Etiqueta: Sílvia Quinteiro

  • De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    Corria o ano de 1950. Pelas ruas da cidade vagueava um cão abandonado. Ardiloso, escapava como podia à carrinha do canil municipal. A perseguição levou-o a procurar refúgio junto ao Liceu. Foi aí que o canídeo cor de mel foi adotado pelos estudantes e elevado ao estatuto de mascote. Deitado junto a um grupo, empoleirado junto a outro, alimentado por todos, Kanitov, assim lhe chamaram os estudantes, tinha encontrado um lar.

    Certo dia, porém, Kanitov afastou-se deste lugar seguro e voltou a percorrer as ruas da Baixa, onde, à vista de toda a gente, o inimigo lhe deitou finalmente a mão. Sem um dono que pagasse a licença, o destino do animal estava traçado.

    black and tan short coat medium sized dog sitting on green grass field during daytime

    A notícia da captura chegou rapidamente aos ouvidos dos estudantes. Juventino, aluno do 8.º ano, tinha então 16 anos. Era baixo para a idade, magro, pálido. Tão recatado que poderia desaparecer sem que os colegas dessem pela sua ausência. Só Kanitov lhe sentia a falta. Mal o via ao longe, o bicho corria desenfreadamente na sua direção, saltitando e abanando o rabo. Juventino, filho único, a quem nunca foi permitido ter um animal de estimação – não fosse o menino adoecer dos pulmões – encontrou em Kanitov um companheiro. Um fiel amigo com quem partilhava a sandes de iscas fritas que a anemia o obrigava a ingerir diariamente.

    A perspetiva de Kanitov ser abatido era inaceitável para os jovens. E, enquanto os colegas iam murmurando soluções, eis que Juventino, saído da penumbra em que vivera até então, saltou para cima de um banco e gritou: ⎼ Uma manifestação, companheiros! Isto pede uma manifestação! ⎼ Movidos pelo amor ao cão e pela inesperada atitude sanguínea do colega, os estudantes juntaram-se no pátio preparados para avançar.

    O Reitor, tomando conhecimento desta intenção, alertou os rapazes para o perigo que corriam. Não tinham autorização do Governo Civil. Mas Juventino, assumindo a liderança, falou por todos quando disse que a decisão era irrevogável. Estavam cientes do perigo. Sabiam que os ajuntamentos eram proibidos. Mas era o Kanitov, caramba! Era um deles!

    Foto: Inácio Ludgero

    Uma vaga de capas negras desceu a avenida e atravessou as ruas da Baixa, em direção à Câmara Municipal: – Viva o Kanitov! Libertem o Kanitov! – Exigiam.

    A população, assustada, dividia-se entre o desejo de se afastar para evitar problemas e a curiosidade de saber quem era Kanitov. Alguém esclareceu: – É um general russo. – E o rumor correu a cidade: Os alunos do Liceu, o futuro da região e do país, caminhavam pelas ruas cidade a exigir a libertação de um general russo. Uma vergonha!

    O meritíssimo juiz, posto ao corrente do escândalo, abandonou o café que tomava numa esplanada da moda e foi ver quem eram os meliantes. Não podia acreditar no que os seus olhos viam. A encabeçar o grupo de delinquentes, punho em riste e a gritar a plenos pulmões, o seu Juventino. Por instantes, pensou em ir até ele e arrastá-lo dali pela orelha. Mostrar que sabia educar o filho. Mas a vergonha foi maior. Dirigiu-se a casa. O passo pesado. Cabisbaixo. Pediu à mulher que lhe mandasse buscar uns sais. Sentia-se prestes a desfalecer:  – Ai, Valentina! Que grande desgraça! O nosso Juventino, Valentina! O nosso Juventino! Ai, que me foi para o Liceu normal e vem de lá comunista!

    Ao final da tarde, mascote resgatada, o novo líder estudantil dirigiu-se a casa de peito cheio. Ia feliz. Ansioso por partilhar o feito com os pais, por lhes explicar como se tinha sentido forte pela primeira vez na vida.

    Foto: Inácio Ludgero

    Bateu à porta. Ninguém abriu. Voltou a bater. A velha ama veio à porta, mas não o deixou entrar. Lavada em lágrimas, entregou-lhe uma mala de viagem e um envelope: – Fuja, menino! Fuja, e que Deus o proteja!

    Sem perceber o que se estava a passar, Juventino agarrou a mala e abriu o envelope. Lá dentro, algum dinheiro, dois cordões de ouro, um par de brincos e uma mensagem: “Querido filho, o seu pai denunciou-o à polícia. Vêm prendê-lo! Vá para Paris e procure a ajuda do seu tio. Um beijo, da mãe que tanto o ama e morrerá com a dor de não o voltar a ver.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Olhão

    Olhão

    Olhão. Final de tarde. Estacionam perto da Marina e seguem a pé junto à Ria. Procuram o concerto anunciado para aquele jardim.

    Têm tempo. Saboreiam o ar fresco que vem do mar e tempera a brisa morna de um verão que principia. O amigo visita pela primeira vez o Algarve e  Leonor explica-lhe  a origem da designação “Olhão, cidade cubista”. Abrandam o passo. Ela aponta e pergunta:

     ⎼Vês os cubos? Vês como se sobrepõem? Olha ali, um maior na base, depois um mais pequeno e por fim um bem menor. Parecem legos.

    a yellow and white boat in a body of water

    Ele sorri e imagina mãos de crianças a descobrir formas e volumes. A experimentar equilíbrios. Prosseguem. Vão olhando e comentando os edifícios mais próximos. Cubos, mirantes, platibandas, açoteias… Tudo é para ele novidade e espanto.  Mas a atenção de ambos é subitamente desviada para outras formas. À sua direita. Parecem vir do mar. Formas completamente opostas à  geometria retilínea das casas. Uma ondulação de pedra que  prolonga em terra firme a da água agitada pelo vento. Os bancos de jardim e a calçada ondulantes a replicar-lhe o movimento. Uma réstia de sol a espalhar sobre a tarde as sombras trémulas das folhas das árvores. No chão, no rosto, nas costas e palmas das mãos. Tatuagens flutuantes.

    Ecoam então os primeiros acordes e vislumbram-se ao fundo os movimentos redondos da orquestra. A melodia enche o jardim. Enche a tarde. Sinuosa, sobe em direção às gaivotas suspensas numa dança hipnótica. Música e aves pairam embaladas pela brisa. Lânguidas. Tranquilas.

    Tudo parece encenado. Um bailado grandioso. Uma coreografia rigorosa. Atenta aos mínimos detalhes: orquestra, maestro,  público, aves, árvores, vento. Os aviões que surgem hesitantes entre o descer e o planar. Essas aves imensas. Aproximam-se ao ritmo da música.

    a flock of birds flying over a body of water

    Subitamente, um movimento firme, um braço em riste, uma nota  forte que atravessa o ar e os corpos. Duas andorinhas, em perfeita sintonia, rasgam o céu. Caças velozes num voo rasante em direção ao palco. Um pequeno cão a fazer acrobacias. Saltita. Ladra. Disputa o protagonismo com Tchaikovsky. A vida a  entrar pela música. A música a entrar pela vida.

    Leonor convida-o a ir com ela até ao lago dos patos. A música envolve-os ainda. Passam o Mercado do Peixe, depois o da Fruta. A alegria de Leonor depressa dá lugar à perplexidade. O lago já não existe. Mas os patos estão lá. Não de carne e osso, como antigamente. Apenas pequenas estátuas que evocam a sua existência. Uma instalação escultórica: o “Jardim dos Patinhos”.

    ⎼ Que alívio! Afinal não sou só eu que me lembro. Olha que até duvidei da minha memória. Vir até aqui era parte de um ritual. Ia-se ao mercado, depois comer um gelado à Gelvi e, claro, tínhamos de vir ver os patos. ⎼ explica ao amigo.

    Outros tempos. Outros patos. A estes não os embala a água. Embala-os o som dos violoncelos. Observa-os e consegue sentir o incómodo do metal que se enfiava debaixo das costelas quando se debruçava sobre a vedação. Sente as mãos da mãe a segurá-la pela cintura. A  elevá-la e a sustê-la enquanto ela se estica e tenta tocar as penas com as pontas dos dedos…

    a woman sitting on a chair next to a body of water

    O concerto termina.  Leonor procura escapar à nostalgia que a assalta. Agarra na mão do amigo e puxa-o até à proa simulada de um navio que entra pela Ria adentro. Ensaiam a famosa cena do Titanic. Trauteiam a música da Céline Dion e riem da figura que sabem estar a fazer. Registam o momento numa fotografia divertida e encetam o caminho de regresso. Os olhos de Leonor seguem as linhas traçadas pelo rasto de um barco que ruma à Culatra. A perfeição da linha reta desfeita pelo movimento ondulante das águas. Também é Olhão.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • O sal e o açúcar

    O sal e o açúcar

    Entro pela noite. Gato pardo, deslizo pela cidade. Contorno-a. Esgueiro-me pelas estradas que a cintam. A hora vazia convoca os sentidos. A passada forte. A respiração profunda. A noite perfumada e fresca. Oliveiras, pampilhos, amendoeiras, canaviais, salgados. Maresia.  O piso vermelho iluminado. Encontro a maré baixa e viro na rua em cotovelo. Um pequeno bando de flamingos alimenta-se preguiçosamente na água turva das salinas. Surpreende-me que se alimentem à noite. Nunca tinha visto. Detenho-me a observá-los. Fotografo-os. Dois cães com tamanho de gato e ladrar soprano surgem do nada. Ameaçam-me como podem. Atrás deles um homem de andar ligeiro. Invulgarmente magro. Calças arregaçadas até ao joelho, balde numa mão, cana de pesca na outra. Pés de lama. Assobia e grita:

    – Pipoca! Micas! Já para aqui. Eles não mordem. Boa noite.

    pink flamingo

    Devolvo o cumprimento. O homem pára  e pergunta se estou a fotografar as muralhas. Respondo que sim. Não tenho a certeza de haver motivo para continuar a conversa. Mas o homem dá alguns uns passos na minha direção. Pergunta-me se sou de cá.  Não sei porquê, digo-lhe que não.

    – A parte amarela não pertence à muralha. Foi um enxerto que ali puseram. Era para ser uma fábrica de cerveja, mas nem uma mini! – Diz por entre uma gargalhada desdentada. – É verdade, menina. Só tem o nome. Cerveja, nem uma gota. – E avisa-me de que não devia andar por ali sozinha àquela hora. Diz que à noite é muito deserto. Não costuma haver problemas, mas nunca se sabe. E sem me dar tempo para retorquir, pousa o balde. Encosta-lhe a cana. Puxa de um cigarro. Acende-o:

    – Antes de entrar em casa. A minha Maria não gosta que eu fume. Marafa-se toda.

    E, entre baforadas, explica-me que as casas no outro lado da estrada são quase todas da família dele. Já os avós ali viveram. Eram marnotos. Trabalharam toda a vida nas salinas. Fizeram ali “umas barraquinhas para ter onde enfiar a cabeça”.

    gray smoke digital wallpaper

    – Era no tempo da fome, menina. Muita miséria. A vida era custosa. A minha mãe tinha seis filhos para criar. Uma vagoneta de sal cortou-lhe dois dedos e no dia a seguir já lá andava.

    Diz-me que agora não é assim. Já não vivem do sal. As coisas estão melhores. Não são ricos. Ele tem de ir ao mar de vez em quando para dar uma ajuda. Mas é comerciante. Vende nas feiras. Dá para as sopas e deu para pôr a filha a estudar.

     – É enfermeira. Vive numas boas casas. – explica, num misto de orgulho e felicidade.

    Apaga o cigarro. No ar, um odor a fatias douradas sobrepõe-se ao da maresia.

    – Vou andando que já há jantar. As fatias da minha Maria e uma pelangana de café? É o “desimagina”. 

    Despedimo-nos. Vejo-o entrar numa casa de madeira, pobre, antiga, mas cuidada. À porta uma roulotte com imagens do Noddy, do Mickey e do Shrek. Letras garrafais com o nome da família. Logo abaixo: “Pipocas”,  “Algodão doce”.

    white ceramic bowl on pink textile

    Tiro mais algumas fotografias. Já não há flamingos. Capto a inútil fábrica da cerveja. Enquadro a lua. O quarto crescente hasteado sobre as muralhas remete para a sua origem.

    De dentro de casa, ouvem-se risos. Uma mulher vem à rua deitar comida aos cães.

    Penso nas rabanadas. Cheiram a afeto temperado com uma pitada de sal e muito açúcar. Penso nas vidas das pessoas que habitaram e habitam este lugar à margem da cidade. Em como trouxeram o sal e trazem agora o açúcar às vidas dos outros.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Espelho meu…

    Espelho meu…

    Mora cá em casa um espelho a que poderia chamar antigo, vintage, relíquia. Mas que, na verdade, é apenas um espelho velho, antiquado, com manchas cinzentas. Um espelho de casa de banho, ovalado, com um rebordo de vidro castanho. Em ambos os lados lâmpadas. A luz filtrada pelo mesmo vidro que desenha o contorno do objeto. Adquirido em finais dos anos 70, reflete o melhor design da época. Com luzes difusas a sofisticar o ambiente. A suavizar os contornos de quem nele se mirava. Uma lavadela de cara, um jeito ao cabelo e voilá, lindos. O nosso espelho nunca nos falhou. Nada tem a ver com os seus pares que,  entalados entre medonhos armários branco-enfermaria, se vingavam lançando-nos uma luz gélida e cruel. O  velho espelho foi sempre generoso. E, por isso, quando chegou a altura de mudar de casa, já a oxidação começava a fazer os seus estragos, não ficou para trás. Mudou-se também. Não se pode abandonar tamanha lealdade. Pendurámo-lo novamente. E ele, grato, retribuiu devolvendo-nos, como sempre, uma imagem suavizada de nós próprios. Até que as pessoas desapareceram. A luz apagou-se. A  casa ficou desabitada. E ele ali. À espera. Sem rostos para acarinhar. Os anos foram passando, passando…

    empty living room

    Um dia, porém, veio a decisão de regressar ao lar da adolescência. De o reorganizar. De o preparar para acolher uma nova geração. Obras aqui, móveis novos ali… e o espelho, no lugar de sempre. Retiro-o para pintar a parede, decidida a substituí-lo.  Mas volto a colocá-lo no seu lugar. ⎼ É só até comprarmos outro. ⎼, vou repetindo, quase certa de que não o vou fazer. Tem cada vez mais manchas e, ainda assim, disfarça as minhas.

    Adquiro um espelho novo. Moderno. Bonito. Adequado ao resto da  decoração. Mas, no momento de retirar o antigo, vacilo. Acredito que me devolve o olhar. Aproximo-me um pouco. Depois um pouco mais. Olho fixamente e não sei de quem são  as rugas que vejo. Os cabelos brancos. De quem é o sorriso complacente. Serão meus? Serão do meu pai? Da minha mãe? Terá o espelho guardado as nossas memórias? Afasto-me um pouco. Estico-me. Alongo o pescoço. Procuro a imagem de uma miúda escanzelada, loira, de cabelo escorrido. Em bicos de pés, como se estivesse de saltos altos. E o espelho não tarda em mostrá-la. A camisa de noite de algodão, comprada na Voga. Comprida, fundo branco, salpicado de pequenas flores em rosa claro,  rosa vivo e rosa velho. Três a três.  Uma mão atrás das costas a ajustá-la ao corpo. A outra a apanhar o cabelo. Sente-se crescida.  Acha-se muito bonita. Quando tiver 30 anos vou ser assim,  pensa.  A memória desliza-me os dedos pelo cabelo, pelas faces sardentas, pelo algodão macio da camisa. Quando tiver 30 anos…

    Decido não me desfazer do espelho. Quero preservar as imagens que guarda. Memórias  que já só nós dois partilhamos. Só ele se lembra da menina que fazia as tranças à sua frente. Da adolescente a experimentar a maquilhagem da mãe. A ensaiar com um lápis os movimentos para fumar com estilo. A praticar olhares sedutores, de aparelho nos dentes. A testar visuais para as saídas de sábado à noite. E só nós os dois sabemos que se um dia a saudade for insuportável, bastará sussurrar-lhe os nomes dos que partiram e ele, sempre leal,  trá-los-á em meu auxílio. Ficaremos os dois cá em casa. Cobertos pelos sinais da idade que alastram nos corpos de ambos. O pacto está feito: olharemos com benevolência as manchas um do outro. Espelho meu, espelho meu…

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • A que cheira Izmir?

    A que cheira Izmir?

    A nuvem que envolve a baía pinta a cidade de uma cor parda que não engana. Izmir cheira a poluição, a borracha queimada e a tubo de escape. Mas, no grande caos que acontece dentro desta cúpula, somos interpelados por outros odores que se nos colam à roupa, ao corpo, ao cabelo. Que nos entram pelas narinas e se fundem no nosso cérebro, criando uma paisagem única. Izmir cheira a tabaco, a dejetos de gato, a miséria e a dinheiro da emigração. Cheira a café acabado de moer, a kebab, a especiarias, a chá e a perfume. Mas cheira, sobretudo,  a orgulho, a amor à pátria e a hesitação entre a tradição e a mudança. Seis milhões de pessoas. Uma cidade. Muitas almas. Muitos corpos a viver concomitantemente no mesmo espaço e em universos distantes. Como se cada um destes seres fosse ele próprio apenas um aroma. Suficientemente forte para se impor e suficientemente difuso para que nada o possa impedir de fluir, de ser como é, independentemente do que o rodeia.  

    Izmir cheira a tradição islâmica. A incontáveis mesquitas. E, a apenas alguns metros destas, cheira a prostíbulos.  Abertos em pleno dia. Tocas escuras. Imundas. Música insinuante. Espelhos. Muitos espelhos. Couro negro e encarnado. Mulheres apáticas. Cigarro na mão. Perna cruzada. Vestidos ridiculamente pequenos. Olham em busca de clientes. Na rua, mulheres de hijab recolhem plástico e cartão. Formigas que arrastam atrás de si sacos gigantescos que são simultaneamente coletores, berço, creche. Corpos mirrados que arrastam a vida. Vergados. Olhos de fome.

    two mosque minarets under calm sky

    Os vencidos da cidade. As prostitutas. Os cães abandonados. Os mendigos. Os que vendem roupa cheia de nódoas, puída, mas briosamente passada a ferro. Os que a compram. Gente que escorre dos bairros miseráveis que se erguem nas colinas em torno do centro.

    Nas  avenidas, centenas de lojas de noivas. Vários pisos. Modelos de contos de fadas. À porta, uma mesa de plástico, três homens. Chá e amostras de tecido. Faz-se negócio. Ao fundo, a transação é outra.  “Night clubs”, onde noivas felizes de outrora vendem um sonho perdido. A esperança, a crença numa vida feliz a dois, tão valorizada, tão presente nas montras sumptuosas. Imagens radiantes de mulheres princesas. Corpos dormentes de mulheres tristes.

    Desloco-me para os arredores. Ao passar por um centro comercial, o motorista que me conduz enumera os nomes das lojas. Sem surpresa, as mesmas que encontramos em qualquer cidade europeia.  Os olhos dele brilham. A voz, porém, muda:

    – Muito barato para vocês. A Turquia é um paraíso para os europeus. É um inferno para os turcos.

    É um homem simpático, de meia-idade. Tem boa aparência. Se tivesse de adivinhar, diria que vive bem. Mas a conversa continua e explica-me exatamente o que é o inferno de se ser turco na Turquia.  A conversa fará eco na minha mente durante o resto da viagem. Faz ainda. Percebo agora a  abundância de malas de viagem de contrafação que se vendem por todo o lado: nas boutiques, nos supermercados de esquina, nos bazares, nas sapatarias, nas farmácias. Percebo o enorme desejo de partir. A necessidade de ter as malas sempre à mão.  De não perder a oportunidade.

    assorted-color spices

    Trânsito louco. Travagens ruidosas. Carros a cair aos pedaços. Viaturas de luxo. Motas. Carrinhas modernas, em que bancos de jardim garantem que cabe sempre mais um. Jovens de minissaia, tatuadas, cabelos coloridos, caminham com amigas que mostram apenas o rosto. Anúncios a clínicas. Estrangeiros e emigrantes com botox até à alma. Cabeças rapadas a exibir implantes capilares recentes.

    E, no meio disto tudo, uma gente prestável. Afável. Que nos momentos mais inesperados saca de um frasco de perfume e se borrifa até onde os braços chegam. Enquanto nos atendem na receção de um hotel ou ao balcão de uma loja. Enquanto nos abrem a porta do táxi. A meio de uma conversa na rua. Os frascos aparecem e  desaparecem num passe de mágica. Perfumam o corpo, a casa, o carro,  os escritórios, as esplanadas… Sim, Izmir cheira a sobrevivência. Mas também cheira a perfume. A perfume, a gente boa… e a gatos.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Eu só vim ver a Gloria Gaynor

    Eu só vim ver a Gloria Gaynor

    Ontem, em conversa com a filha de uma amiga, perguntei-lhe se já sabe o que quer ser quando for grande. Respondeu-me decidida que quer ser famosa. Voltei à questão: ⎼ Mas famosa como? Queres ser atriz? Cantora? Pianista? ⎼ Fiquei a saber que não tem preferência. Quer aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Não quer ter de trabalhar. Pareceu-me um excelente plano. Aos oito anos já percebeu que trabalhar é uma maçada sem glamour.

    No regresso a casa, a conversa trouxe-me à memória um acontecimento do verão passado. Era agosto e, junto à estrada, um cartaz gigante anunciava: “Gloria Gaynor, em Albufeira”. Não prestei muita atenção. Assumi que se tratava de mais um “tributo a”, designação recentemente encontrada para as bandas de covers. Confesso que a minha primeira experiência com estes supostos tributos foi também a única. Como diria o meu avô, que era um homem muito diplomático: ⎼ Está muito bem, sim senhora, mas pra mim tem avonde!

    Uns dias mais tarde, chamaram-me a atenção para o facto de ser mesmo um concerto da Gloria Gaynor. Custei a acreditar. Mas fiquei a saber que, aos 79 anos, Gaynor continuava a dar concertos um pouco por todo o mundo. 

    Entusiasmei-me. Não é todos os dias que vemos em carne e osso alguém cujas canções nos acompanham desde que nos lembramos de ser gente. A caminho da Praia do Pescadores, as ruas eram ribeiras de gente que escorria feliz em direção à diva. Lá em baixo, milhares de turistas esperavam pacientemente. Cantava-se. Conferiam-se conhecimentos ⎼  Lembras-te desta ….? E daquela …? – Para a maioria seria a primeira e a  última oportunidade de ver a grande estrela da Disco ao vivo.

    Por fim, os primeiros acordes. Gloria Gaynor subiu ao palco. O vulto branco soltou uma voz negra. Linda. Poderosa. Encheu a noite. Ficou bem clara a razão pela qual é uma superestrela. Mesmo os mais jovens estavam rendidos e acompanhavam. Reconheciam as letras de canções que foram sucessos ainda eu não era nascida. Por vezes, não na voz de Gaynor, mas em versões: – Esta é da Beyoncé! – … Enfim. São miúdos. Estão perdoados.

    Terminado o espetáculo, dei uma volta pela zona dos bares. Circulava-se como se podia naquele mar de gente em que não se ouvia uma palavra em português. Avancei até ficar presa entre um carro e uma jovem que descia a rua, trazida por uma corrente contrária à que me empurrava. Olhámos uma para a outra. Defeito de profissão, assumi de imediato que se tratava de uma aluna ou ex-aluna.  Olhámos uns segundos uma para outra, sem decidir se sorríamos ou não, até que a corrente voltou a empurrar-nos. Dois passos mais adiante, lembrei-me de quem era. Ainda olhei para trás. Seguia tranquilamente, de mão dada com um rapaz. Comentei com os meus acompanhantes. Também a tinham visto e ficado com a sensação de a conhecerem de algum lado. Percebiam agora quem era. Na verdade, ela não teria passado despercebida em qualquer outra rua de Portugal. No nosso país, esta miúda gira e pequenina enche estádios. Noutra rua qualquer, os fãs atropelar-se-iam por um autógrafo e uma selfie com a sua heroína. Não aqui. Não em Albufeira.

    Penso no que é afinal ser famoso. No contraste entre ser-se uma estrela mundial e uma estrela portuguesa. Recordo como há alguns anos, no auge da sua carreira, um grande comediante nacional dizia que para acalmar o ego bastava ir a Aiamonte. Passada a fronteira,  ninguém fazia a mínima ideia de quem ele era.  

    Lembrando o semblante da cantora, acredito ter visto no olhar dela o desejo de não ser reconhecida. Imagino-a aos 8 anos a sonhar aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Penso no contraste entre esse desejo de fama e uma expressão facial cansada que me diz “Por favor não me reconheças. Por favor deixa-me estar. Eu só vim ver a Gloria Gaynor.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Ah, os aviões!

    Ah, os aviões!

    Ah, os aviões! Dinossauros gigantes a galgar a pista. Um rugido grave que se aproxima. Suave, primeiro. Forte. Novamente suave, até desaparecer. Patas engolidas pelo ventre. Foi. E já no céu surgem ao longe os olhos de fogo dos que em poucos segundos tomarão o seu lugar. Pousarão bruscos e pesados. Tremerá o chão. Mas aterrar acalma-os. Mansos e dóceis, rosnam baixinho enquanto procuram um sítio seguro para deixarem sair os minúsculos seres que transportam.

    Luísa inveja as estátuas que, no centro da rotunda, olham fixamente o céu sem que lhes doa a cervical. As luzes de aproximação. O nariz apontado às nuvens.  O céu riscado a giz. Adivinhar origens e destinos. Na sua mente, silenciosos, um “Boa viagem!” ou um “Bem-vindos!”.

    blue and red airplane on sky

    O aeroporto e os aviões sempre presentes na vida dos farenses. Não admira, pois, que à pergunta: “O que queres ser quando fores grande?”, ela tenha respondido desde muito cedo “⎼ Hospedeira.”. Consequência das muitas tardes passadas junto à rede do aeroporto a ver desembarcar as tripulações. As hospedeiras, assim se chamavam nesse tempo, fascinavam-na. Fardas elegantes, mulheres esbeltas, impecavelmente penteadas e maquilhadas. Exalavam glamour, classe, sucesso e uma liberdade pela qual sempre tinha ansiado. O que poderia ser mais libertador do que voar? E, entenda-se que, na sua lógica de criança, não era preciso ter aquele conjunto de características para ser hospedeira. Era ser hospedeira que garantia que se tornaria igual a elas. Perfeita!

    Tudo isto seria normal, da mesma forma que o foi mudar de ideias já na universidade. O que é menos normal é que este seu desejo coabitasse com o  pavor de voar. Viajar de avião é uma decisão tomada apenas quando não existem alternativas viáveis. Cada voo é um misto de felicidade por ir, por saber que chegará rapidamente ao destino, e o terror de sentir que não tem chão.

    Afastada uma carreira que se adivinhava auspiciosa, manteve-se porém a necessidade de voar de vez em quando.

    people sitting in airplane

    Na última viagem que fez a Roma, ao embarcar no regresso a casa, deparou-se com um piloto imberbe. Calafrios instantâneos. Suores. Punhos cerrados. Dor de estômago. Enquanto procurava o seu lugar, repetia para si mesma que quanto mais jovem o piloto menor a probabilidade de ter um AVC ou um enfarte. Que melhores eram os reflexos e a visão… Acalmou um pouco. Sentou-se, recorrendo a posições de ioga cuja finalidade finalmente percebeu. E, surgiram então os assistentes de bordo com os coletes salva-vidas e as máscaras de oxigénio a recordar-lhe que poderiam ter de aterrar no mar. Tentou não ouvir. Ninguém prepara os passageiros para o caso de um comboio descarrilar, pensou. Qual era a probabilidade? Não queria ouvir.  Abriu o livro que trazia consigo e começou a ler. 

    Uma das assistentes pegou no microfone e apresentou-se. Tinha o nome da sua falecida mãe, Lucrécia. Raríssimo. Ativou o modo supersticioso e assumiu tratar-se de um sinal. Só podia querer dizer que estava protegida.

     –Vai correr tudo bem. – murmurou.  

    O avião descolou e Luísa tranquila como nunca.

    Pouco tempo depois, a máquina foi envolvida por um temporal pavoroso. Abanava por todos os lados. O medo dos passageiros era audível.  Luísa manteve o controlo durante algum tempo. Porém, passados poucos minutos, começou a desconfiar de que o facto de a assistente ter o nome da sua mãe podia não ser sinal de proteção, mas sim de que me iria juntar a ela não tardava mesmo nada. Ativou, então,  o modo religioso. E vá de rezar até o avião pousar. Se foi das orações, das figas ou de uma mãozinha do Além, não sabia, mas tendia a desconfiar que o milagre pudesse ter sido obra do miúdo loiro da cabine…

    people sitting on chair inside building

    Para chegar a casa, havia, no entanto, que apanhar um segundo voo. Uma passagem pelos lavabos, permitiu-lhe refrescar-se, salpicando o rosto repetidamente até se sentir mais calma. Estava aterrorizada com  a ideia de voltar a entrar num avião, mas não havia alternativa. À chamada, caminhou com passo lento e coração acelerado em direção à sala de embarque. Olhou rapidamente em redor para ver quem iria embarcar consigo. Muitas crianças era bom auspício. Nunca se ouviu falar de cair um avião cheio de crianças. Gente feliz e com ar saudável. Excelente prenúncio. Não tinham ar de quem ia morrer naquele dia. Uma cara ou outra com ar mais mortiço provocavam-lhe maus pensamentos. Passava adiante. Ao fundo, a um canto da sala, um homem captou a sua atenção. Meio enrolado na cadeira, debruçado sobre uma mochila preta, ar de poucos amigos, uma barba farfalhuda. Passou-o de imediato pelo seu detetor de riscos aéreos. E foram necessários alguns segundos até que se apercebesse de que se tratava afinal do seu pobre marido, ainda enjoado, e com muito pouca vontade de embarcar numa nova centrifugação.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • 25 de abril chega devagarinho

    25 de abril chega devagarinho

    Ele corre pela pista fora. Pequenino. Muito magro. Moreno. Cabelo levemente ondulado.  Olhos e lábios inchados. Brilhantes como os de quem chorou longas horas.

    Veste uns calções pretos e brancos de turco. No peitilho, um urso conduz um carro vermelho. E ele corre. Veloz. Os braços acompanham o ritmo. Agarro-o. Agarramo-lo os três. Um sopro de felicidade envolve o reencontro.  

    É esta a imagem que retenho do regresso a Portugal. Da primeira vez que vi o meu irmão.  Uma falsa memória, porém.  Hoje sei que não foi assim. E sei-o simplesmente porque não pode ter sido. Os factos contrariam a curta-metragem que a minha mente gravou. E, contudo, é tão viva, tão clara quanto a dos meus dedos a saltitar sobre o teclado neste momento. Talvez por isso, nunca me ocorreu perguntar como foi a chegada. Assumi sempre que sabia. Só recentemente me apercebi das incongruências e  questionei a veracidade das minhas memórias.

    man holding handbag

    Uma criança a correr solta pela pista de um aeroporto. A família a aguardá-la junto ao avião.  O suficiente para questionar este episódio. Não o fiz. Nem sequer desconfiei da perspetiva. Vejo o pequenito lá ao fundo, de frente para nós. Apesar da distância que nos separa, um grande plano permite-me observá-lo em pormenor. Começa a correr e, nesse momento, acompanho o trajeto colocando-me ao seu lado. O vento afasta-lhe o cabelo do rosto e vejo-o de perfil. O meu olhar desliza, foca-o de perto. É uma câmara sobre carris. Sempre ao seu lado. E ele corre célere, ansioso, em direção a três desconhecidos.

    Três. Insisto neste número nem sei bem porquê. O pai que tinha então bigode e segurava a minha mão esquerda enquanto descíamos a escada do avião. O pai que correu para abraçar o filho que tinha visto uma única vez e o levantou no ar à nossa frente, não viajou connosco. E, todavia, vejo-o nitidamente. Um sorriso  inconfundível. Mas não estava lá. Regressámos sós,  a mãe e eu. A desmobilização dos soldados ocorreria meses mais tarde.  A reunião da pequena família, mais uma vez adiada. 25 de abril. Um dia extraordinário. Mas um dia que foram dias, anos, décadas. Que não aconteceu em simultâneo para todos e ainda está por acontecer para muitos.

    Nem mesmo a felicidade que me lembro de sentir enquanto vi o meu irmão pode ser real. Não o conhecia. Não conhecia ninguém. Tinha acabado de ser arrancada ao lugar das minhas primeiras memórias. Afastada da minha única realidade: do pai, dos amigos, da casa, dos animais de estimação, das cores, do cheiro a caju e mangas maduras.  

    A decisão de nos juntarmos ao pai em África revelar-se-ia trágica. A separação deixa marcas indeléveis. A partida nunca é verdadeiramente compreendida ou aceite por quem fica. Corrói a alma o sentimento de se ter sido deixado para trás, de se ter sido privado de uma vida que existe apenas para os que partiram. Ele nunca se encaixará no nosso pequeno mundo. Estará ausente das nossas histórias, das nossas aventuras, das nossas canções. Nós. Um nós que não desejámos. Que se supôs transitório e se fez perene. Ele nunca pertencerá.  Crescerá na incerteza de nos amar ou odiar profundamente.  Insegurança, carência, agressividade, dor, desespero. Um ressentimento que, passados 50 anos, determina ainda as nossas vidas. Uma ferida reaberta em cada almoço de domingo, em cada jantar de Natal, em cada aniversário, minando-os até à sua extinção. 

    white airplane parked during daytime

    A ilusão de que aquele dia poderia devolver-nos a uma ordem primordial idealizada esboroou-se lenta e impiedosamente.

     A verdade é que o meu irmão não correu para nós. Nunca correu para nós. Nunca voltámos a ser família. Cinco décadas decorridas e os nossos mundos ainda não se encontraram.

    O  25 de abril  acontece  aos poucos. Vai chegando  e recuando, e chegando mais um pouco. Chegará, certamente. Mas nesse dia já cá não estarão os que conhecem o significado de não ser abril. 

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • E o mato, fica longe?

    E o mato, fica longe?

    Nascida numa família abastada de Castelo de Paiva, Eulália, a quem carinhosamente chamavam Menina Lalita, tinha das janelas de casa a vista para os quadros que compunham o seu mundo. O mundo da família. O jardim de cameleiras na frente da edifício. Dali se ia à vila. O mundo dos trabalhadores da casa, nas traseiras. Uma colmeia de sorrisos tristes. O mundo dos trabalhadores rurais. Estendido pelos montes a perder de vista. O mundo dos que iam e vinham. Estradas, caminhos, carreiros. Os mineiros de Pejão. Os cantoneiros de onde quer que a estrada tivesse parado. Saíam ao domingo  à tarde e regressavam à sexta-feira à noite. Lalita mal os conseguia distinguir, de tal modo vinham camuflados pelo pó das minas e pelo negro do alcatrão que espalhavam de sol a sol. Daquela janela, via também os caixeiros viajantes que abasteciam as lojas da vila. E via as mulheres e meninas a equilibrar pesados fardos de lenha à cabeça. De vez em quando, a motorizada do Sr. Padre acelerava  por ali  fora para ir acudir a uma alma aflita. O carro do pai acudia ao corpo.

    O Dr. Brandão, que os mais velhos ainda tratavam por doutorzinho, tinha herdado do avô e do pai a quinta, o consultório, os empregados e o respeito dos habitantes da vila. Só dali saíra para estudar em Coimbra. Pai de três filhas e um filho, rapidamente traçou para cada um deles um destino em conformidade com a tradição da família. O filho estudaria medicina e assumiria o consultório. As duas filhas mais velhas casariam com rapazes de boas famílias. A mais nova iria para freira. O ideal seria ter um filho padre, mas Deus só lhe tinha dado um varão.

    Foi neste mundo que Lalita cresceu. A mãe  ensinou  às meninas as primeiras letras, a tocar piano e a bordar. O Ruizito andava no colégio. Era rapaz.  As irmãs, Antónia e Francisca, casaram assim que a idade o permitiu. Já Lalita não mostrava qualquer vontade de desposar Cristo. Preferia a casa. Tímida. Cada vez mais solitária. Empalidecia a cada dia. Dava grandes preocupações aos pais.

    ⎼ Se a metes no convento, ainda morre por lá. ⎼ dizia a mãe.

     E o pai nem se atrevia a falar no assunto.  Nem queria pensar. Não bastava não ter uma religiosa a zelar pela sua alma, ainda tinha de ficar com uma filha solteirona.

    O Ruizinho, depois de sete anos em Coimbra que lhe pareceram sete dias, regressou. O diploma é que ficou por lá.

    ⎼ Sabe lá o paizinho como aquilo está. Uma pessoa quer estudar e não consegue. Não é como no seu tempo.

    A casa passou a ter outro fulgor. Amigos não lhe faltavam. Até porque o Ruizinho não trouxe a licenciatura, mas trouxe um gira-discos. E as janelas já não serviam só para deixar entrar o  mundo. Agora Lalita passeava-se à volta da casa para ouvir as músicas que escorriam lá de dentro e inundavam o jardim.  Ouvia cantar em línguas e ritmos desconhecidos. Mas só quando o pai não estava, claro está. Não se conformava, o pobre homem.

    Entre os novos visitantes da quinta apareceu um tal de José António. O filho do Brasileiro, um comerciante da vila que tinha feito fortuna no Brasil e regressado há pouco. A fartura do pai não se refletia no corpo do filho. Baixo, demasiado magro, pálido. Tinha sido ele a razão do regresso. O Brasileiro buscava os bons ares e águas da terra natal para ver se o rapaz arrebitava.

    photo of black turntable

    Com um olhar doce e os modos de um príncipe, José António rapidamente cativou o coração de Lalita. Não era bem o que o Dr. tinha imaginado. Mas entre um casamento com quem pudesse cuidar dela e ficar para tia, não hesitou. O casamento fez-se sem a presença de Ruizinho, entretanto chamado para a guerra. Moçambique. Os dias da família passavam entre a ânsia e o receio de receber notícias daquele fim de mundo. Lalita tinha o conforto de o seu José António não ter saúde para ir à guerra.  Preocupava-a tanto o irmão. Até que um dia chegou uma carta.

    – É da tropa! – anunciou a empregada.

    A mãe desmaiou antes mesmo de a receber. Lalita correu a telefonar ao pai a pedir que viesse. José António agarrou o envelope. Abriu-o lentamente. Leu.

    – É para mim. – disse  – Vou para a Guiné.

    E a família repetiu o caminho até Lisboa, a despedida, o embarque. Um último beijo, um adeus ao longe  já sem a certeza de a quem estavam a acenar.

    O vazio da espera entre cartas. A mensagem de Natal na RTP. Não mais de três segundos,  mas valiam por uma vida inteira.

    O Ruizinho voltou. Mas já não ligava o gira-discos. O seu mundo era agora o fundo da garrafa de aguardente. Acendia um cigarro com o outro e tinha umas mudanças de humor que ninguém compreendia. Ia pela vila, bebendo um copito aqui e outro ali. Arranjando desacatos.

    –É para apontar. – pedia.

    E os comerciantes envergonhados por cobrar ao Doutorzinho que não merecia tal sorte. E o Dr. envergonhado, a mandar um homem de confiança à procura das dívidas do filho.

    Na Guiné, José António cumpriu o seu tempo de serviço na cozinha. Não tinha corpo para combater. E o pai, mesmo ao longe,  garantia que não lhe faltava lá nada. Se alguém precisava de um relógio, de uns sapatos civis ou de uma qualquer bugiganga, era só encomendar ao Silva. De tal forma a  vida lhe corria bem por lá que não quis regressar. Gostava do clima e das frutas tropicais que lhe recordavam o Brasil da infância. Gostava das pessoas. Gostava da liberdade. Percebeu que Paiva nunca seria o lugar dele. Mas sentia falta de Lalita. Escreveu-lhe a contar que tinha comprado uma casa e estava a montar uma loja. Já todos se tinham habituado a recorrer aos seus préstimos quando precisavam do que quer que fosse. Falou-lhe de um país maravilhoso. De gente boa. Explicou-lhe que a guerra era longe dali. No mato. Muito, muito longe. Em Mansoa não havia qualquer perigo. Para ele  ser feliz só lá lhe faltava ela.

    assorted armchair on wall near door

    De todos os homens que partiram para o Ultramar, José António seria o último que os paivenses imaginariam singrar por lá.

    – Fez-se homem! ­ – exclamavam com orgulho no rapaz da terra, de quem antes diziam ser um fraca figura que nem para comer servia quanto mais para trabalhar.

    E, perante a incredulidade de todos, Lalita fez prontamente as malas e preparou-se para partir.  O seu lugar era ao lado do marido, dizia. Foi num estado de atordoamento que deixou o seu mundo e rumou ao aeroporto de Lisboa. Viu pela primeira vez um avião. Entrou aterrorizada no bicho que a devorou e a depositou num lugar onde os montes não eram verdes. Pensou que teria andado por ali incêndio. Apanhou o voo de ligação do Sal para Bissau. Fez a viagem a pensar como sobreviveriam os donos daquelas quintas e pinhais queimados.

    Chegou finalmente ao destino. A terra muito vermelha lembrou-lhe que ali havia uma guerra. Teve medo. Muito medo. E se o José António não a viesse buscar? E se lhe tivesse acontecido alguma coisa desde a última carta? Mas veio. Quase não o reconhecia. Mais cheio, com um bigode farfalhudo, cigarro na mão. O olhar doce e o sorriso franco com que a conquistou. Reparou que usava calções. Riu-se. Nunca tinha imaginado vê-lo assim.

    A viagem entre a capital e Mansoa fez-se num carro emprestado por um amigo. Lalita contou a José António sobre o incêndio na Ilha do Sal. Conhecendo-lhe  a bondade e inocência e receando que ela ficasse a remoer sobre  como sobreviviam as pessoas numa terra tão pobre, explicou-lhe que no outro lado da encosta a ilha era muito verde. Que era ali que vivia a maior parte da população e que o que viu ardido era apenas uma pequena área.

    – África é muito grande e muito rica, meu amor!

    ocean waves under white sky during daytime

    Lalita estranhou a paisagem. Não era assim que imaginava África. Perguntou-lhe pelas girafas, pelos elefantes, pelos leões… e ele, sempre pronto a esclarecê-la, explicou que estavam mais para o interior.

    – Lá no mato.

    -E a guerra?

    -Também. Lá no mato.

    – E o mato é longe daqui?

    – Ah, sim. Muito longe. Às vezes ouve-se um bocadinho quando vento está de lá para cá. Mas é muito longe.

    Foi a primeira vez que Lalita andou num descapotável. E também a primeira em que sentiu que poderia vir a ter de destapar os ombros em público. Um calor infernal.

    – Chegámos!

    – Chegámos?

    A vila não era de todo o que esperava. Três ruas. O marido ia relatando o que via: o clube, os correios, a igreja, o mercado, a escola, lá adiante o restaurante e virando ali o quartel. A casa, a loja. Estava dececionada, mas não queria que ele percebesse. Decidiu que seria feliz ali.

    O Silva era agora o dono do maior estabelecimento comercial da terra. A pequena loja anexa à casa estava cheia de mercadoria até ao teto e fazia sucesso. Colchas pesadas a imitar pele de tigre,  tapetes com pavões, garrafas de whisky . Predominavam os motivos orientais: nas toalhas de mesa e de banho, pijamas bordados, serviços de café e chá. Loiça muito fina. Dragões alados em relevo.  Os soldados acumulavam tudo isto como podiam. Debaixo das camas. Dentro das gavetas das secretárias. E sonhavam com as férias.

    Lalita garantia que nas suas encomendas o marido não se esquecia de mandar vir tela e linhas para os seus bordados.  Bordava camélias, rosas, paisagens com montanhas verdejantes. Bordava o mundo em que vivia no interior da casa de que pouco saiu nos anos que ali passou. Nunca aprendeu crioulo. Não tinha jeito para línguas, dizia. O marido fazia a ligação aos empregados e acompanhava-a nas raras saídas. Iam ao cinema. Aos domingos, a missa foi substituída por um almoço no restaurante do Simões e um gelado em Bissau. Lalita era feliz assim.

    green plant on soil

    Mas quando o sol se punha, ouvia tiros. Não lhe pareciam assim tão longe como José António lhe dito que o mato ficava.

    – Tens razão. – confirmou  – Estes tiros são aqui perto. Os homens, à noite, vão aos coelhos.

    E ela cheia de pena de o seu José António não se ajeitar com a espingarda. Tinha saudades do coelho em vinho verde tinto que a cozinheira fazia quando o paizinho ia à caça.

    ­ – Não lhes podes comprar um? – pedia com o ar de criança que o deixava sempre desarmado.

    – Podia, sim, Lalita, mas os homens comem tão mal no quartel que até tenho dó.

    – Coitados. Deixa-os estar. – dizia conformada.

    E o ar da noite no rosto. O cheiro do coelho bravo estufado,  do arroz no forno e da regueifa quente a entrar pelas narinas. As mangueiras e os cajueiros a libertarem o odor de  pinheiros, ulmeiros e castanheiros.  Os mineiros e cantoneiros enfarruscados a entrar pelo mato adentro.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Sem chão

    Sem chão

    Nunca conversaram muito. Nunca foram amigas. Também nunca foram outra coisa qualquer. As vidas das duas mulheres cruzaram-se. Trabalham há muito na mesma empresa. Partilham alguns espaços e momentos. Muitos, na verdade. Mas nunca convergiram. Nunca aconteceu. E, no entanto, hoje aqui estão. Sentadas lado a lado, de mãos dadas.

    Encontrou-a sentada no carro. Debruçada sobre o volante. Hesitou, mas decidiu voltar atrás. E se desmaiou? Pode estar a sentir-se mal. A precisar de ajuda. Ana percebe rapidamente que a colega não perdeu os sentidos. As convulsões do corpo denunciam o choro. Fica sem saber se deve bater no vidro ou não. Não tem intimidade suficiente para se intrometer. Por outro lado, receia que esteja com dores. Que seja necessário chamar uma ambulância.

    a person driving a car on a road with mountains in the background

    Avança. Se não gostar, paciência, pensa. Mande-me embora. Três toques com os nós dos dedos. Aguarda um pouco e repete. Os olhos vermelhos de Sara, inchados e sem expressão surgem lentamente por entre as dobras da manga bege suja de maquilhagem. Volta a enterrar rosto no couro do volante e Ana pergunta-se se estará a ser inconveniente. Afasta-se.  Dois passos dados, ouve o seu nome:

    ⎼ Entras um bocadinho?

    Entra, obviamente. Não sabe porquê, mas não se surpreende com o pedido. Senta-se no lugar do passageiro. Aguarda que Sara se recomponha. Pousa-lhe uma mão no ombro. Com cautela. Com a hesitação de quem não tem o hábito de o fazer. Sara liberta um grito rouco. Chora compulsivamente durante longos minutos até o cansaço a impedir de continuar.

    É então que limpa o rosto. Assoa-se ruidosamente, uma e outra vez. E Ana, que até então sabia apenas como se chamava, o que fazia e que tinha três filhos, torna-se a sua maior confidente. Sara diz-lhe que o marido saiu de casa há dois dias. Estiveram juntos quase 20 anos. Ainda não encontrou a melhor forma de contar às crianças.

     – Achas que tens mesmo de fazer o já? Não te estarás a precipitar? Não há possibilidade de se reconciliarem? –  pergunta Ana.

    closeup photo of black analog speedometer

    Sara garante que não. Explica que quando a informou de que iria sair de casa, o João já tinha um apartamento alugado e mobilado há meses sem que ela soubesse. Duas ruas abaixo da casa onde vivem. Voltam a correr-lhe as lágrimas quando  diz que nunca se tinha apercebido de nada. Para ela, tinham o casamento perfeito. Não consegue entender, logo não consegue explicar. Sente-se perdida. Foram namorados de liceu. Escolheram a mesma faculdade para poderem estar juntos. Casaram. Tiveram filhos lindos. Construíram a casa com que sonharam. Fizeram viagens de sonho. Até o cão é perfeito. São, ou melhor, eram a imagem da felicidade. Pelo menos, era assim que ela via a sua vida. E, por entre muitos desabafos, explica que, por incrível que pareça, o que mais a magoou não foi o facto de ele ir embora, nem sequer as palavras. Ele foi doce. Educadíssimo, como sempre. Falou como um amigo que a tenta confortar. Disse-lhe que tinha de ir. Que ela tinha de ter paciência. Sara perguntou-lhe porquê. Ele baixou o rosto. Ela explicou-lhe que tinha de compreender para se poder conformar com a ideia. Além disso, como queria saber como iria ele explicar aos filhos o que se passava. Perguntou-lhe o que pretendia dizer-lhes. Como e quando o iria fazer. Não obteve resposta. Nem uma palavra. Nem um olhar.  A cabeça baixa. Não por pudor, acredita ela. Mas porque não pensou na necessidade de dar uma resposta. Porque assumiu que “ter de ir” era justificação suficiente. Voltou costas. Cabisbaixo. Desapareceu. O João não voltou a dar notícias e a única certeza que ela tem agora é a de que terá de ser ela a desferir esse golpe nos filhos. Que ficará sozinha a olhar a dor no fundo dos seus olhos incrédulos.

    As palavras e os atos já não a magoam, diz. Desiludem. O que a magoa é o baixar os olhos, o gesto que a deixa no vazio e que lhe traz de volta uma memória terrível. Conta que a sua mãe faleceu recentemente. Cancro. Ana lamenta. Cruzam-se quase todos os dias e não se apercebeu de nada.  Sara recorda o médico da mãe, a bata azul, o ar exausto, um cubículo improvisado com vista para o estádio.

    ⎼ A equipa fez tudo o que podia. –  explicou-lhe então.

    ⎼ Nada correu como esperado.

    a dark tunnel with a black background

     E ela de olhos fixos no relvado. A imaginar que não estava ali. Se não estivesse, não podia acontecer.

    ⎼ A ciência tem as suas limitações. –  ouviu.

    Não podia ser. Incrédula, perguntou:

    ⎼ E agora doutor? O que vão fazer? O que digo ao meu pai?

    Ele baixou os olhos. Encolheu os ombros. Ela formulou e reformulou a questão. E o silêncio cada vez mais pesado, mais doloroso. Desesperante. Olhos no relvado. O sol a encandeá-la através do vidro e a tornar tudo irreal. Do regresso a casa, recorda os vultos, o medo de pousar o pé a cada passo. Sem chão. O abismo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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