Etiqueta: Sala de reflexão

  • Os genes e as crenças

    Os genes e as crenças


    A Estrutura Genómica Humana foi realizada pela primeira vez por James Watson Francis Crick. Não obstante, a contribuição de Rosalind Franklin para a descoberta da dupla hélice do DNA fora essencial, mas faleceu sem obter o merecido reconhecimento. Há mais de 20 anos pensávamos que tínhamos nas mãos os segredos da vida e as suas doenças. Elas poderiam ser enunciadas pelos genes que encontraríamos desde o embrião, e havia a esperança de que, por manipulação genética, as poderíamos resolver.

    O entusiasmo dos biólogos sobrepunha-se às preocupações éticas que aí advinham. Ao longo do tempo fomos percebendo que este raciocínio não se adequava à realidade. E hoje, estamos a perceber que as crenças são mais importantes que os genes. Mais do que o código genético, é o código postal que importa, como escreveu Van Der Kolk num livro publicado em 2014.

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    Desde então, tem-se acumulado evidências de que a saúde e a esperança de vida dependem mais da cultura e das crenças que nos foram transmitidas em criança do que a mensagem codificada nos genes. Na ordem do dia, já não está a Genética, mas a Epigenética. O que nos diz a Epigenética? Diz-nos que os genes condensados na cromatina presentes nos cromossomas, só se activam ao receber informação do ambiente.

    A Primazia do Ambiente revela-nos que a informação que controla a biologia começa com os sinais do meio envolvente, que por sua vez, controlam a produção das proteínas reguladoras do ADN sendo essas proteínas que determinam a actividade dos genes. A heresia de Howard Temin, quando descreveu a transcriptase reversa, mecanismo molecular através do qual o ARN poderia ser convertido em DNA, o que implicou o seu descrédito na época, ao desafiar a comunidade científica e os seus dogmas. Posteriormente, Howard Temin é agraciado com o Prémio Nobel pela sua descoberta, a transcriptase reversa.

    Afinal, não são os genes que nos fazem como somos? Os genes servem apenas para a reprodução das células. Por exemplo, as células enucleadas (núcleo retirado para extração do DNA) conseguem sobreviver e realizar todas as suas funções durante aproximadamente 2 meses, mas não têm capacidade para se reproduzir. E, se agora, descobríssemos que o sistema reprodutor da célula é o núcleo e o seu cérebro a membrana? As membranas das células eucarióticas são constituídas por diversos tipos de límpidos que regulam e coordenam a entrada e saída das substâncias da célula. Ou seja, o Sinal Ambiental é transmitido à membrana, que aciona as proteínas reguladoras do DNA no núcleo, sendo este traduzido em RNA e novamente em proteína. 

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    Nós pensávamos que os genes determinavam a vida humana condenando-nos  à prisão da hereditariedade, mas hoje sabemos que, os estímulos do meio ambiente que nos rodeia tem mais influência sobre nós do que os genes. O ecossistema é determinante na vida dos seres vivos e nos seus processos comunicativos de desenvolvimento.  No caso das células, os estímulos agem sobre os receptores localizados na membrana citoplasmática, de modo a que esta controle a actividade das proteínas e, assim, possa alterar a ordem estabelecida no núcleo.

    No caso do organismo, o meio ambiente também influencia os receptores que são extremamente complexos: o tacto, os receptores da dor e os pequenos fusos que assinalam a tensão muscular, os receptores que se alojam no nariz e na boca. As ondas sonoras e visuais que chegam ao cérebro depois de descodificadas por pequenos órgãos que se encontram na periferia do corpo, como os ouvidos e os olhos. No fim, é o cérebro que organiza todas estas informações, antes de as enviar coordenadamente, como se fosse um comando, a todo o organismo.

    Paremos agora para pensar: o comando do cérebro para o organismo destina-se a uma acção coordenada com vista a um objectivo, tal como: fugir, lutar, deslocar-se, procurar algo. Pode ser uma simples reacção imediata ou alguma coisa que foi analisada e pensada anteriormente. Palavras, hábitos aprendidos e memórias bem estabelecidas contribuem para essa acção coordenada. Imaginemos, se, descobríssemos que o que pensávamos ser o cérebro humano, fosse apenas o intérprete e coordenador do processo semiótico (sinais) do coração?

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    Na Universidade de Nova Iorque, Thomas Jefferson demonstrou pela primeira vez, através da tecnologia computadorizada de imagem, que o coração é revestido por uma camada fina de neurónios e mantido pelo cérebro através de uma intrincada rede de nervos. Além disso, o órgão cardíaco tem o seu próprio sistema nervoso intracardíaco (ICN) para monitorar e corrigir quaisquer distúrbios locais na comunicação entre os sistemas do corpo.

    Será que eu penso com o coração? Poderá o coração ligar-me ao universo de possibilidades infinitas cujas limitações advém das nossas próprias crenças? Já Protágoras, sofista, na Grécia Antiga, referia que o Homem era a medida de todas as coisas. 

    J. L. Pio de Abreu é psiquiatra

    Maria João Carvalho é filósofa com pós-graduações em Biologia, Ciências Cognitivas e Economia Social


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As doenças raras: um dia chega?

    As doenças raras: um dia chega?


    As Doenças Raras são uma questão preocupante na nossa sociedade e é-lhes concedido apenas um dia de atenção no ano, mas esquecida nos outros 364 dias. O dia 28 de Fevereiro é assinalado como o Dia das Doenças Raras na Europa e no Mundo.

    Neste dia, os meios de comunicação social e algumas figuras públicas participam e colaboram energicamente com acções de divulgação sobre as Doenças Raras, mas falta vontade política, e pressão por parte de sociedade, para criar projectos que levem ao desenvolvimento de um plano, que permita mitigar o handicap e melhorar as condições de vida, no quotidiano, das pessoas afectadas.

    No dia 1 de Janeiro de 2003 foi adoptado um programa de acção comunitária em matéria de Doenças Raras, incluindo doenças genéticas. Este programa definiu como Rara uma prevalência baixa de uma doença que afecte menos de 5 em cada 10.000 pessoas na União Europeia.

     Os Estados-membros comprometeram-se a cumprir as normas, mas em Portugal, por falta de verba, estas não foram implementadas. Esta mensagem pode ler-se no site da Fedra, depois do escândalo das verbas atribuídas pela Segurança Social à Associação Raríssimas, ainda por apurar. Este assunto de interesse do Estado ficou entregue a luz cansada dos dias.

    Há que fazer alguma coisa pelas Doenças Raras mais do que falar delas e exibir os bichinhos raros, os coitadinhos na televisão ou criar um dia no Parlamento Europeu, para divulgação destes doentes, com problemas complexos em todos os 365 ou 366 dias do ano. 

    Foi, então, que eu decidi colocar mãos à obra, porque embora o meu corpo me traia, o meu espírito é enérgico e viril.

    Eu, Maria João Carvalho, portadora da síndroma Ehlers-Danlos – considerada uma doença rara, aglutinada nas doenças do tecido conjuntivo por deficiência do “cimento do corpo”, o “colagénio”. Esta falta de colagénio, no meu caso, transformou-me numa espécie de mulher de elástico, digna de acrobacias de circo, mas com alguns senãos.

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    Há imensos pacientes colegas da patologia que faleceram por dissecações dos órgãos internos, outros fazem imensas luxações diárias e sofrem de um cansaço mórbido, cujas actividades mínimas causam exaustão. Porém, eu tenho coragem de gozar e rir, quando coloco o pulso dentro da cavidade após uma deslocação momentânea. Embora às vezes fique revoltada, de mau humor, e escrevo cartas à doença para a insultar.

    Sim, porque ela, a Ehlers-Danlos, é disléxica, cobarde e oportunista; disléxica, porque troca as letras e numa leitura de gene invadiu a minha bagagem genética; cobarde, porque não tem coragem de me enfrentar e dizer-me nos olhos que gosta de me torturar no silêncio.

    No meu caso, ela nem sempre está presente, mas no breu, quanto menos espero, ela aparece com os seus dentes pontiagudos e destrói os meus vasos sanguíneos, os meus músculos, tendões, articulações e pele. Ela é cruel e imprevisível. A maldita (Ehlers-Danlos) aproveitou-se da minha fragilidade emocional, nestes tempos negros que temos vivido e, sibilinamente, atacou os meus órgãos internos, as minhas válvulas cardíacas.

    Contudo, embora o nosso combate seja desleal, eu tenho a voz e as palavras para a denunciar – posso gritar contra ela e contra todas as outras doenças (Raras) que agem da mesma forma.

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    E por isso espero que o eco da minha voz escrita seja tão incómodo que se ouça na galáxia mais próxima. Eu não me renderei à maldita Ehlers-Danlos – ela sabe disso! Sou osso duro de roer. Embora tenha consciência que, no final, ela acabará por vencer.  Mas o meu espírito na multidimensionalidade de expressões sempre foi livre, belo e saudável.

    Nas minhas estadias de luxo no Hôpital Européen Georges-Pompidou, em Paris, tive a oportunidade de partilhar experiências de vida com os doentes raros e compreender a batalha travada por estes nas dificuldades quotidianas que a vida nos apresenta. As patologias raras apresentam uma multidimensionalidade de aspectos desafiantes à vida dos próprios, mas também à própria Medicina, até porque resistem aos fármacos convencionais e aos tratamentos, o que produz a necessidade da arte na Medicina, tal como, o médico no papel de malabarista na elaboração criativa de um protocolo arrojado nos denominados medicamentos (órfãos) para mitigação da dor e tratamento destes raros pacientes.

    Os Raros sabem bem ao que me estou a referir. Na diversidade das patologias raras, umas mais que outras, há algo extraordinariamente comum a todos estes Raros Humanos: partilham o sentimento de coragem de enfrentar a morte e transformar a vida numa experiência digna de uma Obra d’Arte.

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    Nos encontros com os Raros, há sempre um espaço borderline, onde rapidamente se passa dos sorrisos às lágrimas. Ainda bem que existem os Raros, para que os sentimentos não morram no mundo dos humanos. O que eu vi nos Raros – e é algo que dificilmente vejo nas pessoas ditas normais – foi um rasgo, por onde atravessa um raio de sol, nos olhos de quem sofre.

    Mas todas estas coisas, se, calhar, só eu é que vejo, e me preocupo. Poucos entendem as Doenças Raras; principalmente quando a aparência não é disforme nem visível, não raro são considerados loucos ou hipocondríacos. Eu habituei-me a ser o palhaço triste. Sim, é verdade que eu sou elástica e, às vezes, torpe – mas ninguém sabe!

    Nesta minha experiência de Rara no mundo da vida, eu tive imensas dificuldades e barreiras, porque o meu corpo teimava em não obedecer ao meu espírito e senti que no Mundo da Evolução das Espécies, segundo Charles Darwin, quem vence é o mais inteligente e o mais apto, logo se eu mostrasse as minhas fragilidades seria engolida perante um mundo altamente competitivo, onde, grande parte das vezes, sobrevivem os espertos e as cunhas…

    No ano de 2018 tomei a decisão de fazer um Mestrado em Economia Social, com o objectivo de criar Projectos Sociais para ajudar os Doentes Raros, e outros, a ter uma vida. Como fazia para a Eurordis França, porque era portadora do Síndrome Ehlers-Danlos, escrevi para o Parlamento Europeu, tendo participado na Jornada das Doenças Raras, em Bruxelas, no dia 18 de Fevereiro de 2020.

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    Posteriormente à minha participação neste evento, escrevi a diversos deputados políticos (Marisa Matias, Ana Gomes, primeiro-ministro António Costa, Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa), a única reacção foi um silêncio sepulcral.

    Por tudo isto, esperemos que o dia 28 de Fevereiro de 2023 venha cheio de holofotes e tambores, uma vez que nós só existimos um dia por ano, numa espécie de compaixão hipócrita na exibição dos coitadinhos! Mas não, não somos coitadinhos!

    Somos Super-Humanos que vivemos na solidão e na incompreensão dos outros, e carregamos um corpo que não nos obedece, mas temos a coragem e a determinação de metamorfosear o sofrimento e a dor na expressão mais bela da vida: o Amor ao próximo. O desejo intrínseco dos Raros é, afinal e tão-só, que o Amor renasça numa nova Humanidade.

    Maria João Carvalho é filósofa com pós-graduações em Biologia, Ciências Cognitivas e Economia Social


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Faltarão cadeados!

    Faltarão cadeados!


    Como muitíssimos brasileiros mal informados, estava eu tranquilo a assistir televisão – uma pacata e sangrenta partida do enlameado rúgbi inglês – quando uma nota no telefone celular me informou que uma baderna em verde e amarelo estava destroçando instalações do Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo), do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

    Porquê mal informado?

    Porque no dia anterior as águas turvas chamadas redes sociais – nas quais não navego – já haviam antecipando a possibilidade desses atos de pirataria política.

    Busquei o socorro de um ditado popular para tentar começar a explicar a um amigo português, Pedro Almeida Vieira, a minha visão – perfunctória e apressada – do acontecimento:

    –  Arrombada a porta da casa, coloca-se o cadeado.

    [N.D. Os adágios na língua de Camões têm distintas versões de um lado e do outro do Atlântico; em português europeu dizemos simplesmente “casa arrombada, trancas à porta”]

    Vamos aos fatos.   

    Pouco horas depois da arruaça vandálica, o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, demitiu seu Secretário de Segurança, Anderson Torres, que há poucos dias era – vejam só! – o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.

    Onde estava Anderson em dia tão movimentado? Nos Estados Unidos, na Flórida, onde, por acaso (será?) se encontra exilado por vontade própria o ex-presidente.

    Em Anderson foi posto o primeiro cadeado.

    Horas mais tarde, o ministro Alexandre de Moraes, o mais temido do Supremo Tribunal Federal, afastou, por noventa dias, o próprio governador.

    Segundo cadeado posto.

    Ora, a tomada e destruição dos prédios mais simbólicos da democracia brasileira certamente não se restringirá a esses dois cadeados. Exigirá outros. Mas quem os colocará? E em quem?

    Isso é o que veremos nos próximos capítulos da novela televisionada que teve início ontem.

    Para irmos mais além dos furibundos editorais da imprensa e dos sempre inflamados discursos dos políticos, que pedem cabeças e mais cabeças, seria interessante darmos um passeio pelas esquisitices da administração pública brasileira, esquisitices que seguramente contribuíram para o descalabro de 8 de janeiro.

    O Brasil é constituído por 26 Estados e um Distrito Federal (onde fica Brasília, claro). Tem um Estado que é mais populoso que muitos países: São Paulo, com seus 45 milhões de habitantes. E tem Estados com menos de um milhão de habitantes. Todos eles contam com forças policiais fardadas e armadas: as Polícias Militares.

    O Distrito Federal, como diz o nome, deveria ser um distrito, ou seja, uma unidade administrativa dependente de autoridade maior. Além da capital federal, também conhecida como Plano Piloto, o Distrito Federal conta com uma dezena de povoações menores, chamadas cidades-satélites.

    Criado em 1960, o Distrito Federal tem hoje 3,5 milhões de habitantes. Até 1988 era chefiado por alguém indicado pelo Presidente da República. Mas, no auge de euforia democrática da Constituinte de 1988, recebeu o direito de escolher pelo voto seu governador, três senadores, oito deputados federais e vinte e um deputados locais (chamados distritais).

    Agora, simultaneamente à carnificina que foi a última eleição presidencial, o Distrito Federal reelegeu governador um simpatizante do Governo Bolsonaro: o advogado Ibaneis Rocha.

    Então o paradoxo que temos hoje é: um aliado (ou ex-aliado, nunca se sabe porque os políticos brasileiros mudam facilmente de posição) de Bolsonaro no comando da cidade onde ficam as sedes das embaixadas e os prédios dos três poderes, entre os quais está o palácio de despachos do presidente Lula.

    Embora tenha obtido a liberdade de escolher seus políticos, o Distrito Federal continuou recebendo verbas federais para pagar suas forças policiais e os funcionários do sistema de saúde e educação (primeiro e segundo graus). Ou seja, continuou distrito.

    Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal (Brasília)

    Essa baderna, arruaça, barbárie ou mesmo tentativa de golpe – embora anunciada pelas estrondosas trombetas das redes sociais – não foi contida pela força oficialmente encarregada de impedi-la: a Polícia Militar do Distrito Federal. Daí as punições às autoridades de Brasília.

    Ocorre, porém, que o Governo Federal tem seus próprios mecanismos de vigilância: as poderosas Polícia Federal e Agência Brasileira de Informação (Abin), e mais os sistemas de informação das forças armadas que, em tese, todos eles, deveriam estar alertas para a eclosão de um atentado predatório de tais dimensões.

    Foi mesmo uma tentativa de golpe?

    Muita gente acha que sim. Mas as perguntas são muitas. Os que invadiram os palácios estavam à espera de alguém que viesse assumir a cabeça do complô? Quem seria esse alguém? Por que se retiraram sem resistência dos prédios públicos se eram tão numerosos?

    Destruídos os palácios, chega o momento de descobrir quem financiou a vinda de tanta gente à capital (fala-se em quatro mil pessoas, transportadas em cem ônibus, centenas delas já presas). Quem são e quantos são?

    Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (ao lado), é o Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Fez entretanto um pronunciamento sobre os acontecimentos de ontem.

    Nas redes sociais há milhares de rostos exibidos em retratos tirados dentro dos edifícios invadidos. Serão todos acusados? 

    Cabe ainda uma pergunta indigesta: haverá punidos dentro do próprio governo federal que, a rigor, estava no comando da nave chamada Brasil fazia uma semana?

    Enfim, só nos resta esperar que agora as autoridades brasileiras, que tanto falharam, se mostrem à altura de enfrentar esse novo desafio, que é esclarecer como, num certo domingo sem futebol, o país ganhou negativamente as manchetes de todo o Mundo.

    E profetizar, como o faria um iracundo editorialista de um jornal do século XIX: “Faltarão cadeados!”

    Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A comunicação social na promoção da doença mental

    A comunicação social na promoção da doença mental


    A comunicação social assume um espaço determinante no nosso mundo e na coordenação das acções humanas. A modernidade reflexiva é edificada na acção comunicativa, tal como é referida por Jurgen Habermas, e desenvolvida na teoria dos sistemas por Niklas Luhmann, sob o princípio fundamental da confiança.

    A confiança tornou-se no código que passou a alicerçar os valores éticos e morais nas organizações sociais de regulação de toda a actividade institucional social, política e financeira.

    O valor atribuído à confiança assumiu uma representação na dimensão ética, de tal modo que o presidente norte-americano Richard Nixon abandonou em 1971 o padrão-ouro, e a moeda passou a reger-se pelo código da confiança.

    A ética da “boa-fé” rege os diversos sistemas sociais que se alimentam e se auto-reproduzem na base da comunicação. O mundo moderno desenvolveu-se em torno da acção comunicativa que orienta as actividades individuais, colectivas, financeiras e políticas no mundo da vida.

    A comunicação social passou, assim, a regular o dia-a-dia das populações, na medida que lhes disponibiliza a informação sobre o estado do mundo, tal como o tempo, as epidemias, as questões sociais e as orientações políticas.

    Neste pressuposto da confiança, a informação recebida pelos principais órgãos de comunicação social vai toldando o nosso pensamento sobre o estado de coisas e ao circuito das nossas redes de relações com o mundo.

    A confiança surge numa espécie representação emocional colectiva, imediatamente deduzível na semântica de organização da psicologia social (a mente colectiva), na ética deontológica “do dever ser” que regula os códigos profissionais.

    Na era da comunicação, e da informação ancorado ao surpreendente desenvolvimento tecnológico e a uma maior dependência das redes sociais, a informação sobre qualquer assunto se propaga em milésimos de segundos.

    A comunicação e os jogos de linguagem aproximam-nos e criaram mundos inimagináveis dentro do mundo. A revolução tecnológica fora de tal ordem que assistimos, pela primeira vez na História, a uma pandemia online, com informação sobre os mundos da ciência e especialistas de diversas áreas a ser transmitida em directo em todo o lado.

    No mês de Março de 2020, assistimos em directo a uma mudança na comunicação social, a uma profunda dramatização do risco e a um estranho alinhamento sobre o tratamento da informação a nível internacional.

    A omnipresença do risco da morte passou a ser martelada durante 24 horas, em todos os meios de comunicação social. Naturalmente, uma campanha de terror e pânico tomaram conta do Mundo. O apelo constante ao medo, e o recurso à heurística afectiva na transmissão da informação, levou ao bloqueio do raciocínio lógico, o que facilitou que uma sociedade inteira abdicasse tranquilamente das suas liberdades, direitos e garantias.

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    Na lógica clássica, todo o argumento é considerado válido quando obedece ao princípio da identidade e da não contradição, caso contrário deve ser conduzido ao absurdo.

    As falácias lógicas passaram a constituir os argumentos expostos no espaço público através da comunicação social e facilmente aceites sem questionamento pelas populações – o que me deixou atónita!

    Algo estranho se passava e extrapolava a minha compreensão filosófica sobre o estado de hipnose colectiva. Numa conversa com o psiquiatra José Luís Pio Abreu, para tentar entender o que se passava na psyché humana perante o fenómeno de “anomia” generalizada que estávamos a experimentar, perguntei-lhe: “Qual é a explicação para esta apatia?” A sua resposta foi rápida e simples: o medo!

    Recordo-me de conversarmos algumas horas sobre a acção do medo e o mecanismo de acção dos neurotransmissores na resposta bioquímica do organismo humano.

    Interroguei de novo o especialista: “O excessivo aumento da adrenalina poderia moldar a arquitectura cognitiva da colectividade e alterar a percepção humana?” Respondeu-me que sim, num tom de voz calmo e sereno.

    Nesse momento, disse-lhe que estava na hora de escrever o segundo volume do seu livro que tem, como se sabe, o título Como tornar-se doente mental. Esse segundo volume poderia chamar-se Finalmente, conseguimos tornar-nos doentes mentais. Rimos! Disse-lhe que o Mundo era um manicómio! Ele retorquiu a rir: “Sempre foi”.

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    Na História da Humanidade, é a primeira vez que os perdigotos paralisam a Economia mundial na sociedade que sempre esteve exposta ao risco.

    Na pandemia surgiu um fenómeno novo: a comunicação social, através das empresas de peritos e cientistas, assume o papel de educadores da consciência colectiva para a verdade dos cidadãos, do bem comum, da cidadania, e passa a distinguir os cidadãos bons.

    A liberdade de expressão e a diversidade do pensamento, essenciais à vida humana e à democracia, parecem sucumbir aos direitos únicos dos Daimons modernos, que têm acesso directo à verdade divina, e a traduzem para o mundo dos Homens, sem que os últimos possam contestar. Caso o façam, são silenciados e julgados nos Ministérios da Verdade.

    Assistimos a diversas guerras que têm origem na comunicação e na linguagem. A Filosofia considera que os problemas do Mundo têm origem na comunicação, ou seja, na linguagem.

    No momento presente, temos a Guerra da Ucrânia que passou a ocupar o estatuto de terror ocupado anteriormente pelo coronavírus.

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    Outras guerras ocorrem, e tantas vítimas morrem ao mesmo tempo que as vítimas da Ucrânia, mas não são importantes para o Mundo nem para a comunicação social. O fenómeno psicológico e afectivo no impacto da notícia é relevante para o receptor, porque quanto mais apelo à carga emocional, maior será o seu nível de compaixão com as vítimas (e maiores as audiências).

    As mortes na Ucrânia geram mais compaixão e movimentação das massas do que as 200 crianças mortas no Iémen. Seres humanos são seres humanos sem distinção! Não defendo a guerra na Ucrânia, mas preocupa-me o fenómeno psicológico que origina a movimentação enérgica de massas a tomarem partido por o lado bom aprovado pelos meios de comunicação.

    O discurso de ódio e morte ao senhor Vladimir Putin é já permitido nas redes sociais, desde que seja claramente mencionada a invasão da Ucrânia. Estará mesmo tudo louco?

    A Ana Gomes, figura pública ligada ao Partido Socialista, veio ao espaço público fomentar o discurso de ódio sem que ninguém se indigne. As novas gerações perante a subversão de valores a que assistem quotidianamente, talvez passem a considerar que a sociopatia é uma carreira profissional e artística, e desmembrar o corpo do condenado publicamente é banal, tal como descreve Michel Foucault na obra Vigiar e punir.

    Estará a sociedade tão doente que pretenda normalizar a barbárie, de modo a criar uma ética de conduta para os bons assassinos que matam os maus. Estará a comunicação social a fomentar uma Terceira Guerra Mundial? Sim, porque todos sabemos que o senhor Putin não admitirá que o mundo ocidental o trate por assassino e apele à sua morte incentivado pelos meios de comunicação social.

    Finalmente, conseguimos tornar-nos doentes mentais.

    Filósofa (com pós-graduações em Biologia, Ciências Cognitivas e Economia Social)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.