala na mão. Observava as peças de vários ângulos: de perto, mais ao longe, com os dois olhos abertos, depois semicerrados, fechava um, depois o outro. Sempre à espera da revelação que teimava em não acontecer.

    Um dia, deparou-se com um tríptico fabuloso: sobre cada uma das três telas estavam coladas duas folhas arrancadas de um caderno de argolas pautado e, sobre estas, desenhadas linhas que, por mero desconhecimento, lhe pareciam aleatórias, feitas com pasta de dentes. Reparou que não era sempre o mesmo dentífrico: um era branco, vermelho e azul; o outro, branco, verde e vermelho; e o último, apenas azul e branco. A legenda explicava: Estratificação do quotidiano sobre a memória visual traumática do corpo coletivo. Leu e releu e, para grande desgosto seu, continuava a ver apenas folhas coladas e pasta de dentes. O único trauma ali era mesmo o dela, até porque as pessoas ao redor pareciam encantadas: “Ah!”, “Oh!”, “Profundo!”, “Audaz!”, “Maravilhoso!”, exclamavam.

    A Mimi sentia-se deslocada. Frustrada. Chegou a perguntar-se se o seu lugar não era mesmo na aldeia, se os anos ali passados não lhe teriam acanhado o espírito. Perguntava-se o que lhe faltava para ser como aquelas pessoas. E foi então que parou para as observar. Sentou-se. Ouviu as conversas. Fotografou-as e filmou-as como se estivesse a apontar aos quadros.

    Não se ia dar por vencida. Estudou cuidadosamente o material recolhido. Na semana seguinte, voltou à galeria. Transformada. Franja curtíssima (para alargar o campo de visão), cabelo rapado de um lado e pintado de rosa pastilha elástica. Alargadores nas orelhas (que, mais do que alargar lóbulos, alargavam horizontes). Uma argola no nariz, que a avó diria servir para prender bezerros, mas que ela usava como símbolo de resistência estética. Um vestido largo até aos pés, vintage, que é como quem diz, da Feira da Ladra, e um saco de pano estampado, que lhe garantiram dizer, em japonês, “Arte ou Morte!”. Os óculos com aros espessos de massa branca completavam o visual. Não tinha falta de vista, mas tinha percebido que a arte era muito mais do que a obra — estava no olhar, no léxico, no gesticular, no estilo. Ia compreender aquele tríptico, desse por onde desse.

    Parou diante das peças. As telas, as folhas, a pasta de dentes. 

    Estratificação do quotidiano sobre a memória visual traumática do corpo coletivo. —murmurou.

    Uma senhora com ar excêntrico aproximou-se dela, lançou-lhe um sorriso cúmplice e, sem tirar os olhos dos quadros, fez um comentário sobre a poética da desmaterialização. Ela anuiu subtilmente. O coração quase lhe saltava do peito, mas controlou-se. Ajeitou os óculos, levou a mão delicadamente ao queixo e acrescentou:

    — A tensão entre a materialidade da pasta e a fragilidade do suporte…

    — E aquela escolha cromática? Disruptiva. — continuou a interlocutora.

    — Disruptiva! Disruptiva! — repetiu a Mimi confortada.

    Tinha chegado lá.

    Era, finalmente, uma intelectual moderna.

    Ah, se a vissem agora lá na aldeia!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Meninos 

    Meninos 

    Viajo até São Tomé e Príncipe em busca da literatura. Na mala, levo notas de algumas leituras, uma lista de obras e escritores por descobrir, e uma ansiedade imensa de começar a associar os textos aos seus lugares, às paisagens e às vozes que os inspiraram.

    Um feliz acaso leva-me ao encontro de Conceição Lima: jornalista, professora, escritora, voz maior da lírica são-tomense. Há dias assim, raros e luminosos, em que a vida nos surpreende com encontros que ultrapassam as nossas melhores expectativas. Ocasiões felizes, em que temos a sorte de nos cruzar com pessoas verdadeiramente extraordinárias.

    Nesse instante, a literatura deixa de ser apenas texto: transforma-se em território vivo, partilhado. Conceição falou-me, com entusiasmo e generosidade, da literatura, dos escritores e da história do seu país. Escuto-a, encantada, absorvendo cada palavra.

    A certa altura, menciona um romance de Orlando Piedade: Os meninos judeus desterrados de Portugal para São Tomé e Príncipe por ordem d’El-Rei D. João II em 1493. Interrompo-a. Li que a ilha fora povoada por judeus forçados a embarcar para este destino longínquo e inóspito, mas não compreendo a referência às crianças.

    Conta-me, então, a história de dois mil meninos e meninas, com idades entre os seis e os oito anos, filhos de judeus castelhanos que, fugindo da Inquisição, procuraram refúgio em Portugal. Crianças arrancadas dos braços dos pais e enviadas, por ordem do rei português, para as ilhas de São Tomé e Príncipe. Uma sentença de morte para a maioria. Um crime entre tantos outros cometidos em nome de um desígnio supostamente maior: o Império. Um crime contra crianças judias que, inevitavelmente, faz o meu pensamento recuar até às imagens de pequenos pijamas às riscas, alinhados por detrás do arame farpado dos campos de concentração nazis.

    O massacre de crianças judias não foi apenas um episódio sombrio da história da Humanidade — é, na verdade, uma prática recorrente da Desumanidade. Tão cruel, tão insuportavelmente pesada, tão indigerível, que torna ainda mais chocantes as imagens que hoje vejo no ecrã da televisão: o massacre de crianças palestinianas, perpetrado por israelitas. E digo por israelitas, e não por Israel, de forma intencional. Incomoda-me a facilidade com que se diluem as culpas dos homens, transferindo-se a responsabilidade para um país, um império, uma religião ou uma qualquer instituição.

    Os corpos dos meninos palestinianos embrulhados em panos ensanguentados, alinhados como um código de barras tenebroso,  tal como os dos meninos judeus que antes deles foram levados para as naus e para as câmaras de gás,não são acasos da História. Não são tragédias inevitáveis. São crimes. Todos estes meninos foram assassinados por homens e mulheres. Gente com nome. Seres de carne e osso. Sem alma, acredito, mas de carne e osso.

    E é, por tudo isto, de uma tristeza indizível que os meninos da Palestina morram agora às mãos de israelitas que um dia também foram meninos. Que tiveram o direito de o ser. Que cresceram com a memória da dor inscrita no corpo do seu povo. E que, ainda assim, se tornaram os carrascos: sem memória e sem misericórdia.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Pausas 

    Pausas 

    Olhos sorridentes, mãos roliças e voz de colo, Vivina era professora primária há tanto tempo que já não se lembrava de não o ser. Adorava a sua profissão. Nunca desejara outra coisa.

    Contudo, de repente, começou a perguntar-se se, ao ter escolhido tão cedo o ensino, não teria deixado de considerar outras possibilidades. Se aquela decisão precoce não teria silenciado outros talentos.

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    E foi por esses dias que se deparou com um anúncio que lhe chamou a atenção: uma oficina de narração. Em horário pós-laboral, conduzida por uma conhecida formadora — era exatamente o que procurava. Inscreveu-se, por isso, sem hesitar.

    As participantes eram todas mulheres, e todas mais ou menos da sua idade. Nas semanas seguintes, aprenderam técnicas de respiração, memorização e expressão. Abraçaram a experiência com uma alegria quase infantil — pelo menos até ao momento em que perceberam que a sessão final consistiria num sarau. Assustador, sim, mas também desafiante.

    Cada uma recebeu um texto distinto. Vivina foi presenteada com um encantador conto de Clarice Lispector: Felicidade clandestina. Leu-o uma primeira vez e sentiu, desde logo, aquele texto como seu. Receou, todavia, não ser capaz de o memorizar. Ainda assim, agarrou a oportunidade de exercitar a memória, que há muito andava adormecida. Culpava a menopausa. As malfadadas alterações hormonais. O que mais poderia ser? Mas não estava disposta a resignar-se.

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    Durante os dias que antecederam o grande momento, as mulheres ensaiaram como se a própria vida dependesse de decorarem os textos que lhes haviam cabido em sorte. Partilharam entre si as estratégias de cada uma, e concluíram que a palavra de ordem era repetição. Vivina disse o texto vezes sem conta. Ensinou Clarice à gata, aos tachos, às plantas do jardim, aos azulejos do chuveiro, à roupa no estendal. Disse, repetiu, tropeçou, recomeçou, melhorou… Gravou-se, ouviu-se, corrigiu, gravou de novo.

    Chegou a noite. Uma a uma, as mulheres vestiram os textos como uma segunda pele e exibiram-nos num desfile de palavras. Confiantes, orgulhosas de si mesmas e das companheiras de aventura. Vivina reconhecia, nos olhos esbugalhados e nos lábios cerrados da formadora, a ansiedade que ela própria sentia nas festas de final de ano escolar.

    A ordem alfabética atirou-a para o final da sessão. Ouviu, com genuíno prazer, as suas colegas. Vibrou com o êxito de cada uma — palavras ondulantes, vozes expressivas, gestos teatrais.

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    Os aplausos e comentários calorosos, um bónus recebido com regozijo:

    — Que presença!
    — Que capacidade de envolver!
    — Que emoção na voz!

    Chegada a sua vez, fez-se um breve silêncio. Alguém comentou:

    — As suas pausas… as suas pausas são divinas!

    Vivina agradeceu com um sorriso e ficou em silêncio, a digerir. As pausas. Mal podia acreditar que, depois de tanto empenho e dedicação, lhe estavam a elogiar as pausas.

    Nesse momento, lembrou-se de um menino do primeiro ano, a quem tinha um dia perguntado se estava a gostar da escola. Perante a resposta positiva do aluno, Vivina, entusiasmada, perguntou-lhe do que mais gostava.

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    O pequeno pôs um ar pensativo e sério e, depois de uns segundos de reflexão, respondeu:

    — Dos intervalos.

    E agora, tantos anos depois, lá estava ela a proporcionar bons momentos a quem deles desfrutava… nas pausas.
    O seu grande talento era afinal o de se fazer ausente — no momento certo e com elegância, queria acreditar.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Viajar 

    Viajar 

    Os verões da infância, passados na horta, eram uma memória quase tão doce quanto os figos lampos, maduros e reluzentes, que então colhia. Dias inebriantes, quentes e saturados de uma luz que obrigava a semicerrar os olhos para poder ver.

    Trepava às árvores e, protegida pela sombra intermitente das folhas, saboreava lentamente os frutos, enquanto, por entre as pestanas quase unidas, olhava o céu.

    Em silêncio, tão distantes que mal se viam, os aviões riscavam o azul. Às vezes, pegava na bicicleta e pedalava com quanta força tinha pelos campos fora. Perseguia-os. Não podiam ir assim tão longe. Pois se nem batiam as asas… Mas nunca apanhou um, nem descobriu para onde iam.

    Imaginava que os rastos eram trilhos suspensos entre mundos invisíveis. Aos poucos desfaziam-se no ar, tornando-se migalhas espalhadas numa floresta — promessas de destinos imaginados.

    Mas mais do que saber para onde iam, interessava-lhe quem lá ia dentro. Uma gente diferente vinda de longe: os estrangeiros. Quando andava pela vila, observava-os com a mesma curiosidade com que seguia os aviões. Altos, loiros, de pele e olhos claros. Falavam línguas que lhe soavam como a música que saía do quarto do irmão adolescente: bela e indecifrável.

    Os mais velhos chamavam-lhes camones, palavra estranha, que percebeu ser sinónimo de bifes, que, por seu lado, nada tinha a ver com o almoço de domingo, e que também era sinónimo de turistas.

    Alguns pareciam mendigos. Mochila às costas, pouco banho, cabelo desgrenhado. Ficavam horas à boleia junto à 125. Seguravam cartões onde se lia Portimão, Albufeira, Lagos… Soube mais tarde que esses vinham de comboio. Eram turistas de pé descalço. A mãe dizia que eram hippies e que não sabia como é que alguém metia no carro aqueles encardidos com ninhos de ratos na cabeça. A ela, fascinavam-na. A liberdade, os olhos cheios de estrada…

    Já os que chegavam de avião cheiravam a protetor solar. Viajavam em família e exibiam roupas leves e diferentes nas esplanadas dos cafés e restaurantes. Percebia neles a leveza e o ar de quem não tem uma preocupação na vida. Estranhou, por isso, quando mais tarde lhe disseram que aqueles turistas eram, afinal, a classe baixa inglesa. Ela, que sonhava ter uns óculos de sol espelhados como os deles, que  nunca fora com os pais para além de Lisboa e que, do estrangeiro, conhecia apenas Ayamonte, não podia compreender.

    As idas à outra margem do Guadiana eram dias de festa. Conferiam-se os passaportes, trocavam-se escudos por pesetas e inventavam-se artimanhas para atravessar a fronteira com o dinheiro. As crianças, raramente visadas pelos fiscais, escondiam-no nos bolsos, cosido nos forros dos casacos, nas meias, sob as palmilhas dos sapatos…

    Saindo do ferry, era o delírio. Saltava-se de loja em loja, compravam-se bonecas, cortinados e roupa de cama, enchidos, Peta Zetas, caramelos com pinhões, licor Tía Maria, whisky intragável, —  que o pai reservava para visitas indesejadas, na esperança de que não voltassem — e garrafas Bols, que ficavam lindas no bar da sala a fazer pendant com a alcatifa azul.

    No regresso, a ansiedade tomava conta de todos. Só então se apercebiam da verdadeira dimensão do tesouro acumulado. Fazia-se contas ao que poderia ser apreendido na alfândega, ainda que fosse raro não passar tudo. A ela, ninguém convencia de que os fiscais não tinham mais de cúmplices do que de polícias.

    Durante muitos anos, a visita à terra de nuestros hermanos foi uma aventura, mas nunca lhe bastou. Nem mesmo quando, num dia especial, se aventuraram até Huelva e lhe compraram um vestido de sevilhana. Ficou encantada, mas queria mais.
    Sonhava com comboios que atravessavam outras fronteiras e, sobretudo, com aviões que rasgavam nuvens. Ansiava por ver os países de onde vinham os turistas.

    Na adolescência, aprender inglês permitiu-lhe contactar com alguns: ingleses, franceses, alemães, holandeses, americanos. Falavam de realidades tão diferentes da sua. Em Portugal cantava-se, então, Quero ver Portugal na CEE, mas o país, apesar de desejar abraçar o futuro, tinha ainda bem visíveis as cicatrizes do “orgulhosamente sós”.

    Assim que a idade permitiu, começou a trabalhar nas férias escolares. Juntava tudo o que ganhava com um único intuito: viajar. Fê-lo, nos primeiros anos, com o encantamento de quem descobre novos mundos. Cada país, a sua língua, a sua gastronomia, a sua moeda. Guardava como recordação liras, francos, marcos, dracmas.

    Depois, veio a fase em que percebeu que, nas visitas a países europeus, encontrava mais semelhanças do que diferenças. As mesmas lojas, os mesmos restaurantes, as mesmas marcas. Os souvenirs “autênticos”, fabricados em série na China. Peças exatamente iguais, apenas com estampagens diferentes, porque sobre a mesma base de íman, cabia tanto a Torre Eiffel como a dos Clérigos ou a de Pisa. Nada que não pudesse ser encomendado online. Nada que fosse, de facto, sinónimo de viagem.

    Cruzava fronteiras, mas os cafés continuavam a ter os mesmos toldos, as mesmas mesas, os mesmos copos, pratos e talheres. Tudo disposto em torno dos mesmos vasinhos de metal, brancos e rendilhados. Nas zonas turísticas, a gastronomia local fora substituída por refeições feitas à medida do turista que sai de casa, mas prefere não ser surpreendido: hambúrgueres, batatas fritas,  kebabs, pizzas e bolonhesas congeladas.

    Começou, por essa altura, a procurar destinos mais longínquos. A idade era outra e atingira um estatuto que lhe permitia explorar continentes distantes e culturas exóticas. No entanto, alguns itens teimavam em ser universais. Ecos de uma gentrificação silenciosa, lá estavam os ímanes, as canetas, os sacos de pano e as canecas. Tão iguais que decidiu trazer, como recordação do Brasil, uma caneca com a imagem de Carlos Drummond de Andrade e a legenda Fernando Pessoa. Ambos escreviam. Ambos usavam óculos. É normal. Tão normal como a idade ter substituído nela a ira pela ironia.

    Mas o que realmente mudou nas suas viagens foi a maneira como, no presente, olha para os lugares e a forma como deles se despede. A consciência de que não voltará a pisar aquele chão, não voltará a mergulhar naquelas águas, não tornará a ver cada uma das pessoas com quem se cruza e de quem se despede com um “até à próxima”.

    A viagem faz-se agora com a mesma alegria e curiosidade de sempre, mas também com a urgência silenciosa de agarrar o tempo e a oportunidade. O desejo, maior do que nunca, de ver e experimentar tudo, como quem devora um livro, sedento por cada linha e assombrado pela iminência da página final.  Detém-se em cada centímetro de chão, em cada onda do mar, em cada rosto, com a certeza de ser a última vez que o faz. Instala-se nela a sombra de uma saudade anterior à partida.

    Sabe que continuará a viajar, que seguirá sempre o rasto dos aviões — mesmo que apenas com os olhos semicerrados e um figo lampo a desfazer-se na boca e nas mãos, como outrora  — e que, em cada turista, continuará a  procurar os sinais de uma alteridade por desvendar.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • O país das esmolinhas 

    O país das esmolinhas 

    Era uma vez um pequeno país. Era uma vez o povo desse país. E era uma vez a fina flor do entulho que o governava.

    Queixava-se o povo de viver mal, de ganhar pouco, de ter um mau serviço de saúde, uma educação pública débil… lamentavam-se em casa, nos cafés, no trabalho… Lamúrias, lamúrias e mais lamúrias.

    Uma gente exasperante, que parecia não entender que podia ser muito pior. Uma multidão de pobrezinhos, incapazes de apreciar a sorte que tinham: o céu eternamente azul, o clima deliciosamente temperado, sucessivos governos constituídos por uma elite de empreendedores abastados e generosos. Com o dinheiro alheio, é verdade, mas magnânimos.

    Se dúvidas houvesse, bastaria ouvir atentamente os discursos destes beneméritos: “demos”, “aumentámos”, “oferecemos”, “proporcionámos”, “construímos”, “garantimos”, “reforçámos”, “promovemos” … E tudo, tudinho a muito custo. Com incalculável sacrifício pessoal.  Mas ao povo pouco interessava quantas vezes tinham tido de trocar lagosta por rosbife, só para que uma série de pelintras, de utilidade discutível, pudesse continuar a receber mensalmente somas generosas, prontamente convertidas em latas de salsichas e demais indulgências pouco recomendáveis. Andavam de mãos dadas a ingratidão e a inconsciência que entupia indiferentemente as artérias e as salas urgências.

    Abnegadas, altruístas, as elites deste povo chegavam mesmo ao ponto de abandonar repetidas vezes o conforto dos seus palacetes para se irem sentar nas incómodas cadeiras de ministérios repletos de funcionários públicos acomodados e mal-agradecidos.  Gabinetes e corredores cheios de uma gente sem discernimento, que exigia tudo, que queria esbanjar o orçamento da nação como se fosse Natal todos os dias.  

    Neste país, os pobrezinhos eram uma enorme turba, a que não se via o fim. Dava-se, dava-se, dava-se. E eles ali, com a mão estendida. Sempre insatisfeitos. Mal-agradecidos. Nem um simples “obrigado”. Um beija-mão à passagem de Suas Excelências. Uma proposta de canonização. Cheios de direitos. Cheios de reivindicações. A tresandar a ordenado mínimo. Um pesadelo!

    A bem dizer, o País das Esmolinhas não era propriamente um país. Era uma sopa dos pobres: morna, requentada, azeda. Servida com caridade, mas de avental, máscara e luvas calçadas para evitar o contágio.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Tanto amor para dar 

    Tanto amor para dar 

    Está um dia que muitos achariam mau: cinzento, chuvoso, frio… Para mim é perfeito. A casa vazia, uma caneca de café XXL, uma tablete de chocolate com amêndoas — 553 calorias por 100 gramas — terá de pagar o mal que faz com o bem que sabe —, e um audiolivro, porque a moleza é tanta que nem dá para virar páginas.

    Apetece-me hibernar. O único senão é ter prometido a uma amiga ir ao lançamento do seu primeiro romance. Vem-me à mente um conjunto de desculpas esfarrapadas: já comprei o livro, chove a potes, tenho o carro na oficina, vai estar imensa gente… Espero que não se ofenda, que não dê pela minha ausência. Porém, uma notificação no telemóvel diz-me o contrário:

    — Jantamos juntas depois da apresentação?

    Sinto-me a pior amiga do mundo. Como pude sequer pensar em não ir? Levanto-me, arranjo-me e dirijo-me à estação. Aos domingos, o comboio costuma ir vazio. Hoje, não. Há uma multidão a aguardar, e já vem cheio. Percorro a carruagem em que entrei, depois a seguinte e, finalmente, avisto um lugar vago. Um passageiro colocou uma mala de viagem e uma mochila no banco. Aproximo-me, na expectativa de que desvie os pertences. Olha para mim, eu para ele… e nada. Avanço mais um pouco. Voltamos a encarar-nos, mas, desta vez, tem no rosto uma expressão de desagrado. Digo-lhe:

    — Dá-me licença?

    Responde, num inglês com sotaque alemão, que não tem onde colocar a bagagem. Aponto para cima:

    — Ali! — digo em português.

    E, enquanto ele continua com ar de enfado, ouço uma voz:

    — Há de querer que o senhor ponha as malas à cabeça!

    Ignoro e insisto. Percebendo que não vou recuar, e com uma irritação indisfarçável, o homem coloca a mala no corredor e a mochila ao colo.

    Sento-me, e uma senhora, indignada com a minha petulância, lamenta o facto de o coitado ter de ir assim até Lisboa.

    Acomodada no meu lugar, coloco os auscultadores e continuo a ouvir a leitura, entretanto interrompida. Procuro relaxar e concentrar-me, mas sem sucesso. Há um barulho e uma movimentação fora do comum nestas viagens. Os passageiros, maioritariamente mulheres de meia-idade, agitam os braços no ar de modo sincronizado e cantam. Fico curiosa. Retiro um auricular: cantigas de amor, daquelas em que “coração” rima com “canção” e que se entoam revirando os olhos. O volume aumenta, no que é claramente uma competição para mostrar quem  sabe melhor as letras, quem é a maior fã, a verdadeira. A excitação está ao rubro. Erguem-se cartazes, cachecóis, camisolas, almofadas com o rosto do ídolo,  fotografias tiradas ao seu lado.

    É dia de concerto e caí no olho do furacão. Estou no Inferno! Espreito de soslaio o senhor das malas e, pela expressão, aposto que não volta a Portugal. Bem feita!

    Regresso ao meu livro, aumento o volume e vou ouvindo o que consigo até chegarmos ao Parque das Nações. As fãs, enlouquecidas, atropelam-se para sair. Sim, porque também na pressa de chegar se expressa a devoção.

    Lá fora, avisto vendedores de grinaldas de flores brancas e luzinhas, rodeados de senhoras que se enfeitam como podem, na ânsia de serem notadas.

    — Amo-te, Tony! – Grita uma.

    — Bates forte cá dentro, Tony! – Grita outra.

    — Ai, Tony, se eu não fosse casada! – Ameaça uma terceira.

    É muito amor! Podia até ser comovente, não fosse a mesma senhora que expressou grande preocupação com o cavalheiro alemão ter chocado com um grupo de rapazes que estava na plataforma. Estes, percebo de imediato, não batem forte lá dentro.

    Mão na anca, o pêlo eriçado e a mandíbula escancarada a escorrer saliva de quem ataca em matilha, vocifera:

    — Isto está cheio desta gente!

    — Não se pode andar na rua sem dar com esta canalha!

    — Não há quem tenha mão nisto e os mande para a terra deles?

    Tento imaginar que crime hediondo poderão ter perpetrado aquelas criaturas para assanharem, desta forma, uma senhora tão doce, tão misericordiosa, tão preocupada com o próximo… E não posso deixar de pensar como teria ela reagido quando entrei na carruagem se, em vez de um alemão loiro e de olhos azuis a ocupar dois lugares, lá estivesse sentado um daqueles rapazes, mesmo que encolhido.

    Tanto amor para dar… a alguns.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Correntes 

    Correntes 

    Diziam-lhe os pais que casasse com o Eduardo. Era bom rapaz, tinha um bom emprego e era óbvio que lhe andava a arrastar a asa. Era jovem, mas tinha mais tino que muitos homens feitos. Bastava ver como tinha cuidado da família quando o pai morreu. Ser homem aos 16 anos não era para todos. Único sustento da casa, cuidou da mãe e ajudou-a a criar as gémeas. Saiu-lhe do corpo, mas fez delas umas senhoras. Andaram sempre nos eixos, sem espaço para deslizes. Não havia pai, mas era uma casa de respeito.

    Inês ouvia e não respondia. Ficava a pensar. O Eduardo era bem parecido, mas tinha o semblante pesado de um ancião. Um homem sério, sem dúvida. Um sorriso tímido: um gesto de ternura que guardava só para ela. Passava duas vezes por dia debaixo da sua janela: mais certo que um relógio. Olhos postos na calçada. Apenas aquela janela… A vida era simples: casa, trabalho; trabalho, casa. Tão diferente dos outros rapazes do bairro. Passos pesados, firmes, seguros, redondos na rotina de uma vida já desenhada.

    A mãe insistia:

    – Olha que como este não encontras por aí muitos, Inês. É uma rocha, este rapaz! – exclamava, tentando arrancar da filha uma expressão ou uma palavra que demonstrassem interesse no pretendente.

    Inês, muda e queda, percebeu finalmente o que a impedia de dar troco aos sorrisos do Eduardo. Ele era um homem-rocha, mas ela não tinha a mínima intenção de se transformar numa mulher-lapa. Não se imaginava colada a ele. A carne em chaga agarrada à superfície rugosa com medo das marés.

    Inês ansiava pelo mar bravio. Pela turbulência das ondas. Pela força das águas que a levariam a ver o mundo. Por correntes incompatíveis com as que o prendiam às ruas do bairro.

    O Eduardo passou, como todos os dias, na rua da Inês, mas hoje não teve a quem sorrir. Uma leve brisa trazia consigo o cheiro a sal e agitava as cortinas da janela vazia.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.