Em Agosto do ano passado, as investigadoras brasileiras Nádia Rodrigues e Mônica Andrade publicaram, em parceria com mais dois colegas, um artigo na prestigiada revista científica PLOS One sobre o risco de mortalidade por covid-19 na região sudeste daquele país. Incidindo no período entre 2020 e 2023, o estudo baseou-se em dados do sistema de vigilância epidemiológica brasileiro (SIVEP), e os resultados encaixavam-se em milhares de outros estudos. Mostravam que o ano mais crítico fora 2021 e que a idade avançada, o género masculino, a etnia a baixa escolaridade e as comorbilidades como doenças cardiovasculares e diabetes destacavam-se como factores de risco significativo.
Além de destacar que os indivíduos negros e residentes em áreas urbanas enfrentaram maiores probabilidades de mortalidade, ainda apontavam que o estado do Rio de Janeiro registara o maior risco de morte, enquanto São Paulo apresentara os índices mais baixos. E dava uma visão positiva sobre as vacinas contra a covid-19, salientando que “reduz[ia] significativamente o risco de morte”, com uma diminuição de 20% em 2021 e de 13% em 2022 entre os vacinados, apesar de apontarem que, mesmo com a vacinação, a vulnerabilidade de certos grupos, especialmente os mais pobres e com menor acesso a cuidados de saúde, permanecia relevante.
Do ponto de vista metodológico, o estudo de Nádia Rodrigues e Mônica Andrade – e de mais dois colegas, Joaquim Teixeira-Netto e Denise Monteiro – usou modelos estatísticos avançados, incluindo análises de sobrevivência e efeitos mistos, para identificar padrões de mortalidade. E as conclusões até sublinhavam a necessidade de intervenções direccionadas para proteger grupos de maior risco e reforçar a importância da vacinação, destacando que as estratégias de saúde pública precisavam de ser ajustadas às realidades socioeconómicas e geográficas.
Este estudo foi ‘acolhido’ com naturalidade. Mas esse acolhimento mudou com uma análise complementar de Nádia Rodrigues e Mônica Andrade, publicada noutra revista científica conceituada, a Frontiers em Medicine, na segunda quinzena de Dezembro passado. Neste caso, as duas investigadoras realizaram um estudo de coorte retrospectivo utilizando também os dados do SIVEP no período entre 2020 e 2023 com o fito de analisar os efeitos da mortalidade a médio prazo. E se no período médio após a covid-19, o risco de morte foi reduzido em 8% para aqueles que haviam sido vacinados, num período longo pós-covid, o risco de morte quase duplicou. E mais: enquanto no médio prazo houve redução na mortalidade para aqueles que tomaram duas ou mais doses, no longo prazo o risco de morte foi maior para aqueles que tomaram uma ou duas doses.
No estudo publicado, as duas investigadoras salientaram que “algumas possíveis explicações para o aumento do risco de morte por outras causas no longo prazo (após uma ou duas doses da vacina” são os “efeitos adversos das vacinas”, destacando que “embora as vacinas contra a covid-19 tenham demonstrado ser seguras para a grande maioria das pessoas, há preocupações sobre potenciais efeitos adversos de longo prazo (ainda que raros), como miocardite, trombose ou outras condições raras associadas à vacinação. E acrescentaram ainda que “estes efeitos podem ser mais pronunciados em alguns grupos, particularmente em indivíduos mais vulneráveis, o que poderia contribuir para um risco aumentado de morte por outras causas ao longo do tempo”.
Por outro lado, destacaram as investigadoras no seu artigo científico, “a vacina contra a covid-19 pode ter um efeito indirecto no sistema imunitário para pessoas com condições pré-existentes ou para aqueles com sistemas imunitários enfraquecidos (como pacientes com doenças autoimunes ou aqueles sob tratamentos imunossupressores)”, referindo que “a resposta imunológica ao vírus pode ter efeitos inesperados ou complexos que aumentam a vulnerabilidade a outras infeções ou levam a complicações de condições pré-existentes”.
Apesar de as duas investigadoras salientarem no artigo científico as limitações do estudo – avisos comuns em Ciência – e de fazerem uma avaliação prudente dos resultados, o facto de colocarem em causa eventuais efeitos prejudiciais das vacinas contra a covid-19 num contexto de longo prazo, causou uma ‘hecatombe’ de críticas no Brasil. A própria Fundação Oswaldo Cruz, também conhecida por Fiocruz – equivalente, em Portugal, à Escola Nacional de Saúde Pública Dr. Ricardo Jorge –, reagiu na semana passada, tentando desvalorizar o estudo e apontando fortes críticas metodológicas. Isto, mesmo sabendo-se que uma das investigadoras em causa, Nádia Rodrigues, é uma das suas conceituadas epidemiologistas, de créditos firmados com mais de uma dezena de artigos científicos relacionados com a covid-19, e que, por diversas vezes, tomou posição favorável à vacinação.
Com efeito, no início da semana passada, o denominado Comitê de Acompanhamento Técnico-Científico das Iniciativas Associadas a Vacinas para a Covid-19 – presidido pelo próprio presidente da Fiocruz, Mário Moreira, doutorado em Políticas Públicas – criticou severamente as conclusões, apontando falhas metodológicas e sustentando que “a hipótese apresentada pelo artigo [científico numa revista que teve revisão pelos pares] contrasta com o vasto corpo de conhecimento científico publicado sobre vacinas e vacinação, não apenas contra a covid-19, mas também contra muitas outras doenças evitáveis por vacinação”. E disse ainda ser “crucial manter o rigor científico, evitando a polarização ideológica na pesquisa sobre vacinas”, argumentando que “artigos submetidos para publicação científica abordando causalidade relacionada a condições de saúde, que são multifactoriais por natureza, devem usar bancos de dados múltiplos, apropriados e robustos para testar hipóteses multicriteriais, além de declarar claramente as limitações metodológicas do artigo e das inferências apresentadas”.
Esta posição seguiu em linha com uma nota da Fiocruz pouco dias antes, tomada para “reiterar a posição institucional de que as vacinas contra covid-19 aprovadas pelas autoridades sanitárias no Brasil são efectivas na redução dos casos graves e das mortes pela doença”, insistindo que “a vacinação contra covid-19 salvou milhões de vidas e foi fundamental para a contenção da doença e decretação pela Organização Mundial da Saúde (OMS) do fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional em Maio de 2023”.
As pressões políticas, que também surgem do próprio Ministério da Saúde, sobre um artigo científico incómodo, chegaram, entretanto, à própria revista Frontiers of Medicine que, na passada quarta-feira, publicou uma “manifestação de preocupação” anunciando que uma “equipa de integridade de pesquisa conduzirá uma investigação em total conformidade com nossos procedimentos”, adiantando que “a situação será actualizada assim que a investigação for concluída.”
Note-se, porém, que o artigo científico publicado na Frontiers of Medicine – e que contabiliza, só este mês quase 27 mil leituras, valores elevadíssimos para este tipo de revistas – teve edição e revisão entre pares. Um dos revisores foi o italiano Marco Rocetti, investigador com larga experiência em análise de dados aplicada à pandemia da covid-19. Aliás, num dos seus artigos, publicado em 2023 na Mathematical Biosciences and Engineering, destacava então existir uma “correlação positiva entre mortes por COVID-19 e excesso de mortalidade por todas as causas”.
Contactadas pelo PÁGINA UM sobre esta inusitada polémica, que transcende já a esfera científica, sendo mais política, Nádia Rodrigues e Mônica Andrade defendem a integridade do seu estudo, salientando que “a discussão dos resultados foi abrangente e feita de forma imparcial considerando todas as possibilidades e com embasamento [base] em outros artigos”, refutando que não tenham usado outra informação disponível. “Existem poucos estudos sobre a curva de sobrevida de pacientes graves em médio e longo prazo e portanto, não encontramos estudos brasileiros com esta temática”, referem as investigadoras. E respondem às críticas argumentando que “embora vários pontos levantados estivessem presentes na discussão, notou-se que deveriam ser enfatizados como limitações do estudo e posteriormente, solicitamos a incorporação destas”.
Sobre os “recentes ataques disseminados em mídias sociais, associando nossas pessoas a grupos antivacinas”, Nádia Rodrigues e Mônica Andrade dizem que, tanto a título profissional como pessoal, são “defensoras incondicionais do Programa Nacional de Vacinação [do Brasil], um pilar fundamental em nossas actividades académicas, práticas profissionais, e na promoção da saúde em ambientes familiares e sociais”. E dizem ainda acreditar que “as vacinas são um dos maiores avanços da Medicina, responsáveis por salvar milhões de vidas e prevenir doenças”, reafirmando “o irrestrito apoio ao programa de imunização, que é essencial para a manutenção da saúde pública no Brasil”.
Por fim, as duas investigadoras rejeitam “qualquer tentativa de distorção ou desinformação a esse respeito, com o compromisso de seguir promovendo a saúde e o bem-estar de nossa sociedade”.
O tom da mensagem transmitida pelas duas investigadoras brasileiras faz, em certa medida, lembrar a célebre abjuração de Galileu Galilei perante a Inquisição em 1633, e a frase a si atribuída como lamento: “E pur si muove“, aludindo ao facto de, apesar do que então lhe impunham dizer, a Terra continuaria a mover-se em torno do Sol.