Etiqueta: Sustentável Peso do Ser

  • 25 de Abril Sempre! Democracia só para alguns!

    25 de Abril Sempre! Democracia só para alguns!


    No livro do Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas, a Lebre de Março disse à Alice “Toma mais chá!”, num tom muito sério. “Ainda não tomei nenhum,” respondeu Alice em tom ofendido, “portanto não posso tomar mais.” “Não podes tomar menos, queres tu dizer,” disse o Chapeleiro, “é muito fácil tomar mais do que nada.”

    Desde pequena que o meu feriado preferido é o 25 de Abril! O meu pai é professor de História, e todos os anos, solenemente, assistia-se lá em casa ao Capitães de Abril, realizado pela Maria de Medeiros.

    Assim, cedo me apercebi da importância histórica da revolução de 25 de Abril que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e que lançou as bases para a implantação de um regime democrático.

    Desde que me lembro de ser, celebro o 25 de Abril como sinónimo de liberdade, e ainda o continuo a fazer, embora o peso da idade, das experiências vividas e observadas, me tenha trazido também o sustentável peso de se ser mulher, e de todas as limitações à liberdade que, embora em democracia, nos continuam a ser impostas.

    Por isso, tal como a Alice, do “chá” da democracia, creio ter bebido ainda muito pouco ou nada. Não obstante, no dia 24 de Março de 2022, assinalou-se o facto de vivermos há mais tempo em democracia, 17500 dias, do que vivemos em ditadura, 17499 dias. 

    Começo assim esta crónica com uma pergunta provocatória: Caras companheiras de resistência, quando chegará o dia em que celebraremos o facto de TODAS vivermos, de facto, em democracia?

    Ou por outras palavras, quando é que chegará o dia de celebrarmos todos (mulheres incluídas) o reconhecimento da dignidade humana, da liberdade de pensamento e expressão, da igualdade de direitos e deveres, da limitação e controle do poder, valores supostamente promovidos pelo regime democrático?

    Disse também a Lebre de Março à Alice num tom encorajador: “Toma um pouco de vinho”, ao que a Alice respondeu: “Eu não vejo nenhum vinho”. “Não há nenhum”, disse a Lebre de Março. “Então não foi muito educado da tua parte oferecê-lo”, comentou a Alice, com raiva.

    Parece-me, caras companheiras de resistência, que tal como aconteceu com a Alice, também a nós nos foi oferecido algo que nunca existiu: liberdade para todos, a ideia da democracia enquanto a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos seus cidadãos desenvolver ao máximo as suas potencialidades.

    O 25 de Abril de 1974 aconteceu para todos, mas só aos cidadãos do sexo masculino lhes é permitido gozar das bem-aventuranças por tal acontecimento proclamadas. Por isso mesmo, caras companheiras de resistência, tal como a Alice, sintam-se no direito de sentir raiva! E já que aqui estamos, e o Mundo, tal como nos é permitido experienciar, não vai a lado nenhum, sintamo-nos também no dever de fazer algo para que possamos não só celebrar a liberdade, mas fazer parte dela também.

    Há um velho ditado popular que diz: “A ignorância é uma bênção”. Já eu acredito mais na máxima de Francis Bacon de que o “conhecimento é poder”.

    Assim, sendo a nossa democracia fundamentalmente patriarcal e machista, e atravessando a Humanidade um período bizarro em que há mulheres que garantem não serem feministas, disponibilizo aqui as já costumeiras definições do Priberam para esclarecer conceitos que me parece essencial não ficarem esquecidos ou serem deturpados:

    Patriarcado é o tipo de organização social em que a autoridade é exercida por homens;

    Machismo é o comportamento ou linha de pensamento segundo a qual o homem domina socialmente a mulher e lhe nega os mesmos direitos e prerrogativas;

    Feminismo, o movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem.

    Para comprovar o argumento da democracia patriarcal e machista em que vivemos poderia socorrer-me de vários exemplos, mas vou concentrar-me apenas em um para ser clara, objetiva, e concisa, em mais uma de muitas tentativas de fugir ao estereótipo de que nós, mulheres, somos todas malucas.

    Segundo a avaliação do Comité Europeu dos Direitos Sociais, tendo por base a Carta Social Europeia, à exceção da Suécia, todos os restantes 14 países europeus signatários – Portugal, Bélgica, Bulgária, Croácia, Chipre, República Checa, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Países Baixos, Noruega e Eslovénia – estão em incumprimento das disposições adotadas para a implementação da igualdade de género em termos salariais.

    Num documento divulgado a 13 de Março do ano corrente, o mesmo Comité afirma que “a disparidade salarial entre os sexos é inaceitável nas sociedades modernas, mas continua a ser um dos principais obstáculos para alcançar a igualdade real”, e apela a que os governos europeus intensifiquem esforços “com urgência” para garantirem a igualdade de oportunidades no local de trabalho.

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    Acrescenta ainda o mesmo Comité que, apesar dos 15 países signatários da Carta Social Europeia terem “legislação satisfatória”,isto é, “acordos de cotas e outras medidas”, continuam a ser registadas “várias violações” ao pleno estabelecimento de uma igualdade salarial entre homens e mulheres, e “as mulheres também continuam sub-representadas nos cargos de tomada de decisão nas empresas privadas.”

    A Carta estabelece que o direito à igualdade de remuneração salarial entre os sexos deve ser garantido por lei pelos estados subscritores. Portugal assinou a Carta em 1996, e iniciou a sua vigência em Julho de 2002.

    Contudo, de acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Pordata, em Portugal, no ano de 2020 registou-se um fosso salarial entre homens e mulheres de 11, 4%, superior ao verificado em 2019, de 10,9%.

    Tal valor traduz-se numa perda de 51 dias de trabalho remunerado para as mulheres, que é o equivalente a dizer que, em 2020, as mulheres trabalharam pro bono 51 dias.

    Mas para o bem público de quem? É que de acordo com relatório anual “Portugal, Balanço Social 2021. Um retrato do país e de um ano de pandemia”, elaborado pela Nova SBE Economics for Policy, na taxa de risco de pobreza, as mulheres são as que saem mais penalizadas, argumento comprovado pelo risco acrescido de 2,5 pontos percentuais de 2019 para 2020 durante a pandemia de COVID-19, no sexo feminino face ao masculino.

    Caras companheiras de resistência, deixemo-nos então enraivecer, pois!

    E com níveis mais altos de escolaridade, como demonstra o relatório “Education at a Glance 2021”, onde pode ler-se que “em 2020, as mulheres entre os 25 e os 34 anos eram mais propensas do que os homens a frequentar uma carreira universitária em todos os países da OCDE”, embora continuem a receber salários inferiores comparativamente aos seus pares masculinos.

    Em Portugal, 49% das mulheres na faixa etária mencionada, tinham um diploma universitário em 2020, em comparação com os 35% dos homens, taxas que se tornam mais elevadas tendo em conta a média dos países da OCDE, 52% e 39%, respetivamente.

    Parece-me que sou obrigada a dar a mão à palmatória e admitir que, efetivamente, a ignorância é uma bênção.

    “Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir daqui?” Perguntou a Alice. “Isso depende muito aonde queres chegar!” Disse o Gato.

    Caras companheiras da resistência, se o vosso destino desejado é também a igualdade salarial entre homens e mulheres, trago boas e más notícias: a boa é que já há data prevista para tal feito histórico, a má é que a mesma aponta para 2157, segundo o World Economic Forum, no “Global Gender Gap Report 2021”, ou seja, daqui a 135,6 anos, o que significa que “mais uma geração de mulheres terá de esperar pela paridade de género.”

    Se de igual forma desejam contrariar a ideia do Gato de que “somos todos malucos aqui!”, e tal como a Alice não desejem andar “pelo meio de gente maluca”, deixemo-nos então enraivecer, pois! E enquanto isso, descruzemos os braços, não para trabalhar mais 51 dias que os homens por ano, de graça, mas para que os possam cruzar, graciosamente, e por fim, com a sensação de dever cumprido e de igualdade de direitos alcançados, afinal “é muito fácil tomar mais do que nada.”

    Tal como a rainha da Alice no país das maravilhas, também eu “às vezes acreditei em até seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço”, e não pretendo esperar 135 anos para viver numa democracia de facto, porque a esperança média de vida não mo permite, nem tão pouco o facto de, tal como Álvaro de Campos, “o que há em mim é sobretudo cansaço”, cansaço do sustentável peso de ser mulher e de ter de continuar a celebrar, no papel de espectadora, a liberdade dos outros, dos que verdadeiramente continuam a (des)governar a democracia.  25 de Abril sempre!

    E, já agora, para todos. Mulheres incluídas, se puder ser!

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A importância da (verdadeira) Ciência

    A importância da (verdadeira) Ciência


    Num editorial publicado a 19 de Janeiro de 2022, no The British Medical Journal (The BMJ), e que o PÁGINA UM noticiou, a revista mais antiga de medicina do Mundo, Peter Doshi (editor sénior do The BMJ e da equipe News & Views, e professor associado na Escola de Farmácia da Universidade de Maryland), Fiona Godlee (editora-chefe do The BMJ de Março de 2005 até 31 de Dezembro de 2021) e Kamran Abbasi (editor-chefe do The BMJ, médico, professor visitante do Departamento de Atenção Primária e Saúde Pública do Imperial College de Londres e editor do Journal of the Royal Society of Medicine) chamaram a atenção para a urgência da partilha de dados brutos sobre as vacinas e tratamentos à covid-19.  “Devem estar total e imediatamente disponíveis para escrutínio público”, defenderam.

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    Começa o editorial por mencionar fatos históricos, de suma importância: “Nas páginas do The BMJ há uma década, no meio de uma pandemia diferente, veio à tona que governos de todo o mundo gastaram bilhões armazenando antivirais para influenza que não demonstraram reduzir o risco de complicações, internações hospitalares ou morte. A maioria dos ensaios que sustentaram a aprovação regulatória e o armazenamento governamental de oseltamivir (Tamiflu) foram patrocinados pelo fabricante; a maioria era inédita, os que foram publicados foram escritos por escritores pagos pelo fabricante, as pessoas listadas como autores principais não tinham acesso aos dados brutos e os académicos que solicitaram acesso aos dados para análise independente foram negados.”

    Acrescentam ainda os autores que “os erros da última pandemia estão a ser repetidos. As memórias são curtas. Hoje, apesar do lançamento global de vacinas e tratamentos contra a covid-19, os dados anonimizados de participantes subjacentes aos testes para esses novos produtos permanecem inacessíveis a médicos, pesquisadores e ao público – e provavelmente permanecerão assim nos próximos anos. Isso é moralmente indefensável para todos os ensaios, mas especialmente para aqueles que envolvem grandes intervenções de saúde pública.”

    Já sabemos da tendência perniciosa que a História tem em se repetir, mas a História não é autónoma neste feito!

    A repetição fica a cargo daqueles que mais lucram e se beneficiam das nossas curtas memórias, das memórias que tão facilmente são substituídas por novas catástrofes que nos desviam a atenção de um assunto que não deve ser esquecido, negligenciado, ou tido de menor importância – a nossa saúde pública.

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    A mesma saúde pública que durante quase três anos esteve no epicentro de discursos políticos e mediáticos que banalizaram a ciência como se esta fosse do domínio e do entendimento de qualquer cidadão, passível de ser utilizada de forma corriqueira, em debates televisivos que em muito se assemelhavam a conversas de café.

    “É a ciência”, fartamo-nos de ouvir das bocas daqueles que dela, tal como a maioria de nós, percebe muito pouco. E a culpa não é nossa, não somos obrigados a saber de tudo, para isso existem os especialistas, os formados na matéria, os entendedores. E esses, infelizmente, não são os políticos, a big pharma, os médicos, ou os filantropos, todos cheios de boas intenções, as mesmas que, segundo reza o ditado popular, está o inferno cheio.

    Digo infelizmente porque só nos foi dado acesso a estas opiniões, destas mesmas pessoas sem qualificações para tal, que teimam em silenciar ou ignorar os verdadeiros entendidos na matéria: “Deram-nos acesso às publicações, mas negaram-nos o acesso aos dados subjacentes mediante solicitação razoável. Isso é preocupante para os participantes do estudo, pesquisadores, médicos, editores de periódicos, formuladores de políticas e o público”, afirmaram Doshi, Godlee e Abbasi.

    E acrescentaram ainda que “os periódicos que publicaram esses estudos primários podem argumentar que enfrentaram um dilema embaraçoso, entre disponibilizar rapidamente os resultados resumidos e defender os melhores valores éticos que apoiam o acesso oportuno aos dados subjacentes. Na nossa opinião, não há dilema; os dados anonimizados de participantes individuais de ensaios clínicos devem ser disponibilizados para escrutínio independente.”

    Não pretendo questionar o porquê desta falta de transparência na partilha de dados científicos que a todos nós dizem respeito, até porque somos nós, não só os recetores do produto em questão, mas somos também os seus financiadores, enquanto contribuintes.

    Não pretendo também desmotivar ninguém de se vacinar, pois, acredito que em matérias de saúde, como em qualquer outra que diga respeito à liberdade de cada um, a cada um cabe decidir, livremente.

    Também não pretendo afirmar que as vacinas são ineficazes ou prejudiciais, porque isso não sei.

    Mas gostaria muito de saber, gostaria muito de ter acesso à verdadeira Ciência, à Ciência que serve aos interesses de todos nós, e não de apenas alguns; à Ciência que é feita com transparência, sem interesses sub-reptícios, sem agendas escondidas, e essa só é possível de ser feita e avaliada por especialistas independentes, em tempo útil, o que não está ainda, a acontecer.

    “O principal teste de vacina contra a covid da Pfizer foi financiado pela empresa e projetado, executado, analisado e criado por funcionários da Pfizer. A empresa e as organizações de pesquisa contratadas que realizaram o teste detêm todos os dados.”, pode ler-se no mesmo editorial.

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    E acrescentavam ainda: “Entre os reguladores, acredita-se que a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA recebe a maioria dos dados brutos, mas não os liberta proactivamente. Após um pedido de libertação de informação à agência para os dados da vacina da Pfizer, a FDA ofereceu libertar 500 páginas por mês, um processo que levaria décadas para ser concluído, argumentando no tribunal que a divulgação pública de dados era lenta devido à necessidade de redigir primeiro informações confidenciais.”

    Confidenciais?! Agora os nossos dados de saúde, que a nós nos dizem respeito, devem ser de nós escondidos? Para proveito de quem? Para nos proteger do quê? Com que intenção?

    Como escrevi em outro texto aqui no PÁGINA UM, a minha existência pauta-se mais por dúvidas do que por certezas, mas mantenho a esperança de que, neste assunto em particular, não esteja sozinha neste questionamento e exigência da verdade científica.

    E espero que as nossas memórias não continuem a ser curtas, para que não cometamos o gravíssimo erro de deixar, uma vez mais, a História repetir-se.

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Do que precisamos todos não é de bofetadas, mas sim de vergonha na cara!

    Do que precisamos todos não é de bofetadas, mas sim de vergonha na cara!


    “Tá lá? É do inimigo? Olha vocês podiam-me parar a guerra agora aí um bocadinho? Sim? Tenho aqui um colega com dores de cabeça! Tá bem. E também temos o canhão encravado. Sim. Foi o Alfredo que meteu a cabeça lá dentro para fazer a revista e agora não a consegue tirar! Já pusemos sabão já, mas a cabeça não sai!”

    Assim começa um dos sketches humorísticos mais conhecidos de Raul Solnado, um dos principais protagonistas da história do humor em Portugal.

    Mas nada temas, caro Raul, o bom de já se ter falecido é que, em princípio, ninguém vai atrás de si para o cancelar! Digo em princípio porque da maneira que isto vai, e a julgar pelas reações públicas ao caso Smith versus Rock, hoje em dia damos prioridade a enaltecer a violência e a condenar o humor.

    Calma, não me entendam mal! Sei perfeitamente que somos todos contra a violência, e se dúvidas houvesse, muitas foram as pessoas que fizeram questão de o esclarecer nas redes sociais, publicando variadíssimas vezes a frase “Não à violência, mas…” E é sobre este – “mas…” – que me apraz propor uma reflexão conjunta.  

    Debrucemo-nos então sobre o assunto do momento.

    Na cerimónia dos Óscares deste ano, Chris Rock, um conhecido comediante fez uma piada sobre a ausência de cabelo da mulher do ator Will Smith, Jada Pinkett Smith, também ela atriz. Tal piada, desencadeou uma série de acontecimentos desengraçados: o caminhar furioso de Smith até ao palco onde se encontrava Rock, a bofetada de Smith a Rock, e o bradar de insultos e ameaças de Smith a Rock, já regressado ao seu lugar sentado, junto dos seus pares hollywoodescos.

    Perante tal acontecimento, o Mundo dividiu-se em dois: aqueles que condenaram veemente a agressão de Smith a Rock, e aqueles que condenando também tal agressão, fizeram questão de a minimizar, com argumentos muito próximos do ditado popular de “quem não se sente, não é filho de boa gente”. Assim, “Não à violência, mas…” torna-se compreensível que Smith tenha “perdido a cabeça” a uma piada envolvendo a cabeça da sua esposa, trazendo novamente para debate público a velha discussão sobre os limites do humor.

    Contudo a primeira reação de Smith à piada de Rock foi rir-se. Então não terá sido tanto a piada em si que irritou o Will, mas antes perceber o desagrado da Jada. Ainda bem que a discussão sobre os limites do humor causa atualmente mais proclamação do bom samaritanismo do que o culpabilizar das mulheres pela masculinidade tóxica, caso contrário a discussão neste momento seria bem diferente, mais no âmbito do feminismo e tal. Mas não será este caso merecedor de uma reflexão feminista também?

    Sendo eu uma dessas pessoas que acredita na igualdade de género, parece-me pertinente questionar se este retorno aos filmes da Wall Disney, quando as princesas indefesas estavam totalmente dependentes de um príncipe encantado e valentão que as viesse salvar, não deita por terra o trabalho devolvido ao longo das últimas seis décadas pela emancipação da mulher, pelo reconhecimento do seu espaço para ação, para o seu entendimento enquanto semelhante e não inferior ao género masculino?

    Ou será que tal agressão, entendida como um gesto másculo e heroico do príncipe de Bel-Air nada mais foi do que a manifestação da masculinidade tóxica, denunciada, nos últimos sessenta anos, pelas feministas?

    Talvez a melhor forma de entender o caso Smith versus Rock seja uma contextualização histórica.

    Regressemos então ao ano de 2016, quando o Will e a Jada resolveram boicotar a cerimónia dos Óscares como forma de protesto pela ausência de nomeados negros nas categorias de atuação (todas as vinte indicações ao Óscar nas categorias de atuação foram para artistas brancos), juntando-se assim ao movimento de protesto que ficou conhecido como “#OscarsSoWhite”.

    Chris Rock, apresentador da cerimónia nesse mesmo ano, fez algumas piadas sobre a ausência do casal, piadas essas que, segundo foi noticiado na época, não teriam caído bem ao casal de atores.

    Ignoremos o facto de este ano, das vinte indicações de atuação, apenas quatro foram para atores negros, incluindo a nomeação do Will ao Óscar de melhor ator, o que parece denunciar que ao Will preocupava mais a ausência de representatividade do Will nas nomeações ao Óscar de melhor ator do que a falta de representatividade de negros nas nomeações aos Óscares de representação.

    Deixemos de lado também considerações legais sobre este episódio, uma vez que o Ricardo Araújo Pereira já veio esclarecer aos menos esclarecidos, a diferença entre uma piada e uma agressão: sobre a primeira o código penal nada diz, e sobre a segunda tipifica-a como um crime. Concentremo-nos então na conjunção adversativa contida na frase “Não à violência, mas…”

    Este “mas” refere-se exatamente a quê? Aquilo que é aceitável que nos faça rir? É porque quando algo desperta o meu lado mais jocoso normalmente é pela forma como é dito, pelo absurdo da situação, ou pelo quão próxima determinada caricatura está da realidade.

    Ou será que quando nos rimos de “Roubos, e não é muitos, e não são poucos, não é? Bastantes!”; “Eu sei lá menina se são os chineses ou o C*”; “Custa-me muito aturar este barulho porque eu já sofro da cabeça quase de nascença.”; “Dá-me o pito. Foi os termos que ele falou. E eu grito: Nãoooo!”, “Tenho muita humidade. É só, a gente também não pode dizer mais do que é. É só humidade.”; “Filha da mãe que tens uma grande patite v.”; “Chega ao fim sai o trabalho e o dinheiro está no C*”, estamos a gozar com a desgraça destas pessoas?

    Com os assaltos em cemitérios?

    Com a xenofobia?

    Com as doenças neurológicas?

    Com as violações sexuais?

    Com as más condições de habitação?

    Com as infeções sexualmente transmissíveis?

    Com a exploração laboral?

    Estava em crer que não, mas talvez esteja enganada, não é raro.

    Ou será que este “mas…” diz respeito à existência de temas sobre os quais não se pode fazer humor? Ou seja, sobre a calvície não se podem fazer piadas, mas com doenças neurodegenerativas já se pode, como as sempre foram feitas em relação ao Stephen Hawking, e mais recentemente aqui pelo nosso Portugal, em relação ao Ricardo Salgado.

    Faz sentido, até porque é de senso comum que sobre carecas não se fazem piadas, até porque é dos carecas que elas gostam mais. Contudo, e para que de futuro possamos todos evitar ter de recorrer ao método “só à chapada”, será que algum grupo de entendidos pode ter a amabilidade de se reunir, como já se fez para se escrever a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas agora para redigirem a Declaração Universal das Piadas de Bom Tom?

    Dava-nos jeito a todos para evitar discussões absurdas nas redes sociais e consequentes animosidades, e a mim, em particular, dava-me jeito para evitar ter de pousar os livros e ir inscrever-me numas aulas de pugilismo. É que doutra forma não me safo.

    orange and white plastic egg toy

    Mas como sou uma adepta da democracia, o que implica aceitar a decisão da maioria, também se decidirem proibir todo e qualquer tipo de humor, nem precisam de me convidar a tal, porque “aqui estou, aqui estou, Manuel Acácio!”

    Porém, será que os portugueses estão assim tão dispostos a censurar ou proibir o humor?

    As evidências parecem demonstrar que não: o podcast mais ouvido em Portugal em 2021 foi o “Extremamente desagradável” de Joana Marques; “Isto é gozar com quem trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, tem uma audiência média de um milhão de espectadores; “Como é que o bicho mexe” de Bruno Nogueira, teve mais de cem mil visualizações no último direto de Instagram em 2020; o “Relatório DB” de Diogo Batáguas, todos os meses tem liderado as tendências no Youtube em Portugal; e o canal de Youtube “Os primos” tem 213 mil subscritores.

    Por estes exemplos, eu responderia que não, mas olhando às discussões facebookianas a que assisti nos últimos dias, tenho as minhas dúvidas. Para que possamos todos dar resposta à questão colocada, proponho que reúnam a família para uma ronda do jogo “preferias”.

    Então, preferiam o Putin num bar em Moscovo, a beber umas vodcas com os seus compinchas oligarcas, e a contar anedotas sobre Ucranianos, ou a usar o dinheiro desses mesmos amiguinhos, a invadir a Ucrânia, e a matar uns quantos Ucranianos, enquanto bebe umas vodcas? Hum, é difícil? “Diga um, diga um, Pedro, diga um!”

    Para não terminar numa nota negativa, analisemos os resultados do caso Smith versus Rock, pelo lado positivo.

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    O Chris ficou com a cara quentinha e fartou-se de vender bilhetes para o seu espetáculo ao vivo.

    A Jada teve os seus cinco minutos de importamo-nos todos contigo e com a tua condição médica (mas só com a dela); e nós podemos todos fingir que sabíamos o que era a alopecia, vestir o fato de bom-samaritanos, e aparecer nas redes sociais para parecermos todos pessoas muito compreensivas e empáticas porque “Não há violência, mas…” continuemos a desculpabilizar e a justificar aqueles que a praticam!

    E quanto ao Will, não só teve direito a permanecer na cerimónia como ainda angariou o Óscar para melhor actor, fez um discurso de aceitação merecedor de mais um Óscar, e vai finalmente abraçar a terapia e iniciar o seu processo de cura.

    Contas feitas, o único derrotado da noite foi mesmo o humor, que ironicamente, foi o responsável por todas estas conquistas.

    Faço meus os votos de Raul Solnado, “Façam o favor de serem felizes!”, e acrescento ainda “Não há violência”, sem nem mas nem meio mas! E agora “vou sair, vou abandonar que eu tenho uma consulta agora às cinco horas, cinco e meia, não posso estar aqui.”

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O ativismo de sofá and all that jazz

    O ativismo de sofá and all that jazz


    “Eu não vou em modas, são tão novas, e eu já não. Eu sou da pré-roda, do pós-guerra e dos que virão”, assim canta o músico S. Pedro, na música Modas, incluída no seu álbum de 2017, intitulado O fim.

    Este é um verso que recorrentemente me vem à memória, nas minhas incursões pelos meandros da “realidade” virtual, tal como aconteceu recentemente quando me apercebi que, de repente, tudo quanto é aplicação digital tem a bandeira da Ucrânia.

    Esta nova forma de ativismo, facilmente operacionalizada através de um computador, smartphone ou tablet, vem desafiar a definição que lhe é atribuída pelo Priberam, segundo o qual ativismo é “a atitude moral que insiste mais nas necessidades da vida e da ação que nos princípios teóricos”, uma vez que, atualmente, o que parece realmente estar na moda é a propagação de uma retórica mainstream onde a nossa ação individual fica restrita à força da partilha e dos emojis, que servem para evidenciar a nossa aprovação (“gosto”), a nossa empatia (“coração”) ou a nossa solidariedade (“coragem”).

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    Mas qual será o impacto, de facto, desta nova atitude moral, que me atrevo a designar de ativismo líquido, para as necessidades da (nossa) vida? O conceito de modernidade líquida foi cunhado pelo sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman como uma metáfora para descrever a condição de constante mobilidade e mudança que o autor identificou nos relacionamentos, identidades e economia global na sociedade contemporânea.

    Em vez de se referir à modernidade e à pós-modernidade, Bauman visualizou uma transição de uma modernidade sólida para uma forma mais líquida de vida social, ou seja, “incapaz de manter qualquer forma ou curso por muito tempo” e “propensa a mudanças”, e discutiu como a modernidade líquida influência todos os aspetos da vida humana.

    Também o nosso ativismo líquido se parece reger pelos mesmos princípios: os temas que partilhamos e fingimos debater nas redes sociais, sobre os quais muito nos compadecemos, por vezes até em discussões ofensivas e discursos de ódio que em nada refletem as causas que dizemos defender, duram apenas o tempo destinado a tudo que é uma moda – o tempo de caírem no esquecimento ou serem trocados por outros mais em voga.

    Canta ainda S. Pedro que “só o tamanho das calças não diz de onde vens, para onde vais, se és feliz”, mas se à mulher de Cesar não bastava ser, tinha também de parecer, na modernidade líquida não nos basta parecer, é fundamental aparecer também.

    E por isso dedicamos tanto do nosso tempo a aparecer nas redes sociais, em tentativas constantes de parecermos mais informados, mais atentos, mais abalados, profundamente revoltados, e aparentemente “ativos” em lutas contra o bem e o mal, o certo e o errado, a justiça e a injustiça, tendo sempre por protagonistas um vilão e um sofredor passivo que sem aquela nossa partilha no Twitter, Instagram, Facebook, ou qualquer outra rede social, está desamparado e entregue à sua sorte.

    Por esse sofredor concreto, ou difuso, somos todos Charlie, somos todos me too, somos todos Rayan, e mais recentemente, somos todos Ucrânia.

    Diabolizamos os vilões, e afastámo-los de nós, como se de uma outra espécie humana se tratassem, uma espécie que nos é estranha, antagónica, semelhante a um extraterrestre inadaptado aos sentimentos básicos que garantimos em caps lock guiarem a nossa existência: o respeito, a solidariedade, a empatia, o amor.

    Mas serão mesmo estes os sentimentos básicos que possuímos e partilhamos? Ou será que o ativismo líquido reflete também algo mais profundo e preocupante sobre a forma como nos relacionamos com os outros e conosco?

    Bauman fala também do amor líquido que descreve o tipo de relações interpessoais que se desenvolvem na pós-modernidade, baseadas num intenso individualismo desregulado. E esse mesmo individualismo parece fazer-nos depender tanto da aprovação dos outros, que nos faz querer parecer ser alguém que corresponde ao desejado, ao expectável, ao que deve ser e por isso é bom, quando esses mesmos outros nos estão a “vigiar” pelo ecrã.

    Mas depois, no trato pessoal, nas ligações diretas que estabelecemos, seja com os que nos são mais próximos, seja com aqueles que se cruzam na nossa rotina, somos muitas vezes mesquinhos, antipáticos, desonestos, agressivos, indiferentes.

    S. Pedro canta ainda “O aspeto é como o verniz, estala e cai e cresce o nariz”, e quando tal acontece, já temos as desculpas preparadas na ponta da língua: ou estamos deprimidos, ou o dia, o ano, a vida não nos corre de feição, ou fomos injustiçados e agora não podemos ser bondosos, ou estamos concentrados no amor próprio e esse, infelizmente, parece não deixar espaço a qualquer outro tipo de amor.

    O amor passou de moda! Os grandes (e pequenos) gestos de amor agora são sinónimo de fraqueza ou de parolice aguda, e essa palavra tão forte e tão eficaz que era escrita em qualquer cartaz, de qualquer manifestação por uma qualquer luta, ficou perdido nos anos sessenta/setenta quando tudo o que precisávamos, segundo os Beatles, era de amor.

    people holding shoulders sitting on wall

    Hoje em dia tudo o que precisamos é das redes sociais, porque só elas nos permitem pareceremos boas pessoas, pessoas preocupadas, ativas na criação de uma realidade melhor, nem que seja apenas a virtual.

    Conectamo-nos com os grandes temas que povoam as redes sociais, e que se tornam em oásis do que o mundo poderia ser, mas não é. E desconectamo-nos cada vez mais, de nós e dos que nos são próximos, negligenciando sempre para amanhã a mudança para a qual poderíamos contribuir efetivamente hoje, pois este tipo de conexão dá mais trabalho, perde mais vezes a rede, não se basta num clique, e exige esforço, empenho, ativismo a sério e não à séria.

    Termino como comecei, com os versos de S. Pedro,porque acredito que dedicar tempo ao engenho de desenhar círculos perfeitos é uma forma de incentivar o regresso a nós mesmos e aos nossos, a qual nos permite fazermos realmente do mundo real um lugar melhor para todos! “Seja eu quem for, o que eu faço é que fica, isso sim vai dizer quem eu sou.”

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O medo ao serviço de um regime (muito pouco) democrático

    O medo ao serviço de um regime (muito pouco) democrático


    José Saramago (1922-2010) escreveu em 1997, o seguinte: “Tudo se discute neste mundo. Menos uma coisa que não se discute, a democracia. A democracia está aí, como se fosse uma espécie de santo no altar, de quem já não se espera milagres. E não se repara que a democracia que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada porque o poder do cidadão, de cada um de nós, limita-se na esfera política – repito, na esfera política – a tirar um governo de que não gostamos e pôr outro que, talvez, venhamos a gostar. Nada Mais!”

    Volvidos 25 anos, com uma pandemia que já celebrou dois aniversários, pouco faltando para soprar as velas para seguir o terceiro, e com eleições legislativas à porta, parece-me pertinente, se alguma vez o deixou de ser, refletir sobre o regime político português, e se este continua a ser, de facto, democrático.
    A democracia é o regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente, diretamente ou através de representantes eleitos, na proposta, no desenvolvimento, e na criação de leis, exercendo o poder de governação através do sufrágio universal.

    Contrariamente, o autoritarismo é uma forma de governo caracterizada pela obediência absoluta ou cega à autoridade, oposição à liberdade individual, e pela expectativa de obediência inquestionável da população. Tais definições bastariam, ou deveriam bastar, para que fosse impossível qualquer sobreposição entre estes dois regimes políticos.

    O famoso psicanalista alemão Erich Seligmann Fromm (1900-1980) defendeu que, em períodos de crise, durante os quais as pessoas sentem mais medo, o conflito entre os valores de liberdade e de segurança torna-se mais agudo, e mais fértil se mostra o terreno para o avanço do autoritarismo.

    Quando assisti ao nosso actual primeiro-ministro, António Costa, socialista segundo se afirma, questionar o seu oponente, num debate eleitoral em pleno canal público, sobre se já havia ou não tomado a vacina contra a covid-19, questionei-me: estava ele preocupado com a segurança do seu opositor, e de nós portugueses, ou estava mais arreliado com o exercício de liberdade de escolha, que nos é garantido a todos pela Constituição da República Portuguesa.

    Após uma pequena (e penosa) incursão pelas redes sociais, percebi que, de facto, um grande número de pessoas está bastante interessado em saber quem são os vacinados (puros) ou os não vacinados (impuros) deste país.

    Ao estudar as relações entre o nazismo e o autoritarismo, Fromm afirmou que a personalidade autoritária é imbuída de uma orientação ambivalente entre autoridade e poder. Disse ele que o indivíduo autoritário é, em simultâneo, submisso em relação àqueles que percebe como mais fortes – a autoridade – e dominador diante daqueles que julga mais fracos.

    Seguindo esta lógica, parti do ponto de vista de um “vacinado autoritário”, para argumentar e contra-argumentar (tal como a democracia incentiva) a razão que leva a este medo (já transformado em discriminação) contra aqueles que escolheram não ser inoculados.

    man's hand and chains

    1º argumento: os não-vacinados aumentam os contágios!

    Contra-argumento: não existem provas científicas de que existe uma maior propensão de transmissão do vírus pelos não vacinados do que pelos vacinados.

    2º argumento: a vacina reduz a possibilidade de doença grave e de morte!

    Contra-argumento: independentemente de os números (sobre os quais eu tenho bastantes reservas) comprovarem essa realidade, a vacina protege apenas quem a tomou. De igual forma, quem não a tomou, e seguindo-se o raciocínio apresentado, está apenas a colocar a sua própria vida em risco.

    3º argumento: os não vacinados atrofiam o serviço nacional de saúde!

    Contra-argumento: os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) colocavam, no top da lista das mortes normais – isto é, provocadas por doenças – as doenças do aparelho circulatório e os tumores malignos. Existindo actualmente um amplo conhecimento sobre medidas preventivas destes tipos de doenças (ter uma alimentação saudável, praticar actividades físicas, controlar o peso, evitar cigarros e consumo de bebidas alcoólicas), passaria pela cabeça de alguém, mesmo assim, acusar estas pessoas de entupirem os hospitais ou de levarem o staff médico à exaustão? Parece-me muito pouco provável.

    Mas então como chegamos a este estado de preconceito e discriminação com os não-vacinados? Talvez toda a propaganda de medo feita em torno da covid-19 nos tenha tornado a todos, de forma sub-reptícia, o polícia do nosso próximo, em prol de um bem comum (ainda a identificar).

    Fomos a isso incentivados desde o início: primeiro, com o elogio perante o uso da máscara (mais tarde tornada obrigatória) e a crítica perante aquele que demonstrava falta de civismo, de solidariedade, e de “noção” por se recusar a usá-la; de seguida, através de incentivos à vacinação que iria salvar o mundo e permitir-nos a todos regressar à normalidade, e a consequente caça às bruxas aos que não aderiram às filas indianas ordeiramente criadas pelo novo salvador da pátria; e por fim, com a imposição de um certificado digital para aceder a qualquer espaço público, a medalha de bom comportamento atribuída apenas àqueles que demonstraram ser cidadãos de bem e pelo bem comunitário.

    Assim sendo, porque é que existe tanto medo e discriminação contra os não-vacinados? Ou a lógica me falha, ou então falha o pensamento crítico de muita gente que por aí se passeia. Alguns deles até participaram, no ano de 2020, em manifestações contra a discriminação aquando da morte de George Floyd.

    Tenho para mim que ser-se ou não discriminador se transformou num buffet de comida chinesa em que cada um põe no prato aquilo que lhe apetecer comer. Neste caso, as pessoas estão a escolher que preconceitos e discriminações colocam nos seus pratos, e na impossibilidade de devoração, há que domesticá-los ou excluí-los.

    Quando leio afirmações do tipo “as regras são para cumprir”, e “são iguais para todos” – e, portanto, se o Novak Djokovic não está vacinado, então tem é de voltar “para a terra dele” – pergunto-me se as pessoas já se esqueceram que a democracia no nosso país se deve ao facto de alguns terem contrariado as regras do regime autoritário vigente. Os chamados revolucionários não concordaram com as “regras” e levaram a cabo um golpe militar, a revolução do 25 de Abril de 1974.

    Como julgo ter ficado demonstrado neste texto, sou uma pessoa de dúvidas, de questionamentos, de inquietações, mas vou tendo também algumas certezas. Uma delas é que, enquanto permanecer este costume, antigo e mesquinho, de apontar o dedo aos outros, de criar bodes expiatórios, e de os culpar pelos males comuns, reinará também a incitação à discriminação, ao ódio, e à violência, e assim vamo-nos tornando cada vez mais estranhos e alheios à condição dos “outros”, que são os nossos semelhantes.

    Outra é a de que, se aceitarmos sem questionamento, as regras e restrições normalmente contraditórias, cientificamente infundamentadas, e muitas vezes insultuosas – que nos são impostas pelos mesmos políticos que propagam a cultura do medo –, estamos a compactuar com uma aproximação perigosa a um sistema autoritário, e isso sim devia ser motivo para medo.

    Termino esta crónica da mesma forma que a comecei citando José Saramago, não em jeito de derrotismo, mas sim de esperança, porque essa persiste, e continua a persistir, em ser a última a morrer: “Eu acredito no respeito pelas crenças de todas as pessoas, mas gostaria que as crenças de todas as pessoas fossem capazes de respeitar as crenças de todas as pessoas.”

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.