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  • A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja

    A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja


    Introdução

    Quem, naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 olhasse atentamente para os quiosques dos jornais poderia ver, ao lado dos respeitáveis O Século e O Diário de Notícias, uma curiosa caricatura a toda a primeira página no jornal humorístico A Paródia. A caricatura intitulava-se Os Direitos da Cerveja e era da autoria de um jovem desenhador chamado Celso Hermínio.

    E quem, naquele dia de fim de verão de 1902, comprasse esse jornal humorístico mais famoso da história do nosso jornalismo, decerto sorriria com a sátira que nesse cartoon se manifestava. Depois, talvez metesse o jornal debaixo do braço ou o fosse folheando ao caminhar para o Chiado onde iria tomar um café, uma orchata ou um capilé na Brazileira, ao mesmo tempo que olharia de soslaio para as elegantes que pululavam a rua Garrett com saquinhos de compras da loja Paris em Lisboa. Contudo, de um pormenor é que o nosso leitor não desconfiaria: é que aquele desenho era a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja. E assim o nosso eventual leitor iria bebericando o seu cafezinho e comentando as novidades, desconhecendo que teria na sua posse um documento histórico.

    Ora é a história dessa caricatura e do seu contexto que iremos aqui esboçar…

    Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905)

    O jornal

    Comecemos por falar do jornal no qual a célebre caricatura ocupava toda a primeira página. Diga-se que não se trata de um jornal qualquer. Estamos perante o mais célebre jornal humorístico da história multissecular da imprensa portuguesa e que ainda hoje é amiúde estudado nos nossos cursos superiores de comunicação social.

    O jornal humorístico A Paródia começou a ser publicado em 1900. Era o quarto jornal satírico de grande referência publicado entre nós pelo célebre artista, escritor, jornalista e desenhador Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), cujo retrato aqui mostramos.

    Depois de A Lanterna Mágica (1875), o António Maria (1879-1898) e Os Pontos dos is (1885-1891), A Paródia era um semanário de referência que, sob a direção de Bordalo, fazia as delícias dos burgueses e o temor dos políticos que se viam retratados nas caricaturas sem grande piedade. O periódico inspirava-se nos jornais satíricos que estavam em voga por essa Europa fora, como o inglês Punch ou o francês Charivari. Todavia, deve-se dizer que em nada ficava atrás daqueles dois famosos jornais. O nosso A Paródia era tão bom como os melhores de lá de fora… E só para se ter uma ideia da sua qualidade e atualidade basta passar os olhos pela primeira página do primeiro número (17 de janeiro de 1900), no qual a política era representada por… uma grande porca.

    O jornal A Paródia iria ser descontinuado em 1907. Contudo entrara já em lenta agonia após a morte do seu mentor e fundador, em 1905. Nos anos de 1906 e 1907 o periódico seria dirigido por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, filho de Rafael Bordalo Pinheiro. Deve ser referido que o jornal A Paródia está disponível online no site da hemeroteca de Lisboa que em baixo indicamos.

    Pelas páginas de A Paródia passaram vários caricaturistas portugueses. Desde logo, claro, o incontornável Rafael Bordalo Pinheiro. Depois, o seu próprio filho, o já referido Manuel Gustavo. Em seguida, uma série de caricaturistas de que não ficou grande fama. A maior parte deles cumpria a sua função com eficácia e profissionalismo, mas não tinham o talento do seu diretor, valha a verdade. Um desses caricaturistas menos conhecidos, porém, prometia muito. Era um jovem em quem se vislumbrava algum talento e que o mestre Rafael resgatou do anonimato, empregando-o no seu jornal. Chamava-se Celso Hermínio e foi ele o autor da caricatura histórica de que aqui falamos.

    O autor

    No universo dos caricaturistas nacionais do início do século XX o nome de Celso Hermínio não aparece ao lado dos mais famosos, como Rafael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Stuart Carvalhais ou Leal da Câmara. Mas essa ausência não se deve a falta de talento, pois desde cedo que o rapaz mostrou ao que vinha. O problema é que Celso Hermínio faleceu ainda novo, com 33 anos, vitimado por uma pneumonia, maleita fatal ao tempo. Falemos um pouco do homem que nos deu a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja e cujo retrato aqui reproduzimos

    Celso Hermínio (1871-1904)

    Celso Hermínio era filho de um militar, o general Gaudêncio Carneiro (também ele um homem de letras) pelo que a sua aprendizagem fez-se um pouco por todo o país, ao ritmo das colocações castrenses do seu pai. Foi em Ponta Delgada que o seu precoce talento desabrochou, fazendo as suas primeiras caricaturas num pequeno jornalito familiar chamado A Mosca. Mas como em Portugal as artes não davam (e não dão) para sustentar a vida, Celso prosseguiu as pisadas paternas e seguiu a carreira militar, ao mesmo tempo que frequentava o curso preparatório da Escola Politécnica de Lisboa.

    Mas a arte estava-lhe no sangue. Por isso começou a frequentar as tertúlias artísticas de Lisboa, dando nas vistas pela sua verve radical e panfletária a que se sucediam, segundo os testemunhos do tempo, alguns períodos de langor e de preguiça. O seu feitio, arisco e difícil, afastava-o das modas e apartava-o das multidões. Todavia, todos lhe elogiavam o traço e o humor, destacando-se os seus retratos satíricos que ao tempo se chamavam portrait-charge. Desse tempo dizia-se que o lápis do Celso não era um lápis, era uma moca

                A sua arte não passou despercebida ao olhar sábio de Bordalo Pinheiro, que o convidou para desenhador regular de A Paródia. Era um passo em frente, depois de anos a desenhar para jornais menores e pasquins de ocasião. E durante quatro anos Celso Hermínio publicou os seus desenhos naquele periódico, lado a lado com o seu amigo e diretor.

    No dia 8 de março de 1904, apenas um ano e seis meses depois de publicar a primeira caricatura nacional relativa à cerveja, Celso Hermínio pereceu, vítima de uma pneumonia dupla. Nas páginas de A Paródia escreveu-se: A morte prematura de Celso Hermínio privou a arte da Caricatura em Portugal de um dos seus cultores mais jovens, mas mais talentosos e fecundos. Graças a uma real aptidão e a um esforço incessante. Celso Hermínio, tendo feito uma carreira rápida e brilhante, alcançara já um lugar indispensável entre os humoristas do lápis, no nosso país. Era um bom caricaturista, com um grande poder crítico e uma technica absolutamente original…

    Mais comovedor foi o testemunho de um outro mestre das letras nacionais, Raul Brandão, que nas suas Memórias escreveu: O Celso morreu ha um mez n’um dia de chuva como este. Mas, quando o caixão chegou ao pé da cova, luziu o sol no alto. O ar parecia novo e no vasto campo dos túmulos agitaram-se as cabeças amarellas dos malmequeres. Os pássaros começaram a cantar. E viu-se logo o Brito Aranha, de pera branca, dar um passo em frente e fazer um discurso:—O amigo… o camarada… descança em paz.—Depois o Cunha e Costa falou na nossa decadência, e por fim o Carneiro de Moura mastigou também uma banalidade… Sentia-se que tudo aquilo era postiço. Mas os pássaros não cessavam de cantar—e a meu lado o D. João da Camara suspirou baixinho: —Quem me dera que quando eu morrer só o saibam meia dúzia de amigos!…

    Enfim, o autor da primeira caricatura portuguesa sobre cerveja não foi um qualquer. Nem sequer foi alguém que poderia ter sido, mesmo se é verdade que poderia ter sido mais conhecido e bem maior do que foi. É o destino. Mas ficou a obra. Como a caricatura de que agora iremos falar.


    A caricatura e o seu contexto

    Desaparecido o homem, temos a sua obra. Vejamos então a caricatura que saiu naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 e que ocupou a primeira página de A Paródia:

    A caricatura intitula-se Os Direitos da Cerveja e exibe duas garrafas ricamente vestidas de damas finas. Nos rótulos as palavras Jansen e Pilsener são bem visíveis. As garrafas passeiam-se altivas e vão distribuindo dinheirinho a cinco guardas municipais (os antecessores da PSP e da GNR) e a dois cavalheiros bem vestidos. No canto inferior direito, temos a assinatura de Celso Hermínio. Em baixo, à laia de legenda, lê-se: Direitos que se entortam.

    Assim, sem mais nem menos, a caricatura pouco diz. Mas o próprio cabeçalho do desenho parece remeter para um artigo em páginas interiores. Folheemos então o jornal. Nas páginas 6 e 7 (que abaixo reproduzimos) temos então um pequeno artigo chamado A cerveja e a farinha e da autoria de Celso Hermínio. O artigo rezava assim (reproduzido segundo a grafia do tempo):

    A semana finda deu logar, depois da revelação do caso da farinha de trigo, à revelação do caso da cerveja.

    O caso da farinha de trigo era o caso da fraude contra o contribuinte.

    O caso da cerveja era a fraude contra o Fisco.

    Dizer que entre o fabricante de farinha e o fabricante de cerveja, o nosso coração hesita, é faltar impudentemente à verdade.

    Não! O nosso coração não hesita. – Elle vae todo para o fabricante de cerveja. 

    Por isso –porque não dizel-o?- as providências pomposas  adoptadas contra a fraude da cerveja chocaram o nosso animo, abalado precisamente pela ausência de providências contra a fraude da farinha, e quando se tornou publico que o dualismo Inspecção Geral dos Impostos e Juizo de Instrucção Criminal, se encontravam em conflicto, por motivo das referidas providências, nós regosijamos-nos e fizemos todos os nossos votos pela cerveja que é o Fisco, contra a Farinha, que é o contribuinte.

    Se estes votos podem implicar qualquer género de perseguições judiciaes, que ellas venham! Iremos perante a justiça do sr. Jeronymo de Vasconcellos declarar com hombridade e descaro que sim senhor, que nos são eminentemente sympathicos os fabricantes de cerveja e absolutamente odiosos os fabricantes de farinha.

    A terminar o delicioso texto de Celso Hermínio, à laia de rodapé, temos um pequenino desenho a preto e branco onde pode ver um popular a abraçar um criado que tem uma caneca de cerveja na mão, ao lado de outro popular que premeia um panificador com um redondo pontapé no traseiro.

    E logo mais abaixo, ainda nessa página 7, Celso Hermínio presenteia-nos com uma nova pequena pérola. Uma outra caricatura mais simples, intitulada Caras e Caretas, ocupa cerca de um quarto de página e exibe, a preto e branco, um homem gorducho claramente etilizado que, agarrado a um gradeamento, balbucia: É esquisito que tendo a cerveja tantos direitos, eu fique tão torto quando a bebo!

    (Nota: se bem que não venha ao caso e possa parecer espúrio, esta última caricatura lembra muito a célebre rábula de Vasco Santana embriagado a falar para um candeeiro no filme O Pátio das Cantigas, que seria realizado 40 anos mais tarde).

    Duas caricaturas e um pequeno desenho de rodapé referentes a cerveja no mesmo número de um jornal de 1902. É obra, pela raridade…

    A caricatura da capa e o pequeno artigo merecem um enquadramento histórico. O início do século XX vê acentuar-se a crise da monarquia liberal portuguesa. O rotativismo entre os dois principais partidos monárquicos (o Progressista de Luciano de Castro e o Regenerador de Hintze Ribeiro) revelava-se cada vez mais esgotado, o Partido Republicano crescia em influência e em verve, o ambiente político, social e económico deteriorava-se. A opinião pública lusa, macerada pelas crises, pelo não muito distante Ultimatum Inglês e pelo suicídio recente de um desiludido Mouzinho de Albuquerque, assistia estupefacta a vários escândalos, como as recorrentes falsificações da farinha com cal, gesso ou ferradura –facto que aliás A Paródia satirizava com frequência e a que também se refere Celso Hermínio no seu artigo-, as irregularidades financeiras, as trafulhices na banca, nas moagens ou nos tabacos, que por esses anos se desencadearam. E se decerto essas irregularidades são de todos os tempos, mais visíveis e doloridas se tornam em tempo de crise. Como naquele ano de 1902.

    Mas a que irregularidades se referirá Celso Hermínio? Segundo as notícias que até nós chegaram alguns fabricantes de cerveja teriam burlado o fisco, prejudicando assim o Estado português. Disso se faz eco Celso Hermínio, comparando jocosamente a irregularidade cervejeira com as irregularidades moageiras. Com uma diferença, todavia. As fraudes das farinhas prejudicavam sobretudo o consumidor, pois ao falsificar as farinhas para maximizar os lucros alguns moageiros e panificadores prejudicavam a saúde e a higiene públicas, ao passo que as irregularidades fiscais de algumas cervejeiras prejudicavam o Estado. Entre as duas fraudes, o coração do português não hesitava. As cervejas prejudicaram o Fisco? Abençoadas! As farinhas prejudicavam a população? Danadas!

    Um derradeiro apontamento para explicar brevemente o que era o panorama cervejeiro português no dealbar do século XX. Nessa altura existia, pujante e fornecedora da Casa Real, a Fábrica de Cervejas da Trindade, estabelecida na Rua Nova da Trindade em 1836, num antigo convento de frades trinitários (daí o nome) e que em 1935 integrou a recém-fundada Sociedade Central de Cervejas. Ainda em Lisboa existiam as cervejeiras Jansen (desde 1855) e a Leão (desde 1878). No Porto tínhamos a Companhia União Fabril Portuense, fundada em 1890 após a fusão de pequenas cervejeiras. Nas ilhas tínhamos a madeirense Empresa de Cervejas da Madeira (desde 1872) e a açoriana Melo Abreu (desde 1892), que aliás ainda existem.

    A qualidade das cervejas portuguesas já não era má, segundo um estudo publicado em 1900: Os donos das duas maiores cervejarias de Lisboa mandaram vir do estrangeiro mestres e desde então produzem cerveja que pode competir com a importada. São de facto boas e ligeiras as cervejas hoje fabricadas sobressaindo (…) a Pilsener da cervejaria Jansen e a Bohemia da cervejaria Trindade.” (Estudo de Carvalho Talone, em 1900 – adaptado).

    Foi deste restrito universo cervejeiro que saiu a fraude fiscal registada com arte (e com mal disfarçado carinho) pelo lápis e pela pena do malogrado Celso Hermínio.

    Registe-se por fim uma curiosidade. Esta caricatura que aqui historiamos retrata uma bebida ainda relativamente pouco consumida entre nós, ao tempo. Predominante e dominador, era o vinho que imperava. Daí que se percorrermos os jornais satíricos do tempo, se vejam poucas ou nenhumas caricaturas à cerveja. Sobre o pão, a carne, o vinho, o peixe ou os doces, há-as aos montes. Já sobre cerveja… Daí a curiosidade e o interesse desta caricatura em particular. Na verdade, só bem entrados na segunda metade do século é que a cerveja ultrapassaria o consumo de cerveja em Portugal.

    Mas isso já são outros quinhentos…

    Bibliografia sumária

    José-Augusto França, Rafael Bordalo Pinheiro – O português tal e qual, Livros Horizonte

    José Manuel Tengarrinha, História da Imprensa Periódica em Portugal, Ed. Caminho

    Manuel Paquete, A cerveja no mundo e em Portugal, Colares editora

    Raul Brandão, Memórias (vol. 1)

    Jornal A Paródia (1900-1907)

    Humorgrafe: blog de informação sobre humor e cartografia

    Museus de referência

    Museu Rafael Bordalo Pinheiro (Lisboa)

    Museu Nacional da Imprensa (Porto)

    Museu da Cerveja (Lisboa)

    Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador


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  • ‘Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses.’

    ‘Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses.’

    Esteve para ser somente uma entrevista sobre a presença árabe em Lisboa, a pretexto do seu novo livro, mas rapidamente a conversa com o escritor e historiador Sérgio Luís de Carvalho descarrilou, e ainda bem, para outras visões da História, para a Idade Média, o legado português, o racismo, os “pecados” da Humanidade, acabando nos nossos dias com os males do politicamente correcto e a “cultura do cancelamento”.


    Em Lisboa, tem-se a noção muito enraizada de que foi a presença romana que deu o nome à capital portuguesa, mas, na verdade, o seu nome deriva mais do árabe. Estou a ser correcta?

    Na verdade, as mais antigas referências a Lisboa são pré-romanas. Tão antigas como a origem de Lisboa, que teria sido um castro celta, mas não vamos por aí. Provavelmente, a origem da cidade remonta aos fenícios, que foram um povo que corresponde mais ou menos ao que hoje é o Líbano, e que terão aqui fundado um pequeno porto. Pensa-se que em fenício, a designação de Lisboa significaria qualquer coisa como Porto Seguro, ou Enseada Feliz, e depois mais tarde isso foi de corruptela em corruptela, com os romanos, passou a Olissipo… depois, com os árabes, Luxbuna, e é por isso que a abreviatura de Lisboa é “LX”, embora Lisboa não tenha nenhum X. Mas antigamente tinha. Há uma lenda que diz que Lisboa foi fundada por Ulisses, e de que o nome veio de Ulisses. Ulisseia, Lisboa. Mas é isso, é apenas uma lenda.

    Sérgio Luís de Carvalho, na sua casa, em companhia de Duna.

    Uma lenda será também a história de como os árabes entraram na Península Ibérica? Diz-se ter sido por “convite” do governador de Ceuta que, por causa da sua filha, se terá zangado com um rei visigótico…

    Sim, está a falar concretamente da “invasão” de 711. Bom, no início do século VIII, enquanto o Islão era uma religião relativamente recente, e estava em grande expansão, a Oeste para todo o Norte de África, e a Leste, para a Índia; a monarquia visigótica que dominava a Península Ibérica estava em desagregação. Recorde-se que a monarquia visigótica era electiva, e não hereditária. Quando o rei morria, os nobres juntavam-se para escolher o futuro rei, o que dava origem a problemas porque muitas vezes os resultados eram renhidos, ou na base do suborno. E, o que é facto é que em 711, o reino visigótico enfrentava conflitos internos e o rei eleito, Rodrigo, era contestado por outras fações. Segundo o que se conta, um governador do sul da Hispânia, supostamente descontente com o resultado, terá feito um apelo aos muçulmanos do Norte de África para entrarem no território peninsular, para derrotarem a monarquia visigótica e elegerem-no a ele ou a alguém da sua fação. O que se sabe é que os árabes – nós dizemos árabes, mas na verdade grande parte do exército era composto por berberes, o que rigorosamente não é a mesma coisa – invadiram a Península Ibérica, derrotaram os visigodos e ficaram. Ocuparam toda a Península, excepto uma pequena parte no extremo norte da Ibéria, que corresponde, mais ou menos, às Astúrias.

    Foi, então, um processo mais pacífico do que se pensa?

     Sim, actualmente, alguns historiadores defendem que não se pode chamar bem uma “invasão”, e que houve a continuidade de um relacionamento estreito que haveria entre as elites peninsulares e as árabes, tudo integrado no sistema comercial do golfo luso-hispano-marroquino. Mas são interpretações. Efectivamente, em 711, dá-se a ocupação muçulmana da Península Ibérica, que foi relativamente rápida. Uma conquista rápida, de dois ou três anos, o que para a época, e para um território tão extenso, é muito rápido.

    E como herança, deixaram mais do que apenas as palavras começadas por “AL”, que se sabe que derivam do árabe. Mas não parece saber-se, de modo geral, muito mais do que isso. Acha que o conhecimento dos portugueses sobre o que herdámos dessa ocupação é substancial?

    Não se sabe muito, porque entre nós, como acontece com todos os povos, de facto o conhecimento da História não é muito pormenorizado, é superficial. Esquecemos aquilo que aprendemos na escola. Repare: a ocupação muçulmana da Península Ibérica dá-se, em termos práticos, no 7º ano de escolaridade. Há quanto tempo é que fizemos o 7º ano, não é? Na verdade, os muçulmanos deixaram-nos bastante. A começar, como disse, pela toponímia, por muitas vilas, aldeias e cidades começadas por AL, mas não só. Faro, é outro exemplo. Arroz, azeite, taracena, armazém… são tudo palavras de origem árabe.

    E em tecnologia…

    Sim. Deixaram-nos, também, importantes conhecimentos materiais ao nível das ciências e das técnicas, como a nora e o açude, ou de irrigação. Em termos científicos, os muçulmanos estavam muito à frente dos cristãos do seu tempo. Na Medicina, na Geografia, na Cartografia. Conhecimentos que, mais tarde, nos foram tão importantes nos Descobrimentos. Claro que as técnicas vão evoluindo, e as que temos hoje apenas remotamente se filiam nessas tecnologias que, para a altura, eram avançadas. Hoje, temos a computação, as tecnologias da informação e a robótica, mas não pensamos que, na base disto tudo, está a numeração árabe, que os árabes trouxeram e adaptaram da Índia, e à qual acrescentaram coisas tão revolucionárias como, por exemplo, o zero. Eu não sou da área, mas pergunte a um informático, se o zero não tivesse sido inventado, o que era feito dos computadores? Portanto, esse conhecimento árabe medieval está na origem de muito do que nós hoje temos.

    Se a herança árabe é tão significativa, deverá haver mais motivos para que não seja tão reconhecida.

    Sim, outra coisa que também contribuiu para o olvido, para esse esquecimento, é o facto de que, durante algum tempo, se considerou, numa certa historiografia nacionalista, imperial e colonial, ligada ao Estado Novo, que Portugal tinha sido construído por santos e heróis, de espada numa mão e de cruz na outra. E não foi assim. Isto tem imensas nuances, como todos sabemos. E na Reconquista também houve muitas nuances, muitas alianças entre cristãos e muçulmanos contra outros cristãos e muçulmanos. Mas quis dar-se um pouco a ideia de que, na sua génese, Portugal era uma nação de nós contra os outros. Ou seja, nós, os cristãos, e os outros, os infiéis.

    Ser infiel depende da perspectiva, certo?

    Sim, é sempre caso para perguntar, infiéis a quem? Aliás, curiosamente, no auge da Reconquista, alguns textos árabes também falam nos cristãos como os infiéis. Isso foi criando o mito de que Portugal se fez contra os mouros, quando a realidade é muito mais complexa. Outra coisa que não ajuda, é haver hoje tantas notícias ligadas ao fundamentalismo islâmico que, sendo muito minoritário, dá imensamente nas vistas. Essas imagens fixam-nos e criam de algum modo, talvez subconscientemente, um afastamento, entre nós e aquela versão muito radical do Islão. Todo este caldinho faz com que haja a ideia de que a herança muçulmana é uma coisa muito distante. Cronologicamente, é. Não será, contudo, uma coisa muito difusa e vaga, porque vem até aos nossos dias. Quando nós estamos, por exemplo, a comer alguns pitéus, sobretudo no Sul, mas não só, há que pensar no contributo que os muçulmanos deram para aquilo que nós estamos a saborear.

    Já abordou, noutras entrevistas, alguns mitos difundidos sobre a Idade Média e que se mantêm até hoje. Pode dar-nos alguns exemplos?

    Deixe-me começar a resposta com uma provocação. Já pensou no termo “Idade Média”? “Médio” refere-se ao que está no meio. Logo aqui, há, à partida, um preconceito. Está no meio de quê? Está entre a Antiguidade Clássica, Grécia e Roma, e o Renascimento. O termo é cunhado muito tempo depois da Idade Média ter acabado. Quando os renascentistas começam, já no século XV e XVI, a criar a dinâmica do Renascimento, e fazem uma coisa que é muito comum: para se afirmarem, disseram mal dos que vieram antes. É um bocadinho como os adolescentes que começam a depreciar os pais, porque o pai é velho, tem a mania que sabe e passa a vida a dar conselhos, e a mãe é uma chata porque quer que o miúdo ande com casacos à noite. Então, começa a ser criado o termo Idade Média, que é uma época associada a barbárie, obscurantismo, repressão inquisitorial e dos direitos das mulheres, queima das bruxas, tudo isso.

    Sérgio Luís de Carvalho é autor de 13 romances e de 21 outros livros, sobretudo de História e divulgação histórica.

    Não foi bem assim?

    Não. Por acaso, os renascentistas até omitem que só tiveram conhecimento daquilo que os clássicos gregos e romanos escreveram, fizeram e pensaram, através dos textos que, durante a Idade Média, milhares e milhares de monges copiaram à mão. Porque se não tivesse sido assim, como é que os livros de Platão, de Aristóteles, de Ovídio, de Horácio e de Heródoto, chegariam aos renascentistas? Eles não os foram buscar ao Google. Todos esses livros foram copiados à mão por monges nos seus mosteiros, como se vê em o Nome da Rosa [romance de Umberto Eco], por exemplo. Depois, para se afirmarem, tiveram necessidade de representar aqueles que antes deles viveram como uma cambada de burros, ignorantes e selvagens. Esta imagem, obviamente, é muito exagerada. É verdade que a Idade Média é uma época materialmente dura, sobretudo na primeira metade. Depois, a coisa muda. O crescimento das cidades faz-se, bem como do comércio, surge a burguesia e a cultura cortesã, a cultura de cavalaria… Mas associamos sempre à Inquisição e à queima das bruxas. Aquilo que é curioso, porque tanto em Portugal como em Espanha, a Inquisição só aparece após a Idade Média. Os grandes autos-de-fé que associamos à queima dos hereges também vieram depois. E, imagine-se, em Portugal nunca se queimou nenhuma bruxa.

    A queima das bruxas é, de facto, uma das concepções mais comuns que se tem da Idade Média…

    E há mais. A mulher tinha, na Idade Média, mais direitos do que posteriormente. Por exemplo, na Época Medieval, quando casava, a mulher conservava os seus bens de família, não se misturavam com os do marido. Em casos de violação, desde que fosse uma mulher considerada honrada e de pública boa-fama, e se fizesse a queixa logo a seguir ao acto da violação, a palavra dela era considerada como suficiente para acusar o seu violador. Entre outras coisas. É certo que a Idade Média foi uma altura complicada, mas todas foram. Até vou dizer uma coisa que é uma provocação. Quando havia as fomes cíclicas, isso acontecia porque eles não tinham meios materiais para alimentarem toda a população. E, hoje em dia, ainda há fome no mundo, e temos meios para lhe pôr fim. Então porque é que não pomos? Porque se calhar, por exemplo, muitas vezes, alguns países queimam produtos alimentares para lhes manter o preço. Portanto, qual é a superioridade moral que nós temos para acusar pessoas que tinham de facto problemas, numa época dura?

    Há alguma ideia, de todas as que “desconstrói” sobre a Época Medieval, que costume causar uma maior perplexidade nas pessoas?

    Posso-lhe dar o famoso exemplo do direito de pernada, que é uma das coisas mais míticas de que a Idade Média é acusada. Era um alegado direito que os senhores feudais tinham que consistia em poderem dormir com as noivas dos seus vassalos antes do casamento. É algo que, a todos os títulos, nos parece horrível, e é. Deu origem ao filme Braveheart, e não só. Mas aquilo que é engraçado é que o direito de pernada, criado também em latim como jus primae noctis, nunca existiu. Existia, sim, um acto simbólico em que o senhor feudal, na véspera do casamento do seu vassalo com a respectiva noiva, colocava a sua mão na perna do leito nupcial. Com esse gesto, queria dizer que estendia à noiva, e à sua descendência, o dever de protecção. Os senhores feudais eram obrigados a proteger os seus vassalos. Protegê-los militarmente, quase como uma polícia. Mas, como é que isso passou a ser interpretado? “Ah, o homem queria era dormir com a noiva!”. Portanto, é assim que aparecem estes mitos e se criam estas ideias. Na História, é muito fácil isto acontecer.

    Os romances de Sérgio Luís de Carvalho perpassam a História desde a Idade Média até ao século XX.

    E como é que um historiador “destrinça” a informação para que se chegue à verdade, no meio de tanta subjectividade, mitos e lendas?

    A única forma de um historiador combater preconceitos é através da publicação dos seus artigos, dos seus estudos, e pô-los à venda. Não querendo fazer publicidade dos meus livros, há dois anos publiquei um livro chamado Portugal na Idade Média onde saliento que esta época não foi um paraíso, como alguns românticos do século XIX pensaram, nem foi o inferno que alguns filósofos do século XVIII imaginaram. É algures uma coisa no meio. Não há épocas paradisíacas nem infernais. Entre o preto e o branco, há muitas cores. Portanto, os historiadores podem publicar as suas conclusões. Mas se um filme como o Braveheart, em que esses mitos são reproduzidos, é visto por milhões de pessoas, e os livros dos historiadores sobre a Idade Média são apenas lidos por centenas, as armas são um pouco desiguais.

    Pode dizer-se que vivemos numa época crítica, tivemos a crise sanitária, agora a guerra na Ucrânia, a inflação… Como historiador, como vê o momento presente?

    Aquilo que estamos a viver não é nada de novo, é a continuidade do que já vivíamos antes. Sem querer transmitir uma ideia de determinismo, acho que o que está a acontecer já vem de algumas décadas atrás. Mais especificamente, do pós-Segunda Guerra Mundial, que por sua vez já viera do pós-Primeira Guerra. Há historiadores que dizem, e na minha opinião com razão, que há três guerras que estão interligadas: a Guerra Franco-Prussiana da segunda metade do século XIX, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria veio no seguimento da segunda Grande Guerra.

    Há um contínuo…

    Vem tudo dessa continuidade, das lutas entre potências, entre superpotências que não querem deixar de ter hegemonia, e que estão a opôr-se a outras que podem estar a crescer. É tão simples como isto. Há um filme chamado Reds, muito curioso, com o Warren Beatty e com a Diane Keaton, da década de 70. Conta a história de um grande jornalista americano chamado John Reed, que viveu a revolução russa de 1917 e escreveu uma das obras mais importantes de jornalismo, 10 dias que mudaram o mundo. Reed era marxista e em 1917, quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha e entraram na Segunda Guerra Mundial, dá uma conferência em que lhe fazem a seguinte pergunta: “caro John Reed, porque é que os Estados Unidos vão entrar na guerra?”. Esperava a pessoa que o questionou que ele desse os motivos “oficiais”, como a luta pela liberdade, pela libertação da Europa, o ataque ao despotismo e à ditadura, enfim, o que se diz. Ele levanta-se e responde “lucros”. Na altura, achou-se que ele estava a ser pouco patriota.

    O patriotismo é sempre apresentado como argumento, e não o dinheiro…

    Curiosamente, depois da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos foram de facto quem mais lucrou com o conflito, tornando-se na maior potência mundial e substituindo, por exemplo, a Inglaterra. E no fundo, não é isso que sucede? Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses. E se nós temos toda a razão para desconfiar um bocadinho das pessoas, porque é que não havemos de desconfiar dos governos e dos estados? John le Carré, que foi agente dos serviços de espionagem ingleses, e no final da Guerra Fria viu um clima de euforia, de que tudo ia correr bem e que a democracia liberal ia triunfar, escreveu um artigo muito pessimista, que conclui com esta frase: “é inútil, todos os governos mentem e os jornalistas dizem sempre mal os nossos nomes”.

    Mesmo assim, ainda há muitas pessoas que vêm os governos como confiáveis?

    Há, há de tudo. Eu suponho que tem tudo a ver com a atitude que temos perante as coisas. Entre acreditarmos em tudo aquilo que nos dizem e não acreditarmos em nada, não sei qual das atitudes é a mais insensata. Se acreditamos em tudo o que nos dizem, acho que vamos ter imensos problemas em escolher um shampoo, por exemplo, porque na televisão todos são excelentes. Se não acreditamos em nada, também teremos muitas dificuldades em comprar um shampoo, porque partimos do princípio de que todos são maus.

    Tem de se encontrar um equilíbrio?

    Sim, e acho que temos de ser críticos. Mesmo que as nossas opiniões possam ir, muitas vezes, contra o pensamento dominante, como acontece hoje. Actualmente, temos pensamento dominante em relação a tanta coisa… como em relação à Guerra da Ucrânia, por exemplo. E, portanto, temos, com a informação disponível, que é muitas vezes incompleta ou adulterada, de ter cautela e avaliar por nós mesmos. E deve ser assim com tudo. Não me parece que o Mundo vá melhorar. Até porque, hoje em dia, o ser humano tem meios para tornar as coisas muito piores. A Inquisição matava judeus, mas havia duas coisas: primeiro, se o judeu se convertesse, não o matava, e eu sei que isto é cínico e cruel. Mas, em todo o caso, havia uma escapatória, que era o próprio judeu ser também cínico. Segundo, a Inquisição não tinha meios de os matar a todos. Passaram-se os anos e vieram os nazis, que já tinham meios técnicos para os matar a todos. E os judeus, aí, não tinham escapatória. Não valia a pena um judeu mudar de religião, continuaria a ser judeu. Nós hoje temos tecnologia para destruir a Terra várias vezes. Coisa que há duzentos ou há trezentos anos, com a mesma maldade humana e com a mesma ganância, não se tinha. Por isso, é difícil ser optimista e esperar que o futuro venha a melhorar. Mas temos, e devemos ter sempre, a necessidade de acreditar em alguma coisa. Infelizmente, acho que a ignorância e a ganância cada vez têm mais meios para crescer, mas temos de continuar a fazer a nossa parte.

    Em nome da luta contra o racismo, algumas pessoas têm defendido, por exemplo, que se deitem abaixo certos monumentos. Como é que vê a “cultura de cancelamento” na História, que alguns movimentos têm defendido, e que parece estar a ganhar terreno?

    Vejo a cultura de cancelamento e o politicamente correcto com sincera preocupação. Primeiro, pelos efeitos que isso traz. Não tenho palavras para essa história do “cancelamento”, quer dizer, “cancelar-se” a J.K. Rowling por ter dito o que disse… mesmo que fosse um absurdo ou um disparate total, que para mim não foi, não vejo qualquer motivo para um acto de censura. Porque é censura. Um grande escritor alemão disse, no século XIX, que quando se começa a queimar livros, acabamos a queimar pessoas. Veja-se o que fizeram depois os nazis. E fico sempre muito preocupado quando vejo esta gente do politicamente correcto a “cancelar”, proibir, censurar, deitar abaixo estátuas… esquecendo-se que aquilo que as pessoas, noutras épocas, pensavam, era diferente daquilo que eles hoje pensam. Esquecendo-se que daqui a uns anos, umas décadas, outras pessoas irão, também, olhar para trás, para achar que o que eles estão a fazer agora também está ultrapassado, e que deverá ser “cancelado”.

    Há paradoxos no politicamente correcto, não é?

    A “cultura do cancelamento” é um acto censório e repressivo em si. E repare na contradição. Pessoas que dizem querer combater o preconceito, a repressão e o obscurantismo, como é que agem? Com repressão, com cancelamento e com censura. Depois, preocupa-me que isto se volte contra as causas que essas pessoas dizem defender. Por exemplo, dizem que são a favor da igualdade de género, muito bem, eu também sou. Dizem que são contra qualquer manifestação xenófoba ou racista, excelente. Mas ao fazerem isto com este exagero, leva a que as pessoas se afastem das ideias que eles defendem. E mais, estão a dar munições àqueles “reacionários” para quem a igualdade de género ou o antiracismo é algo a combater. Essa gente está a ser “municiada” com este extremismo do politicamente correcto. O que significa que esses movimentos da “cultura do cancelamento”, sempre que são levados ao extremo, são contraproducentes. Então, por um lado, são movimentos repressivos, o que é condenável. E, depois, põem certas pessoas mal-intencionadas “municiadas” contra eles. No fundo, dão mau nome a causas meritórias, fazendo com que as pessoas os considerem extremistas e não se queiram juntar a eles.

    Lisboa Árabe integra uma (por agora) trílogia constituído também por Lisboa Judaica e Lisboa Nazi.

    É correcta a dicotomia de que o povo europeu foi, historicamente, o “vilão” e o carrasco, e que os outros povos foram apenas “vítimas”?

    Se nós observarmos a História e virmos aquilo que foram os muitos crimes perpetrados pelo homem branco, podemos dizer que houve actos de vilania, como a escravatura e a exploração de muitos recursos naturais em vários continentes. Mas eu aqui ponho duas questões: primeiro, os povos não-brancos eram santos e anjos? Não sei se podemos ver a coisa assim. Os astecas não eram seguramente, também praticavam a escravatura e o homicídio como ritual. Os escravos que os brancos foram buscar a África eram, normalmente, fornecidos por tribos africanas que caçavam congéneres seus pelo lucro. Então, o que é que homem branco tinha, que os outros não tinham? Meios. Eu não faço História alternativa, mas vamos pôr a coisa assim: imaginemos que outros povos, que não o europeu, tinham os mesmos meios que os europeus para colonizar os outros continentes. Será que teriam agido melhor? Já havia escravatura em África, e nas civilizações pré-colombianas na América Latina. E na Ásia, não havia escravatura antes da chegada dos europeus? Não havia já uma cultura de ocupação de territórios e guerras, na América do Sul, em África, ou na Ásia, antes dos europeus chegarem? Claro que havia! Claro que havia escravatura, agressão, e até fenómenos entretanto desaparecidos no Ocidente, como a antropofagia. Portanto, mais uma vez, digo, entre o preto e o branco há muitas cores. Entre o ónus da culpa de uns e da inocência de outros, não vou por aí. Temos é de assumir aquilo que foi feito de bom, e aquilo que foi feito de mau. Todas as culturas, civilizações e povos tiveram grandes momentos de brilho e grandes momentos de trevas.

    Hoje ainda existe escravatura em vários países… a China, por exemplo, tem campos de concentração para muçulmanos.

    Sim, a escravatura ainda existe, e a China tem campos de concentração. A Espanha teve campos de concentração até à década de 60, durante a ditadura franquista, e foi o país europeu que os teve durante mais tempo. E existem muitos campos de detenção ilegais por esse mundo fora. Estou-me a lembrar, por exemplo, de Guantánamo, onde há indivíduos que são detidos durante várias décadas sem culpa formada. Há campos de detenção onde pessoas foram e são torturadas ainda hoje, por países que se arrogam da prática dos direitos humanos, e que permitem que aliados seus pratiquem aquilo. Isto, para além de muitos estados totalitários e ditatoriais que também hoje continuam a maltratar e a torturar prisioneiros seus.

    E, para terminar numa nota mais positiva, o que é que acha que Portugal fez de melhor? O que é que destacaria do legado português?

    Vai-me perdoar, mas vou começar de uma forma um bocadinho pícara e não quero de todo ser mal interpretado. Há uma frase muito engraçada, que já ouvi no Brasil várias vezes, que é: “a melhor coisa que o português deixou no Brasil foi a mulata”. Esta frase tem uma ideia curiosa por trás, que é a ideia de mistura. Os colonizadores do Norte da Europa não se misturavam com os nativos, não havia essa cultura. Um inglês reproduzia, nas suas colónias, desde a Índia à África do Sul, os seus padrões culturais. Como vestir um smoking para jantar. Eu acho que, com muitas coisas boas e más que os portugueses fizeram, há uma cultura, uma língua e um património que foram deixados. Eu gosto particularmente disto, da capacidade dos portugueses de se juntarem a várias culturas, esse melting pot, em que misturamos a cultura nativa com a cultura europeia. A “mulata” é essa alegoria. Os portugueses, de facto, misturavam-se fisicamente com os nativos. Coisa que os outros povos não faziam tanto. Contudo, o mito de que a colonização portuguesa foi melhor do que as outras, não é bem assim. Mas eu acho que essa noção de mistura e de troca parece-me ser particularmente interessante no caso português, é algo que me agrada, essa capacidade de adaptação. E nós vemos isso. Um português é timorense em Timor, é ugandês no Uganda, é marroquino em Marrocos, é alfacinha em Lisboa e tripeiro no Porto. É uma coisa incrível!