Etiqueta: Tem dias

  • Viajar 

    Viajar 

    Os verões da infância, passados na horta, eram uma memória quase tão doce quanto os figos lampos, maduros e reluzentes, que então colhia. Dias inebriantes, quentes e saturados de uma luz que obrigava a semicerrar os olhos para poder ver.

    Trepava às árvores e, protegida pela sombra intermitente das folhas, saboreava lentamente os frutos, enquanto, por entre as pestanas quase unidas, olhava o céu.

    Em silêncio, tão distantes que mal se viam, os aviões riscavam o azul. Às vezes, pegava na bicicleta e pedalava com quanta força tinha pelos campos fora. Perseguia-os. Não podiam ir assim tão longe. Pois se nem batiam as asas… Mas nunca apanhou um, nem descobriu para onde iam.

    Imaginava que os rastos eram trilhos suspensos entre mundos invisíveis. Aos poucos desfaziam-se no ar, tornando-se migalhas espalhadas numa floresta — promessas de destinos imaginados.

    Mas mais do que saber para onde iam, interessava-lhe quem lá ia dentro. Uma gente diferente vinda de longe: os estrangeiros. Quando andava pela vila, observava-os com a mesma curiosidade com que seguia os aviões. Altos, loiros, de pele e olhos claros. Falavam línguas que lhe soavam como a música que saía do quarto do irmão adolescente: bela e indecifrável.

    Os mais velhos chamavam-lhes camones, palavra estranha, que percebeu ser sinónimo de bifes, que, por seu lado, nada tinha a ver com o almoço de domingo, e que também era sinónimo de turistas.

    Alguns pareciam mendigos. Mochila às costas, pouco banho, cabelo desgrenhado. Ficavam horas à boleia junto à 125. Seguravam cartões onde se lia Portimão, Albufeira, Lagos… Soube mais tarde que esses vinham de comboio. Eram turistas de pé descalço. A mãe dizia que eram hippies e que não sabia como é que alguém metia no carro aqueles encardidos com ninhos de ratos na cabeça. A ela, fascinavam-na. A liberdade, os olhos cheios de estrada…

    Já os que chegavam de avião cheiravam a protetor solar. Viajavam em família e exibiam roupas leves e diferentes nas esplanadas dos cafés e restaurantes. Percebia neles a leveza e o ar de quem não tem uma preocupação na vida. Estranhou, por isso, quando mais tarde lhe disseram que aqueles turistas eram, afinal, a classe baixa inglesa. Ela, que sonhava ter uns óculos de sol espelhados como os deles, que  nunca fora com os pais para além de Lisboa e que, do estrangeiro, conhecia apenas Ayamonte, não podia compreender.

    As idas à outra margem do Guadiana eram dias de festa. Conferiam-se os passaportes, trocavam-se escudos por pesetas e inventavam-se artimanhas para atravessar a fronteira com o dinheiro. As crianças, raramente visadas pelos fiscais, escondiam-no nos bolsos, cosido nos forros dos casacos, nas meias, sob as palmilhas dos sapatos…

    Saindo do ferry, era o delírio. Saltava-se de loja em loja, compravam-se bonecas, cortinados e roupa de cama, enchidos, Peta Zetas, caramelos com pinhões, licor Tía Maria, whisky intragável, —  que o pai reservava para visitas indesejadas, na esperança de que não voltassem — e garrafas Bols, que ficavam lindas no bar da sala a fazer pendant com a alcatifa azul.

    No regresso, a ansiedade tomava conta de todos. Só então se apercebiam da verdadeira dimensão do tesouro acumulado. Fazia-se contas ao que poderia ser apreendido na alfândega, ainda que fosse raro não passar tudo. A ela, ninguém convencia de que os fiscais não tinham mais de cúmplices do que de polícias.

    Durante muitos anos, a visita à terra de nuestros hermanos foi uma aventura, mas nunca lhe bastou. Nem mesmo quando, num dia especial, se aventuraram até Huelva e lhe compraram um vestido de sevilhana. Ficou encantada, mas queria mais.
    Sonhava com comboios que atravessavam outras fronteiras e, sobretudo, com aviões que rasgavam nuvens. Ansiava por ver os países de onde vinham os turistas.

    Na adolescência, aprender inglês permitiu-lhe contactar com alguns: ingleses, franceses, alemães, holandeses, americanos. Falavam de realidades tão diferentes da sua. Em Portugal cantava-se, então, Quero ver Portugal na CEE, mas o país, apesar de desejar abraçar o futuro, tinha ainda bem visíveis as cicatrizes do “orgulhosamente sós”.

    Assim que a idade permitiu, começou a trabalhar nas férias escolares. Juntava tudo o que ganhava com um único intuito: viajar. Fê-lo, nos primeiros anos, com o encantamento de quem descobre novos mundos. Cada país, a sua língua, a sua gastronomia, a sua moeda. Guardava como recordação liras, francos, marcos, dracmas.

    Depois, veio a fase em que percebeu que, nas visitas a países europeus, encontrava mais semelhanças do que diferenças. As mesmas lojas, os mesmos restaurantes, as mesmas marcas. Os souvenirs “autênticos”, fabricados em série na China. Peças exatamente iguais, apenas com estampagens diferentes, porque sobre a mesma base de íman, cabia tanto a Torre Eiffel como a dos Clérigos ou a de Pisa. Nada que não pudesse ser encomendado online. Nada que fosse, de facto, sinónimo de viagem.

    Cruzava fronteiras, mas os cafés continuavam a ter os mesmos toldos, as mesmas mesas, os mesmos copos, pratos e talheres. Tudo disposto em torno dos mesmos vasinhos de metal, brancos e rendilhados. Nas zonas turísticas, a gastronomia local fora substituída por refeições feitas à medida do turista que sai de casa, mas prefere não ser surpreendido: hambúrgueres, batatas fritas,  kebabs, pizzas e bolonhesas congeladas.

    Começou, por essa altura, a procurar destinos mais longínquos. A idade era outra e atingira um estatuto que lhe permitia explorar continentes distantes e culturas exóticas. No entanto, alguns itens teimavam em ser universais. Ecos de uma gentrificação silenciosa, lá estavam os ímanes, as canetas, os sacos de pano e as canecas. Tão iguais que decidiu trazer, como recordação do Brasil, uma caneca com a imagem de Carlos Drummond de Andrade e a legenda Fernando Pessoa. Ambos escreviam. Ambos usavam óculos. É normal. Tão normal como a idade ter substituído nela a ira pela ironia.

    Mas o que realmente mudou nas suas viagens foi a maneira como, no presente, olha para os lugares e a forma como deles se despede. A consciência de que não voltará a pisar aquele chão, não voltará a mergulhar naquelas águas, não tornará a ver cada uma das pessoas com quem se cruza e de quem se despede com um “até à próxima”.

    A viagem faz-se agora com a mesma alegria e curiosidade de sempre, mas também com a urgência silenciosa de agarrar o tempo e a oportunidade. O desejo, maior do que nunca, de ver e experimentar tudo, como quem devora um livro, sedento por cada linha e assombrado pela iminência da página final.  Detém-se em cada centímetro de chão, em cada onda do mar, em cada rosto, com a certeza de ser a última vez que o faz. Instala-se nela a sombra de uma saudade anterior à partida.

    Sabe que continuará a viajar, que seguirá sempre o rasto dos aviões — mesmo que apenas com os olhos semicerrados e um figo lampo a desfazer-se na boca e nas mãos, como outrora  — e que, em cada turista, continuará a  procurar os sinais de uma alteridade por desvendar.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • O país das esmolinhas 

    O país das esmolinhas 

    Era uma vez um pequeno país. Era uma vez o povo desse país. E era uma vez a fina flor do entulho que o governava.

    Queixava-se o povo de viver mal, de ganhar pouco, de ter um mau serviço de saúde, uma educação pública débil… lamentavam-se em casa, nos cafés, no trabalho… Lamúrias, lamúrias e mais lamúrias.

    Uma gente exasperante, que parecia não entender que podia ser muito pior. Uma multidão de pobrezinhos, incapazes de apreciar a sorte que tinham: o céu eternamente azul, o clima deliciosamente temperado, sucessivos governos constituídos por uma elite de empreendedores abastados e generosos. Com o dinheiro alheio, é verdade, mas magnânimos.

    Se dúvidas houvesse, bastaria ouvir atentamente os discursos destes beneméritos: “demos”, “aumentámos”, “oferecemos”, “proporcionámos”, “construímos”, “garantimos”, “reforçámos”, “promovemos” … E tudo, tudinho a muito custo. Com incalculável sacrifício pessoal.  Mas ao povo pouco interessava quantas vezes tinham tido de trocar lagosta por rosbife, só para que uma série de pelintras, de utilidade discutível, pudesse continuar a receber mensalmente somas generosas, prontamente convertidas em latas de salsichas e demais indulgências pouco recomendáveis. Andavam de mãos dadas a ingratidão e a inconsciência que entupia indiferentemente as artérias e as salas urgências.

    Abnegadas, altruístas, as elites deste povo chegavam mesmo ao ponto de abandonar repetidas vezes o conforto dos seus palacetes para se irem sentar nas incómodas cadeiras de ministérios repletos de funcionários públicos acomodados e mal-agradecidos.  Gabinetes e corredores cheios de uma gente sem discernimento, que exigia tudo, que queria esbanjar o orçamento da nação como se fosse Natal todos os dias.  

    Neste país, os pobrezinhos eram uma enorme turba, a que não se via o fim. Dava-se, dava-se, dava-se. E eles ali, com a mão estendida. Sempre insatisfeitos. Mal-agradecidos. Nem um simples “obrigado”. Um beija-mão à passagem de Suas Excelências. Uma proposta de canonização. Cheios de direitos. Cheios de reivindicações. A tresandar a ordenado mínimo. Um pesadelo!

    A bem dizer, o País das Esmolinhas não era propriamente um país. Era uma sopa dos pobres: morna, requentada, azeda. Servida com caridade, mas de avental, máscara e luvas calçadas para evitar o contágio.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Tanto amor para dar 

    Tanto amor para dar 

    Está um dia que muitos achariam mau: cinzento, chuvoso, frio… Para mim é perfeito. A casa vazia, uma caneca de café XXL, uma tablete de chocolate com amêndoas — 553 calorias por 100 gramas — terá de pagar o mal que faz com o bem que sabe —, e um audiolivro, porque a moleza é tanta que nem dá para virar páginas.

    Apetece-me hibernar. O único senão é ter prometido a uma amiga ir ao lançamento do seu primeiro romance. Vem-me à mente um conjunto de desculpas esfarrapadas: já comprei o livro, chove a potes, tenho o carro na oficina, vai estar imensa gente… Espero que não se ofenda, que não dê pela minha ausência. Porém, uma notificação no telemóvel diz-me o contrário:

    — Jantamos juntas depois da apresentação?

    Sinto-me a pior amiga do mundo. Como pude sequer pensar em não ir? Levanto-me, arranjo-me e dirijo-me à estação. Aos domingos, o comboio costuma ir vazio. Hoje, não. Há uma multidão a aguardar, e já vem cheio. Percorro a carruagem em que entrei, depois a seguinte e, finalmente, avisto um lugar vago. Um passageiro colocou uma mala de viagem e uma mochila no banco. Aproximo-me, na expectativa de que desvie os pertences. Olha para mim, eu para ele… e nada. Avanço mais um pouco. Voltamos a encarar-nos, mas, desta vez, tem no rosto uma expressão de desagrado. Digo-lhe:

    — Dá-me licença?

    Responde, num inglês com sotaque alemão, que não tem onde colocar a bagagem. Aponto para cima:

    — Ali! — digo em português.

    E, enquanto ele continua com ar de enfado, ouço uma voz:

    — Há de querer que o senhor ponha as malas à cabeça!

    Ignoro e insisto. Percebendo que não vou recuar, e com uma irritação indisfarçável, o homem coloca a mala no corredor e a mochila ao colo.

    Sento-me, e uma senhora, indignada com a minha petulância, lamenta o facto de o coitado ter de ir assim até Lisboa.

    Acomodada no meu lugar, coloco os auscultadores e continuo a ouvir a leitura, entretanto interrompida. Procuro relaxar e concentrar-me, mas sem sucesso. Há um barulho e uma movimentação fora do comum nestas viagens. Os passageiros, maioritariamente mulheres de meia-idade, agitam os braços no ar de modo sincronizado e cantam. Fico curiosa. Retiro um auricular: cantigas de amor, daquelas em que “coração” rima com “canção” e que se entoam revirando os olhos. O volume aumenta, no que é claramente uma competição para mostrar quem  sabe melhor as letras, quem é a maior fã, a verdadeira. A excitação está ao rubro. Erguem-se cartazes, cachecóis, camisolas, almofadas com o rosto do ídolo,  fotografias tiradas ao seu lado.

    É dia de concerto e caí no olho do furacão. Estou no Inferno! Espreito de soslaio o senhor das malas e, pela expressão, aposto que não volta a Portugal. Bem feita!

    Regresso ao meu livro, aumento o volume e vou ouvindo o que consigo até chegarmos ao Parque das Nações. As fãs, enlouquecidas, atropelam-se para sair. Sim, porque também na pressa de chegar se expressa a devoção.

    Lá fora, avisto vendedores de grinaldas de flores brancas e luzinhas, rodeados de senhoras que se enfeitam como podem, na ânsia de serem notadas.

    — Amo-te, Tony! – Grita uma.

    — Bates forte cá dentro, Tony! – Grita outra.

    — Ai, Tony, se eu não fosse casada! – Ameaça uma terceira.

    É muito amor! Podia até ser comovente, não fosse a mesma senhora que expressou grande preocupação com o cavalheiro alemão ter chocado com um grupo de rapazes que estava na plataforma. Estes, percebo de imediato, não batem forte lá dentro.

    Mão na anca, o pêlo eriçado e a mandíbula escancarada a escorrer saliva de quem ataca em matilha, vocifera:

    — Isto está cheio desta gente!

    — Não se pode andar na rua sem dar com esta canalha!

    — Não há quem tenha mão nisto e os mande para a terra deles?

    Tento imaginar que crime hediondo poderão ter perpetrado aquelas criaturas para assanharem, desta forma, uma senhora tão doce, tão misericordiosa, tão preocupada com o próximo… E não posso deixar de pensar como teria ela reagido quando entrei na carruagem se, em vez de um alemão loiro e de olhos azuis a ocupar dois lugares, lá estivesse sentado um daqueles rapazes, mesmo que encolhido.

    Tanto amor para dar… a alguns.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Correntes 

    Correntes 

    Diziam-lhe os pais que casasse com o Eduardo. Era bom rapaz, tinha um bom emprego e era óbvio que lhe andava a arrastar a asa. Era jovem, mas tinha mais tino que muitos homens feitos. Bastava ver como tinha cuidado da família quando o pai morreu. Ser homem aos 16 anos não era para todos. Único sustento da casa, cuidou da mãe e ajudou-a a criar as gémeas. Saiu-lhe do corpo, mas fez delas umas senhoras. Andaram sempre nos eixos, sem espaço para deslizes. Não havia pai, mas era uma casa de respeito.

    Inês ouvia e não respondia. Ficava a pensar. O Eduardo era bem parecido, mas tinha o semblante pesado de um ancião. Um homem sério, sem dúvida. Um sorriso tímido: um gesto de ternura que guardava só para ela. Passava duas vezes por dia debaixo da sua janela: mais certo que um relógio. Olhos postos na calçada. Apenas aquela janela… A vida era simples: casa, trabalho; trabalho, casa. Tão diferente dos outros rapazes do bairro. Passos pesados, firmes, seguros, redondos na rotina de uma vida já desenhada.

    A mãe insistia:

    – Olha que como este não encontras por aí muitos, Inês. É uma rocha, este rapaz! – exclamava, tentando arrancar da filha uma expressão ou uma palavra que demonstrassem interesse no pretendente.

    Inês, muda e queda, percebeu finalmente o que a impedia de dar troco aos sorrisos do Eduardo. Ele era um homem-rocha, mas ela não tinha a mínima intenção de se transformar numa mulher-lapa. Não se imaginava colada a ele. A carne em chaga agarrada à superfície rugosa com medo das marés.

    Inês ansiava pelo mar bravio. Pela turbulência das ondas. Pela força das águas que a levariam a ver o mundo. Por correntes incompatíveis com as que o prendiam às ruas do bairro.

    O Eduardo passou, como todos os dias, na rua da Inês, mas hoje não teve a quem sorrir. Uma leve brisa trazia consigo o cheiro a sal e agitava as cortinas da janela vazia.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • A viúva 

    A viúva 

    Estudar em Lisboa e partilhar quarto com uma estranha poderia ter sido uma experiência horrível. Mas não foi. Conheci a Luz, uma miúda como eu, oriunda da província. Ela do Norte, eu do Sul. Rapidamente nos tornámos inseparáveis. Mesmo quando vinha de fim de semana ao Algarve, era frequente a Luz viajar comigo.
    Amorosa, de conversa fácil e sorriso luminoso, toda a gente a adorava, e ela correspondia com longos abraços e palavras doces.

    A naturalidade com que se integrou na nossa rotina, rapidamente a tornou uma de nós, parecendo que sempre fizera parte do nosso mundo. E isso levou a que me questionasse sobre o silêncio em torno da sua família: os telefonemas e idas a casa eram raríssimos. Viajava apenas duas vezes por ano e, ainda assim, percebia-se o esforço hercúleo que fazia. Obviamente, nunca me atrevi a tocar no assunto.

    Foi, por isso, com enorme espanto que um dia recebi o convite para ir passar uns dias com ela:

    — Vou a casa no fim de semana prolongado. Queres vir comigo? — perguntou.

    Achava que eu ia gostar da aldeia. Falou-me de pessoas calorosas, de um rio com um lugar perfeito para nadar, dos amigos de infância que lá viviam, das broas de milho que a mãe fazia como ninguém. Repentinamente, fez uma pausa. Explicou-me que com a mãe eu teria de ter muita paciência.

    — É muito complicada, muito difícil. Especialmente depois da morte do meu pai… está impossível. — declarou, mantendo o tom de voz, mas não conseguindo disfarçar uma irritabilidade que lhe percebi pela primeira vez.

    De súbito, começou a falar de uns livros que tinha de ir devolver à biblioteca. O assunto da mãe estava encerrado.

    Os dias seguintes passaram num ápice. Havia muito a fazer: aulas, trabalhos para entregar, e compras, muitas compras. A Luz fazia questão de levar um visual novo para cada dia. Eu achava-lhe graça, porque em Lisboa e no Algarve nunca se preocupava com o que vestia e muito menos em maquilhar-se. Dizia-lhe que parecia os emigrantes em agosto. Ela encolhia os ombros, sorria e passava os modelos para eu dar opinião.

    Chegou, finalmente, o grande dia. Mochilas prontas, um café no Galeto para despertar, e rumámos ao Saldanha para apanhar o expresso. Partimos em direção à autoestrada. Eu, animadíssima, a reparar em todas as placas: Vila Franca, Santarém, Torres Novas, Fátima, Coimbra, Aveiro, Estarreja, Porto. Ela, nem tanto.

    Chegadas à Invicta, aguardámos a boleia da Telma, uma amiga da Luz que estudava na FLUP. Atirámos as mochilas para a bagageira e entrámos à pressa no carro parado em segunda fila, frente ao terminal.

    Enquanto as velhas amigas punham a conversa em dia, eu, refastelada no banco de trás, deixava-me encantar pelo verde intenso, pela água abundante, pelas cameleiras dos jardins, pelas terreolas embutidas nas encostas e pelas pequenas hortas em socalcos. Habituada ao azul do mar e à maresia, deslumbrava-me o verde interminável e o cheiro a eucalipto.

    A Telma deixou-nos à porta de casa. Marcou-se encontro para a tarde do dia seguinte. O Rui fazia 19 anos e ia dar uma festa na garagem. Toda a aldeia estava convidada.

    — Foi por isso que viemos. — explicou a Luz, com uma piscadela de olho.

    Não reconheci a minha amiga. Incomodou-me que me tivesse ocultado a festa. Ia preparada para fazer caminhadas, andar de bicicleta, nadar. Nem roupa adequada, nem presente. Perguntei-me porque teria agido daquela forma, mas optei por não a confrontar.

    Despedidas feitas, eis que surge a mãe da Luz. Vestida de preto da cabeça aos pés, um ar pesado e um sorriso que quase não o era, a contrastar com a pele e os olhos muito azuis, brilhantes e joviais.
    A Luz dirigiu-se lentamente em direção à mãe, deu-lhe um beijo esquivo, sussurrou um olá frio, e apresentou-nos. A viúva dirigiu-me um olhar desconfiado, que me atravessou. Murmurou umas palavras incompreensíveis e não consentiu que me aproximasse demasiado. Nesse preciso momento, tive a estranha sensação de que aquela viagem tinha sido uma péssima ideia.

    A filha, ignorando a atitude da mãe, comunicou que iríamos subir para descansar. Logo à entrada, desculpou-se:

    — Aqui cheira a cemitério, mas lá em cima não. Fica descansada. Ela enche a porcaria da mesa de velas.

    A um canto, junto ao vão das escadas, uma mesa-redonda servia de altar. Imagens da Sagrada Família, da Virgem de Fátima, de santos e santinhos misturavam-se com jarras de flores de plástico, lamparinas vermelhas, restos da decoração de um Natal passado e fotografias de um homem que imaginei ser o pai da Luz.

    Descemos apenas à hora do jantar. Pedi licença para usar o telefone e avisar a minha família de que tinha chegado bem. A chamada foi breve. Ainda assim, foi suficientemente longa para que, ao chegar à cozinha, encontrasse a Luz já entediada. A mãe falava, e ela suspirava. Quando entrei, calaram-se.

    Quebrando o gelo, a senhora perguntou-me se os meus pais estavam bem. Respondi que sim, e, sem saber como, a conversa passou dos meus pais para o pai da Luz: que já lá estava, coitadinho; que muito sofrera com a doença; que tudo aguentara, sem proferir um ai; que trabalhara até perder as forças; que fora tão poupado; um homem sem vícios…

    A filha interrompia-a. Dizia que não era conversa para ter à mesa. A mãe ignorava-a. Prosseguia, desfiando o rosário: minuto a minuto, consulta a consulta, cateter a cateter, escara a escara. A filha pedia que se calasse. Não era assunto para ter à hora da refeição. Indignada, a mãe olhava-a com ar de reprovação e retomava a ladainha: o último suspiro do seu homem; os gritos que ela dera; o caixão…

    Não haviam decorrido trinta minutos, desde que me sentara à mesa, e já presenciava desavenças entre mãe e filha. — Vamos ao café! — ordenou-me a Luz, a meio do jantar.

    Nunca a tinha visto alterada. Fiquei presa num limbo, constrangida, hesitante entre a descortesia de me ausentar, ofendendo a dona da casa, e a de abandonar a minha amiga.

    Levantei-me, incomodada. Desculpei-me. A senhora olhou-me com desprezo. Senti pena dela. Pareceu-me muito só no mundo. Sem a filha por perto, mantinha-se fechada num casulo de silêncio. Desde que regressara de França, para onde emigrara com o marido, vivia entre quatro paredes. Encarei com normalidade a necessidade de falar que demonstrava. Acreditei perceber o sofrimento que ambas encobriam. A mãe precisava de verbalizar e lembrar; a filha, de silenciar e esquecer.

    Quando desci para sair, a conversa havia subido de tom. Pelo caminho, esperei, em vão, que a Luz tocasse no assunto. Limitou-se a dizer que, depois do café, íamos para casa do Rui.

    Mais uma vez, senti-me traída. Não me tinha arranjado para ir a uma festa. Lá chegada — botas de montanha, calças de ganga, camisolão de xadrez e bandolete a aguentar a melena selvagem —, recolhi-me a um canto, tentando passar despercebida, mas a Luz insistiu em levar-me até à pista de dança improvisada. Valeu-me a fraca iluminação e o fumo espesso dos cigarros. Já a Luz, dava nas vistas. Vestida e penteada de forma exuberante, e a mostrar os passes de dança aprendidos nas discotecas da capital, fazia o possível por ser o centro das atenções.

    Regressámos tarde a casa. Disse-me que não me preocupasse com o barulho:

    — A “santa” está acordada. Passa a noite a rezar.

    No dia seguinte, acordámos tarde. A mãe saíra logo pela manhã. Tinha ido à missa, como todos os dias, explicou.

    — Coitada — respondi —, deve sentir-se muito sozinha.

    — Esquece. Foi sempre assim — respondeu, revirando os olhos.

    — Mas… — tentei, acreditando que poderia ajudar a negociar uma trégua naquele campo de batalha.

    — Mas, mas… Mas vamos é pôr-nos a andar, que temos programa para o dia inteiro. — atalhou.

    Caminhámos pelas ruelas estreitas da aldeia, rodeadas por casinhas de pedra cinzenta. Todos a conheciam. Faziam-lhe perguntas sobre Lisboa, sobre os estudos. Queriam saber quem eu era. Perguntavam-me se estava a gostar da aldeia. Uns falavam com saudades de quando tinham vindo ao Algarve, outros de como sonhavam cá vir.

    O dia passou depressa. Em casa, a mãe parecia de melhor humor. Tinha acabado de cozer broa. Sentámo-nos a comer. Perguntou-me se tinha namorado. Procurando arrancar uma gargalhada à minha amiga, decidi responder que sim, que ia casar no verão seguinte. Ela aguentou-se. Mas a verdadeira surpresa foi a reação da mãe. Pousou a caneca de café e a broa que tinha nas mãos e olhou-me fixamente.

    — Não achas que és muito nova para isso? — perguntou de chofre.
    Na dúvida, fui em frente. Contei-lhe que namorava havia muito tempo e que o rapaz era mais velho.

    — Muito tempo? Eu namorei oito anos. — respondeu. — É um passo muito sério. Vocês têm a vida pela frente. Têm muito tempo para casar. Parece que estão fartas de estar bem.

    Feita a advertência, acomodou-se na cadeira e mudou o tom. Seguiu-se a receita da broa, a lembrança do quanto o pai da Luz a apreciava e, claro, já que vinha a propósito, a repetição do relato feito ao jantar na noite anterior. Mais uma vez, a Luz, impaciente, pedia-lhe que parasse. Dizia-lhe que era mórbida. A mãe ignorava a irritação da filha, que me “convidou” novamente a abandonar a mesa. A situação repetiu-se várias vezes ao longo dos três dias.

    Não foi preciso muito tempo nem particular perspicácia para perceber que na aldeia toda a gente conhecia a história daquela família. Todos perguntavam pela “santa”. A figura da viúva, longe de causar comiseração, era alvo de ironia. Pareceu-me errado e comentei com a Luz. Compreendia que a senhora fosse muito aborrecida, e que rezava o suficiente para mandar uma dúzia de alminhas para o Céu, que tinha alguma falta de noção, mas, caramba…. Nenhuma de nós podia avaliar o sofrimento de alguém que perde assim o companheiro de uma vida. Insisti para que fosse mais paciente e que se esforçasse por compreender a mãe.

    Respondeu-me em forma de pergunta:

    — Porque é que achas que ela reagiu daquela forma quando falaste em casamento? És muito nova para casar. Tens a vida à tua frente. Parece que estás farta de estar bem. Achas que é resposta de quem teve um casamento feliz?

    Confidenciou-me que o pai era alcoólico e extremamente violento. Que levou alguns anos a associar as nódoas negras da mãe e as quedas quase diárias aos punhos do pai. Só percebeu quando chegou o momento em que começou a ter de explicar, na escola, os seus próprios desequilíbrios e tropeções.

    Explicou-me como viviam ambas aterrorizadas. O pavor que sentiam quando ouviam ranger a porta. Disse-me que um vizinho chegou mesmo a dar-lhe “uns apertos”. Teve esperança, mas nada mudou.

    A mãe, essa, defendeu-o sempre. Era um bom homem. Um bom pai. Nunca tinha deixado faltar nada em casa. A culpa era do vinho e das más companhias. Além disso, a roupa suja era para lavar em casa.

    Talvez para sobreviver à dor, tinha inventado um marido que nunca existira e falava dele como se ninguém conhecesse a verdade. Os vizinhos, os amigos, os familiares não a contrariavam, apesar dos comentários sarcásticos que proferiam nas suas costas. Para a Luz, aquela hipocrisia era insuportável: as rezas sem fim, o luto, as visitas diárias ao cemitério, o ar de viúva sofrida, as lamúrias. Sentia-se aliviada e desejava muito que a mãe se libertasse do passado.

    Partilhámos casa por mais dois anos. A “santa” deixou de ser tabu, apesar de estarem cada vez mais distantes. O Rui também passou a fazer parte das nossas conversas.

    Terminámos o curso em 1992. Ela foi colocada no Minho, eu no Algarve. em breve, perderíamos o contacto.

    Há dias, encontrei a Telma numa conferência. Perguntei-lhe pela Luz. Contou-me que a mãe tinha falecido havia meses. Quanto à Luz, casara com o Rui. Disse-me que tinham tido uma filha, a Estela, estudante de Arquitetura, e que viviam nos arredores do Porto, onde ambos tinham arranjado colocação.

    — O Rui!? Que bom! Fico tão feliz por ela.

    — Não fiques — respondeu.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • A candidata 

    A candidata 

    Leonilde nasceu em pleno Estado Novo. Veio da planície, do Alentejo profundo, para a capital. Os pais empregaram-se numa mercearia. Ela terminou a 4.ª classe e foi para aprendiz de cabeleireira.

    Farta de lavar cabeças num bairro da periferia, Leonilde decidiu voltar a estudar. Não ia ficar naquele salão para o resto da vida. Um único entrave: o pai. Era ele que mandava lá em casa e nem queria ouvir falar em escola. A cachopa ainda se perdia. Devia agradecer a sorte de ter um emprego e um ordenadinho. Além do mais, estava na altura de pensar em casar. Qualquer dia começavam a dar à língua.

    A Leonilde casou. O Rogério trabalhava na construção naval. Era bom rapaz e tinha prometido deixá-la voltar a estudar.  Mas veio uma gravidez. Depois outra. E uma terceira. Queriam um filho varão e só nasciam meninas.

    Após a revolução, desiludido com as condições de vida dos trabalhadores, Rogério juntou-se ao sindicato. Incutiu em Leonilde, que, entretanto, voltara a estudar, os valores do socialismo. Não faltavam a uma reunião do partido, a uma manifestação, a um comício.

    Terminada a licenciatura, Leonilde, de foice e martelo ao peito, sentia-se mais preparada do que nunca para ajudar. Queria combater o capitalismo. Ser a voz dos desfavorecidos e dos explorados.

    Passei há dias por uma das filhas e perguntei pela família. Contou-me que o pai, aposentado, regressou sozinho ao Alentejo. A mãe é candidata a presidente de uma junta de freguesia:

    – Faz sentido. – respondi – Sempre esteve muito ligada à política.

    – Fazia. – disse ela – Se não fosse ser a candidata da extrema-direita.

    Perante a minha perplexidade, explicou-me a razão invocada por Leonilde quando ela própria a questionou:

    –  Só eles é que me convidaram!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • O poema 

    O poema 

    Diziam que o poeta vivia num mundo só dele. Não era verdade. O poeta trabalhava, tinha prazos, contas para pagar, e um cão. O poeta, despido da poesia, era apenas um homem na Terra.

    Certo dia, terminou um livro. Imprimiu-o. Lembrou-se, então, de que nem sabia quando tinha comido pela última vez. Dirigiu-se ao frigorífico. Estava vazio. O estômago também. O poeta apontou numa folha: “ovos, galinha, milho e…”. Havia de lembrar-se do que faltava.

    Colocou o manuscrito num envelope. Ia entregá-lo pessoalmente na editora. Já que tinha de ir ao supermercado, logo tratava dos dois assuntos.

    O espelho da sala mostrou-lhe que estava de pijama e chinelos. O poeta foi ao quarto, arranjou-se e voltou. Pegou no envelope, procurou a lista das compras, mas tinha desaparecido. Nada que o espantasse. Chegou mesmo a duvidar da sua existência. Estava exausto. Já não tinha certeza de nada.

    black Corona typewriter on brown wood planks

    Foi até à editora e entregou o envelope. Sentiu-se aliviado, mas sem vontade de ir às compras. Decidiu, por isso, encomendar o almoço e aproveitar para deitar mãos a um novo projeto.

    Algumas semanas depois, o livro foi publicado. Sentia-se ansioso. Os últimos dois não tinham sido recebidos como esperava.

    Chegou o dia do lançamento. Sala cheia numa importante livraria da capital. A apresentação a cargo de um conhecido e reputado académico. Tudo corria como no seu melhor sonho. O poeta, no entanto, não percebia o que levava o professor a considerar que a sua obra remetia para temas como o princípio do mundo, o ovo cosmogónico, a dúvida relativa à primazia do ovo ou da galinha, nem porque referia a incerteza expressa pelo final deixado em aberto.

    O público aplaudiu. O poeta, encolhido, com cara de ponto de interrogação, perguntou:

    – Em que página está esse poema?

    – Na página 23. – respondeu o professor. – A propósito, pergunto-lhe: por que não o colocou na página 1? Qual foi o critério de edição?

    O poeta abriu o livro e leu:

    “Ovos,

    galinha,

    milho

    e…”.

    Sem hesitar, dissertou sobre as grandes questões que pretendeu levantar com este poema. Esclareceu todas as dúvidas.

    shallow focus photography of brown eggs

    O académico ficou estarrecido com a explicação. Era brilhante. Elogiou e agradeceu a humildade e generosidade do autor.

    O poeta, de livro na mão, dirigiu-se ao supermercado:

    – E… arroz. – completou.

    Críticos, estudiosos, jornalistas, leitores ávidos e grandes conhecedores apressaram-se a ler a obra e ajoelharam-se perante o génio do bardo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Cheguei! 

    Cheguei! 

    De onde me encontro, olho para a vida como se olha para a casa da infância. Descubro que o edifício outrora enorme é, afinal, diminuto. Os corredores são estreitos, os tetos baixos; as janelas dão para um quintal exíguo. Busco o prado imenso num canteiro relvado.

    Vista daqui, a minha existência é como essa casa: ínfima. A passagem, que parecia não ter fim, revela-se feita de breves instantes. Os planos para o futuro, tantas vezes adiados por não haver pressa, serão para sempre planos. Intenções.

    O tempo — longo, lento — foi um inimigo a vencer. Falta muito para acabar o curso. Falta muito para acabar de pagar a casa. Falta muito para os filhos serem adultos. Falta muito para chegar à aposentação.

    A dor, a tristeza, a raiva… tudo passa:

     —Tens de dar tempo ao tempo.

    Os minutos tornam-se horas; as horas, uma eternidade. O tempo a arrastar-se. Lento. Lento. Lento. E eu, com pressa de chegar. A dar ao tempo, o tempo que nem desconfio não ter.

    Sentamo-nos, tu e eu, num banco junto ao mar. Deixamos o olhar navegá-lo, baloiçando tranquilamente sobre o ondular leve das águas. Deito a cabeça no ombro de um casamento de 50 anos.

    A lua, os barcos, a palmeira, o homem que passa com uma canastra na mão, este banco — tudo é enorme. Tudo será para sempre enorme. Não para nós.

    Afagas-me as costas. Brincam os dedos das nossas mãos entrelaçadas. Percorre-me um misto de tristeza, melancolia e felicidade contida, de quem sabe que este movimento não é eterno, mas encerra a doçura de uma vida plena e extraordinária na sua normalidade.

    Inspiro o cheiro a mar presente. As pálpebras descem lentamente. Um a um, invadem-me os aromas do passado: a pele dos filhos pequenos, as flores do bouquê de noiva, o perfume que usavas quando nos conhecemos, as frésias do quintal, o bolo mármore dos lanches na Alameda, o colo da minha mãe.

    Cheguei!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • A mulher má 

    A mulher má 

    Vivia no Beco do Espinho uma mulher má. Dizia quem a conhecia que nunca tinha sido melhor:

    — Foi sempre assim. Terá de aprender com a vida. Até lá, temos de ter paciência.

    Certo dia, a mulher adoeceu. O caso era grave. Na vizinhança, todos se apiedaram dela e acorreram a ajudar a família como podiam:

    — Coitados dos pais. É gente boa. Ela é que saiu ruim. O que é que se há de fazer? — comentava-se.

    Não tardaram, porém, a perceber que abusava da generosidade de todos os que a visitavam. Os agradecimentos saíam-lhe a ferros, arrancados da boca pelo olhar severo dos pais envergonhados. Na sua boa fé, a população  acreditou ter chegado o tal ensinamento que a iria mudar:

    — Pobrezita! Ninguém merece uma coisa destas. Não era preciso tanto!

    Recuperada da doença, a mulher retomou os velhos hábitos. A maldade, entretanto mal disfarçada, tomou a sonsice por companheira e ganhou um novo fôlego. E, quando, algum tempo depois, os pais faleceram, partiram com eles os únicos limites que até então conhecia.

    Dois anos mais tarde, a morte, sempre impiedosa e, desta vez, inesperada, arrancou-lhe do colo a única filha.

    — Um golpe destes muda qualquer uma. — pensaram todos. Pensaram mal. Ficou exatamente na mesma. Má.

    Um dia, a mulher zangou-se com uma nova inquilina acabada de chegar ao seu prédio. O objeto da discórdia: vasos e plantas no vão da escada. Coisa grave! Gastou um pacote de sal com as begónias, mas os vasos continuavam no mesmo sítio. Não podia deixar passar a afronta. A sessão de gritos e injúrias que se seguiu também não deu frutos. A vizinha ouviu-a até ao fim, sem qualquer expressão no rosto.  Despediu-se, virou costas e entrou em casa. Fora de si, a mulher correu a escrever uma mensagem em letras raivosas que enfiou por debaixo da porta do 3.º esquerdo. Era, afinal de contas, uma pobre vítima incompreendida. Tinha o direito de se defender. No bilhete, expressava o desejo de que a filha da vizinha tivesse o mesmo destino da sua, só para ver se ela percebia o que custava.

    Os habitantes do Beco do Espinho resignaram-se, então. Deixaram de esperar que a vida lhe pudesse ensinar alguma coisa. Não havia dentro daquela alma o mais pequeno sinal de um ser humano por resgatar. A quem perguntava como estava a mulher depois de tantas provações, os que a conheciam respondiam agora:

    — Má, como sempre. Se mudasse de fora para dentro, era a primeira.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Virada do avesso 

    Virada do avesso 

    Quando nasceu Odete, a mãe colocou-a numa cesta junto à máquina de costura.  Embalada pelo som ritmado do pedal, a menina cresceu sem conhecer outra realidade. Da cesta passou para uma cadeira de criança trazida de um passeio a Reguengos.  Foi nela que aprendeu a dar os primeiros pontos. Dali observava a mãe a tirar as medidas das clientes, a talhar e alinhavar os modelos, a experimentar e fazer os últimos ajustes.  A mãe dizia que gostava que a menina tivesse outra vida. Que não ficasse ali presa na casa de fora, a ver o mundo passar na rua. Mas Odete cedo revelou ter mãos de fada. A chegada da segunda máquina, comprada a prestações na Singer, foi uma espécie de diploma. Primeiro em dupla, depois sozinha, Odete trabalhou grande parte da sua vida como modista.

    person holding white and red plastic toy

    Mas chegou o pronto-a-vestir. Abriram lojas modernas um pouco por toda a cidade. Os vestidos da moda estavam agora à mão de semear. Odete já pouco podia mostrar da sua arte. Vivia de fazer pequenos arranjos. Ganhava bem. Mas o trabalho não brilhava. Os clientes eram desconhecidos com os quais poucas palavras trocava. Dias, meses, anos, sentada a uma máquina que agora era elétrica.  Um rádio. Um pequeno cão peludo, sonolento, enrolado sobre a velha cadeira alentejana. O sol a bater-lhe no focinho tranquilo. Entre bainhas, botões e fechos, Odete encontrava tempo para fazer peças que mostravam a sua destreza e talento. Pendurava-as na porta de reixa, viradas para rua. Entre elas, um talego de cores vibrantes saltava à vista. As pessoas passavam, paravam, perguntavam o preço:

    – Esse não está à venda. – respondia Odete.

    – Que pena! Tão bonito. – comentavam.

    Odete sabia disso. Era justamente essa a razão pela qual não o vendia. Para que admirassem a sua habilidade. Depois, regressava o silêncio.

    Certo dia, uma turista curiosa parou a admirar o talego. Quis saber o que era, para que servia. Odete, entusiasmada com a conversa, respondeu-lhe elevando cada vez mais a voz:

    –  TA-LE-GO! É PA-RA PÔR O PÃ-O! TA-LE-GO!

    A turista enfiou a mão no saco e repetiu sorridente:

    –  TA-LE-GO! PÃ-O!

    Mas no fundo do talego, não foi pão que encontrou. Foi um brinco de ouro. Espantada, entregou-o a Odete que o rejeitou. Não era dela. A turista voltou a meter a mão no talego e encontrou o par do brinco.

    Passados dias, uma outra mulher que parou para ver o talego retirou de lá de dentro um cordão de ouro de duas voltas.  Odete insistiu que ficasse com ele. Não lhe pertencia.

    Cedo correu a notícia pela cidade.   As pessoas começaram a passar com mais frequência àquela porta. Primeiro vinham a medo, disfarçadamente. Como quem  não quer a coisa. O talego nunca desiludia. Não havia por esses dias quem não se lembrasse de vir cumprimentar diariamente a Odete. Passado algum tempo, tinha tantos amigos que a fila se formava durante a madrugada. Quando abria a porta para pendurar o objeto, todos se apressavam a tentar a sua sorte e  já nem se davam ao trabalho de lhe dar os bons-dias. Pelo contrário. Reclamavam. Insurgiam-se:

    – O que custava ao raio da velha deixar aqui o saco durante a noite?

    Tiravam o que queriam e iam embora. Até que um dia, ao chegarem à porta, encontraram o talego virado do avesso. Metiam as mãos e nada. De um lado. Do outro. Nada. Não podiam acreditar. Bateram tão violentamente à porta que a arrombaram.  Invadiram a casa para exigir explicações. Mas não  encontraram a costureira. Estava tudo nos sítios do costume, menos ela e o cão.  Nunca souberam que numa tarde de inverno, cansada das dores do reumático que há muito lhe davam que fazer, Odete resolveu meter a mão dentro do talego na esperança de encontrar uma pomada que a aliviasse. Mas o que de lá saiu foi um cartão dourado. Odete Mendonça diziam as letras em relevo. Não havia dúvidas de que era para ela.

    Há quem diga que a viu deitada numa espreguiçadeira, com o seu Pompom ao lado, a beber água de coco, em Copacabana.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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