Se há sector em que Portugal teve uma evolução extraordinária ao longo do último século, foi nos cuidados infantis. Na década de 20 do século XX, a mortalidade infantil — de crianças com menos de 1 ano — era absurdamente elevada: mais de 20% dos recém-nascidos não completava o primeiro ano. A partir dos anos 40, a evolução da medicina e das condições de higiene melhoraram bastante este indicador. Mesmo assim, no final dos anos 60, ainda no Estado Novo, a mortalidade infantil rondava os 2%.
Os maiores avanços da medicina, a par da vacinação e da prevenção e cuidados de higiene, reforçaram essa evolução — e assim a taxa de mortalidade começou a ser medida por óbitos por milhar de nados-vivos, porque passou a situar-se abaixo de 1%. Mesmo assim, com números que colocavam Portugal na vanguarda dos países mais desenvolvidos, em 1996 morreram 758 bebés, ficando abaixo do meio milhar de óbitos a partir de 2022.
Ainda assim, nas últimas décadas, mesmo estando num desempenho extraordinário em termos de Saúde Pública, mas consciente da preciosidade da vida de um bebé, houve progressos significativos. A taxa de mortalidade já chegou a estar abaixo dos 3 óbitos por mil — ou seja, 0,3% — com o ano de 2021 a representar o número absoluto mais baixo de sempre: 194 óbitos.
Nos últimos anos, tem-se vindo a verificar um aumento relativo significativo: em 2024 morreram 255 crianças com menos de um ano de idade, representando um crescimento de 30,5%. Mas se estas variações até poderiam, em certas circunstâncias, ser conjunturais, por se estar perante números pequenos, a análise do PÁGINA UM ao conjunto de dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística detectou uma situação altamente preocupante: o distrito de Setúbal está num absurdo agravamento da mortalidade infantil.
Com efeito, a nível nacional, o período posterior a 2021 rompeu com a tendência de contínuo decréscimo de longo prazo. Em todo o caso, numa visa territorial, este acréscimo podia-se explicar pelo ligeiro aumento da natalidade e pelo aumento de comunidades com menor atenção no acompanhamento durante a gestação — situação que, em muitos contextos, se associa a menor acesso ou adesão aos cuidados pré-natais —, mas há o distrito de Setúbal que ‘apita’ por atenção.
De facto, este distrito a sul de Lisboa não só lidera o aumento recente — passou de 19 óbitos em 2021 para 41 em 2024, uma subida de 116% — como é o único distrito onde o número de mortes de bebés em 2024 foi superior ao registado há 20 anos. Aliás, neste distrito não havia tantas mortes de bebés desde 2002.
Evolução relativa da mortalidade infantil entre 2004 e 2024 em Portugal e nos distritos de Braga, Lisboa, Porto e Setúbal, tomando o ano de 2004 como valor base (índice 100).Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM. Nota: Cada linha representa a variação percentual anual face ao valor de referência de 2004, pelo que valores acima de 100 representam um acréscimo e abaixo de 100 uma redução.
De acordo com os dados do INE, em 2004 registaram-se no distrito de Setúbal um total de 32 óbitos, menos nove do que em 2024. Ou seja, esta região teve um crescimento da mortalidade de 28% durante este período, em absoluto contraciclo com todas as outras regiões de Portugal. De facto, não há nenhum caso similar — muito pelo contrário.
Em termos comparativos, em todo o país morreram em 2004 um total de 420 bebés, enquanto no ano passado foram 250, o que representa uma redução de 40%. No distrito de Lisboa, a redução nesse período foi de 31%, enquanto no distrito do Porto foi de 60%. Em Braga, de 48%, e em Aveiro de 65%. Para se ter uma noção mais chocante desta evolução, em 2004, no distrito do Porto, houve quase o triplo de óbitos de bebés com menos de um ano face ao distrito de Setúbal (94 vs. 32); agora, em 2024, morreram 41 bebés em Setúbal e 38 no Porto.
Especular pode sempre especular-se sobre as causas de Setúbal estar em evidente e chocante contraciclo — que é aquilo que, por regra, se faz quando se pede um comentário a pediatras ou outros especialistas. Por regra, aponta-se a degradação de serviços neonatais, o aumento de partos de risco não acompanhados e eventuais factores sociais e económicos ainda por caracterizar.
Situação da mortalidade infantil do distrito de Setúbal é um caso de Saúde Pública, estando em completo contra-ciclo num sector que registou progressos exemplares nas últimas décadas.
Mas, por regra, fala-se nisso e mete-se uma pedra sobre o assunto sem sequer se analisar em detalhe as verdadeiras causas dos óbitos, para perceber aquilo que efectivamente está a causar esta situação única.
Em todo o caso, através de outro conjunto de dados também divulgados hoje pelo INE, consegue-se saber em que concelhos vivem as mães dos recém-nascidos que morreram nos últimos quatro anos, e onde os números têm aumentado mais. E ressaltam aí os concelhos de Almada, com uma subida de quatro óbitos em 2023 para 16 no ano passado, e do Seixal, com uma subida de dois óbitos em 2021 para 10 no ano passado. Fora do distrito de Setúbal, também se nota uma subida relevante nos concelhos de Sintra e Amadora: em conjunto, registaram 18 óbitos em 2021, número que subiu para 30 no ano passado.
Morte por ou com covid-19? Em plena pandemia, a simples colocação desta dúvida concedia o direito a rótulos depreciativos de relativista e negacionista. Mas agora que a ‘poeira’ do alarmismo e do medo se começa a assentar, e a Ciência, livre de paixões, recupera espaço sobre a propaganda, torna-se evidente que a distinção entre morrer por causa do vírus ou com a presença do vírus era – e continua a ser – essencial para compreender o verdadeiro impacto da pandemia. E um artigo científico publicado esta semana na Scientific Reports, do grupo editorial Nature, veio reforçar, com números concretos, que houve inflação da mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2, mesmo se o vírus, detectado em testes de antigénio, não teve qualquer influência no desfecho fatal.
O estudo agora apresentado foi realizado em sete hospitais de Atenas, onde foram analisadas em detalhe as verdadeiras causas de 530 óbitos classificados inicialmente como causados por covid-19. Mas afinal, cerca de 45% dessas mortes – ocorridas durante a vaga da variante Ómicron – não tiveram relação causal directa com a infecção pelo SARS-CoV-2. Estes resultados colocam assim em causa os critérios simplistas usados na contagem oficial de óbitos pandémicos, que frequentemente incluíram qualquer morte de pessoa com teste positivo, independentemente da causa clínica efectiva.
A equipa de investigadores gregos, composta por especialistas de diversas unidades hospitalares, fez uma revisão exaustiva dos dossiês clínicos, entrevistou os médicos assistentes e procedeu a uma avaliação independente por peritos experientes em tratamento de covid-19, assegurando, assim, uma abordagem rigorosa e abrangente.
A principal conclusão do estudo apontou que apenas 290 das mortes – cerca de 54,7% – foram de facto causadas ou significativamente agravadas pela infecção. As restantes 240 mortes, correspondendo a 45,3% dos casos analisados, ocorreram em doentes que tinham teste positivo para SARS-CoV-2, mas cuja morte resultou de outras causas, como sépsis bacteriana, pneumonia por aspiração, insuficiência renal, acidentes vasculares cerebrais, insuficiência cardíaca ou neoplasias avançadas.
A investigação demonstrou ainda que os doentes que faleceram “com” covid-19, mas não “devido a” covid-19, tendiam a ser mais jovens, com uma média de idade de 79,9 anos face aos 83,6 anos dos que morreram em resultado da infecção. Estes doentes apresentavam com mais frequência imunossupressão, doenças hepáticas avançadas e eram frequentemente infectados dentro do ambiente hospitalar, muitas vezes sem desenvolverem qualquer sintoma típico da doença.
De facto, a ausência de sintomas de covid-19 foi um dos factores determinantes na reclassificação das causas de morte, evidenciando a limitação do critério baseado apenas na positividade do teste.
A metodologia de contagem oficial de mortes por covid-19 na Grécia – semelhante à aplicada em muitos países europeus, como Portugal – considerava qualquer morte com teste positivo como um óbito pandémico, sem necessidade de estabelecer uma relação causal com a infecção. Este critério, segundo os autores, pode ter sido útil nas primeiras vagas pandémicas, com variantes mais letais como a Delta, mas tornou-se desajustado com a chegada da Ómicron, menos agressiva e coincidente com altos níveis de imunização populacional.
Salientando que a questão da morte “com” ou “devido à” covid-19 continua a ser “uma questão central para entender o impacto da pandemia”, os investigadores gregos salientam que “essa questão não pode ser respondida com certeza apenas com o uso de atestados de óbito, principalmente dadas suas limitações inerentes”. Em muitos hospitais, destacam, há médicos ‘juniores’ que podem frequentemente ser encarregados de assinar atestados médicos de causa de morte, sem a disponibilidade de autópsias, ou em hospitais com ou sem determinadas podem os médicos ser “mais propensos a reconhecer complicações infecciosas de imunossupressores e menos propensos a atribuir causas de morte a complicações cirúrgicas”.
Este estudo grego insere-se num contexto internacional de crescente escrutínio sobre a fiabilidade das estatísticas de mortalidade atribuídas à covid-19. Na Dinamarca, por exemplo, foi estimado que no início de 2022 cerca de 40% das mortes com teste positivo não estavam directamente relacionadas com a infecção, um aumento significativo face aos 10% a 20% registados nas vagas anteriores. No Reino Unido, estudos anteriores reportaram uma precisão de 92% a 97% na atribuição de mortes à covid-19 nas primeiras fases da pandemia, mas essa exactidão foi posta em causa com a evolução viral.
Na Suécia, uma análise realizada no condado de Östergötland revelou que em 24% dos casos analisados como mortes por covid-19, a infecção não teve qualquer papel na morte. Por outro lado, a China ilustra o impacto directo das definições oficiais: em Dezembro de 2022, o país passou a considerar apenas mortes com doença respiratória associada, o que provocou uma descida abrupta dos números divulgados. O Peru é outro caso paradigmático, onde uma redefinição das causas de morte permitiu uma melhoria substancial na qualidade dos dados.
Os autores gregos citam também o reputado epidemiologista John Ioannidis, que tem alertado para a existência simultânea de subnotificação, em países com fraca capacidade de testagem, e uma sobrestimação em países com políticas de testagem intensiva e sensibilização elevada. Ioannidis defende que, embora as estimativas de mortalidade em excesso ofereçam uma visão mais realista, também estas podem ser influenciadas por factores indirectos, como atrasos nos cuidados de saúde.
Os autores gregos alertam que a definição imprecisa da causa de morte compromete a avaliação rigorosa do impacto pandémico, conduzindo a potenciais distorções nas políticas públicas e na percepção social do risco. Sublinhando que as certidões de óbito, muitas vezes preenchidas por médicos sem acesso completo ao historial clínico ou sem autópsias, não são instrumentos fiáveis, os investigadores defendem a necessidade de uma abordagem clínica mais cuidada e contextualizada, especialmente em fases pandémicas de menor letalidade.
O estudo conclui que, para compreender devidamente o impacto da pandemia, é essencial eliminar enviesamentos nas contagens de mortes e adoptar critérios mais rigorosos e clínicos na definição de óbitos “devidos a” covid-19. Só assim será possível evitar interpretações inflacionadas da mortalidade e assegurar políticas de saúde pública proporcionais e baseadas na realidade epidemiológica.
Recorde-se que, sobretudo ao longo de 2022, através do acesso a uma base de dados oficial de internados-covid, o PÁGINA UM foi alertando para vários casos absurdos de atribuição de mortes por covid-19. Em Janeiro de 2022, através dos registos de internamento até Maio de 2021, o PÁGINA UM estimou que, pelo menos, 2751 óbitos que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) atribuiu à covid-19 foram de pessoas internadas em hospitais por outros motivos, e não por infecção do SARS-CoV-2.
Identificam-se então 586 óbitos por covid-19 de pessoas que foram inicialmente internadas por doenças do aparelho circulatório (código iniciado pela letra I), das quais 41 com enfartes agudos do miocárdio, 160 com AVC isquémicos, 11 com AVC hemorrágicos e 140 com crises de hipertensão.
O segundo grupo de doenças que justificaram o internamento inicial de pacientes-covid (e assim sendo incluídos na base de dados), que acabaram por falecer, são as respiratórias (código J da CDI), mas sem estarem relacionadas com a infecção por SARS-CoV-2 (que recebe o código U071 da CDI, ou em casos muito específicos os códigos J1281 ou J1282).
Para este grupo, contabilizaram-se 392 pessoas que ocorreram por ter o seu óbito indicado à covid-19, mas que entraram no hospital por causa de outras infecções ou problemas respiratórios, incluindo pneumonias não-covid, entre as quais 55 por pneumonias bacterianas identificadas (por exemplo, por Streptococcus pneumoniae, Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus e Escherichia coli, entre outras), além de 39 por doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) e 65 por pneumonia por inalação de comida ou vómito. Este problema grave ocorre principalmente em idosos: a média de idade destes casos é de 84 anos.
Casos de quedas de camas ou acidentes similares, e até um suicídio, também foram reportados como mortes por covid-19. E até situações de negligência ou problemas de pós-operatório. Noutros casos, mortes de doentes terminais com SIDA ou ainda com neoplasias foram parar às estatísticas da covid-19. E uma parte bastante substancial de mortes atribuídas à covid-19 em Portugal ocorreu fora do ambiente hospitalar, o que levanta sérias dúvidas de terem sido causadas pelo vírus.
De facto, todo os casos graves e fatais de covid-19 estiveram associados a síndrome do desconforto respiratório agudo, a necessitar de assistência médica, não sendo crível que essas pessoas tenham falecido por covid-19 em casa ou em lares sem suporte ventilatório em asfixia progressiva.
Foram 11.058 óbitos registados no passado mês de Março. Em termos absolutos, o valor impressiona: neste século, apenas foi superado uma vez, no ano de 2005, e tem de se recuar a 1951 para se encontrar outro Março acima da fasquia das 11 mil mortes neste mês de transição entre o Inverno e a Primavera. O valor deste ano até ultrapassa inclusivamente o de Março de 2020, quando a pandemia de covid-19 começava a ganhar expressão e inquietação pública, e durante o qual faleceram 10.582 pessoas em território nacional.
Porém, por mais inquietante seja esse ‘flash’ temporal de 31 dias, o número de óbitos não pode ser interpretado como sinal inequívoco de anomalia. Na verdade, no contexto mais alargado do último Inverno – aqui definido como o quadrimestre que vai de Dezembro de 2024 a Março de 2025 – se se quiser apntar alguma anormalidade, então é à pouco usual ‘estabilidade letal’ do Inverno de 2024-2025, o período do ano em regra mais mortífero em Portugal.
Ao contrário do que é habitual em muitos anos anteriores, em que se registam picos abruptos num ou dois meses — muitas vezes em Dezembro e Janeiro ou em Janeiro e Fevereiro — seguidos de quebras marcantes em Março, o mais recente quadrimestre apresentou uma mortalidade notavelmente uniforme, com todos os meses a ultrapassarem os 10 mil óbitos e com uma diferença de apenas 857 mortes entre o mês mais e o menos mortífero.
Esta variação interna é a sexta mais baixa dos últimos cinquenta invernos, o que demonstra não apenas a ausência de surtos concentrados, mas também uma persistência de risco distribuída ao longo de todo o Inverno. Esta regularidade é rara e pode ocultar o verdadeiro impacto da estação fria: quando não há um pico, há menos alarme — mas a mortalidade, diluída e silenciosa, soma-se com o mesmo peso.
Esta uniformidade explica a razão para Março de 2025, apesar de ter uma mortalidade historicamente elevada, não representar aquilo que se chama um ‘outlier’ estatístico com preocupantes sinais epidemiológicos. Em linguagem comum, isto significa que o número de mortes, embora superior à média, não ultrapassa aquilo que seria previsível à luz da evolução demográfica e da sazonalidade das últimas décadas.
Mortalidade no Inverno (quadrimestre Dezembro do ano N a Março do ano N+1) nos últimos 50 anos (LINHA AMARELA) e linha de tendência (TRACEJADO VERMELHO). Fonte: INE e SICO. Análise; PÁGINA UM.
Para se perceber a relevância desta avaliação, o PÁGINA UM analisou os dados de uma forma mais sistemática. Considerando todos os períodos Dezembro-Março desde 1974, a mortalidade média situou-se em cerca de 40.745 mortes por quadrimestre. O total observado entre Dezembro de 2024 e Março de 2025 – as tais 44.107 mortes – fica cerca de 0,91 desvios-padrão acima da média, o que, numa leitura estatística convencional, é sinal de um valor elevado, mas não invulgar, e nem fugindo à tendência das últimas décadas.
De facto, os dados das últimas cinco décadas apontam para um crescimento consistente da mortalidade no quadrimestre Dezembro-Março, com uma subida média anual de cerca de 160 mortes, mesmo considerando os picos de mortalidade entre 2020 e 2022, decorrentes tanto da mortalidade por covid-19 como pela gestão da pandemia. Esta evolução tem raízes sobretudo na alteração da estrutura etária da população portuguesa, cada vez mais envelhecida, e nas condições de saúde associadas a essa realidade.
Assim, um Inverno com mais de 44 mil mortes já não surpreende – é, antes, o ‘novo normal’. Aliás, tem ultrapassado essa fasquia em todos os últimos seis Invernos. E desde o Inverno de 2011-2012, inclusive, contam-se nove anos a superarem esse valor, embora apenas um (2020-2021) subindo acima de 46 mil. Nesse Inverno, a mortalidade ascendeu a quase 55 mil óbitos, coincidindo com o pico da pandemia, uma vaga de frio em Janeiro de 2021 e com o colapso do Serviço Nacional de Saúde.
Curiosamente, a estabilidade intermensal da mortalidade do recente Inverno pode ser explicada por um fenómeno conhecido como “efeito harvesting” (literalmente, colheita), muito estudado em demografia e Saúde Pública. Quando os meses de Dezembro e Janeiro são especialmente severos em termos de mortalidade – como acontece com surtos fortes de gripe ou vagas de frio – é comum que os meses seguintes apresentem valores inferiores à média, porque uma parte da população mais vulnerável já sucumbiu antes.
No Inverno de 2024-2025, pelo contrário, os meses de Dezembro (11.905 mortes) e Janeiro (10.201 mortes) não atingiram níveis extremos, o que terá deixado um maior número de pessoas vulneráveis vivas até Março – mês em que, por razões naturais, ou por agravamentos clínicos cumulativos, acabaram por falecer.
Neste contexto, pode-se afirmar que, embora Março de 2025 tenha sido historicamente elevado, ele não foi anormal – mas sim o reflexo de um Inverno prolongadamente suave, sem grandes picos nem grandes quebras, como aliás se confirma pela ausência de descidas abruptas em Fevereiro.
Ainda assim, há um dado que deve merecer atenção redobrada dos responsáveis pela Saúde Pública. Quando se analisa o valor global do quadrimestre em função da tendência linear esperada, constata-se que a mortalidade até ficou ligeiramente abaixo do valor previsto para o ano de 2024 – cerca de 644 mortes abaixo da linha de tendência.
Este desvio, ainda que pequeno, pode indiciar uma acumulação de vulnerabilidades que não se expressaram durante o Inverno, mas que poderão tornar-se críticas nos meses seguintes. Ou seja, as ondas de calor mais intensas podem ser particularmente letais para os mais idosos e doentes crónicos.
As revistas científicas têm tido um enorme impacto positivo no desenvolvimento da Ciência, mas, de certa forma, estão agora a dificultar, em vez de melhorar, o discurso científico aberto. Depois de analisar a História e os problemas actuais das revistas, propõe-se um novo modelo de publicação académica. Este modelo abraça o acesso livre e a revisão rigorosa pelos pares, recompensa os revisores pelo seu importante trabalho com honorários e reconhecimento público e permite que os cientistas publiquem a sua investigação de forma atempada e eficiente, sem desperdiçar o valioso tempo e recursos dos cientistas.
O Nascimento das Revistas Científicas
A imprensa revolucionou a comunicação científica no século XVI. Após alguns anos de reflexão e ponderação, ou talvez uma década ou duas, os cientistas publicaram um livro com os seus novos pensamentos, ideias e descobertas. Assim, surgiram os clássicos que lançaram as bases da Ciência moderna, como De Nova Stella de Tycho Brahe (1573),[1] Astronomia Nova de Johannes Kepler (1609),[2] Discours de la Méthode de René Decartes (1637),[3] Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica de Isaac Newton (1686)[4] e Systema Naturæ de Carl Linnaeus (1735).[5] Para uma comunicação mais rápida, os cientistas recorriam a cartas escritas à mão entre si.
Até publicarem um livro, o que exigia um esforço e recursos consideráveis, os cientistas só podiam comunicar com alguns amigos e colegas próximos. Isso não era eficiente. Foi assim que surgiu o jornal científico, uma invenção com profundo impacto no desenvolvimento da Ciência. O primeiro, Journal des Sҫavans (Jornal dos Eruditos), apareceu em França em 1665. Uma década mais tarde, este jornal publicou o cálculo da velocidade da luz efectuado por Ole Rømer.[6] A coisa mais rápida da natureza foi comunicada a uma velocidade anteriormente indisponível para os cientistas.
Ao longo das centenas de anos seguintes, as revistas científicas tornaram-se cada vez mais importantes, ultrapassando os livros como principal meio de comunicação científica. À medida que os cientistas se especializavam, o mesmo acontecia com as revistas, com periódicos temáticos como Medical Essays and Observations (1733), Chemisches Journal (1778), Annalen der Physik (1799) e Public Health Reports (1878). As revistas impressas eram enviadas para cientistas e bibliotecas universitárias de todo o mundo e foi criada uma verdadeira comunidade científica internacional. Sem as revistas, a Ciência não se teria desenvolvido como se desenvolveu, e os primeiros editores e impressores de revistas são heróis desconhecidos do progresso científico.
Editoras Comerciais
Em meados do século XX, a edição académica sofreu uma viragem para pior. Começando com Robert Maxwell e a sua Pergamon Press, os editores comerciais compreenderam que a situação de monopólio na publicação científica podia ser muito lucrativa. Quando um artigo só é publicado numa revista, as grandes bibliotecas universitárias têm de assinar essa revista, por mais cara que seja, para garantir que os seus cientistas possam aceder a toda a literatura científica. Como Stephen Buranyi afirmou eloquentemente, “os bibliotecários estavam presos a uma série de milhares de pequenos monopólios (…) e tinham de os comprar a todos ao preço que os editores quisessem”.[7] Enquanto a maioria das revistas da sociedade tinha preços razoáveis, os editores comerciais tinham uma bonança. Um inquérito de 1992 sobre revistas na área da estatística mostrou que a maioria das revistas da sociedade cobrava às bibliotecas menos de 2 dólares por artigo de investigação científica, enquanto a revista comercial mais cara cobrava 44 dólares por artigo.[8] Na altura, isto era mais do que o preço médio de um livro académico por um único artigo de revista.
Desde então, a situação tem-se agravado cada vez mais. Sendo simultaneamente produtoras e consumidoras de artigos científicos, as universidades pagam uma enorme quantia de dinheiro por revistas que contêm artigos escritos e revistos por pares pelos seus próprios cientistas, que fornecem gratuitamente às revistas. Como resultado, as editoras de revistas científicas têm margens de lucro enormes, que chegam a quase 40%.[9][10] Não é por acaso que George Monbiot chamou às editoras académicas “os capitalistas mais implacáveis do mundo ocidental”, que “fazem o Walmart parecer uma loja de esquina e Rupert Murdoch um socialista”.[11]
Revistas Online e o Acesso Aberto
A revolução seguinte na publicação académica começou em 1990, com a publicação da primeira revista exclusivamente online, Postmodern Culture. Com a Internet, deixou de haver necessidade de imprimir e distribuir cópias em papel.
Um desenvolvimento muito positivo desta situação é o número crescente de revistas de acesso livre que qualquer pessoa pode ler gratuitamente, incluindo o público que paga a maior parte da investigação médica através dos seus impostos. Através de revistas de acesso livre e de serviços de arquivo académicos, como o arXiv e o medRxiv, e graças ao trabalho árduo de pioneiros do acesso livre como Ajit Varki, Paul Ginsparg, Peter Suber e Michael Eisen, cerca de metade de todos os artigos biomédicos são agora publicados sob alguma forma de modelo de acesso livre.[12] Desde 2008, os Institutos Nacionais de Saúde exigem que toda a investigação que financiam seja de acesso livre no prazo de um ano após a publicação e, em 2024, a diretora dos Institutos Nacionais de Saúde, Monica Bertagnolli, reforçou esta política exigindo que toda a investigação financiada por estes institutos seja de acesso livre imediatamente após a sua publicação.[13]
Os Periódicos Como Substitutos Da Qualidade Dos Artigos
O problema da publicação académica não se prende apenas com o custo e o acesso. Durante a maior parte da História, o que interessava era a importância e a qualidade do artigo científico e não a revista em que era publicado. Os cientistas não se preocupavam muito com o prestígio da revista, mas queriam chegar ao maior número possível de colegas cientistas, o que era melhor conseguido através de revistas com muitos subscritores. Este facto criou uma hierarquia entre as revistas. Um grande fluxo de submissões para revistas de grande circulação conduzia a elevadas taxas de rejeição, o que, por sua vez, as tornava mais prestigiadas para publicação.
Ao contratar e promover cientistas, a leitura e avaliação de todos os documentos de todos os candidatos pode ser entediante e demorada. Para poupar tempo, o prestígio da revista em que os autores publicaram é por vezes utilizado como substituto da qualidade do artigo. Isto pode parecer estranho para quem não é cientista, mas, dependendo da área, todos os jovens cientistas sabem que a aceitação ou rejeição de um artigo de investigação pela Science, The Lancet, Econometrica ou Annals of Mathematics pode fazer ou destruir uma carreira. Isto “incentiva o carreirismo em detrimento da criatividade”.[14]
Como expressaram eloquentemente o antigo diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, Harold Varmus, e colegas: “O valor inflacionado atribuído à publicação num pequeno número das chamadas revistas de ‘grande impacto’ pressionou os autores a apressarem-se a publicar, a cortar nos pormenores, a exagerar as suas descobertas e a exagerar a importância do seu trabalho. Estas práticas de publicação … estão a mudar a atmosfera em muitos laboratórios de forma perturbadora. Os recentes relatórios preocupantes sobre um número substancial de publicações de investigação cujos resultados não podem ser reproduzidos são provavelmente sintomas do actual ambiente de grande pressão para a investigação. Se, por desleixo, erro ou exagero, a comunidade científica perder a confiança do público na integridade do seu trabalho, não pode esperar manter o apoio do público à Ciência”.[15]
Estas são palavras fortes mas importantes. Sem a confiança do público, a comunidade científica perderá o generoso apoio que recebe dos contribuintes e, se isso acontecer, a Ciência definhará e esmorecerá.
O prestígio de uma revista nem sequer é um bom testemunho da qualidade dos artigos. Vejamos, por exemplo, a revista The Lancet. Publicada pela Elsevier, é considerada uma das cinco “revistas médicas de topo”. Sob a direção do seu actual editor, Richard Horton, a revista publicou um estudo que sugere falsamente que a vacina MMR pode causar autismo[16], levando a menos vacinações e a mais sarampo;[17] um artigo de “consenso” sobre a Covid que questiona a imunidade adquirida por infecção,[18] algo que conhecemos desde a Peste Ateniense em 430 AC;[19] e o agora infame artigo que afirma que a hipótese da fuga de informação do laboratório da Covid era uma teoria da conspiração racista.[20]
Utilizando a terminologia estatística dos modelos de efeitos aleatórios, a variação dentro do jornal na qualidade dos artigos é maior do que a variação entre os jornais, o que torna o prestígio do jornal um mau substituto para a qualidade dos artigos.
Revisão Pelos Pares e Avaliação Da Ciência
A revisão por pares tem uma longa e rica história e é uma parte indispensável do discurso científico, como é evidente em muitas controvérsias e discussões científicas. A revisão científica pelos pares assume muitas formas, incluindo comentários publicados, citações positivas ou negativas e discussões em reuniões científicas. No século XX, as revistas iniciaram um sistema de revisão anónima e não publicada por pares. Imprimir e enviar revistas em papel era dispendioso, pelo que nem tudo podia ser publicado, e os editores começaram a utilizar revisores anónimos para ajudar a determinar o que aceitar ou rejeitar. Isto levou à estranha ideia, entre alguns cientistas, de que “investigação revista por pares” se tornou sinónimo de investigação publicada numa revista que utiliza um sistema anónimo de revisão por pares para determinar que Ciência deve ser publicada, ignorando as muitas formas tradicionais de revisão por pares aberta e não anónima.
As universidades e outros institutos de investigação, bem como os financiadores da investigação, têm uma necessidade intrínseca de avaliar a Ciência e os cientistas que empregam e apoiam. Ao confiarem no prestígio das revistas em vez da qualidade dos artigos, subcontrataram partes da sua avaliação a pessoas desconhecidas, sem verem as revisões efectivas. Este sistema é propício a erros e utilizações incorrectas.
Publicação Lenta e Pouco Eficiente
O actual sistema de publicação académica é lento e desperdiça tempo valioso dos cientistas, que é mais bem empregue na investigação. A investigação de qualidade deve ser publicada o mais rapidamente possível para fazer avançar a Ciência. Mesmo artigos excelentes e importantes, como o ensaio aleatório DANMASK-19,[21] podem ser rejeitados três vezes enquanto os autores tentam publicá-los numa revista com o maior prestígio possível.[22] Isto não só atrasa a divulgação da Ciência. Além disso, exige o trabalho moroso de muitos cientistas que avaliam e revêem o mesmo artigo para diferentes revistas.
Em comparação com a boa investigação, os manuscritos questionáveis requerem o esforço e o tempo de mais revisores, uma vez que têm mais probabilidades de serem rejeitados e submetidos de novo. Mesmo os manuscritos com falhas fatais acabam por ser aceites por alguma revista. Isto dá à investigação o selo de aprovação de ser publicada numa “revista com revisão por pares”, mas sem que os leitores tenham acesso a essas revisões críticas anteriores. Teria sido melhor se esses trabalhos de investigação com falhas tivessem sido publicados pela primeira revista juntamente com as revisões críticas, para que os leitores pudessem ter conhecimento dos problemas com os estudos?
Embora não possamos impedir a publicação de má Ciência, o que é necessário é um discurso científico aberto, robusto e vivo. Essa é a única forma de procurar a verdade científica.
Quatro Pilares Para Um Caminho a Seguir
O que é que se pode fazer em relação a esta situação? A via a seguir pode assentar em quatro pilares:
1. Acesso livre, para que os artigos científicos possam ser lidos por todos os cientistas e por qualquer pessoa do público.
2. Revisões abertas pelos pares, que qualquer pessoa possa ler ao mesmo tempo que lê os artigos, assinadas pelo revisor.
3. Recompensar os revisores com um honorário e reconhecimento público pelo seu trabalho criticamente importante.
4. Eliminação do controlo dos artigos, permitindo que os cientistas de uma organização publiquem livremente todos os seus resultados de investigação de forma atempada e eficiente.
Já existe movimento nestas direcções. O acesso livre é muito popular entre os cientistas e apreciado pelo público.
Algumas revistas, como o British Medical Journal, a PLoS Medicine e a eLife, estão a utilizar a revisão por pares aberta para os artigos aceites, em alguns casos mantendo-a anónima ou tornando-a opcional.[23][24][25] Embora pouco utilizada, algumas revistas têm uma longa tradição de acompanhar alguns dos seus artigos de investigação com comentários e uma réplica do autor.
Tem-se defendido que os revisores deveriam ser pagos,[26] mas esta ideia ainda não vingou.
Os Procedimentos da Academia Nacional de Ciência(Proceedings of the National Academy of Science) costumavam ter um sistema em que os membros da academia eram incumbidos de publicar a sua investigação sem revisão por pares ou controlo de artigos, mas esse sistema foi abandonado a favor da revisão universal por pares.[27]
Se as revistas científicas mudassem para um modelo de publicação baseado nos quatro pilares acima referidos, que impacto e vantagens teria isso para os leitores, cientistas que publicam, revisores, universidades e agências de financiamento?
Vantagens Para os Leitores
A vantagem do acesso livre para os leitores é óbvia, especialmente para o público, médicos e cientistas que não têm acesso a uma grande biblioteca universitária.
Igualmente importante, os leitores beneficiarão muito com a revisão aberta pelos pares, para que possam ler o que outros cientistas pensam sobre a investigação que estão a ler. Na década de 1990, a minha revista preferida era a Statistical Science do Instituto de Estatística Matemática. Juntamente com os artigos de investigação publicados, esta revista publica frequentemente comentários de outros cientistas e uma réplica do autor. Como jovem cientista, isso deu-me uma visão inestimável do processo de pensamento científico de cientistas mais seniores e experientes, incluindo muitos dos melhores estatísticos do mundo. A revisão aberta por pares poderia ter um efeito semelhante num conjunto muito mais vasto de artigos de investigação.
A eliminação do “controlo de acesso” aos artigos pode também beneficiar os leitores, especialmente os não cientistas. Agora lêem um artigo revisto por pares sem saberem que foi rejeitado várias vezes por outras revistas e sem poderem ler as revisões que causaram a rejeição do artigo. Para os leitores, teria sido melhor se a primeira revista tivesse publicado o artigo com as críticas negativas originais. Ou seja, embora pareça contra-intuitivo, a eliminação do “gatekeeping” de artigos é especialmente importante para investigação fraca ou questionável, desde que seja acompanhada de uma revisão aberta por pares.
O actual processo de revisão moroso é, obviamente, também prejudicial para os leitores. Isto é especialmente verdade numa área como a saúde pública, onde os surtos de doenças e outros problemas de saúde agudos necessitam de uma rápida compreensão e acção.
Vantagens Para os Cientistas Que Publicam
A publicação é muitas vezes um processo moroso e complicado para os cientistas, que gastam um tempo valioso que poderia ser utilizado para a investigação propriamente dita. Quando um manuscrito é rejeitado, tem de ser adaptado, formatado e enviado para a revista seguinte. Quando é aceite, podem ser necessárias várias revisões.
Embora muitos comentários dos revisores conduzam a versões revistas melhoradas dos manuscritos, outros comentários são melhor e mais eficientemente tratados através de uma troca aberta de ideias com o revisor, utilizando a revisão por pares aberta. Além disso, quando há desacordos, os cientistas devem ter liberdade académica para expor os seus próprios pontos de vista sobre a sua investigação, enquanto os revisores devem ter liberdade académica para publicar a sua perspetiva divergente.
Infelizmente, as revisões de alta qualidade não são universais e todos os cientistas já sentiram alguma frustração ao lidar com revisões. Com as revisões por pares assinadas e publicadas, são encorajadas as revisões ponderadas, honestas e de elevada qualidade, enquanto as revisões irreflectidas, apressadas, concisas e indelicadas são desencorajadas.
Vantagens Para os Revisores
Os discretos heróis da Ciência são os muitos cientistas anónimos que escrevem diligentemente revisões cuidadosas e perspicazes para um vasto número de artigos e revistas. Isto é feito por um sentido de dever e pelo seu amor à Ciência. Por este facto, os revisores merecem ser recompensados e reconhecidos. Embora possa não os compensar totalmente pelo tempo que levam a escrever uma excelente revisão por pares, os revisores de revistas merecem pelo menos um honorário nominal pelo seu importante trabalho, tal como os revisores de bolsas. Mais importante ainda, devem receber reconhecimento público pelas valiosas ideias e comentários que fornecem, através de revisões por pares abertas e assinadas que qualquer cientista pode ler e que podem acrescentar ao seu curriculum vitae.
Vantagens Para as Universidades e Institutos de Investigação
Com excelentes cientistas, a Academia de Saúde Pública quer que todos os seus membros publiquem toda a investigação que produzem. O mesmo deve acontecer com as universidades, os institutos de investigação e as agências governamentais de investigação. Caso contrário, não os deveriam ter contratado. Do ponto de vista do trabalhador, qual é então o objectivo do “gatekeeping” de artigos, quando este apenas atrasa o momento em que a investigação é divulgada?
O único objectivo concebível é se o nome da revista for utilizado como um substituto para a qualidade do artigo. No entanto, deixar que a revista, ou o seu factor de impacto, determine a qualidade de um artigo de investigação individual não é muito científico. Para os empregadores, é mais sensato que os seus comités de promoção e contratação de professores determinem a qualidade através da avaliação de artigos de investigação reais. É claro que isto é feito frequentemente, utilizando alguma forma de revisão interna, mas poderia ser melhorado através de uma revisão externa aberta por pares. A prazo, as universidades poderão mesmo exigir que os seus docentes publiquem não só em revistas com revisão por pares, mas também em revistas abertas com revisão por pares.
As bibliotecas universitárias gastam uma quantia excessiva em assinaturas de revistas científicas. Para além disso, pagam generosamente taxas de publicação a revistas de acesso livre para garantir que a investigação produzida possa ser lida por qualquer pessoa. Uma utilização mais sensata destes fundos seria pagar revisões externas de alta qualidade da investigação que a universidade produz, e uma forma de o fazer é através de revistas de revisão por pares abertas.
Vantagens Para as Agências de Financiamento
As agências de financiamento devem querer que toda a investigação que financiam seja publicada, incluindo os chamados estudos negativos. Não importa qual das suas investigações financiadas é publicada em que revistas. O que importa é que seja publicada atempadamente, sem atrasos desnecessários, para que outros cientistas possam continuar a basear-se nela. Nesta perspectiva, é uma perda de tempo quando os manuscritos são rejeitados pelas chamadas revistas de topo antes de serem publicados.
A maioria das agências de financiamento permite que os cientistas utilizem o dinheiro das subvenções para pagar as taxas de publicação às revistas. Em comparação com os serviços de pré-impressão, como o medRxiv, o único valor acrescentado que estas revistas oferecem é a revisão por pares. Mas as agências de financiamento não podem ver as revisões pelas quais pagaram. A investigação foi um sucesso ou um fracasso? O que é que poderia ter sido feito melhor? Deverão os cientistas financiados receber mais dinheiro para fazer mais investigação? Devem continuar a financiar este tipo de trabalho ou concentrar-se noutras áreas de investigação? Com a revisão aberta por pares, as agências de financiamento terão uma avaliação externa da investigação que financiam.
Prova de Conceito: Jornal da Academia de Saúde Pública
Juntamente com um conselho editorial de renome de todo o mundo, a RealClear Foundation, uma organização sem fins lucrativos, está a liderar o desenvolvimento deste novo modelo de publicação. Está agora a lançar o Journal of the Academy of Public Health, de acesso livre e revisão aberta feita por pares, em que os revisores são pagos e reconhecidos pelo seu importante trabalho, e em que qualquer membro da Academia pode publicar rapidamente qualquer investigação na área da saúde pública sem controlo de artigos.
Uma revista é apenas uma gota no oceano da publicação científica e não pode servir todos os cientistas de todas as áreas académicas. A esperança é que esta nova revista inspire o aparecimento de outras revistas semelhantes em toda a Ciência. As sociedades científicas, as universidades, os institutos de investigação e as agências de financiamento podem lançar novas revistas ou reestruturar as existentes para os seus membros, professores ou bolseiros. A esperança final é que todos os cientistas tenham pelo menos uma revista deste género à qual submeter os seus manuscritos, quer seja publicada pela sua universidade, instituto de investigação, agência de financiamento ou sociedade científica.
Se está intrigado com esta exploração da publicação científica, por favor examine-a, reveja-a, replique-a, personalize-a e talvez até a desenvolva mais.
Referências
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Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no Journal of the Academy of Public Health, no dia 30 de Janeiro de 2025.
É corrente ver em assuntos diferentes um fio condutor que decorre de determinada atitude meio oculta ou não-confessada. Geralmente, quem se atreve a enunciar esses “desvarios” é imediatamente acusado de estimular a “teoria da grande conspiração” e assim cada um fica no seu canto. Nada se demonstra, nada se nega e as convicções individuais mantêm-se mais ou menos as mesmas. Já todos o vimos muitas vezes!
Nestes dias, em que nos aproximamos da necessidade de voltar a manifestar em quem confiamos para gerir os vários domínios da administração pública, vale a pena reflectir na experiência acumulada no passado recente.
O governo que agora termina funções foi eleito com maioria muito escassa e instável, e a possibilidade de tudo acabar rapidamente esteve sempre presente. Assim, era imperioso e urgente “mostrar serviço” e atacar com enorme urgência todas as frentes onde a gestão pública mostrava dificuldades. Choveram aumentos (ainda que alguns limitados a meras promessas que o tempo confirmará ou não…) e promessas gongóricas de resolução de problemas continuados.
Fosse diferente e mais robusta a maioria parlamentar governamental e tudo seria diferente, com outro ritmo, deixando as benesses para mais tarde, em fim de mandato, como é tradicional. Assim, houve que mostrar serviço rapidamente e agradar a todos os grupos profissionais que aguardavam negociações, necessariamente difíceis. Claro que o saldo orçamental positivo facilitou essa distribuição de satisfações.
Assim, avaliar a eficiência/competência/justeza da acção governativa que durou cerca de um ano, sempre a fazer “equilíbrio no arame” e risco iminente de crise política e eleições, como aconteceu, deve ter em conta essa tentação forte de querer agradar a todos depressa. Nada garante que uma situação mais estável trouxesse igual ímpeto e generosidade. A “conta” dos constrangimentos e legislação impopular seria apresentada antes de poder oferecer mais “bombons”, com a habitual desculpa do governo anterior!
Na Saúde, tudo foi diferente. Uma equipa ministerial pouco competente, mas com agenda ideológica tentou nomear todos os amigos possíveis em cargos directivos a todos os níveis, frequentemente com fundamentação duvidosa e conflitos de interesse, como o tempo mostrou, ao mesmo tempo que se manietou e “domesticou” a Ordem dos Médicos com várias nomeações de dirigentes para funções no Ministério.
Ana Paula Martins, ministra da Saúde do governo de Luís Montenegro. / Foto: D.R.
Fizeram-se promessas sem sinais de as poderem cumprir, com os métodos que usaram. Ordenaram um “plano de emergência” com coisas boas (mas pouco originais) e com coisas originais (pouco boas, como a criação/modificação administrativa de especialidades médicas, indicação de que as urgências de pediatria seriam até aos 12 anos, planos cirúrgicos oncológicos sem ter em atenção que uma enorme parte da oncologia é não cirúrgica, sem aumento da capacidade assistencial em consultas, etc).
As urgências que “não iriam fechar”, têm evoluído como se viu. Continuaram a despejar dinheiro na contratação avulsa de médicos tarefeiros, mantendo os serviços clínicos razoavelmente despovoados.
Quando era já certo que o governo iria terminar funções, e na sua última reunião, anunciou-se a decisão magna de evoluir os cuidados do SNS para parcerias público-privadas. Esse é um modo possível de gestão, mas a recente criação de ULS por todo o país, que incluem os cuidados médicos primários e a saúde pública, traz questões novas que o bom senso recomendaria discutir publicamente para se obter um consenso nacional que não leve a reversão, logo que o “barco mudar de direção”.
Foto: D.R.
Fica por explicar por que motivo o governo acha que a administração privada é mais ágil e eficiente, mas não toma medidas para conferir essas qualidades à gestão pública. Estava na sua mão fazê-lo, mas evitam esse caminho, sabe-se lá porquê.
Esta pressa e ligeireza, já sem falar na inclusão de unidades académicas que a ministra achava que deveriam ter regime especial, mostra de forma robusta que afinal tudo parecia obedecer a um plano para mostrar que a gestão pública é desastrosa e a gestão privada “só virtuosa”! Um amigo imaginário dir-me-ia “lá estás tu com a mania da conspiração!” ao que eu responderia, “E tu, se quisesses levar o barco para esse lado, como agirias?”. Resposta imaginária, “sim, dessa maneira…”. Pois!
Portanto, depois de ver tudo isto, podemos dizer que “o primeiro milho foi dos pardais”, e o que se seguiria teria um paladar e consequências bastante diferentes se pudessem seguir o seu rumo. Haverá oportunidade para todos decidirem que caminho desejam para o SNS. E prepararem-se para assumir as respectivas consequências.
Jorge Amil Dias é médico pediatra
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Depois de cinco meses a solicitar, sem êxito, provas da execução de mais de duas dezenas de contratos por ajuste directo – envolvendo sociedades de advogados e consultoras – o PÁGINA UM deu entrada hoje, no Tribunal Administrativo de Lisboa, de um processo contra o Banco Português de Fomento (BPF) de intimação para prestação de informações e obtenção de documentos administrativos
Em causa está sobretudo a recusa reiterada desta instituição bancária em entregar documentação comprovativa da realização efectiva de serviços pagos com dinheiro público, num total que ultrapassa os 2,3 milhões de euros.
A recusa do BPF abrange também um contrato por ajuste directo no valor de 700 mil euros com a Universidade Católica Portuguesa, sobre o qual não se conhece o objecto concreto, nem se compreende, sequer, o destino das verbas, aparentando ser para pagar avenças a professores universitários como “observadores”, ignorando-se quem são, as razões da escolha e as suas tarefas em concreto. Parte substancial da documentação enviada pelo BPF encontra-se totalmente rasurada a negro, apagando inclusive nomes dos signatários dos contratos.
Desde Novembro do ano passado, o PÁGINA UM tem vindo a solicitar acesso, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), a relatórios de execução, folhas de registo de trabalho, actas de reuniões, facturas, ordens de pagamento e recibos – em suma, quaisquer documentos que confirmem se os contratos foram ou não acompanhados de tarefas reais. No entanto, o banco público, então sob a presidência de Ana Carvalho – ex-mulher do actual ministro Pedro Duarte e actual administradora da Caixa Geral de Depósitos – limitou-se a protelar as respostas e, mais recentemente, a enviar documentos mutilados ou totalmente desprovidos de conteúdo útil.
A lista dos contratos celebrados entre finais de 2021 e Outubro de 2024 inclui a antiga sociedade do actual primeiro-ministro, Sousa Pinheiro & Montenegro, com um contrato de 100 mil euros, bem como três contratos com a sociedade SRS do irmão do Presidente da República, num total de cerca de 110 mil euros. Estão ainda referenciadas sociedades como a Sérvulo & Associados (dois contratos de 210 mil euros cada), a Vieira de Almeida & Associados (com contratos que ultrapassam 450 mil euros), Abreu & Associados, Cuatrecasas, Andrade de Matos, e consultoras como Deloitte e Ernst & Young.
Documentos em falta e outros mutilados: Tribunal Administrativo de Lisboa decidirá se é lícito o Banco Português de Fomento continuar a esconder informação pública.
Na base legal para os ajustes directos está a invocação de uma norma do Código dos Contratos Públicos, o qual tem sido interpretado de forma abusiva para justificar adjudicações sem qualquer concurso público, com argumentos baseados numa alegada “confiança subjectiva” ou “carácter eminentemente intelectual” dos serviços. O PÁGINA UM obteve documentos em que estas justificações surgem como meras fórmulas genéricas, onde não se identificam critérios objectivos ou qualquer avaliação comparativa.
Além disso, os contratos fornecidos surgem com nomes dos signatários riscados, incluindo o de Beatriz Freitas, CEO do BPF à data da assinatura do contrato com a sociedade de Luís Montenegro, o que viola frontalmente o princípio da transparência administrativa e o entendimento reiterado da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Diversos acórdãos do Tribunal Central Administrativo indicam claramente que, no acesso a documentos administrativos, não se aplica o Regulamento Geral de Protecção de Dados, sobretudo estando em causa nomes de titulares de cargos públicos no exercício das suas funções.
No caso do contrato de 700 mil euros com a Universidade Católica Portuguesa, celebrado em Fevereiro de 2024, o BPF limitou-se a enviar documentação rasurada e incompleta, não apresentando sequer o caderno de encargos, a proposta adjudicada ou os documentos comprovativos de qualquer consulta a outras instituições académicas. Esta é, aliás, a segunda vez que o PÁGINA UM tenta que o BPF envie a documentação. No ano passado, o Tribunal Administrativo de Lisboa concluiu, com base num extenso relatório de uma empresa informática contratada pela instituição bancária, que o e-mail do PÁGINA UM com o requerimento não chegara às mãos do BPF, apesar da existência de confirmação da recepção pelo servidor. Nessa linha, o PÁGINA UM viu-se obrigado a fazer novo requerimento, que acaba novamente no Tribunal Administrativo, desta vez sem qualquer dúvida sobre a sua recepção.
Até porque, no início deste mês, o BPF enviou cerca de meia centena de páginas relacionadas com este contrato que, ao invés de elucidarem, mais dúvidas causam, até porque adensam. Com efeito, nas cópias enviadas – e o PÁGINA UM requereu acesso aos originais –, há rasuras um pouco (e muito) por todo o lado, a começar pelo cabeçalho do contrato, onde o nome do dirigente do BPF e da Universidade Católica Portuguesa são ostensivamente apagados. Neste caso, ainda se consegue ler o resto, porque noutros documento tudo é apagado – ou, melhor dizendo, colorido a negro.
Sociedade de advogados onde Montenegro era sócio recebeu em finais de 2021 um ajuste directo de 100 mil euros do Banco Português de Fomento sem que tenham sido apresentadas provas de trabalho realizado.
Elucidativo da clara intenção de esconder informação relevante envolvendo dinheiros públicos encontra-se num e-mail remetido em 20 de Novembro de 2023 por alguém do BPF a alguém da Universidade Católica, cujos nomes foram rasurados, que começa com um “Caro” antes do nome do interlocutor ser apagado. Nesse e-mail, apresenta-se sucintamente a intenção do BPF de ser assessorado por “observadores” , referindo-se que, “em termos de remuneração: estamos a apontar para cerca de [riscado a negro]”. Na documentação por agora facultada ao PÁGINA UM, mutilada em várias páginas, incluindo actas, não se encontrou qualquer explicação plausível para a afectação do montante de 700 mil euros nem a lista de “observadores”, levantando dúvidas sobre a existência de uma rede informal de distribuição de avenças entre docentes universitários.
Este é a 25ª vez, em três anos, que o PÁGINA UM interpõe intimações no Tribunal Administrativo para a obtenção de informação recusada por entidades públicas, a esmagadora maioria das quais com decisões favoráveis, mesmo no caso em que o ‘antagonista’ foi o Conselho Superior da Magistratura, a Ordem dos Médicos ou o Instituto Superior Técnico. Porém, além dos custos e morosidade de alguns destes processos – por exemplo, um intentado em Dezembro de 2022 contra a Direcção-Geral da Saúde ainda não teve decisão de primeira instância –, acresce o facto de que, mesmo sob a ‘espada’ de uma sentença, existem dirigentes públicos que insistem em manipular documentos que têm obrigação de revelar.
N.D. Este e muitos outros processos judiciais do PÁGINA UM têm sido apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, que, neste momento, apresenta um défice.
A comida dos hospitais pode ter pouco condimento, mas o seu fornecimento, e os estranhos meandos da contratação pública que envolvem, garantem uma deliciosa receita (financeira) para empresas privadas. No caso dos hospitais de Lisboa Norte – Santa Maria e Pulido Valente – a contratação dos serviços de refeições a doentes e pessoal hospitalar tem estado a recair na mesma empresa nos últimos anos, quase sempre por ajuste directo, ou seja, através de contratação de mão-beijada. Apesar de os montantes serem bastante elevados, existem sempre esquemas e justificação, muitas vezes estapafúrdias, para evitar concursos públicos que permitem maior transparência e preços mais adequados.
O caso da empresa ITAU é um dos casos mais paradigmáticos, que acaba de obter mais um ajuste directo, celebrado na passada quarta-feira, no valor de 1.457.696 euros, para servir refeições nos meses de Março e Abril deste ano na Unidade Local de Saúde de Santa Maria (ULS-SM).
Este é o terceiro contrato que esta empresa do grupo Trivalor, sedeada em Carnaxide, obteve este ano com esta ULS que gere os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente e uma rede de centros de saúde de Lisboa. Em Janeiro deste ano, a ITAU já tinha ‘sacado’ dois contratos: um primeiro, por ajuste directo, no valor de 1.457.696 euros, para também para servir refeições em Janeiro e Fevereiro; e o segundo no valor de 7.339 euros, para um serviço de ‘catering’. Curiosamente, este segundo contrato, com um valor irrisório face ao milhões que envolvem a alimentação quotidiana, foi sujeita a uma consulta prévia, o que mostra o absurdo da situação.
No caso do novo contrato, apesar de ‘reincidente’, e haver sempre necessidade de dar comidas aos doentes e pessoal de saúde, recorre ao ajuste directo porque alega “urgência imperiosa”, embora esta somente pode ser alegada “na medida do estritamente necessário” e se for “resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante” e que, desse modo, “não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos [como o concurso público], e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.
As relações comerciais entre a ITAU e as diversas administrações que gerem os hospitais da região norte de Lisboa começaram em 2019, mas quase sempre com um ‘aperto de mão’ a selar ajustes directos. O último contrato por concurso público remonta a Abril de 2021. E se se contabilizar os contratos desde essa data, contam-se já 16, dos quais 11 adjudicados por ajuste directo e os restantes através do procedimento de consulta prévia, estes geralmente muito mais baixos, a rondar cada cerca de cinco mil euros. Os ajustes directos servem para os contratos mais chorudos: desde Abril de 2021 já totalizaram cerca de 19,1 milhões de euros, incluindo IVA.
Se considerarmos os contratos desde Maio de 2019, a ITAU conta com 28 contratos com a ULS-SM e as suas antecessoras, encaixou uma receita de 39,2 milhões de euros.
Assim, em 2019, registaram-se quatro contratos, sendo que apenas o primeiro foi por concurso. Em 2020, contam-se cinco, todos por ajuste directo. Em 2021, foram efectuados quatro contratos, sendo que apenas um foi por concurso público. Em 2022, houve apenas um pequeno contrato para um serviço de catering. Em 2023, contam-se quatro contratos, dos quais três por ajuste directo. Em 2024, registam-se no Portal Base sete contratos adjudicados pela ULS-SM à ITAU, todos por ajuste directo.
Em resposta a questões do PÁGINA UM, o gabinete de comunicação da USL-SM destaca sobretudo as dificuldades em realizar ou concluir com sucesso os procedimentos por concurso público, uma vez que, por regras, existem restrições orçamentais por parte do Ministério da Saúde. A USL-SM diz que, “no ano de 2022, o então Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte efectuou um pedido [ao Ministério da Saúde] de assumpção de compromissos plurianuais para o triénio” de 2023 a 2025. Assim, “desde essa data, a USL-SM tramitou três procedimentos por Concurso Público com publicitação no Jornal Oficial da União Europeia”, sendo que “dois procedimentos foram revogados, com a exclusão de todas as propostas apresentadas por não cumprirem os requisitos do concurso, e o terceiro procedimento encontra-se em fase de avaliação das proposta pelo Júri do procedimento”. Ou seja, estranhamente, as empresas do sector, com elevada experiência, não se incomodam muito em perder concursos públicos, mas já se disponibilizam para aceitar ajustes directos.
A ULS-SM garante ainda que, “face aos montantes envolvidos, todos os contratos celebrados ao abrigo de ajustes directos foram sujeitos a fiscalização prévia do Tribunal de Contas”, e acrescenta que, sendo “responsável por cerca de seis mil refeições diárias aos utentes e profissionais à sua guarda, esta é uma área prioritária” para a ULS-SM, sempre “, mas sempre “no respeito escrupuloso pelos requisitos legais e com uma rigorosa análise da qualidade do serviço prestado”.
Saliente-se ainda que a ITAU também tem servido outro núcleo hospitalar em Lisboa. A USL de São José – que abrange seis hospitais da capital e ainda a Maternidade Alfredo da Costa – adjudicou seis contratos a esta empresa ao longo do ano passado, dos quais cinco por ajuste directo e um por concurso público. E, ao todo, já efectuou 41 contratos com aquela empresa.
Saliente-se que só a ITAU, detida pela Trivalor, uma gestora de participações sociais com várias empresas no seu portfólio, já facturou 680,1 milhões de euros em 1195 contratos públicos desde 2008, de acordo com os registos disponíveis no Portal Base.
Entre os seus clientes públicos, além de unidades de saúde, contam-se a CP-Comboios de Portugal, a PSP, o Instituto da Segurança Social e várias autarquias.
O PÁGINA UM publica hoje, quase 32 meses após terem sido solicitados, os 52 relatórios do Instituto Superior Técnico – elaborados em parceria com a Ordem dos Médicos a partir do relatório 37 – que supostamente deveriam ter acompanhado a evolução da pandemia da covid-19 em Portugal.
A divulgação destes relatórios só agora se concretiza na sequência de uma longa luta judicial, que incluiu uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul e ainda um pedido de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória. Um processo que só se justifica pela prepotência do presidente do Instituto Superior Técnico, Rogério Colaço, que lutou afincadamente para recusar a sua divulgação pública.
Numa atitude lamentável para quem ocupa um cargo de responsabilidade científica, Rogério Colaço chegou ao ponto de argumentar, através da advogada do IST, que não tinham feito relatórios, mas apenas “esboços embrionários que consubstanciavam meros ensaios para eventuais relatórios”. Só esta afirmação, pelo seu ridículo, deveria ter justificado a sua exoneração imediata. Mais grave ainda foi a tentativa levada a cabo no Tribunal Central Administrativo do Sul de convencer os desembargadores de que, apesar de existirem um relatório 51 e um relatório 52, não havia provas da existência de relatórios anteriores.
A demora na publicação destes 52 relatórios por parte do PÁGINA UM ficou a dever-se ao facto de o IST os ter enviado em papel, obrigando-nos a proceder à sua digitalização. Poderíamos ter recorrido novamente aos tribunais para exigir consulta presencial ou entrega em formato digital, bem como para garantir que não fossem rasuradas quaisquer partes dos documentos. Mas preferimos expor publicamente como o IST – ou, pelo menos, o seu presidente – procedeu neste processo.
As cópias agora divulgadas pelo PÁGINA UM estão expurgadas das referências à Ordem dos Médicos – embora as rasuras estejam mal feitas, permitindo identificar as omissões –, e os nomes dos autores dos relatórios também foram ocultados. Não obstante, os autores são conhecidos: Pedro Amaral, José Rui Figueira, Henrique Oliveira e Ana Serro.
Rogério Colaço
Provavelmente, nada acontecerá ao presidente do IST, Rogério Colaço, nem aos quatro investigadores e professores envolvidos, porque em Portugal não se responsabilizam os protegidos da Academia. Ainda assim, a publicação integral destes relatórios – que serviram, sobretudo em 2022, para alimentar o alarme social e condicionar políticas governamentais através de ‘fugas de informação’ para a agência Lusa – pretende registar para a posteridade uma das páginas negras da Ciência portuguesa.
Para reforçar a necessidade de um debate científico sério e transparente, o PÁGINA UM procedeu à avaliação criteriosa de cada um dos relatórios agora divulgados, com base numa grelha rigorosa. Os relatórios do Instituto Superior Técnico foram avaliados segundo quatro critérios principais: a robustez metodológica, a transparência dos dados utilizados, a qualidade científica das projeções e recomendações e a imparcialidade na comunicação dos resultados. A análise metodológica incidiu na clareza dos modelos matemáticos, na justificação dos pressupostos e na existência de cenários alternativos ou análises de sensibilidade. Quanto à transparência, avaliou-se a origem dos dados e a sua coerência interna, bem como a acessibilidade à informação fundamental para validar os resultados apresentados.
Além disso, a qualidade científica das conclusões foi medida pela fundamentação lógica das projeções, presença de intervalos de confiança e adequação das recomendações às evidências. Por fim, foi analisado o grau de alarmismo ou neutralidade dos relatórios, verificando se a comunicação dos resultados poderia influenciar desproporcionadamente a perceção pública e as decisões políticas. As avaliações foram realizadas com recurso a Inteligência Artificial e uma grelha de pontuação de 0 a 20 valores, garantindo maior objectividade na apreciação.
Estas avaliações não pretendem ser definitivas. Por isso, o PÁGINA UM está disponível para publicar quaisquer análises ou textos de opinião de especialistas que pretendam comentar a qualidade científica destes relatórios. Porque é isso que se exige em Ciência: debate e escrutínio. E foi precisamente o contrário que Rogério Colaço procurou evitar – numa atitude em que a prepotência se sobrepôs à inteligência, cegando até um cientista conceituado.
Em Agosto do ano passado, as investigadoras brasileiras Nádia Rodrigues e Mônica Andrade publicaram, em parceria com mais dois colegas, um artigo na prestigiada revista científica PLOS One sobre o risco de mortalidade por covid-19 na região sudeste daquele país. Incidindo no período entre 2020 e 2023, o estudo baseou-se em dados do sistema de vigilância epidemiológica brasileiro (SIVEP), e os resultados encaixavam-se em milhares de outros estudos. Mostravam que o ano mais crítico fora 2021 e que a idade avançada, o género masculino, a etnia a baixa escolaridade e as comorbilidades como doenças cardiovasculares e diabetes destacavam-se como factores de risco significativo.
Além de destacar que os indivíduos negros e residentes em áreas urbanas enfrentaram maiores probabilidades de mortalidade, ainda apontavam que o estado do Rio de Janeiro registara o maior risco de morte, enquanto São Paulo apresentara os índices mais baixos. E dava uma visão positiva sobre as vacinas contra a covid-19, salientando que “reduz[ia] significativamente o risco de morte”, com uma diminuição de 20% em 2021 e de 13% em 2022 entre os vacinados, apesar de apontarem que, mesmo com a vacinação, a vulnerabilidade de certos grupos, especialmente os mais pobres e com menor acesso a cuidados de saúde, permanecia relevante.
Do ponto de vista metodológico, o estudo de Nádia Rodrigues e Mônica Andrade – e de mais dois colegas, Joaquim Teixeira-Netto e Denise Monteiro – usou modelos estatísticos avançados, incluindo análises de sobrevivência e efeitos mistos, para identificar padrões de mortalidade. E as conclusões até sublinhavam a necessidade de intervenções direccionadas para proteger grupos de maior risco e reforçar a importância da vacinação, destacando que as estratégias de saúde pública precisavam de ser ajustadas às realidades socioeconómicas e geográficas.
Este estudo foi ‘acolhido’ com naturalidade. Mas esse acolhimento mudou com uma análise complementar de Nádia Rodrigues e Mônica Andrade, publicada noutra revista científica conceituada, a Frontiers em Medicine, na segunda quinzena de Dezembro passado. Neste caso, as duas investigadoras realizaram um estudo de coorte retrospectivo utilizando também os dados do SIVEP no período entre 2020 e 2023 com o fito de analisar os efeitos da mortalidade a médio prazo. E se no período médio após a covid-19, o risco de morte foi reduzido em 8% para aqueles que haviam sido vacinados, num período longo pós-covid, o risco de morte quase duplicou. E mais: enquanto no médio prazo houve redução na mortalidade para aqueles que tomaram duas ou mais doses, no longo prazo o risco de morte foi maior para aqueles que tomaram uma ou duas doses.
No estudo publicado, as duas investigadoras salientaram que “algumas possíveis explicações para o aumento do risco de morte por outras causas no longo prazo (após uma ou duas doses da vacina” são os “efeitos adversos das vacinas”, destacando que “embora as vacinas contra a covid-19 tenham demonstrado ser seguras para a grande maioria das pessoas, há preocupações sobre potenciais efeitos adversos de longo prazo (ainda que raros), como miocardite, trombose ou outras condições raras associadas à vacinação. E acrescentaram ainda que “estes efeitos podem ser mais pronunciados em alguns grupos, particularmente em indivíduos mais vulneráveis, o que poderia contribuir para um risco aumentado de morte por outras causas ao longo do tempo”.
Nádia Rodrigues, epidemiologhista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) estudou ‘tema tabu’: o risco de mortalidade por todas as causas de não-vacinados e vacinados contraa covid-19, apesar de ser uma investigadora que se tem destacado por promover as vacinas..
Por outro lado, destacaram as investigadoras no seu artigo científico, “a vacina contra a covid-19 pode ter um efeito indirecto no sistema imunitário para pessoas com condições pré-existentes ou para aqueles com sistemas imunitários enfraquecidos (como pacientes com doenças autoimunes ou aqueles sob tratamentos imunossupressores)”, referindo que “a resposta imunológica ao vírus pode ter efeitos inesperados ou complexos que aumentam a vulnerabilidade a outras infeções ou levam a complicações de condições pré-existentes”.
Apesar de as duas investigadoras salientarem no artigo científico as limitações do estudo – avisos comuns em Ciência – e de fazerem uma avaliação prudente dos resultados, o facto de colocarem em causa eventuais efeitos prejudiciais das vacinas contra a covid-19 num contexto de longo prazo, causou uma ‘hecatombe’ de críticas no Brasil. A própria Fundação Oswaldo Cruz, também conhecida por Fiocruz – equivalente, em Portugal, à Escola Nacional de Saúde Pública Dr. Ricardo Jorge –, reagiu na semana passada, tentando desvalorizar o estudo e apontando fortes críticas metodológicas. Isto, mesmo sabendo-se que uma das investigadoras em causa, Nádia Rodrigues, é uma das suas conceituadas epidemiologistas, de créditos firmados com mais de uma dezena de artigos científicos relacionados com a covid-19, e que, por diversas vezes, tomou posição favorável à vacinação.
Com efeito, no início da semana passada, o denominado Comitê de Acompanhamento Técnico-Científico das Iniciativas Associadas a Vacinas para a Covid-19 – presidido pelo próprio presidente da Fiocruz, Mário Moreira, doutorado em Políticas Públicas – criticou severamente as conclusões, apontando falhas metodológicas e sustentando que “a hipótese apresentada pelo artigo [científico numa revista que teve revisão pelos pares] contrasta com o vasto corpo de conhecimento científico publicado sobre vacinas e vacinação, não apenas contra a covid-19, mas também contra muitas outras doenças evitáveis por vacinação”. E disse ainda ser “crucial manter o rigor científico, evitando a polarização ideológica na pesquisa sobre vacinas”, argumentando que “artigos submetidos para publicação científica abordando causalidade relacionada a condições de saúde, que são multifactoriais por natureza, devem usar bancos de dados múltiplos, apropriados e robustos para testar hipóteses multicriteriais, além de declarar claramente as limitações metodológicas do artigo e das inferências apresentadas”.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil, apresenta-se como a mais destacada instituição de Ciência e Tecnologia em Saúde da América Latina. Lançou fortes críticas ao artigo científico de uma das suas investigadoras.
Esta posição seguiu em linha com uma nota da Fiocruz pouco dias antes, tomada para “reiterar a posição institucional de que as vacinas contra covid-19 aprovadas pelas autoridades sanitárias no Brasil são efectivas na redução dos casos graves e das mortes pela doença”, insistindo que “a vacinação contra covid-19 salvou milhões de vidas e foi fundamental para a contenção da doença e decretação pela Organização Mundial da Saúde (OMS) do fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional em Maio de 2023”.
As pressões políticas, que também surgem do próprio Ministério da Saúde, sobre um artigo científico incómodo, chegaram, entretanto, à própria revista Frontiers of Medicine que, na passada quarta-feira, publicou uma “manifestação de preocupação” anunciando que uma “equipa de integridade de pesquisa conduzirá uma investigação em total conformidade com nossos procedimentos”, adiantando que “a situação será actualizada assim que a investigação for concluída.”
Note-se, porém, que o artigo científico publicado na Frontiers of Medicine – e que contabiliza, só este mês quase 27 mil leituras, valores elevadíssimos para este tipo de revistas – teve edição e revisão entre pares. Um dos revisores foi o italiano Marco Rocetti, investigador com larga experiência em análise de dados aplicada à pandemia da covid-19. Aliás, num dos seus artigos, publicado em 2023 na Mathematical Biosciences and Engineering, destacava então existir uma “correlação positiva entre mortes por COVID-19 e excesso de mortalidade por todas as causas”.
Contactadas pelo PÁGINA UM sobre esta inusitada polémica, que transcende já a esfera científica, sendo mais política, Nádia Rodrigues e Mônica Andrade defendem a integridade do seu estudo, salientando que “a discussão dos resultados foi abrangente e feita de forma imparcial considerando todas as possibilidades e com embasamento [base] em outros artigos”, refutando que não tenham usado outra informação disponível. “Existem poucos estudos sobre a curva de sobrevida de pacientes graves em médio e longo prazo e portanto, não encontramos estudos brasileiros com esta temática”, referem as investigadoras. E respondem às críticas argumentando que “embora vários pontos levantados estivessem presentes na discussão, notou-se que deveriam ser enfatizados como limitações do estudo e posteriormente, solicitamos a incorporação destas”.
Artigo científico publicado pela Frontiers in Medicine, que causou polémica no Brasil, teve revisão de pares. Nas últimas semanas tem registado uma inusitada procura.
Sobre os “recentes ataques disseminados em mídias sociais, associando nossas pessoas a grupos antivacinas”, Nádia Rodrigues e Mônica Andrade dizem que, tanto a título profissional como pessoal, são “defensoras incondicionais do Programa Nacional de Vacinação [do Brasil], um pilar fundamental em nossas actividades académicas, práticas profissionais, e na promoção da saúde em ambientes familiares e sociais”. E dizem ainda acreditar que “as vacinas são um dos maiores avanços da Medicina, responsáveis por salvar milhões de vidas e prevenir doenças”, reafirmando “o irrestrito apoio ao programa de imunização, que é essencial para a manutenção da saúde pública no Brasil”.
Por fim, as duas investigadoras rejeitam “qualquer tentativa de distorção ou desinformação a esse respeito, com o compromisso de seguir promovendo a saúde e o bem-estar de nossa sociedade”.
O tom da mensagem transmitida pelas duas investigadoras brasileiras faz, em certa medida, lembrar a célebre abjuração de Galileu Galilei perante a Inquisição em 1633, e a frase a si atribuída como lamento: “E pur si muove“, aludindo ao facto de, apesar do que então lhe impunham dizer, a Terra continuaria a mover-se em torno do Sol.
Uma aquisição de serviços de telerradiologia, um tipo de prestação onde existe concorrência, foi contratada para o Hospital Garcia de Orta através de um simples ajuste directo de 707 mil euros, IVA incluido, através da Unidade Local de Saúde Almada-Seixal (ULSAS). E ainda mais: sem sequer ter sido assinado um contrato por escrito, onde constem as condições, tipologia dos serviços e o preço unitário. O ‘feliz contemplado’ por esta liberalidade de gestores hospitalares foi a empresa Dr. Campos Costa -Consultório de Tomografia Computorizada, pertencente ao universo do grupo Unilabs.
O anúncio deste peculiar procedimento de contratação pública foi publicado na plataforma Portal Base no passado dia 13 de Janeiro, mas o ‘contrato’ fico assumido em 26 de Dezembro, vigorando por 365 dias. Em causa, de acordo com os poucos elementos constantes no Portal Base, está a prestação de um serviço de telerradiologia, que consiste na transmissão electrónica à distância de imagens radiológicas, designadamente radiografias e TACs, bem como a elaboração de relatórios de diagnóstico por médicos especialistas.
Hospital Garcia de Orta, em Almada. / Foto: D.R.
No Potal Base, a ULSAS justifica esta despesa por ajuste directo e sem contrato formal reduzido a escrito “por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade”. Contudo, se o motivo de urgência pode ser invocado para não se abrir concurso público, não pode justificar um período tão longo de vigência, e teria de se confirmar se o atraso numa opção concorrencial se deveu ou não à própria estrutura local do SNS.
Além disso, não se encontra previsto no Código dos Contratos Públicos que um ajuste directo por “urgência imperiosa” justifique a ausência de um contrato escrito, ainda mais quando atinge mais de 700 mil euros, e não se vislumbra qualquer impedimento físico ou emocional para não se pegar em contratos similares e os adaptar ao actual contexto.
Até porque, na verdade, o Hospital Garcia da Orta já tem um longo historial com a empresa da Unilabs. Nos últimos dois anos, a Dr. Campos Costa facturou 1.016.475 euros, através de três contratos, dois por ajuste directo e um por concurso público. O primeiro contrato, no valor de 233.850 euros, foi adjudicado por ajuste directo em 24 de Julho de 2023. O segundo contrato, no montante de 207.625 euros, foi feito por concurso público no dia 21 de Agosto de 2023.
Em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM, a ULSAS explicou que o primeiro ajuste directo adjudicado a esta empresa, em 2023, resultou da “não adjudicação” após dois concursos públicos. Assim, foi decidido efectuar o ajuste directo à Dr. Campos Costa “para garantia de continuidade da prestação de Serviços de Telerradiologia, essenciais à prestação directa de cuidados de saúde, pelo período de tempo estritamente necessário até à conclusão” de um novo concurso público. Este ajuste directo “produziu efeitos de 1 de Janeiro de 2023 a 31 de Maio de 2023”.
Posteriormente, após a conclusão do novo concurso público, acabou por ser feita nova adjudicação à Dr. Campos Costa, produzindo efeitos de 1 de junho de 2023 a 31 de dezembro de 2023.
Segundo a ULSAS, no concurso público que deu lugar ao contrato com a Dr. Campos Costa, em 2023, “ficou expressamente prevista” a possibilidade “de adopção de procedimento por ajuste directo para a celebração de futuro contrato de aquisição de novos serviços que consistam na repetição de serviços similares objeto do presente procedimento”. Mas tal deveria ter sido feito de outra forma, ou seja, através de uma prorrogação do contrato já estabelecido, sob condições. Assim, aquilo que se depreende é que a ULSAS usou um argumento falso para celebrar um ajuste, porque a urgência imperiosa, por não haver contrato, era exclusivamente sua.
A empresa Dr. Campos Costa foi integrada no grupo Unilabs em 2017. / Foto: D.R.
Em todo o caso, a ULSAS, defende que o ajuste directo ao longo do presente ano está em “respeito pelas condições constantes do contrato suprarreferido”.
Recorde-se que a Dr. Campos Costa, que pertence ao grupo Unilabs desde 2017, foi condenada pela Autoridade da Concorrência, em 2022, ao pagamento de uma coima superior a cinco milhões de euros. Em causa esteve “a participação num cartel em concursos públicos para prestação do serviço de telerradiologia a hospitais e centros hospitalares no território nacional”, segundo a acusação da AdC.
A Dr. Campos Costa e outras empresas do sector repartiram entre si o mercado e puseram em prática estratégias para que houvesse um aumento generalizado dos preços dos serviços de telerradiologia junto de unidades que integram o Serviço Nacional de Saúde. Na altura, a Dr. Campos Costa colaborou com as investigações da AdC, tendo admitido a participação no cartel e abdicado de qualquer litigância judicial da condenação.
No total, esta empresa facturou 26.248.991,50 euros através de 127 contratos com entidades públicas, desde 2009. Só em 2024, a Dr. Campos Costa ganhou 4,130 milhões de euros em contratos feitos com entidades estatais, a maior parte através de concurso público e quatro por ajuste directo.
Sabendo-se que, segundo a ULSAS, o serviço prestado pela Dr. Campos Costa é essencial, aguarda-se a divulgação de um novo concurso público ou um ajuste directo relativo aos serviços que estarão a ser prestados, eventualmente pela mesma empresa, ao Hospital Garcia de Orta em 2025. Fica na dúvida se se invocará uma nova e estafada “urgência imperiosa” com pagamentos feitos sem se saber preços unitários.