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  • 1984: uma exposição

    1984: uma exposição

    Estava a fazer scroll no meu iPhone quando o aparelho estremeceu. Para os metais roubados ao Congo que sustentam o telemóvel foi um terremoto de grau 9. Até me assustou. Era a Teresa e atendi.

    – Então man!

    Man? Sucumbiste aos estrangeirismos?

    Respondi, perguntando com maldade.

    – E tu! Que estás sempre a dizer layer em vez de camada!

    – Tens razão. Tás boa?

    – Estou. E tu? Já viste as notícias no telejornal?

    – Vai-se andando. Estás a ligar-me por isso? 

    – Não. Claro que não, mas repara que Paris está a arder. 

    Disse ela com leveza.

    – Paris já está a arder há muito tempo. 

    – Chamem os bombeiros! (Ri-se).

    – Agora não tenho aqui nenhum ecrã à frente. Quando chegar a casa, ligo a CNN. Eles sabem tudo o que não se deve saber sobre terror. 

    – (Interrompendo) E o meu texto para o PÁGINA UM?

    Perguntou à bruta.

    – Ah, então era por isso!..

    – Também. 

    A razão destas palavras  é uma exposição da Teresa que está a decorrer na Galeria da ZDB e que acaba dia 20 de Julho. Disse-lhe que escreveria um texto sobre ela. A exposição chama-se 1984.

    Continuei,

    – Não sou uma máquina de escrever Olivetti, calma! Não é fácil escrever sobre isso do controle e da lobotomia. Lobotomia vem de lobo?

    – Não. Vem de Nobel. Não sejas parvo!

    – Não posso escrever um texto parvo? Agora, ficaste séria?

    – Podes, podes. Os textos já não são escritos para serem lidos. Se calhar porque hoje, principalmente reescreve-se demais. Inventa-se pouco. 

    – De qualquer forma, vou fazer uma analogia com os media provavelmente, é inevitável, mas esses, em geral, não fazem lobotomia às massas, fazem outra coisa bem pior. Tornam tudo abstracto. As tuas peças não são abstractas, muitas vezes até são chapa 4 e aqui nesta exposição há uma impossibil… (Ela não deve ter ouvido esta parte, ficou sem rede). 

    – … Disseste o quê?

    – Fiquei sem rede. Estava num túnel e estava a dizer que posso também escrever sobre a ZDB.

    – Vais dizer mal da ZDB?

    – Não. Não vou dizer nada sobre a Galeria. Dizer mal não me fica bem.

    – É melhor. (Rindo)

    – És feminista? Ando há meses para te perguntar mas tenho-me esquecido. É para o texto. 

    – Feminista como? Tás a gozar comigo! É por aí que vais pegar? 

    (Não consegui conter o riso). 

    – Não. Estava a tentar ser contemporâneo. É que sou pela ig…

    (interrompendo)

    – Estou a ficar sem bateria. Aparece lá amanhã em minha casa à u… 

    Caiu a chamada. Deduzi que quisesse dizer à uma.

    Eu e a Teresa somos das pessoas mais pontuais que existem e, por isso, à uma em ponto do dia seguinte, a Teresa abriu-me a porta do sexto andar do seu apartamento em Benfica. Trata-se de um prédio dos anos 70 com e sem alma, nunca percebi. Subi de elevador e ía morrendo.

    Estava um calor normal para o mês de Julho e não deixei de pensar no aquecimento global. Mesmo quando o tempo é normal, pensamos no aquecimento global. Fui na minha Yamaha e percebi nesse dia que Lisboa ainda podia ter salvação. A Teresa e eu somos lisboetas a sério.

    Abriu-me a porta com aquele seu andar apressado. 

    – Então estás bom? O meu texto?

    – Não vim cá para isso propriamente. E isso é assim logo a abrir?..

    – Vieste porquê?

    – Tive de ir à Loja do Cidadão ali em baixo e prefiro falar ao vivo que na minha câmara de filmar.

    Menti.

    – Hã?…

    – Sim. O telemóvel é a minha câmara.

    Aqui não menti.

    – Ok.

    – De qualquer forma tínhamos combinado.

    – Não tínhamos não.

    – Tínhamos, tínhamos. Está escrito lá atrás quase no início. Isto aqui é como o Big Brother da TVI fica tudo registado.

    – Tás a ver. É por isso que nas minhas exposições falo do controle.

    – Percebo. Ontem estava com o Cabral ao telefone e enquanto íamos falando eu tirava notas acerca do que ele dizia da tua exposição. É uma táctica que uso muitas vezes. Ouve: (vou às notas do IPhone).

    “A artista está constantemente a fazer-nos uma pergunta, ou melhor a pôr-nos uma questão inextinguível: onde fica a fronteira, o traço que nos divide, que nos exclui/inclui da actividade artística face à esfera social’”…

    – Ele disse mesmo assim ao telefone? (Interrompeu com surpresa).

    – Não. Claro que não. Assim, assim não. Ninguém fala assim. Ele dizia coisas e depois eu ía anotando, depois compus mais ou menos nas notas. Mas ouve o resto. Não interrompas. “… Por entre a deriva em explicar a Arte, na sua quietude e finitude, alcançamos, como pressuposto, uma ideia, por vezes, muito simples – ou seja, na tentativa de a compreendermos melhor, tentamos avaliá-la, ainda, em torno da sua antiga e discutível dicotomia – figurativo/abstracto, do maior ou menor emprego de valores tidos como simbólicos ou do modo como determinados procedimentos são empregues, entre outros”.

    – Uau! Isso é tudo verdade. Estou a gostar man.

    – Sabemos lá o que é a verdade.

    – É o contrario da m…

    – Ouve o resto. Falta pouco. “Neste contexto, deveremos colocar a irrecusável tentação de recorrer a tendências ou a correntes nas quais se podem filiar os objectos, bem como a tudo aquilo que nos possa ajudar a situá-los para além de um plano meramente artístico.

    – Posso assegurar-te que esta parte disse-a assim tout court.

    E continuei:

    – “É o caso da Escultura da Teresa Milheiro, que nos oferece aquilo que é a génese artística, o paradoxal – como pode a Arte ser feita como se fosse uma jóia, um precioso adorno sem, no entanto, colocar esse ditame em causa? A escultura dela apresenta-se sob a forma de uma jóia, é certo, mas recusa disponibilizar-se enquanto tal, é a Arte, na sua justa luta, do dia-a-dia, a manifestar-se”.

    O telemóvel da Teresa toca.

    – Desculpa tenho de atender o telefone. Sou capaz de demorar um quarto de hora. É da Turquia. Mas está espectacular.

    – Ok. Está como se estivesses em tua casa.

    Gracejei sem que ela ouvisse e sentei-me no sofá da sala.

    Escrever para esta nova exposição da Teresa não é evidente! Ela engendra objectos cada vez mais estranhos e escultóricos e é uma constante perguntar-me acerca do que é que se pode e deve abordar num texto. Do método? Dos temas? De nada? Da vida do artista com uma nota biográfica? Do processo e dos materiais? Soa-me sempre quase tudo a falso e aparecem sempre textos a despachar. Hoje, há pouco tempo para tudo e o pouco que há, não é para mandar um cego cantar e ficar a ouvir. 

    Pego no meu iPhone e vou até às notas onde tinha apontado o texto do Cabral que para mim ainda não cobria o essencial. Tinha anotado alguns items depois de uma conversa com a minha amiga:

    Fragilidade/Paradoxo. Forte. Resistente. Aceitação. Fragilidade do vidro. 

    Agressividade. Metal. Leucotomia/Lobotomia. Controle.

    Notas de merda que não servem para nada. Pensei que mais valia estar quieto e ir até à praia.

    Tangas contemporâneas que não querem dizer nada. Vejam as peças e perceberão logo isso… Ou não. O vidro por exemplo não é só representativo da fragilidade, o metal não é forçosamente a resistência, a lobotomia não é necessariamente uma metáfora. No mundo da linguagem, a paleta de cores é muito mais vasta e diversificada. Mas sim, precisamos da palavra, hoje mais do que nunca, mas da palavra certa no momento errado, duma palavra que não se auto-banalize, que não se auto-destrua à primeira má interpretação. 

    As peças dela já são por si um organismo, é isso que a define. Acima de tudo, as peças são ela. Têm o seu carácter, falam por si a maior parte das vezes. São acutilantes e irónicas, por vezes delicadas como ela. As palavras podem estar a dizer outra coisa, podem estar a apontar noutras direcções, podem pertencer a outros mundos paralelos, podem ser só sons e podem não implodir com o que resta da vida. 

    A Teresa apareceu de rompante ainda com o telefone na mão e perguntou se já tinha almoçado.

    – Não. 

    – Queres vir almoçar?

    – Não. 

    – Estás chateado comigo?

    – Não. Claro que não. 

    – Só dizes não?

    – Sim. 

    – Estás a pensar em quê? Estás sempre entre paradoxos. Lê lá outra vez essa ultima parte do Cabral!

    Concentrei-me, levantei-me do sofá e olhei-a nos olhos. 

    – Tu e eu, as tuas peças, este texto, a nossa ligação, estar aqui agora e tu aí, a linguagem que usamos para nos entendermos, tudo junto, é que é a melhor obra. E pode já não haver palavras para a definir. Aquilo que nós sabemos ser a grande obra, a mais poderosa, aquela que está para além da morte. Aquela que é vida a toda a hora. Já somos a própria representação, as tuas esculturas já fazem delas mesmas, fazem de ti porque deitas para lá todo o teu sangue. 

    – Não fales em sangue que me faz logo lembrar… Sangue.

    – As tuas peças, se queres que te diga, são a maior metáfora disso. São meta. Pelo menos enquanto residirem aqui. Mas dizer metáfora está errado, não há folha de sala que não nos bombardeie com essa palavra que ficou oca de tanto a gritarem. Estas peças não têm nada a ver com a lobotomia, ou com o 1984. Têm a ver com uma certa linguagem, com uma certa crueza e transparência que há em ti e isso não é traduzível para texto

    – Estás acelerado. Pareces o Nico Rosberg.

    – Estou só concentrado.

    – Mas continua, estava a gostar 

    – A lobotomia pode ser a origem da inspiração, mas a lobotomia não tem beleza e isto não é uma ilustração da brutalidade. A violência em que a tua criatividade mergulha é que é assinalável. As melhores peças são aquelas que nos inspiram criatividade e a lobotomia faz justamente o contrário. Às vezes, penso que somos uma espécie de guerrilheiros urbanos que andamos por aí, pela rua, entre os inimigos e, nesse caso, as tuas peças são as minhas armas. Queres melhor? Tornas-te subjectiva e útil ao mesmo tempo. E, nesse caso, temos muitos combates ainda para fazer. De certa forma, a estética da violência une-nos. E há uma beleza contida na violência, mesmo na verdadeira. E tu não tens medo dela. Fazes uma guerrilha à própria violência. E eu escrevo-te assim. Não é giro?

    – Giro? 

    – Não vou escrever nada sobre os media tradicionais, nem fazer analogias com o Poder, nem com a fragilidade de seres mulher ou com o feminismo, pelo menos aquele que está em voga. Tu não tens nada a ver com isso. 

    E ela interrompe como se não estivesse a perceber partes:

    – Ainda estou atónita com essa tua conversa. Não queres mesmo ir até lá abaixo almoçar? Vamos ali à esplanada e vemos uns turistas a andar de trotinete para espairecer. Até Benfica já tem turistas.

    – Sim. Na tua cabeça. Ou melhor… Na minha.

    – Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelada por uma. Nunca te aconteceu?

    Perguntou em tom irónico.

    – Claro que sim. Está sempre a acontecer-me. Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelado por uma também. Ali, precisamente junto ao jardim Zoológico. Se não tivermos cuidado, somos sempre atropelados junto a qualquer coisa. Estou agora a lembrar-me que estava contigo quando íamos sendo atropelados por um turista. Se queres saber a verdade… não, não estava. É que eu não estou sequer agora aqui contigo; pensando bem, nem há pouco estava contigo e, pensando ainda melhor, nem muito menos me ligaste ontem. Pior, ontem não existiu e para complicar tudo ainda mais… Não existe tempo.

    – Estás a brincar comigo?

    – Talvez. Mas então é por aí que devo ir, que estou a brincar contigo, ou então dizendo que não há tempo e que as tuas peças são de alguma forma intemporais… Existem fora do tempo e até do próprio espaço. Estas palavras deveriam ser as tuas jóias, mas por outros meios como a guerra e a política. As tuas jóias, para mim, valem ouro, porque ao olharmos para elas, vêm-me palavras à cabeça. E as palavras acima de tudo precisam de ti. O mundo precisa de palavras. E os teus objectos são a possibilidade da palavra.

    – Mas eu estou aqui ou não?

    – Tu é que sabes.

    Respondi sem responder. 

    – Sou só palavras pensadas por ti?.. Ou isto é tipo um filme estúpido de terror do AXN em que a personagem está, depois não está, depois volta a estar… Desaparece… Aparece… Há tempo, depois não há tempo… 

    (NÃO) EPÍLOGO:  Este texto prescinde de um epílogo já que, enquanto o autor estava na iminência de o redigir, apareceu o Timóteo com uma bola na mão a chamá-lo para irem dar uns toques até à Alameda. Assim, por falta de tempo, marca da actualidade, o epílogo não foi escrito. A caminho do local onde a jogatana se iria dar e a pedido do autor, o Timóteo leu no smartphone o texto até este falso epílogo, e sugeriu que o texto acabasse justamente assim. Mesmo assim.

    Ruy Otero é artista media

    Fotografias de Eduardo Sousa Ribeiro


    1984 – exposição de Teresa Milheiro

    20.05.24 — 20.07.24

    Galeria Zé dos Bois

    Rua da Barroca nº 59
    1200-047 Lisboa, Portugal

    Horário ARCOLisboa:
    21 a 26 de Maio 12:00 — 22:00
    Entrada livre.

    Horário 27 de Maio a 20 de Julho:
    Segunda a Sábado 18:00 — 22:00
    Entrada: 3€

    Curadoria: Manuel Costa Cabral e Natxo Checa


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  • Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte II

    Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte II

    (SEGUNDA PARTE)

    [Pode, ou se calhar deve, ler a primeira parte desta crónica AQUI]

    O mundo dos humoristas não anda lá muito católico – isto já para não falar do mundo dos católicos, que anda para poucas brincadeiras. Isso é missa para outra igreja, como se costuma dizer nos Himalaias.

    Nem de propósito, ou a despropósito, o nosso RAP (Ricardo Araújo Pereira) foi ver o Papa, e tentei pesquisar alguma coisa de interesse na Net sobre esta epopeia a Roma.  Nada encontrei de relevante, mas tropecei no óbvio, reparei que qualquer pessoa no planeta virtual tem os seus detractores, e como se trata ainda para mais de alguém famoso, sobretudo através dos típicos comentários, é natural que traga à tona o pecado da inveja, que dizem ser pecado mui português.

    Eu acho que é pecado universal, mas, propositadamente, acho que o humor do RAP nem é pecaminoso nem universal.

    É coiso… Só.

    Mas agora até tem a benção… do Papa.

    Temos então um humorista nada crente, que vai ver o Papa quando o Papa manda, e quase agrada a gregos e a “não sei quem que há-de vir”, como vociferava o José Mário Branco aos “cabrões de vindouros“. Quando disse gregos deveria dizer esquerda (donde ele vem), e direita (donde o Papa deveria vir) era “não sei quem que há-de vir”, mas, e porque os pontos cardeais andam tortos e como duvido que o cómico saiba hoje definir geografias políticas actualizadas e demarcadas, (o que não quer dizer acertadas), já nem se percebe para onde vai o seu humor.

    Estará ele a ficar jesuíta?… como o Papa.

    Continuemos. Em política, a fantasia continua a ser a norma. E nada melhor que o comunismo e os seus ideais de igualdade para nos permitirem pensar diferente. Todos diferentes, todos iguais foi uma frase instalada no território de uma certa juventude nos anos 90, tendo a Benetton sido a marca (verde) associada. Foi um capitalismo até dizer chega, disfarçado de comunismo até dizer basta. Daí não ser difícil agradar a gregos e a “não sei quem que há-de vir”, quando se disputa o jogo da democracia abstracta, do humanismo à-la-carte. Mas o papel do Bobo da Corte já era. O Tempo não anda para brincadeiras.

    Na verdade, é ser bobo da corte estar sempre a dizer que se é Bobo da Corte. Mas como os reis alteraram a morada do palácio, talvez os bobos já nem com GPS se safem. Não faz rir – e já não é uma boa desculpa, uma vez que o RAP se assumiu muitas vezes como tal.

    Caramba: se houvesse Comunismo a sério e já agora, Liberalismo, é que era.

    Ao menos podia-se discutir política nos moldes clássicos, em que dizer barbaridades até podia cair bem, consoante os contextos, como ainda foi possível nos anos 90, e mesmo nos 00 deste século, que pesam muito num tipo de “artistas” nascidos profissionalmente numa época onde se permitia quase tudo no humor. Sinal dos tempos, alguns habituaram-se mal (bem).

    Mas faça-se justiça e traga-se, já agora, também o Herman para as contas desse rosário num Portugal que andava a tentar acertar o passo europeu com Euros e Expos.

    Houve liberdade quando o Ricardo começou a escrever para o Herman. Aprendeu alguma coisa.

    Ao Herman, estranhamente, perdoa-se tudo.

    Gosta-se. Faz parte, não sei explicar. Falava dos seus relógios e dos seus iates, mas não dizia que era comunista. Mesmo não cantando assim tão bem, e tendo o hábito de interromper vezes demais os seus convidados, ainda que muitos nada tivessem para dizer. Hoje não o imaginamos sem o seu piano algures num Music Hall a encarnar o Feiticeiro de Oz.

    Mas outros, não vá o trabalho faltar, ainda têm de andar a pedir desculpa pelo que fizeram e disseram nesses anos loucos de liberdade, coisa que o RAP julgo nunca o fez. Ganha pontos aí.

    O estatuto é realmente uma conquista. Como o fez para sobreviver já não sei, uma vez que a minha especialidade é analisar crustáceos do Curdistão para o Porto Canal.

    A cultura woke que prolifera na atmosfera do poder mediático, fechou certamente os olhos a certos sketches dos Gato Fedorento, até porque, num ou noutro, chegou a fazer de africano. E a parodiar.

    Ainda bem.

    A cultura do cancelamento quase sempre é exagerada, senão mesmo estúpida, e aí percebemos que o Ricardo é ainda Charlie Hebdo.

    Recuemos. Assisti com interesse ao aparecimento do fenómeno Gato Fedorento, momento de explosão de vários humoristas em Portugal, e que se deveu a dois factores: à influência das Produções Fictícias, que praticamente dominavam o mercado de humor com o chefe e dúbio Nuno Artur Silva à frente de um grande elenco, e também ao Levanta-te e Ri da SIC, onde cabia todo o tipo de humoristas, desde os péssimos e brejeiros, até aos mais sofisticados que viam o Seinfeld e sabiam quem era o John Cleese, incluindo o próprio RAP e até o Bruno Nogueira, que era muito jovem dando nesse programa os primeiros passos.

    Ficou conhecido com a piada do senhor do bolo que era o Balsemão, o nosso intocável chairman dos Bilderberg.

    Para quem não souber o que é isso com nome de hotel, pode comprar o livro de Frederico Duarte Carvalho que anda por aí à venda, e talvez se surpreenda e até aprenda alguma coisa sobre o mundo, mesmo que sendo a Wikileaks dos pobres (porque ninguém pode lá entrar) conspira o suficiente para acreditarmos na literatura. Já não é pouco. E o Frederico é bastante bem humorado e faz bem à vida. Aqui no PÁGINA UM é um herói para mim. 

    A boa comédia é uma conspiração, se virmos bem.

    A boa vida é uma conspiração contra ela própria, se ainda virmos melhor.

    Duvido que o RAP tenha lido esse livro. E se o leu não diz a ninguém.

    O Poder existe, e o Poder tem poder e talvez ele conheça a redundância toda-poderosa.

    O Bruno saberá, porque também teve de comer a fatia do bolo que a SIC amassou, mas sempre arriscou muito mais do que o rapaz do kickboxing. Há, apesar de tudo, mais sofisticação no Bruno, mesmo que tenha sido um radical covidiano atentando contra as liberdades individuais, princípio que o humor não deverá abdicar nunca. Tiramos o chapéu ao Rui Sinel de Cordes e à sua incompreendida coragem.

    O morcego não devia ter chamado um figo ao pangolim e os humoristas deviam ficar às vezes sossegadinhos nos seus escritórios a inventar piadas masé. 

    Ainda assim nunca esqueceremos O Último a Sair.

    Avancemos. O RAP é o cómico dos pobres, mesmo se os menos pobres junto com os betos também se riam, mas estamos peranta uma evidência: Portugal dança uma permanente valsa com a pobreza. Ainda assim, sejamos justos, bate aos pontos o Markl: esse é mesmo insosso, ou sonso, e faz parte da maralha tipo Unas, que riem das próprias piadas e pedem desculpa por serem irreverentes, quando ainda por cima nunca o foram.

    Vão ver o Cabaret da Coxa e o enxovalho generalizados aos homossexuais, por exemplo. Outros tenpos.

    Nem ele, nem quase ninguém se mete com o obscuro. E aí reside a pobreza. Lembro-me logo de Lenny Bruce e da sua luta.

    O Poder é tramado e criticar os alvos certos não é para todos, não rende como a Worten. Dá  trabalho e depois ainda gozam connosco.

    E isso percebo e aceito bem; pode até custar caro. A História tem sido pródiga em criar vítimas. É mesmo a doer.

    Também encontro valor em manter o status quo, o problema é que o humor devia ser um desporto diferente num mundo mais sustentado.

    Em humor devíamos jogar hóquei patins sem os patins, e usar o stick para dar outras stickadas.

    Dá trabalho e perde-se trabalho. É tramado. É que o humor tem poder e é estranho tanto desperdício, sobretudo quando há talento.

    Mas Worten sempre.

    O Ricardo luta pelo comunismo na SIC e fez do Chega o seu Vietname.

    Mas, por outro lado, parece evidente que nos canais actuais, com as dividas e agendas do nosso zeitgeist, não seja lógico (ou prudente) gozar com quem controla. Assim, opta-se claramente por gozar com quem baralha. Ou trabalha – já estou baralhado.

    Só em países mais sofisticados se pode exercer essa arte dentro do mainstream. Mas é paradoxal.

    É assim a vida, mas terá sempre a sua poética, esteja o vento para sul ou norte. Ou mesmo a norte de nenhum sul.

    Intróito. Aconselho a ler o Fernando Pessoa e o seu Banqueiro Anarquista para perceber a contradição.  Segundo um grande amigo, Ricardo Escarduça, que já foi e ainda é engenheiro do tempo perdido, o humor é uma pulsão que convida à relação, que lança no descobrimento e faz luzir o cuidado afectuoso do ser humano com o outro, com as coisas e consigo. Une – ou deverá.

    Portanto, RAP está demasiado ocupado a olhar o espelho encontrado no lixo, gosta de gozar com quem fala dos Illuminati por exemplo. É fácil gozar com aquilo que não se vê. E há por aí muitos tarados (chalupas como se banalizou) a precisar de psicotrópicos. Sabemo-lo bem. É fácil demais.

    O elo mais fraco, é mesmo mais fraco. E nas redes, através dos comentários, as marés estão sempre a voltar-se contra os marinheiros.

    E o RAP não é maré. Mas também não é bem marinheiro, nem de água doce. Haverá algum mistério, dê-se ainda o benefício da dúvida ao matulão. A vida tem coisas…

    O Herman gosta demasiado de humor para navegar nas águas turvas cujo fundo não se vê, e  quando vende o peixe, percebemos sempre que é da lota errada. É estranho, mas é assim. O Mr. Watch tem um dom.

    Mas nas redes existem inúmeros canais que fazem outro desenho, até o próprio ex-Gato Fedorento Tiago Dores é um exemplo – e parece bem mais honesto, intelectualmente, do que o kickboxer. E é mesmo cómico nos seus esquiços (sketches).

    Bom, mas mesmo assim, tem de vender a Prozis, mas, enfim, isso na área mais liberal é normal, não se tendo ainda arranjado outra fórmula de subsistência, já que em Portugal é difícil viver dos consumidores quando o produto cultural a consumir é de qualidade acima da média.

    Eu compro Prozis.

    Não compro nada: estava a brincar!

    Continuemos. Ao nosso Ricardo Araújo não lhe falta mais liberalismo – sendo esta uma palavra mal conotada hoje, estupidamente. Na verdade, falta-lhe é liberdade, porque somos capazes de reconhecer no cómico bastante potencial evolutivo. Noutro contexto, se o medo não fosse um dos actores principais, acho que estávamos a falar de alguém mais aberto à linguagem. 

    O medo devora a alma disse o Fassbinder. Para mim, esconde.

    O problema em Portugal éque ninguém puxa por ninguém. É um país pobre de espírito, e o humorista sofre as consequências disso.

    Quando muito, iria parar ao Porta dos Fundos, mas ainda assim, ele é melhor que o franchise brasileiro.

    Não percamos o fio à meada. RAP pouco deve ao HIP-HOP, foi comunista, e talvez ainda o seja, mas gosta de fazer publicidade ao “Capitalismo”. Comprem um telemóvel da Worten, mas dividam-no pelos cinco que vivem aí em casa. Tem é de ser na Worten, certo? Mas se todos puderem comprar um cada um, ainda melhor.

    Mesmo aos imigrantes que o Portugal do Ricardo não sabe acolher, deixando-os na rua, ele vende sem compaixão. No negócio, não há pudor ainda que as marcas vistam bandeiras coloridas.

    Para eles, tudo o que vier à rede é peixe. Mesmo que os filetes, ou os douradito do Capitão Iglo, não tenham sal. É essa a regra instalada. Comprem lá mas é uma máquina de café.

    Portugal, afinal de contas, é a sua propriedade privada. Estranho para quem gosta de dividir. O RAP e alguma esquerda indefinida que todos conhecemos gostam é de dividir o Expresso no Frutalmeidas. Talvez a única coisa que sejam capazes de dividir num mundo que já tresanda a partilha.

    Dividir para reinar – é isso!

    O comunismo afinal é um chalé. O verdadeiro comunismo, uma dádiva.

    Mas não aquele comunismo que matou Eisenstein, ou Meyerhold, passando por Maiakovski. Outro qualquer que um dia apareça, que una em vez de dividir, mas que tenha lido e assimilado Shakespeare.

    O RAP vende tudo o que puder menos a extrema-direita, isso já se percebeu.

    Um dia que tenha de entrevistar por obrigação o líder dos  “feios, porcos e maus”, terá de levar colete à prova de bala. Mas não devia ter medo de reavivar os western spaghetti, dando-lhe cor, crítica e humor. O humor devia existir para lá da política também.

    Podia aproveitar e mostrar-se culto, se o for, claro. Hoje os padrões estão muito baixos.

    Basta dizer Hemingway, e o Jornal de Letras quer logo fazer uma entrevista. Se disseres Simone de Beauvoir ficas logo lá a trabalhar… Sem salário, claro.

    Mas se tiver de acontecer por obrigação alguma entrevista à força, o RAP sairá por cima, certamente, porque jogará mais uma vez em casa.

    Aliás o RAP nunca jogou fora. Nunca esteve para levar goleadas e tanto ele como o líder tipo western spaghetti do twitter jogam no mesmo campeonato, mas em campos diferentes. Visto de um drone a voar alto, são ambos pequenos.

    E são um bocado doidos pelo Benfica. Gritam golo em uníssono.

    Visto de um drone… Da Worten, claro.

    O actor é sem dúvida inteligente para não se dar à humilhação, mas não percebeu que o futuro não está privado de história, e tanto paradoxo à flor da pele um dia rebentará. Os estilhaços cairão provavelmente em cima da festa do Avante. 

    Tal como o Benfica, o cómico é forte com os fracos e fraco com os fortes, disse-me um amigo meu que não brinca em serviço, mas é do Sporting, que há pouco tempo era fraco com os fracos.

    Como actor, RAP não é fantástico, mas usa os clichés certos – de facto, alguns foram inventados por ele e tem alguns trejeitos, mas que são quase sempre os mesmos. Não evoluem.

    Nisto, o Herman é muito mais versátil, soando a verdadeiro na sua artificialidade, no seu exagero. Mas, como a vida, ficou exagerada… Hoje, quase achamos o Herman um artista plástico. Numa época de curadores, talvez lhe saia a sorte grande.

    É inevitável a comparação com o alemão. O pai e tio deles todos.

    E para concluir, ainda que eu não seja especialista (aliás a minha única especialidades são os cannellonis à Lagareiro, confirmada pela TripAdvisor da Brandoa), aceita-se o jogo mediático do humorista, aceita-se os trejeitos em que os gozados são sempre do norte e fazem ‘ch’.

    Aceita-se o pouco ecletismo facial, os tiques na voz e as subidas de volume acompanhadas pelas caretas do costume, o bater na mesa antes de o programa começar tal qual o Jon Stewart faz, a forma como passa de um tema para o outro é pouco menos que catastrófica, e adivinhamos sempre o tom apalhaçado com uma vozinha reconhecível, sendo nestes pormenores que devia aparecer a arte. Também não é fixe o dress code, que colou como imagem de marca. Na verdadem pesa-lhe, não é humoristicamente ergonométrico. Enfim, de uma forma geral, não se devia colar tanto ao Jon Stewart, o papa da maralha do humor, que voltou, entretanto, às lides do infotainment, talvez para chatear o Trump.

    Não fica bem.

    Conclusão: Ricardo, não me conheces, mas por aqui não passa nada. Eu escrevi isto antes do jogo da Eslovénia, mas hoje, dia da publicação, até o Diogo Costa concorda comigo. Eu já te vi: eu é que sou o gajo de Alfama.  

    Ruy Otero é artista media

    Este texto foi inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    (PRIMEIRA PARTE)

    Nos tempos que correm, não é fácil falar de pessoas muito menos para dizer bem. As redes sociais deturparam as relações que já não eram famosas antes do planeta Google. 

    Nada parece credível, soa sempre a ressabiamento. “Se ele está a escrever aquilo é porque deve ter alguma coisa contra” pensarão alguns. “Se está a dizer bem, está a engraxar”.

    Não!!!

    A crispação ganhou o campeonato e qualquer opinião irá sempre parecer uma arma de guerrilha ou uma vingança. A desconfiança é o novo mapa-mundo num contexto em que os socialistas e comunistas acham que vivemos num sistema neoliberal, e os neoliberais acham que vivemos num mundo comunista ou socialista.

    É culpa das pessoas também.

    Mas vou tentar escrever sobre o Ricardo Araújo Pereira sem entrar nesse campeonato desolador.

    Às vezes pergunto-me, o que não pensaria o provocador e magnífico Thomas Bernhard acerca destes tempos extremados em que o norte anda a sul!

    Sabemos que, para invocar aquilo que de melhor os humanos têm pressupõe haver valores e, ainda para mais aqui tratando-se do cómico mais proeminente e com mais (aparente) piada do país, não se vislumbra tarefa fácil criticá-lo estando num mundo em que todas as pessoas já devem ter uma opinião generalizada, (na maior parte das vezes, aferindo-se basicamente pelo gosto, o que é normal, não se tratando de especialistas), e também porque não sou especialista em esventrar cómicos.

    A minha única especialidade são as amêijoas à Bulhão Pato (confirmado pela TripAdvisor de Chelas).

    E, tendo em conta também o difícil que é pôr as pessoas a pensar numa opinião divergente ou simplesmente diferente da sua, já formulada e reforçada pelo algoritmo humano, ainda se torna mais tramado, porque a fronteira é ténue entre a opinião e a piadola, e talvez seja essa a genialidade dos bons cómicos: fazer uma envolver-se na outra da forma mais natural possível.

    Apesar de todos os ventos contrários, sinto-me preparado para a batalha interna que aí vem ao ter de olhar para o herói. 

    Comecemos com uma nota didática.

    Os portugueses dizem comediante que vem do inglês comedian, mas eu gosto da escola francesa em que comédien não é necessariamente ser cómico. É mais vasto, é ser actor.

    É representar, e essa velha escola ainda tem glamour mesmo que a França esteja a perder o perfume. Por isso nunca me referirei a RAP como comediante. No entanto, entre a cultura estadunidense e francesa, ganha obviamente a primeira no poder de influência. No Ocidente já não se fala francês.

    Indo ao assunto:

    O entertainer tem características favoráveis: a capacidade de trabalho é um exemplo; tratar do olho cuidadosamente para, em terra de egos, continuar a ser rei será outro; não misturar a vida pública com a privada ou a capacidade de dizer os textos sem se enganar, mostrando uma boa coordenação motora e rítmica; estar no Governo Sombra (que tem outro nome) há bastante tempo e continuar a fazer rir os colegas de painel com análises sobre a actualidade, sobretudo a de manter alegre o risonho e deslumbrado moderador do programa que continua, ao fim de tantos anos, embevecido com as capacidades intelectuais do matulão, será também de sublinhar.

    Contrariamente é facto não tão abonatório, não conseguir arrasar o Presidente da República que bem merece, ainda que se perceba.

    Quem andar atento sabe que está sentado ao lado de um dos seus guardiões, o homem transparente, impoliticamente correcto: o assessor Pedro Mexia.

    O cómico, às vezes parece que chateia não chateando (técnica tradicional da sociedade do espectáculo e que vem em todos os manuais), com a cumplicidade do próprio presidente que é insuportável e que já só se contenta em testemunhar os afectos e os sentidos torpes que ainda representa. Há quem diga que está maluco. Politicamente maluco, se é que não o foi sempre, mas com a simpatia dos media em geral para quem era uma raridade em inteligência e intuição.

    Absurdo.

    RAP habita também esse programa para fazer o contraponto ao direitolas de esquerda, João Miguel, que parece apreciar a vida em todo o seu esplendor e bem na minha opinião, ainda que ligeirinho demais. Mas não resulta muito bem. Aquilo parece um coro gregoriano de meia-idade.

    Enfim, globalismo à la carte, mas disfarçado de não-sei-quê, é-nos oferecido semanalmente por estes governantes-sombra.

    Mas esta é só a minha verdade possível de um mundo onde nada é estável, no qual tudo é fluxo.

    Destaco ainda a capacidade que mostrou por ter conquistado estatuto inabalável, viajando anos a fio pelo centro mediático a ofender quem quiser, (desde que sejam os de baixo), não ficando sujeito ao ricochete, mantendo até o status sem qualquer efeito boomerang, mesmo que nada tenha a acrescentar intelectualmente digno de nota, como o próprio afirma repetidamente com muita leveza no género auto-depreciativo como mandam as regras do humor inteligente.

    Acha-se palhaço. Percebe-se a esperteza.

    Faz o trabalho sujo ao fim de semana e lava daí as suas mãos no Expresso e nos livros.

    Sujo porque foge a confrontos e bate no senhor do acordeão vezes demais.

    Puxa a corda para os dois lados e o status vai legitimando a corda.

    Parece o sobe-e-desce dos jardins infantis que estão sempre no mesmo lugar ainda que em movimento quando humanizados. 

    E não será difícil a IA inventar um clone do herói deste texto, porque o Ricardo é sempre o Ricardo. Não há um Ricardinho fora do sítio, não há um copo a mais, um texto que rasgue, nunca se viu publicamente pôr o pé fora da argola.

    Nunca não pôs a máscara. Nunca foi ofuscado pela “realidade”.

    Nunca fez humor sem querer… que eu saiba.

    O sistema gosta. É previsível.

    O sistema do humor quando pensa a sério, não gosta tanto. Os pares quando analisam são sempre fodidos, assim como o amor.

    A técnica é o azeite dos humoristas, vem sempre ao de cima, quando já não são engraçados. Em televisão há que estar sempre bem oleado… E bronzeado. A televisão tem sempre a garantia da técnica. É uma máquina desumana.

    Nisso o Herman é sábio, mas como cresceu sobretudo nos anos 80 com a CEE, perdoa-se mais. A ironia, o sarcasmo, o absurdo e a sátira penetravam melhor na realidade, não havia Internet.

    Não era humorista qualquer um. Mas também havia Badarós que inevitavelmente só podiam acabar mal.

    Os anos 80 eram o próprio ácido. As televisões alcalinavam, fazendo o contraponto.

    A MTV cresceu com o Herman. Vídeo killed The Radio Star e por isso perdoa-se o Herman e a sua lavagem de políticas cavaquistas com o Parabéns.

    Hoje o Herman pode ser impoliticamente incorrecto.

    Tiro a isso o chapéu (que não uso).

    Ele é VHS, o Gato Fedorento DVD. O Herman não precisa de menus, e como todo o bom retro resiste ao tempo. Esperemos que o Gato Fedorento também. Mas os DVDs afinal não duram assim tanto como se anunciava, estragam-se e desaparece o código sem deixar rasto, enquanto os VHS deteriorando-se, ainda têm o fantasma lá bem arrumado, aparecendo com uns saltos, chuva e umas linhas esverdeadas que até ficam bem no mundo digital. Dá excelentes remixes.

    A parte chata, é que por todas estas razões este género de pessoas como o matulão, podem representar perigo. São eles, que em sistemas mais musculados e apertados podem dar cabo dos dissidentes… Ou não.

    A História não é muda.

    Escrevem bem como se costuma dizer, e trazem credibilidade por se instalar no inconsciente colectivo a ideia de que são muito inteligentes, mas não me parece que tragam um pensamento gangster na possibilidade do pensável e risível.

    Mas neste sobe-e-desce o Ricardo, como é também esperto, sabe bem que os parques infantis são feitos por adultos. E Portugal muitas vezes parece um parque infantil cheio de carrosséis.

    Quanto às suas crónicas, não as leio assiduamente, mas do que conheço, é menino para desancar os do costume com umas piadas sempre originais e a desafiar o cliché das más políticas, coisa que poucos sabem fazer como ele.

    Imaginemos que só escrevia crónicas e artigos, certamente este texto não faria sentido.

    Mas tudo é um todo.

    Sem dúvida que agrada em geral, e para o comprovar, um dia no Frutalmeidas na Avenida de Roma, lugar de muita betalhada, ouvi uma rapariga dizer à sua mãe enquanto o lia no Expresso, que o Ricardo era muito engraçado e que era bom em tudo o que fazia, vendia bem electrodomésticos, fazia rir, gozava com os políticos e era sobretudo muito sério nas análises do quotidiano,  mas sempre com a sua graça e muita acutilância no humor de observação. A mãe enquanto lia outra parte do Expresso, confirmava a opinião e ainda acrescentava que gostava muito dos Gato Fedorento e que revolucionaram o humor em Portugal, rematando que escrevia muito bem. Acrescentou ainda que todas as mães do Frutalmeidas gostavam de ter um genro assim. Enfim, acordar e ter logo, uma manhã cheia de superlativos, só naquele lugar. Ali o mundo funciona regado a fruta, mas funciona, ainda se vislumbrando tenuemente o charme discreto da burguesia.

    No Frutalmeidas é muito comum dividir-se o Expresso ao sábado de manhã enquanto se bebe um delicioso sumo e se come um pastel de massa tenra.

    Concluí então que o Araújo era aquilo, um sumo fresquinho com fruta misturada e um pastel de massa tenra divinal, mas que deixa as suas inevitáveis consequências no estômago.

    Ele tem a cara da Avenida de Roma. Ele é o beto perfeito. É como o antigo cinema Londres que também estava localizado nessa avenida, onde os filmes que lá passavam não eram os melhores, entretinham, ganhavam o seu Oscar de vez em quando, mas não chateavam ninguém. Eram sempre para toda a família. Vinham etiquetados muitas vezes de comédias dramáticas e tanto podiam ser americanas como francesas.

    De quando em vez, lá aparecia um filme exótico para desenjoar.

    Será a vida do RAP assim?

    Hoje o Cinema Londres é uma loja do chinês.

    Um amigo reforça que ele é como o Monte Velho, faça sol ou faça chuva é sempre vinho da mesma uva.

    Neste tempo desolador e delirante, a desobediência quer dizer obediência, desde que disfarçada com humor.

    Quem sabe, sabe.

    E o rapaz, observa muito bem como realçou a rapariga do sumo de ananás com pitaia à mãe. O que o RAP observa os outros alcançam. É certo, mas o humor é muito mais que isso. O Seinfeld, por exemplo tem alma e podemos ver, sentir, cheirar, abominar Nova Iorque num simples diálogo, para além de fazer rir, mesmo que o estúdio da série Seinfeld seja em L.A.

    Assim como em Larry David que com o humor negro nos faz apreciar a vida.

    Julgo que às vezes os humoristas são mais poetas que cómicos.

    Mas no Ricardo, instalou-se uma vulgar loja do chinês e podemos sentir a falsa porcelana, aquela que o Herman destruía com tiros.

    O Herman deve andar desejoso de partir o RAP. 

    Mas apesar disto tudo não estamos a falar aqui das ordinarices do Fernando Rocha que já nem é ser cancelado, é ter-se tornado na própria cancela e esperar que os automóveis eléctricos que vêm da esquerda o abalroem sem dó.

    Para quem é branco, hétero e do PCP (ou foi), o cómico de Alfragide tem-se safado bem. Teve de encontrar certamente muitos artefactos retóricos e linguísticos para passar pelos pingos da chuva que vai escasseando por aqui pela Península. Mas nunca choveu tanto como neste ano.

    Por falar em sol, o RAP sabe o que é um solário, pelo menos parece sempre bronzeado de Inverno.

    Um solário, vistas bem as coisas, é uma boa imagem do actual humor mainstream. Queima, mas não torra, aquece, mas não consola, pinta, mas não borra.

    Non sense.

    É certo que o clima tem direito ao seu non sense, que também sofre de alterações.

    skeches absurdos dos Monty Phyton que hoje parecem realismo, por exemplo.

    Este humorista embora seja um profissional da opinião, parece não a ter quando é preciso. Não basta ser Charlie de vez em quando.

     

    Queriam comédia para falar de comédia?

    Para quem não sabe, oitenta por cento tem a ver com a técnica. Há livros no mercado e pdfs na Net a ensinar a ser-se um cómico. Há quem diga que é noventa por cento. Por isso o GPT pode hoje substituir uma parte dos cómicos na boa. O raio do algoritmo também já sabe dizer piadas.

    Quero lá saber. Para mim ou tem piada ou não tem. Não sou especialista. A minha única especialidade é editar casamentos no Premiére.

    O cérebro pode ser um órgão sempre aberto a correntes de ar, mas o RAP  vai ficando preso ao tempo, e depois não há vacina que o salve. Nem o fantástico Herman, o actor do big-bang televisivo português, com a sua terapia germânica lhe valeria na luta de voltar a apanhar o transporte.

    Mas não sei se o rapaz dos Gato Fedorento alguma vez quis apanhar o comboio, não deixando, porém, de ser verdade que em tempos velozes, o TGV passa a grande velocidade. E depois com o passar dos anos vem o comboio do esquecimento. Como o Herman sabia ser ácido e alcalino e nos seus piores momentos, os dois ao mesmo tempo, nunca deixou de ter o bilhete em dia.

    O Humor é uma arte para alguns, porque pode dar-nos a radiografia do Tempo, mas a cores e invertida.

    As Tragédias nos gregos e na sua origem, tornavam as personagens melhores que aquilo que eram na verdade. 

    A Comédia, tornava-as piores.

    Imagino que o Ricardo tenha lido os gregos e deve ser essa a sua tragédia interior.

    O humor pode simplesmente ser um trabalho sobre a Linguagem.

    O Gato Fedorento fazia-o bastantes vezes, uma vez que consumiu Monty Phyton ao pequeno almoço e gostou do que não viu.

    Fazer rir dá trabalho.

    Fazer rir de quem trabalha, não dá assim tanto porque uma pessoa que trabalha expõe-se muito. O trabalho não liberta como escreviam os nazis à porta de Auschwitz. O trabalho dá trabalho.

    Contudo há excepções.

    E o Araújo Pereira também dá trabalho aos argumentistas por exemplo, aos técnicos, aos políticos, mantendo a máquina em ebulição,  que assim vai lavando mais branco como um bom detergente.

    Ter um humorista do seu lado é ouro para a política.

    Aos humoristas e aos jornalistas mainstream paga-se para que não escrevam. É uma indústria, um enlatado com as próprias gargalhadas já incluídas. Apanha-se as canas e faz-se a festa e como se vê, os políticos andam sempre por lá. O guião é sempre o mesmo.

    Na indústria do humor nem sempre há trabalho porque às vezes a realidade já tem humor que chegue.

    Na pandemia não houve muito, nem realidade, nem humor, nem trabalho e poucos se queixaram.

    O raio do morcego não devia ter comido o pangolim. 

    Há assuntos interditos, por isso talvez não o vemos crescer. Mas crescer para onde?

    Perguntaria João César Monteiro.

    Nos jornais há um vazio critico ao qual já nos habituámos. Os jornais mataram os jornais.

    Um haraquíri pouco simpático com consequências avassaladoras. Um tiro na própria equipa, uma dentada no próprio cão.

    Mas entre Joanas Marques e Araújos Pereiras, a diferença ainda assim é grande. Os Araújos têm cultura. As Joanas têm receitas.

    Haters há muitos, assim como os chapéus que hoje os humoristas têm de usar para se protegerem do sol que quando nasce afinal já não é para todes.

    Mas há solários em que só se queima quem quer.

    O Ricky Gervais é muito mais branco, muito mais hétero e muito mais cómico e quando se queima, queima-se nos Golden Globe. 

    O Ricardo queima-se na SIC do Balsemão.

    Isto não é dizer mal. 

    Tragam o Halibute.   

    (CONTINUA)

    Este texto é inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Castelo Branco, ou a incrível história de Zé Vieira

    Castelo Branco, ou a incrível história de Zé Vieira

    Fargo é uma série televisiva com poucos anos, mas é também o título de um filme dos irmãos Coen, realizado em 1996.

    Um grande objecto cinematográfico que tem, como protagonistas, as personagens mais estúpidas do cinema, pelo menos em filmes sérios, ainda que com humor negro entrelaçado lá pelo meio – marca dos realizadores.

    Para mim, claro.

    Não pretendo ser absoluto e muito menos totalitário nas ideias, como alguns que por aí andam na política, e, sobretudo, na horticultura, mas isso é sumo para outro copo… sustentável, claro.

    Nesta fita, dois criminosos de terceira linha, e não muito credíveis, são contratados para raptar a mulher de um vendedor de automóveis.

    Acontece que quem os contrata é o próprio vendedor de automóveis que anda com problemas financeiros, fruto de esquemas trafulhas não muito claros para o espectador, para assim receber, através de um resgate, o dinheiro que será pago pelo pai da vítima, o seu sogro e dono do stand onde o contratante trabalha.

    O homem de 70 anos é relativamente rico, gosta muito da filha e, aparentemente, fará tudo por ela. Pelo menos, na cabeça do vendedor. A ideia seria, depois, o marido dividir o dinheiro com os criminosos contratados, e voltaria tudo ao normal.

    Como se nos filmes dos irmãos houvesse normalidade.

    Se até a própria realidade já não é normal quanto mais o cinema em Hollywood…

    Mas corre tudo mal, claro.

    O plano absurdo é sabotado pelo próprio cinema, como mandam as regras, e por isso entre malas de dinheiro, neve, sangue, sangue na neve, formas de falar características da região saloia onde se abusa do YA, mentiras e estupidezes relativamente evidentes, com mortes à mistura, a trama vai aparecendo, por sinal… Bastante tramada. 

    A personagem principal é uma xerife, gravida de vários meses, a quem foi incumbida a tarefa de capturar os raptores e de resolver os três assassinatos que, entretanto, se deram na sua jurisdição por causa do rapto mal engendrado.

    Como se sabe, os americanos não são conhecidos por serem muito espertos nem bons a raptar.

    Não querendo ser spoiler, creio que este resumo, sobretudo para quem conhece os filmes dos irmãos Coen, e que por sinal são bastante populares, será claro – e perceberá o alcance da história, para assim nos aventurarmos nas metáforas e analogias com a realidade e as sinopses das comédias negras portuguesas, travestidas de crime real ou não.

    Como se o Direito ainda tivesse os seus direitos. Quem não conhece o filme, que o veja. É uma ordem.

    Alguma semelhança com a realidade?

    Toda.

    Podemos hoje questionar a realidade e as suas diferentes facetas. Mas isso é vaso para outras flores – ou para outros canteiros, como dizem os chauvinistas dos franceses.

    Tudo isto a pretexto, na verdade, do que tenho assistido pela TV ao ‘caso de polícia do momento’, e por isso tirei  alguns apontamentos para um filme digno dos Coen. Não é uma sinopse, nem mesmo uma ideia. Acrescento, no entanto, alguns comentários e limito-me a reproduzir a trama de forma tão atabalhoada quanto a própria história.

    Zé Vieira é conhecido por ser uma das, ou um dos, principais socialites da fauna portuguesa. Os media em geral deram-lhe sempre muita atenção, convidando-o muitas vezes para animar canais televisivos, pouco importando a credibilidade, destacando-se mais o palhaço para animar o circo onde os trapezistas de serviço até agora se têm aguentado.

    Ao menos este não escondia o nariz.

    Chegou mesmo a pulular por Quintas das Celebridades e programas do género. Nada contra.

    É casado com uma senhora agora com 95 anos, de nacionalidade estadunidense, e tem um enteado de 77 anos que vive em Miami num prédio que tem como vizinho um dos filhos de Donald Trump. O enteado odeia-o e, numa fotografia que circula, estranhamente parece-se com o Cavaco Silva.

    Qualquer semelhança com a realidade será, portanto, puro entretenimento.

    Zé tem um amigo chamado Pedro, que também já andou por Big Brothers e coisas do estilo. Tem um ar pouco credível, mas simpático, não deixando de parecer um pouco tonto.

    Por sua vez, Maya é uma senhora bastante duvidosa no que toca ao conhecimento de astrologia – e, já agora, no que toca a outras vertentes, como por exemplo ser apresentadora de programas cor-de-rosa na CMTV. Bom, também como se sabe, os portugueses não são conhecidos por serem grandes apresentadores de televisão, assim como os espanhóis não são por serem apreciadores de caracóis. Já os franceses matam-se por eles. Ah, e anda por aí, de igual modo, que os turcos… não!, desses não convém falar…

    Voltemos a Maya. Uns tempos antes do episódio que levou a Lady B. para o hospital por supostamente ter sido empurrada pelo marido Zé, afectando o fémur, Maya fez grandes elogios no seu programa colorido ao ex-travesti por ser um grande cuidador e sobretudo um excelente marido.

    E também não é verdade que a violência doméstica quase sempre se pratica na obscuridade? E não é um facto que a descoberta da identidade dos grandes serial killers sempre se mostra uma surpresa para os vizinhos e até para a família, quando estes são apanhados?

    Nunca se vê em documentários os conhecidos do criminoso a dizer que se via logo que era ele, ou sempre desconfiei, aqueles blazers não me enganavam, ou ainda que o carrasco tinha mesmo cara de serial killer.

    Nesta história parece haver também bastante testosterona tóxica por parte dos protagonistas – Zé e Pedro – que até são vistos num vídeo caseiro a darem estaladas e murros um ao outro. Ou coisa parecida.

    Mas também não deixa de ser verdade que noutro vídeo filmado pelos próprios, estão numa cama aos beijos e abraços ainda que sem erotismo. Parece…

    Numa das noites da Maya, até chegámos a ver ao mesmo tempo, no ecrã, os dois vídeos caseiros, um de cada lado, com os comentadores cor-de-rosa ao meio. Na esquerda dão estalos, na direita, beijos.

    Genial! O paradoxo da condição humana.

    Zé garante que nasceu homem e morrerá homem, e que é heterossexual. Um paradoxo interessante para explorar. Ou não. Pode sempre haver dias em que ele se sentirá o que quiser sentir-se. Afinal, no + do LGBTQIA+ cabe + do que o L, o G, o B, o T, o Q, o I, o A e o próprio +. Um looping infinito que nos proporcionam estes interessantes tempos do wokismo.

    Nestes programas são sempre usados muitos superlativos e há transgressão politicamente incorrecta.

    No meio de tanto confetti e lantejoula, também há verdade, e isso faz-nos mergulhar num mundo que se esforça para se afastar de clichés, os grandes inimigos da complexidade. Mas quase sempre não o conseguem.

    Não é fácil. E exige arte. 

    A marca para a qual Zé estava a trabalhar, chamada Feira dos Sofás, lançou entretanto um comunicado a anuncia o fim da parceria com o socialite.

    Num dos vídeos feitos para a marca, Zé, apontando para um sofá no qual se irá sentar, diz para o “empregado” que o móvel é pindérico, mas depois senta-se e fica tremendamente confortável, mandando de seguida o “empregado” comprar o sofá.

    Tudo filmado na vertical e com muita chunguice. Eu não compraria um sofá daqueles. Horrível, é – mas confortável, segundo o reclame.

    Nisto, Maya será importante porque é através do seu programa nocturno que vamos conhecendo os melhores ingredientes desta historieta.

    Estes ingredientes, com aparentes contradições e muito suspense, poderão apimentar o filme, caso seja esse o objectivo. E sobretudo caso ainda haja espaço para a continuidade do Cinema com c grande também, já que, com tanta história tridimensional e tanta auto-representação que anda por aí, uma pessoa já nem sabe. 

    Se a vida é um filme, como dizem, com o Zé são dois.

    Mas, a ser feito, será um meta-filme, de forma que o público se percepcione na realidade, mas dentro de uma sala de cinema.

    Giro, giro, seria o Zé e o Pedro aparecerem de rompante num dos cinemas,  no meio de uma sessão, plateia adentro a fazer das suas. Ou estalos, ou beijos.

    Ou não… Até poderiam ser hologramas.

    Mas, seja como for, possivelmente o público já não se surpreenderia.

    Público que, aliás, neste caso também faz parte do guião. As pessoas, porque não vamos meter aqui o homónimo jornal para não tornar isto ainda mais degradante.

    (ah!, e caso o filme seja realizado, e se um dia passar num cinema em Budapeste, não se admirem se os húngaros não o entenderem, pois, os húngaros são conhecidos por não perceberem nada de cinema).

    Mas isto ainda não terminou, até porque é preciso acrescentar ao guião que o Pedro arrendou a casa à Betty para depois a poder subarrendar ao Zé para aí fazer os seus “espectáculos” de cabaret.

    Como se sabe, em tempos foi Zé a Tatiana Romanova, e esteve perdidamente apaixonado por Pedro, segundo Pedro, que parece ter mau carácter – e, nisto, Zé sente-se vítima de uma cabala orquestrada pela Chanel. 

    No meio disto, o cabeleireiro de Zé é dos poucos amigos que dão a cara nos media, enquanto lhe continua a arranjar o cabelo, não se sabendo, porém, se agora é uma borla, já que a imprensa afirma que a ex-drag queen está sem dinheiro.  

    As TVs vão dando cobertura a todas estas informações oferecidas pelos próprios protagonistas, através de vídeos para as redes, e mesmo de telefonemas gravados pelos próprios.

    As TVs deverão, aliás, funcionar como convém: promovendo primeiro para matando depois, e fazer isto como se não tivessem culpa nenhuma. Para dar força a esta ideia. dever-se-á dar relevo à história do dentista da TVI, que está a ser investigado por uma jornalista da CMTV que foi despedida da TVI. Talvez a jornalista o faça também por vingança pessoal, quem sabe…

    Pensando bem, a ser feito um filme ao estilo dos Coen, se estes nos derem os direitos, deverá haver um capítulo dedicado a este dentista sádico.

    Para quem estiver confuso por não ter visto as reportagens, este dentista terá chegado, dizem as supostas vítimas, a arrancar os dentes todos da boca sem anestesia de umas quantas pessoas que, entretanto, fizeram queixa às autoridades.

    Isto surge aqui porque estas reportagens da CMTV têm potencial e estão a coincidir no tempo com a história do famoso socialite e do Pedro. Parece mais um daqueles casos de ‘o que interesssa é aparecer’. Nunca percebi o exibicionismo e a necessidade de que falem de nós, nem que seja para dizer bem…

    Sou argumentista e não dentista – e por isso, junto histórias; não separo dentes de gengivas.

    Portanto, chegados aqui, com a sociopatia aparente do Pedro, o narcisismo estético do Zé e o sadismo do dentista, sempre coadjuvados com os programas das Mayas, teremos um filme profícuo de neurose contemporânea dando cabo de vez da figura do Direito e da possibilidade desse estandarte da democracia existir. E sei qualquer ordem a pôr cobro na desordem.

    Talvez, neste caso, por causa de tantos policias e ladrões a pulularem permanentemente pelos canais televisivos, em programas de manhã, à tarde e à noite.

    Aliás, quem não se lembra também do ex-agente da Judiciária que veio a ser vice presidente do Sporting, mas que também depois tinha um gangue que assaltava casas de idosas em Cascais? Foi comentador muito tempo.

    E eu próprio estou a ficar baralhado já.

    E outros também. Os protagonistas desta história, por exemplo. O Zé e o Pedro viram certamente o Truman Show e baralharam-se.

    Depois veio o Matrix, o 11 de setembro, o século XXI, e as grandes conspirações tipo Zeitgeist, mais tarde as extremas-direitas meteram a cereja no topo do bolo da discórdia. Agora, aqui estamos cheios de fulgor para ser os actores e os espectadores ao mesmo tempo nesta novela em tempo real. E baralhados.

    Bom, mas entretanto, Lady B. pede o divórcio e deixa a entender que quer recomeçar a vida, dito por um dos comentadores que sempre que se refere a Zé e a Pedro, chama-lhes “os artistas”

    (Aqui há um pequeno exagero de humor negro já que o comentador não disse que a senhora queria recomeçar a sua vida, mas fica a nota do autor com a sua liberdade para o sarcasmo).

    Durante as primeiras semanas, uma nata de comentadores revisteiros do jet-set que aparentemente conheciam os confins do casal atípico, vão criticando a neurose do momento, como se eles fossem os médicos e psicólogos de serviço no ambiente asséptico dos estúdios em croma.

    Não deixam de dizer o que pensam nesses estúdios-clínica.

    Pelo menos, parece haver uma certa liberdade para isso.

    Poderemos depreender que Pedro e Zé tinham uma espécie de plano para ficar com a casa em Sintra, um palacete, segundo Pedro.

    Poderá ser este o clímax.

    A verdade, no entanto, quanto a esta hipótese ainda está por apurar.

    Saiu, entretanto, uma notícia que definitivamente sugere mesmo que Zé empurrou Lady B. pelas escadas do hotel.

    Os médicos confirmam que poderá haver crime público e a queixa é apresentada.

    Zé passa uma noite detido.

    A prisão não é desenhada por Santiago Calatrava.

    Nos media, em geral, há sempre um talvez definitivo.

    Nunca se sabe. É talvez essa a fórmula de ainda manterem alguma audiência. 

    Ficamos a saber também que o idoso e enteado de Zé, também sofre de problemas de saúde, justificando-se assim a sua não vinda para acompanhar a mãe no hospital.

    Esperem! Afinal, veio. Chegou a Lisboa, com os competentes jornalistas a cobrirem o acontecimento.

    Entretanto saiu uma lista dada por Lady B. indicando quem a pode visitar no Hospital.

    Gui, o filho de Zé e enteado de Lady B., não é um dos felizes contemplados dessa lista. Porém, mais tarde, num telefonema exibido pela CMTV, Pedro insta Zé a falar com o filho para ir ao hospital propor a compra da mansão por 700 mil euros, sendo que metade ficaria para o Zé.

    Imaginamos que a mansão valha milhões.

    Zé diz, contudo, que não tem direito a essa metade devido à separação de bens.

    Pedro cai em si e responde:

    -Pois é, caralho. (Longa pausa).  Mas dou-te 30 mil.

    Corte.

    Aqui morro a rir como se tivesse mesmo a ver um filme dos bro Coen.

    A pausa matou-me.

    Surge ainda a notícia que Zé deverá estar a mais de um quilómetro da mulher, ou futura ex-mulher, através do controlo de pulseira electrónica

    Por meio de telefonemas dos protagonistas, vamos percebendo a estupidez dos planos, tipo Fargo.

    Quem manda para lá as gravações aparentemente é o próprio Zé, queimando-se a toda a hora por falar e aparecer demais. Segundo os jornalistas, devia era estar calado.

    Mas queimar-se em televisão não parece ser assim tão mau. Até é bom, digo eu.

    Pelo menos para o programa.

    Como se trata de violência doméstica, Pedro faz um apelo nas redes para comprarem algumas t-shirts originais desenhadas pelo próprio, embora  confesse não ser designer, e diz que o dinheiro irá para os cofres de várias instituições que acodem vítimas deste tipo de crime.

    Ele próprio irá comprar uma a si mesmo.

    Pouco tempo depois, as instituições negam o acordo.

    Pelos vistos, o número da conta é a do próprio Pedro. A forma de pagamento seria através de PayPal.

    Horas depois, é dito nas notícias que Pedro já foi agressor num caso que chegou a tribunal de violência doméstica e apanhou uma pena suspensa, por ameaçar de morte o seu então marido.

    Ainda querem melhor do que isto?!

    Um dia depois, o site das t-shirts sai de cena. Error 404.

    Tchau t-shirts.

    Indignados, os comentadores massacram Pedro, dando a entender que não está bem mentalmente.

    As t-shirts têm a imagem de Zé, entre outras – e são horríveis. O mau gosto vem ao de cima. Mais uma vez.

    Pedro ainda entrevista uma antiga empregada do casal que confessa que, depois de alguns jantares em Sintra, iam todos para o quarto do casal comprar jóias por baixo da mesa, sem recibos.

    A empregada, porém, jura que as jóias eram junk

    Entretanto, a CMTV passa imagens antigas de Zé no sentido de contextualizar o seu passado criminoso, mostrando-o no aeroporto, anos atrás, a filmar-se a si mesmo depois de roubar um perfume, negando o roubo, e afirmando que a rapariga-segurança que vai aparecendo em fundo, com o ar mais humilde do mundo, só quer é ter os seus 15 minutos de fama.  A rapariga parece assustadíssima. Só fez o seu trabalho.

    Ficamos a saber que o roubo aconteceu mesmo, e Zé Vieira acabou a fazer trabalho comunitário e pagou um multa.

    E nós que pensávamos que todo o trabalho do Zé já era comunitário!…

    Depois de Pedro confessar novamente, e em directo, que havia um plano sinistro de Zé para ambos sacarem o palacete assim que Lady B. morresse, ficamos com a certeza de que qualquer semelhança com um filme dos Coen é puro cinema.

    A minha proposta final, portanto: peguemos nestes apontamentos que compilei (haverá com o tempo muito mais, à velocidade que os protagonistas vão abrindo a boca), e tentemos isto bem vendidinho aos irmãos Coen, para que façam um brilharete em Cannes.

    Mas já sei que não vai resultar. Os portugueses são conhecidos por não saberem vender guiões a Hollywood.

    Quem é bom nisso são os turcos. Ou os indianos…

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • Tabaco e Revolução

    Tabaco e Revolução

    Leio com alguma surpresa uma notícia que dá conta da nova lei do tabaco em Inglaterra. Uma espécie de lei gasosa, se pensarmos na lei seca que se impôs nos Estados Unidos de 1920 a 1933, que proibia o acesso ao álcool.

    A notícia acabava assim: A idade a partir da qual as pessoas podem comprar cigarros e tabaco na Inglaterra deve aumentar anualmente, acrescentando um ano de idade a cada período, para que em algum momento ninguém possa comprar, afirmou o primeiro-ministro Rishi Sunak.

    Mas ao mesmo tempo passavam na televisão imagens do período do 25 de Abril de 1974, em que se fumava muito e a palavra liberdade era exaustivamente proferida.

    E pensei sobre o assunto.

    Há um filme admirável de Alain Resnais chamado Smoking/No smoking que na realidade se trata de um díptico e para o qual será preciso prestar alguma atenção. Também há paisagens e automóveis admiráveis, mas não são assunto para este texto, qual é o problema? Vive-se uma época de crispação. Qual é o problema?

    Qualquer dia há para aí uma guerra. 

    Estava a brincar (ou mesmo a jogar), já que parece cada vez mais que estamos dentro do Big Brother e a diferença entre jogo e não-jogo está a ficar aceleradamente mais ténue, tipo blade runner, em que no filme com o mesmo nome, não era fácil perceber quem era humano e quem não era. Qual é o problema? Vive-se uma época de crispação.

    Ah, já disse!

    Accionemos o isqueiro e vamos ao que nos traz aqui.

    Ora bem, fumar ou não fumar um cigarro poderá fazer toda a diferença para a narrativa daquele filme feito a partir de uma peça de teatro intitulada Intimate Exchanges de Alan Ayckbourn. Este princípio dá para muitas situações, tipo teoria do caos que esteve muito em voga nos anos 90.

    Enfim, desde que remetesse para acções banais, mas que pudessem alterar o futuro, dependendo de fazer-se uma coisa ou outra. O exemplo mais comum era o de que o bater de asas de uma simples borboleta em Nova Iorque poderia influenciar o curso natural das coisas e, assim talvez provocar um tufão do outro lado do mundo. Neste caso, fumar ou não fumar um cigarro (acção que não pratico neste preciso momento), altera o curso dos acontecimentos no filme. Se eu fosse agora o comentador Daniel Oliveira diria já lá vou. Mas felizmente não sou esse comentador, mas já lá vou à mesma, pronto!

    Qual é o problema?

    Ao rever as eternas imagens da Revolução dos Cravos que todos os anos alimentam as televisões nesta época primaveril, percebemos que os actores da famosa e libertária operação estão muitas vezes a fumar, assim como os jornalistas de serviço.

    Parece mentira, mas as imagens mostram apresentadores de telejornal a fumar em directo e durante a emissão. Fialho Gouveia e Joaquim Letria, eram exemplo disso, mas não propriamente nas emissões desse dia de 25 de Abril. Torna-se muito claro a apoteose fumadora no dia das eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras em democracia, algum tempo depois do dia 25 de Abril, dia fundamental para a esquerda, já que para uma certa direita será o dia 25 de novembro. Têm o número em comum. Já não é mau.

    Epá, mas tanto à direita como à esquerda ou ao centro, fumava-se que se fartava. Também é certo que nem todos o faziam, embora fosse recorrente fumar-se para cima de inocentes sem que isso fosse um grande problema. Havia poucos ou nenhum estudo que fizesse disparar o alerta tabágico. Ainda hoje me pergunto, como é que foi possível viver tempos sem estudos a toda a hora, sem especialistas e comentadores a emitir opinião a todos os minutos. E já agora, muitos não acreditam que chegou a haver vida sem internet…

    Bolas!

    Tenho mesmo a certeza que os militares, para discutirem as estratégias a adoptar para tomar Lisboa, ostentavam sempre um cigarro ao canto da boca. Provavelmente SG Filtro, ou SG Gigante, talvez os mais cowboys ainda fumassem o Português Suave sem filtro inspirando-se em John Wayne e nas suas coboiadas musculadas, mas que por sinal era um facho de primeira, segundo a minha tia que era comunista e uma excelente pessoa.

    A Tabaqueira ganhou muito com a revolução. Os nervos andavam à flor da pele e é do senso comum que o tabaco ajuda a descomprimir. Pareciam dragões.

    “Epá capitão apague lá isso que ainda fuma o filtro”, parece que estou a ouvir isto no meio de uma névoa de fumo na cantina dos militares. Ouço também “Ò Fernandes vá ali à papelaria e traga-me três maços de Ventil”. O Fernandes seria o soldado raso de serviço que também aproveitava e comprava um maço de Três Vintes para ele. Ou ainda, “O Antunes fuma que nem um cavalo”. “ Mas os cavalos não fumam, ò meu major!” – diria um cabo menos adepto de metáforas.

    No ano de 74 também revejo com prazer imagens em que o futebolista Johan Cruijff durante o intervalo de um jogo, enquanto ajusta as meias do equipamento da selecção da Laranja Mecânica, tem um cigarro ao canto da boca.

    Nessa altura não proliferavam imagens de doenças nos maços, e até os carros da Fórmula Um tinham as marcas estampadas na carroçaria, já para não falar do Marlboro-man e no reclame publicitário muito popular, em que um homem a cavalo fumava calmamente um cigarro numa ardente paisagem texana. Acho que o cavalo também dava umas passas. Mais tarde dizem que o Marlboro-man morreu de cancro do pulmão e processou a marca. Mas pode não ser verdade, pode mesmo ter sido inventado pelo Trump.

    Eu era muito pequeno e ao ver esses filmes, queria fumar quando fosse grande. Achava que todos os homens fumavam e as mulheres que o faziam, estranhamente tornavam-se sensuais. Ficava a olhar para elas fixamente durante bastante tempo à espera de levar com uma baforada na cara, coisas de puto e de filmes italianos que muito nos influenciavam nessa época.

    Entre epás e muita fumarada, assim se preparou o saudoso ataque a Lisboa, disso não haja dúvidas.

    Fiquei há pouco tempo a saber que a operação teria de acontecer a uma terça, quarta ou quinta porque nos outros dias havia pouca gente nos quartéis, dito pelo próprio Otelo Saraiva de Carvalho numa entrevista dada ao Frederico Duarte Carvalho, no meio de pás e baforadas, imagino.

    O fim de semana era sagrado para os militares e nem mesmo uma perspectiva de golpe de Estado com uma putativa mudança de regime para melhor, abalaria o religioso fim de semana.

    O cravo veio depois e não saiu da cabeça de nenhum militar, ou actor principal desse filme. Também é curioso ver nessas mesmas imagens na sua maioria, que os cravos são cinzentos já que era ainda um mundo a preto e branco. Paulatinamente estamos a voltar a esse mundo, mas com cores garridas a 4K, o que vai dar ao mesmo.

    Está assim contada a história do cravo na Wikipédia:

    Celeste Caeiro, (…) transportava pelas ruas um ramo de cravos brancos e vermelhos nas mãos. Um soldado pediu-lhe um cigarro, mas ela só tinha flores e decidiu então iniciar a distribuição dos cravos aos soldados, que logo os colocaram nos canos das suas armas. Mais tarde as floristas da Baixa continuaram a replicar o gesto (…).

    Claro que só podia ter começado com um cigarro, melhor ainda, com a falta dele. Para fazer raccord e uma analogia com o filme de Resnais e indo lá (tipo Daniel Oliveira como prometido), aqui poderíamos questionar o símbolo do cravo, caso o soldado não fosse fumador. Teria a dona Celeste posto à mesma o cravo na espingarda do soldado desconhecido caso ele não lhe tivesse cravado um cigarro? E se levasse com ela algodão doce em vez de uma flor e achasse que isso ficava bem dentro da arma, ainda que o soldado pedisse à mesma um cigarro?

    Mais tarde os feirantes da Baixa continuaram a replicar o gesto, poderia ser esta a frase da Wikipédia hoje?

    Nunca o saberemos, no entanto, parece que o soldado esqueceu-se de levar tabaco para a revolução. Talvez o stress associado ao momento tivesse tido consequências na sua memória e capacidade de concentração ou então já tinha fumado que nem um cavalo nesse dia e acabado o maço sem se aperceber, ou então ainda podia tratar-se de um fumador casual que apenas lhe apeteceu um cigarro.

    Dizem mesmo que houve um capitão que parou o tanque e foi comprar tabaco a uma papelaria que se mantinha aberta, não fosse o dia terminar só dias depois.

    Esta época teve momentos muito particulares. Para além de todos os benefícios políticos e democráticos que nos trouxe, também nos presenteou com uma espontaneidade que andava esquecida, o que é libertador também.

    Não deixo de rir quando vejo o Pinheiro de Azevedo meses depois a dizer que já foi raptado um par de vezes e que não gosta, é chato. Já para não falar do “é só fumaça”, também proferido pelo mesmo ao microfone na Praça do Comércio, o que faz um raccord linguístico perfeito com o suave aroma a tabaco que o texto deve ter.

    Outro político importante, noutro documentário sobre o verão quente, contou que uns quantos pararam em frente à casa dele às tantas da manhã na tentativa de o aliciarem a dar um golpe de Estado. Estavam num mini, e ainda cabia mais um, ao que o político respondeu dizendo para irem para casa e fazerem o golpe de Estado noutra altura que àquela hora era muito tarde. O político imagino que estivesse de pijama. Conseguimos sem grande imaginação ver um cigarro em cada um dos loucos revolucionários que estavam no Austin. Eu até consigo ver o carro com um Definitivos no tubo de escape tal a voragem fumadora da época. Mas as coisas mudam, como dizem os mafiosos do David Mamet.

    Não estamos a imaginar os capitães a irem à janela fumar um cigarrinho enquanto tratam da logística dos tanques e dos chaimites. “Ò capitão não pode fumar aqui na sala, vamos até à varanda. Isso faz mal à saúde e já agora não chame mariquinhas ao cabo Nelson só porque não quer ir à frente do pelotão. O capitão sabe que ainda pode levar um processo em cima e isso era chato”. Isto, se fosse nos dias de hoje e houvesse revoluções dos cravos mesmo com algodão doce no seu lugar. 

    Claro que aqui o termo não tem a ver com questões sexuais mas não nos esqueçamos da conhecida homofobia em Ché Guevara e em Fidel por exemplo, outros icónicos grandes fumadores, mesmo que isso chateie muita gente, ou mesmo a homofobia nos albaneses de Enver Hoxha que a UDP tanto gostava, não tolerando nada aproximações masculinas corporais que não seriam certamente para jogar basquete em Tirana.

    Mas eram outros tempos em que não interessava muito o politicamente correcto e andavam mais preocupados com o revolucionariamente correcto, o que faz sentido e merece já uma pausa para um cigarro ali à janela, porque eu não me deixo fumar aqui dentro de casa. Isto agora era assim, não?

    A autocensura quando nasce é para todos, assim como a democracia.

    Enquanto fumava, ia pensando em como seria uma revolução hoje, com telemóveis e cigarros electrónicos a organizarem-nos a vida e o vício. Não consigo imaginar o Otelo a carregar um cigarro. Um chaimite hoje até poderia ser conduzido por controle remoto através do Bluetooth e andar a lítio, haveriam soldados vegans certamente que não aceitariam uma sandes de mortadela dada pelo povo.

    Cheguei a ver o protótipo de uma bala que mata como as outras, mas é ecológica e não polui através de um processo químico. Fica dentro do cadáver, mas evapora-se.

    Claro que isto não é nenhuma crítica, é apenas o zeitgeist a que temos direito.

    Mas não é fácil imaginar uma revolução de rua com kit completo, portanto com golpe de Estado e mudança de paradigma como objectivo final.

    Os satélites vêm tudo, e não é fácil quitar telemóveis sem a ajuda de hackers que andam caríssimos, embora nunca tenha havido tantas guerras por aí, isto só para invocar o sempre bem vindo paradoxo que dá cabo das pessoas em geral.

    Mas este texto é sobre fumo, charutos cubanos e cigarros, e não paradoxos fumegantes e incendiários.

    Um amigo meu, alertou-me para o facto de hoje se limparem digitalmente fotografias, subtraindo os cigarros a escritores e artistas por exemplo.

    Irão fazer isso um dia, aos nossos militares? Fico a pensar. No caso deles era melhor limparem logo o pulmão

    Uma amiga minha há uns tempos no meio de uma cigarrada de enrolar, disse que isto era preciso era mais dois 25 de Abril, e um taxista enquanto calmamente fumava um Camel, parado num semáforo confessou-me que para ele isto só ia lá com doze Salazares. O “isto “ referindo-se ao regime, foi utilizado por ambos.

    O que mais me impressiona nestas conversas hiperbólicas, é o uso dos números. Porquê dois 25 de Abril e doze Salazares? 

    Percebo que doze 25 de Abril, seria demais. Ou que dois Salazares para o taxista, também seriam poucos, uma vez que hoje há mais manias nas pessoas. Não tendo no entanto a minha amiga especificado se tinham de ser as duas na mesma data ou ao mesmo tempo, ou se seriam uma de cada vez, no sentido de a segunda colmatar a primeira. querendo com isso acentuar a intensidade.

    E se fosse em junho? Ainda lhe perguntei, deixando-a pensativa. Respondeu-me que isso não importava desde que fosse um 25 de Abril a sério, portanto com enforcamentos à mistura, deixou a entender. Fiquei na mesma.

    Quanto ao taxista salazarista, depois de lhe perguntar porquê doze, respondeu que tinha feito as contas, e onze não chegavam. Ainda lhe falei de clonagem, mas não sabia o que isso era.

    Hoje há Ubers a fazer de táxis, e também numa pausa para um cigarro electrónico, um rapaz brasileiro usou a versão contemporânea dos exageros numéricos, falou-me em seis Bolsonaros para pôr o Brasil na ordem.

    Na próxima Revolução imagino que seja proibido fumar.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • A realidade, esse estranho fenómeno inabitado

    A realidade, esse estranho fenómeno inabitado

    As intermitências da linguagem permitem-nos entender o mundo (seja lá o que isso for). Ou parte dele. Assim como que um truque, ou um drible.

    Há sempre por perto alguém que nos quer enganar, inclusive a nossa própria consciência (inconsciência).

    Aquilo que existe fora da continuidade e do expectável, devolve-nos a alegria de quando achávamos que tínhamos futuro. Um futuro só nosso.

    E é nessa coisa-tempo, dentro dos sonhos, que quando melhor vemos a Realidade, porque ela é linguagem pura e comporta todos os sonhos do mundo, em que tudo faz sentido e o seu contrário, como se houvesse Deus, o que é para rir.

    Como se o Fernando Pessoa tivesse tido uma vida real e até fosse possível desenhar-lhe uma biografia.

    Convém é saber descodificar algumas “línguas” vivas da contemporaneidade para não sermos apanhados na curva… Numa curva carregada de psicotrópicos e de loucos varridos.

    É como se tivesse um pouco de todas as moléculas de toda a gente ao mesmo tempo, ao meu alcance para poder aceder à Realidade. Estão a ver?

    É lindo!

    E liga-nos em êxtase!

    Estarei maluco? Claro que não.

    Há aqueles, como eu, que tentam frequentar a Realidade de quando em quando, mas não a vivem na plenitude porque isso não é efectivamente fácil. Para ser desenvolvida a ideia implicaria mergulharmos noutro paradigma, quando essa acção deveria ser o acto mais natural e acessível de todos, devendo-se isso, a termos frequentemente imaginação a mais, logo sonhos a menos, perdendo-se a espontaneidade. 

    Por isso não convém sermos assim tão hiper-realistas, e caminhar com humildade por entre as palavras, como se se tratasse de uma ilha rodeada de letras que por sua vez compõem frases imperfeitas quase saídas da matemática do Chat-quase-humano, que já se banalizou.

    Confusos?

    Evidentemente que não.

    Claro que todas estas cenas podem não vir da nossa imaginação.

    Dúvidas?…

    Pois claro, quem as não tem?

    Podemos mesmo ter caído no caldeirão da imaginação quando éramos pequenos. Da imaginação dos outros. Tipo Obélix e a poção mágica vinda da cabeça do Goscinny.

    E realmente efectuar a tarefa não se afigura fácil, porque dormimos em excesso acordados, o que nem sempre é mau, mas bolas também há limites.

    É tipo droga, para ser vulgarote.

    Todo o tempo, também a dormir… Era desnecessário.

    E ao contrário do que toda esta circunstância nos possa indicar qual Pedro, qual lobo, qual cordeiro, já não sonhamos, somos sonhados.

    Sim, sim.

    Passemos então à acção com naturalidade.

    No domingo de dia 10 de março, quem ganhou foi a Realidade e não a AD nem o Chega como dizem para aí. Muito menos o Livre muito pouco free.

    Teria de acontecer um dia, por muito que uma pessoa não queira, ou mesmo que um comentador no abstrato não o deseje, que pelos vistos não tem assim tanto poder de influência quanto pensa ou pensava, sobretudo quando a onda se prepara para cavalgar e ultrapassar aquilo que eles consideraram serem as linhas vermelhas. Os comentadores se fossem aos óscares, estariam só a concorrer ao prémio dos melhores efeitos especiais como se ostentassem apenas um curso de audiovisuais mal amanhado da Restart

    A Realidade aparece de vez em quando em força como um tsunami ou uma doença relâmpago, servindo assim para alimentar em fartura o inconsciente colectivo que tem andado bastante apático nas últimas décadas (no mínimo), e a consumir muita ficção, que à força da sua inusitada premência viciante nos fez distanciar uns dos outros, o que às vezes até pode dar jeito, mas que raio… Já chega também. É que a Realidade também corre o risco de ser viciante mais do que estar viciada.

    Quando as coisas correm bem, a vida corre bem como diria algum jogador de futebol algures num banal estúdio qualquer ao acaso.

    Para caracterizar o futebol diz-se que são onze para cada lado e ganha sempre a Alemanha. Aqui e aproveitando o princípio, podemos dizer que as eleições são compostas por muitos partidos a concurso que irão dar 230 deputados, mas ganha sempre o Ricardo Araújo Pereira. O do “olho em terra de cegos”. O cómico engraçado e inteligente. Andam todos a trabalhar para as suas piadas. O Herman e o seu ecletismo mimético engenhoso já foi ultrapassado há muito, mesmo com prémios institucionais, talvez por isso.

    Mas o RAP está a perder a piada assim como a Alemanha a hegemonia futebolística. Se calhar nunca tiveram assim tanta piada ou hegemonia. A História e a estatística que façam o seu trabalho um dia que se façam contas à vida.

    O Chega da nova geração de antiácidos, e que é neste momento a denominada doença nacional e o portador das mensagens do Além, que neste caso e por paradoxal que pareça, assemelha-se a uma representação plausível da Realidade, traz novidades na dança das cadeiras.

    Ninguém está com isto a dizer que a Realidade é uma cena boa e saudável, não convém é ignorá-la porque então corre-se o risco de rapidamente começarmos a marcar consultas em psiquiatras, psicólogos e até em homeopatas e astrólogos, cujo planeta e o futuro cheiram mais a dólares que a erva fresca. Mas os técnicos de saúde mental também precisam de outros técnicos de saúde mental que por sua vez…

    O partido Chega não só a anuncia como também faz parte dessa realidade, e se mais pessoas  tivessem andado atentas durante o período do uso de máscaras (já que elas não só taparam as bocas, mas frequentemente os olhos), perceberiam que o fenómeno estava a normalizar-se por toda a Europa, tendo até nesse período chegado ao seu zénite no Youtube e companhia.

    Os organismos oficializados andavam obcecados com casos covid e com mortos pandémicos, não se falava mesmo de outra coisa, e até se achava bem multar pessoas por estarem a comer em carros sozinhas, e era evidente que o mundo não tinha parado, andava mesmo noutras galáxias a negociar à grande, mas as máscaras, os jornalistas e outros actores que não são para aqui chamados faziam tudo para que não se visse.

    Negociava-se à grande e à chinesa por entre morcegos e pangolins. 

    E dividia-se o mundo mais uma vez, mas ia ficar tudo bem. Agora os jornalistas choram por credibilidade e dinheiro.

    Temos pena. Vai ficar tudo bem.

    Não se admirem se em breve virem o Pedro Marques Lopes ou outro(a) parecido a conduzir um Uber porque também chegará a vez deles de ficar de fora na estranha dança das cadeiras. Neste caso talvez o Pinto da Costa se continuar presidente com a sua lábia nortenha e vencedora lhe dê mais uns trocos a ganhar para dizer umas banalidades azuis, já que os comentadores nunca escondem as suas cores clubísticas ao trazerem para estúdio o kit completo na esperança da esmola televisiva.

    Quem quisesse assistir ao jogo fora da pandemia teria oportunidade de ver os patriotas a declararem guerra aos globalistas sem passar pela casa de partida que seria a História (bem ou mal contada, segundo os lados e as academias), passando por cima de todos os vírus e bactérias, sendo mesmo até considerado negacionista quem ousasse pensar.

    Enquanto os comentadores, separados por vidros assépticos iam falando de coisas inimagináveis inseridos na nova narrativa do videojogo.

    Muitas dessas personagens televisivas e jornalísticas desconhecem os criadores de Jogos, uma vez que não havendo Deus, a vida é sempre um jogo como o título de um filme sobre snooker em que o bem e o mal dependem mais do editor que do Papa, que curiosamente vai-se transformando ele mesmo paulatinamente e de acordo com o guião num editor da filosofia woke também. O que é para rir sem pecado.

    Mas ainda nos vendem jornais celestiais impregnados de colectivismo, mas do mau, como o colesterol.

    Por falar em dicotomias, enquanto os maus eram também os vírus e os negacionistas de vírus, a Realidade ia fazendo calmamente o seu trabalho sempre orquestrado pelos do costume que segundo as notícias oficiais do jogo, nos queriam salvar de morcegos, pangolins, e de morcegos esfomeados a comer pangolins debaixo da prosa jornalística cujo actor principal era o inenarrável Rodrigo Guedes de Carvalho que de idiota útil nada tem.

    E pelos vistos salvaram, não foi?

    Agora resta-nos ficar atentos até ao próximo capítulo deste filme que, caso estivesse integrado na grelha da Netflix seria na rubrica de terror contemporâneo que mete muito medo.

    Fará, no entanto, tudo parte da mesma ficção?

    Claro.

    Steve Bannon que o diga.

    Para quem não conheça o homúnculo da nova alquimia política, deveria estudar mais a sua passagem pelas direitas europeias com ligações profundas a Israel, mas este texto não habita um quarto com vista para esse deserto, até porque não temos informação completa e estudada do fenómeno sionista e o próprio Bannon anda desaparecido da Net, o que tornaria a tarefa de investigação mais ao estilo Philip Marlowe e daria certamente pancadaria e sangue na tentativa de chegar a algum lado.

    Como sempre, o caminho da sabedoria e conhecimento deverá ser feito com calma para que um dia possamos vir a dominar assuntos, e que o desejo em si, passe para outro plano, senão corremos o risco de nos tornarmos dogmáticos e depois só podemos jogar futebol dentro da mesma equipa sempre contra os mesmos jogadores, pondo de lado o prazer de ver as jogadas dos adversários reais e plausíveis, em jogos cujos árbitros desapareceram do relvado.

    A democracia tem o condão especial de se auto-sabotar. Assim o jogo torna-se cansativo e chato. E por isso é melhor alguns começarem a pensar já numa second life.

    Nesta fase do campeonato, houve bastantes transferências que abalaram a liga.

    Desde que haja divisão e luta entre as pessoas, com ou sem razão, é sempre positivo para o Poder, segundo os clássicos princípios maquiavélicos, para que o reino tenha sempre os motores a bombar ácido para a maralha… Que somos nós.

    Os jornalistas, comentadores e partidos tipo Chega depois vão fazendo o resto do trabalho sujo, destruindo a realidade com r pequeno.

    Os comentadores de uma forma geral são bastante totós, já sabíamos, talvez por isso sejam comentadores. Não comentam, vomitam palavras e não percebem nada de muita coisa como convém para o espectáculo da democracia continuar a ter os holofotes a bombar watts. Mas alguns queimam-se na floresta mediática. Desta vez serão muitos. Não havendo bombeiro com água na mangueira para apagar as chamas da nova inquisição.

    Não há já muito dinheiro para aguentar tanto verbo e apagar tantos fogos auto-impostos como convém para perpetuar a democracia. Já os políticos da nova mensagem vêem o seu prazo de validade ainda longe, uma vez que a onda ainda vai no adro e ganharam algum espaço de crescimento, o que se verá certamente já nas Europeias que são para os votantes, e mantendo as analogias desportivas, a taça Intertoto da UEFA.

    Enquanto isso o GPT continua à espreita de vítimas circenses que são sempre as melhores e mais apetecíveis, chegando às vezes a ser divertido. Os comentadores andam assustados.

    Sem dúvida que se trata de um western contemporâneo cheio de bons e maus, conforme o ângulo por onde se olhe, transpondo-nos para a clássica literatura que, em simbiose com a Realidade, deu-nos obras de arte cujo resultado provavelmente somos nós, os seres humanos com as suas eternas vicissitudes.

    Soa sempre bem falar em westerns, e tem a ambiguidade necessária para me distanciar dos extremos tão nefastos, então agora que o parlamento está cheio de cowboys.

    Como diz um amigo meu, a esse novo partido-doença só falta ter lá em exposição o índio dos Village People, já que tem polícias e o resto do folclore necessário para se disfarçar de ideologia. Até tem o Marcus, um lutador luso-brasileiro que quer confrontar os racistas de esquerda, segundo o que está escrito no seu velho Twitter.

    Estarão a fazer uma actualização da farsa setentista cheia de cor e kitch antes da mimesis de zeros e uns que deu nova hemoglobina ao sangue e que apareceu de rompante com a internet?

    Haverá sem dúvida muita adrenalina nas casas de banho do parlamento.

    Para assistir ao circo cada vez mais imbuído de realismo, bastou nessa noite eleitoral olhar atentamente para os comentadores habituais das televisões que são mais de cem e que sem dúvida, nos ofereceram um bom espectáculo televisivo em noite de Óscares que também andam pelas ruas da amargura, à espera da dose gélida de neo-realismo (já que falamos de cinema) que lhes apareça como um terremoto politicamente incorrecto pelo veludo da passadeira e dos vestidos grená adentro, para voltarem a ter as audiências que o Trump levou.

    Como se tivesse sido o vento.

    Como se vê, só falamos de boa gente como diz o ex-povo.

    É preciso desconfiar das catástrofes naturais politicamente correctas porque começam a faltar troncos para nos agarrarmos, na esperança da salvação.

    Sabemos, por outro lado que é a própria indústria quem tem o poder de construir ficções, o que noutro tempo esteve entregue às religiões.

    Mas o que é sinal do nosso tempo é a própria indústria ter metido os óculos da Realidade virtual (RV) e não ter tido a capacidade de os tirar a tempo como as religiões fizeram chegado o fim do episódio para passar ao seguinte. As religiões pareciam mais certinhas no acerto do compasso.

    Como se as catástrofes fossem naturais.

    O século XXI prescinde dessas religiões e abraça outras que já não nos prometem a vida depois da morte, mas sim a própria morte, por isso no domingo 10 do 3 de 2024, houve mais alguns actores que perceberam o seu fim vendo por exemplo os seus parcos empregos em risco, embora o caminho para o desemprego em estúdios assépticos já tivesse sido anunciado há muito.

    Os canais televisivos estão em falência técnica. Nem o polígrafo pode desmentir. Polígrafo quase pago na totalidade pelo Facebook.

    Por isso os comentadores são mais que as mães e até já têm juniores a fazer comentário, tipo estagiários a custo zero como sintoma da democracia dos pobres.

    Um dos vitoriosos da noite das eleições foi o Pedro Nuno Santos que dias antes tinha provocado o Ricardo Araújo Pereira, ao assinalar-lhe que o seu canal do grupo Impresa era um dos grandes devedores nacionais, como quem avisa para se pôr a pau. O desconforto do RAP foi evidente. Coitado do rapaz que foi apanhado à traição não estando minimamente preparado para as provocações alheias fora do guião.

    Nos Óscares, os actores principais ainda custam milhões, mas por estes lados lá pelos plateaus ficcionados, imaginamos que estes actores-comentadores andem muito baratos para nos explicar o que vai na cabeça dos políticos. Desta vez, deu mesmo para perceber que as pessoas não são assim tão estúpidas nem os comentadores são assim tão espertos e o resultado trouxe algum espectro de Realidade. Mas só algum.

    Acredite-se ou não, no momento em que finalizo este texto, todos os canais de televisão promovem debates e tertúlias intermináveis sobre o cancro da Kate Middleton, pessoa que eu desconhecia até então. Esses mesmos jornalistas que moderam os debates e tertúlias são aqueles que ostensivamente e moralmente julgam qualquer frase dita por alguém do Chega. Eu também o faço amiúde, também questiono à grande essa inflamação, mas não ando a moderar parvoíces televisivas.

    Tenho mesmo a sensação de que alguns vivem e dormem nos edifícios onde estão os plateaus como o Sebastião Bugalho, que está sempre pronto para ser o bombeiro de serviço. Muitas vezes até o imaginamos de pijama na parte que não é visível. Coitado do puto que ainda não tem autorização para discordar do chefe Ricardo Costa que parece mesmo ter feito desses não-lugares o seu paraíso artificial.

    Mas esse jornalista-director-irmão é mais perspicaz e sapiente que os outros e lá vai sobrevivendo aos abanões de terra como uma térmita bem preparada. Não quer dizer que seja melhor pessoa, mas no jogo do simulacro Debordiano é rei.

    O Sebastião, por quem até nutro alguma simpatia televisiva, parece um desenho animado do Charlie Brown e talvez por isso não costume levá-lo muito a sério. Quando não se tem barba e se tem ar de chavalo, não se deveria usar blazer e muito menos gravata. Parece que este tipo de pessoas está sempre vestido para ir à catequese ou a um casamento. Fica o conselho Gaultier.

    Há uma jornalista-Robocop da CNN que é adorável ver em acção. Já corporiza o novo ciclo que aí vem. Chama-se Ana Sofia Cardoso. Sempre que entrevistar o André Ventura, tentem não perder. Nunca o polícia mau havia chegado tão longe, ainda por cima um polícia mau Robocop.

    Gélida, incisiva e espectacular, embora feitas as contas, o político-espectáculo-do-momento dê ideia de conseguir sacar sempre mais uns votos. A vítima perfeita com um carrasco à altura. Só visto em filmes de acção. De vez em quando os jornalistas têm a mania que são jornalistas e ainda fazem pior. Talvez fazer jornalismo seja ouvir, para o público poder escutar também. Mas a gritaria e cacofonia já não vende tantos champôs, mas pelos vistos continua a render votos.

    O que é curioso e fruto de uma aprendizagem, é que a Realidade não é grande nem é pequena, é a Realidade. Ou cabem todos ou não cabe nenhum. O sol quando nasce deveria ser para todos, assim como os novos jogos da PlayStation.

    E parece que o tempo está a começar a ajustar-se ao espaço televisionado para mal dos protagonistas em que a realidade sem R maiúsculo se torna inimiga, fazendo mesmo, estranhamente, com que os actores se auto desmascarem.

    E quando algo inesperado faz o ajuste, (infelizmente muitas vezes são as estúpidas guerras), parece que o denominador comum faz o seu papel. Por isso o mundo anda sempre à procura de conflito. O Poder sabe isso, mas também vai precisando de raios de sol que brilhem o suficiente até ao seu suicídio, como na Grécia Antiga ou em Roma.

    Desta vez não fazemos ideia se será possível a analogia porque entra um novo player para baralhar, chamado IA. Já para não falar da sempre nefasta possibilidade nuclear.

    Quando o planeta se reajustar à sua verdadeira dimensão, presumo que haja festa à séria e que a violência fique para segundo plano, presumo também, que isso nunca tenha acontecido.

    Vale a pena viver e ter esperança, a magia pode acontecer desde que não se confundam os mágicos com as marés e marinheiros. E há sempre uma primeira vez, como diz o ex-povo.

    Para a grande maioria, a Realidade já era.

    Aquilo que lhes contaram e ensinaram já não se verifica facilmente com contas de cabeça preguiçosas. Antigamente ainda se podia enganar a Realidade porque havia excedentes de muita coisa. O excesso permitia ocultar o tempo, mas ocultar o tempo é a maior das armadilhas,

    sabemos por experiência.

    Contaram-nos uma história de violência engraçada, mas o tiro saiu muito ao lado.

    Assim a Realidade vai ficando sem ninguém como um deserto.  Ela existe, sei-o pelos sonhos, mas quase ninguém anda por lá.

    Ah! E se ela é fresca e cheia de sombras (porque há sol)!..

    A Realidade não tem género inclusivo, tem literatura.

    E se há coisa que distingue a Realidade dos outros jogos cujas regras nos ensinaram, é que lá os mortos falam a nossa língua porque aí, e deixemo-nos de brincadeiras, a morte não existe.

    O que existe somos nós, os “mortos”… De medo de estar a perder alguma coisa de essencial.

    Bem vistas as coisas, e prescindindo das análises dos anormais da moda, a Realidade corre mesmo o risco de existir e de ser recomendável.

    Já viram? Parece sempre tudo a brincar.

    Viver, começa a ser urgente.

    Voilá!

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero


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  • Jornalistas no fim da linha

    Jornalistas no fim da linha

    De vez em quando ainda faço umas viagens sem sair do sofá, pelas canais generalistas, e em certo domingo passei pela TVI, que comemorava os seus 31 anos com uma gala. Este tipo de eventos, só consigo ver em directo, e sem fazer rewind com o comando, talvez para me recordar de quando apenas havia canais generalistas, e de desfrutar dessa memória encantada do tempo real, em que tínhamos de mamar com a publicidade toda, acabando por sabê-la de cor, isto se não quiséssemos perder pitada daquilo que estivéssemos a ver.

    Apanhei a gala quase no início. Fui ler a sinopse que dizia:

    O Casino Estoril é o palco escolhido para a grande Gala do trigésimo primeiro Aniversário da TVI, que será conduzida por Cristina Ferreira e Manuel Luís Goucha. Muitos dos rostos do canal subirão ao palco para momentos que prometem marcar para sempre a história da estação.”

    Marcaram, mas não pela razão esperada.

    Nesse directo, víamos uma espécie de espectáculo auto elogioso, (como é comum a todos os canais nestes eventos), que ia sustentando a ideia de glamour, palavra proferida muitas vezes pelos actores e jornalistas que desfilavam efectivamente pelo palco do Casino Estoril, sendo pagos para isso, suponho. Há mais glamour na secção de roupas do Continente, embora a Maya me desminta, certamente.

    Sim, é um exagero.

    A transmissão, que paulatinamente, começava a ter laivos de barbárie para quem tivesse de enfrentar o palco e consequentemente, a audiência ao vivo feita de si própria, começou a deixar-me interessado, mas é evidente que também se começou a apoderar de mim um certo ardor.

    Há um efeito adverso sadomasoquista, do qual sou acometido por vezes, e que creio, todos temos, dependendo do objecto em questão e que mudará efetivamente de pessoa para pessoa.

    No meu caso é a televisão a fonte de singela perversidade.

    Há um estudo que diz que existem mais telespectadores a ver as novelas pelo ódio, que pela adoração. Vivemos uma época em que há estudos para tudo. Não sei se será verdade, mas naquele caso ajustava-se o princípio.

    Também não sei muito bem explicar estes fenómenos (e há anos que faço auto-psicanálise), mas tenho uma noção clara do problema, admitindo-o (regra primordial para iniciar tratamento), embora seja verdade que só mergulhando no lodo, e dando por lá umas braçadas, é que ganhamos alguma autoridade para falar do pântano, e dos organismos que pululam nessa zona húmida.

    Enfim, naquele espectáculo pouco entretido havia biodiversidade do melhor, como se esses organismos estivessem aos encontrões uns aos outros, nuns carrinhos de choque meio gastos, cuja viagem não parecia ter fim à vista, embora hoje, já se vislumbre melhor o destino e o fim anunciado da euforia perpétua (permitam-me a contradição), à qual estivemos sujeitos nas últimas décadas. Pelo menos é um fim, que já não se confunde com o meio.

    Quando vemos estas transmissões, podemos achar que estamos naquelas salas de espelhos do jardim zoológico que aumentam e diminuem a nossa imagem, deformando-a, sendo que ela, já por si, pode ser uma caricatura. Muitas vezes, basta ter de dizer o que não pensamos e fazer o que não queremos durante a vida as vezes suficientes, fugindo à nossa verdade intrínseca, para acabarmos no psiquiatra, sendo essa sim, a nova normalidade tão estafada.

    Se pensarmos assim, e aludindo aos espelhos-monstro, estamos dentro da pura semiótica, isto para a tentativa de elevação desta análise, não querendo, porém, torná-la pseudo-académica e arrogante.

    Como conheço bastantes actores que estão no mercado, sei de antemão que a sua maioria não gosta de fazer figuras tristes, como as de domingo em prime-time. Tenho mesmo um amigo actor que, conhecendo uma boa parte dos colegas de profissão que por lá se arrastavam, recusa-se sempre ver este tipo de galas, muito menos a ir, sendo constantemente atacado à traição pelo triste e inoportuno sentimento da vergonha alheia.

    Eu ainda julguei que as coisas más podiam ser boas, depois de ver o filme Ed Wood do Tim Burton, um filme genial por muitas razões, mas também porque transmitia a ideia de que o realizador e personagem do filme era sobretudo ingénuo, e isso aos olhos do realizador parecia interessante. Ed Wood é considerado o pior realizador de todos os tempos.

    Quando o vi, parecia ser possível desenvolver actividade artística entre o lado cerebral e matemático de Stanley Kubrick e a idiotice enérgica do Ed Wood.

    Anos depois vi um filme real do próprio e não foi fácil chegar ao fim, porque era mesmo mau.

    A verdade é que se pode fazer um bom filme sobre um mau realizador, mas nunca um bom filme por um mau realizador.

    Sem com isto querer comparar a gala com um filme mau, apenas faço uma analogia com certos critérios de qualidade. Não é que aqui fosse essa a situação, porque não havia efectivamente ingenuidade e pureza na execução do espectáculo como no olhar do Tim Burton sobre o Ed Wood, no sentido do princípio pós-moderno de que tudo o que é muito mau pode ser bom.

    O fenómeno sadomasoquista explica melhor certas situações de angústia que, supostamente também são remixes de prazer, o que pode justificar a minha atenção à gala, como aquelas pessoas que vão à tourada na esperança, de ver o touro agredir o toureiro.

    Acho é que a estação quis mesmo dar uns tiros aos jornalistas, mas também, se nos fixarmos na cara do director José Eduardo  Moniz, podemos constatar que se assemelha cada vez mais a um velho samurai que perdeu a espada e a barba, e anda a norte de nenhum sul, ainda que lidere audiências, sempre confirmadas por audiometrias discutíveis pelo próprio sector.

    Mas a vida é feita de acordos.  

    Eu aqui, não queria mal a ninguém, nem sei como é que isso seria possível.

    Caírem? Não saberem o texto? Um incêndio no teleponto?

    Bem, pior só mesmo pôr jornalistas a fazer de políticos de forma revisteira…

    E não é que minutos depois o desejo se tornou “real”…

    De um momento para o outro, apareceram seis jornalistas com péssimos textos, a fazer de pessoas que estão no Big Brother, que por acaso são os políticos líderes do momento e candidatos a primeiro-ministro. Políticos que alguns terão certamente de entrevistar no futuro.

    Mas também basta o Araújo Pereira (RAP) querer, e consegue meter inversamente os políticos a fazer de jornalistas no programa dele à vontadex.

    A televisão ainda é um prontuário que dá para tudo.

    Aproveito a ocasião para dizer que o RAP está mesmo a ficar repetitivo, e cada vez mais parece imitar os trejeitos do Jon Stewart, no seu Daily Show da Comedy Central, de há mais de uma década, quando ainda parecia credível e fracturante fazer este tipo de programas. Agora parece que o americano voltou ao local do crime e não é certamente porque viu o RAP a traduzir Portugal para o pequeno ecrã.

    Comecei a perceber paulatinamente que estava a ver um espelho da realidade ali a passar diante de mim e em directo.

    Esfreguei as mãos.

    Aquilo era demasiado real para ser uma encenação, onde é que já vai o tempo das encenações!

    Não estamos a falar de uma gala deprimente encenada pelo Filipe Lá Féria, mas sim de outra coisa bem mais triste e soturna, sobretudo para os actores de profissão, não incluindo evidentemente os jornalistas, que similarmente tinham papeis atribuídos, mas para a área do Shakespeare e não da do Pulitzer.

    Só faltava lá o Daniel Oliveira, que nessa semana tinha feito em directo um mea culpa, no Eixo do Mal, referindo-se à catástrofe do espectáculo da política em que nos encontrávamos, aludindo à proliferação de comentadores que analisavam os debates, que eram mais que as mães, matematicamente falando.

    Dias depois, lá estava ele na SIC a exorcizar-se e… E a comentar.

    Só agora o exorcismo?

    O Paulo Salvador, jornalista e editor da TVI, também se retratou muito recentemente, enviando um artigo aqui para o PÁGINA UM, com um texto suicida para o jornalismo. Ainda assim bastante mais nobre e verdadeiro que a declaração inesperada e traiçoeira do tudólogo da SIC. 

    Estará alguma coisa a mudar? Não creio.

    O mundo ainda precisa desta psicose colectiva para o seu desequilíbrio estável e para o seu normal funcionamento. Acho é que vai havendo menos dinheiro para a festarola e as dívidas vão-se acumulando. Há é muito Xanax e Prozac para suportar a ressaca. Como sempre, ganha a Big Pharma.

    De certa forma todas as principais caras televisivas do canal andavam por lá, mas parecia que nenhum deles queria acreditar no momento.

    Com o andamento da carruagem, parecia um comboio suburbano desnorteado a andar aos solavancos (cheia de ferrugem pelos vistos).

    Por vezes o relógio faz partidas e transforma o ponteiro dos segundos em minutos e começava a ficar chato, mas imaginando que ninguém iria criticar aquilo, talvez o Cintra Torres no Correio da Manhã o fizesse, mas era no Correio da Manhã… E a fazê-lo, seria enquanto critico de televisão em que é difícil dar um tiro no próprio regimento. Decidi então investir um pouco mais, imbuído até de espirito de missão e cheguei ao fim da emissão. Agora só faltava escrever qualquer coisa para assinalar o momento. E eis-nos aqui. 

    O mais absurdo era, o som cacofónico vindo da plateia, estar sempre presente, num péssimo trabalho de sonoplastia, o que denunciava um certo desinteresse por aquilo que ia sucedendo em palco, que na verdade, e aí posso entender a audiência, era… Nada.

    Ao menos escondessem esse som estridente que pouco acrescentava ao espectáculo. Parecia a FIL-Auto com o seu caos sonoro assumido.

    Quando a câmara focava alguém, era inevitável essas pessoas conhecidas, esboçarem um sorriso televisivo Colgate, voltando depois à actividade social natural, na qual comiam, falavam e olhavam para os seus pequenos ecrãs tácteis.

    Os textos não tinham interesse nem piada, já vi muito melhor noutras ocasiões (nos Globos de Ouro da SIC, por exemplo), e os actores lá iam fazendo o seu trabalho, debitando deixas, em conjunto com as outras caras conhecidas do canal, neste caso jornalistas.

    Creio que os actores em Portugal têm uma qualidade inegável, tanto que faziam o seu trabalho com a dignidade possível para a ocasião.

    O Eduardo Madeira e a Paula Neves, com um texto que envergonhava um doente em coma, esforçaram-se enormemente, já que foi na actuação dele que o público mais ignorou e bebeu champagne. Foi penoso verificar que literalmente ninguém lhes prestava atenção. Os inserts da plateia, revelavam essa situação sem pudor. Até parecia de propósito.

    Considero o Eduardo Madeira um excelente cómico e intérprete, o que me fez ter vergonha alheia e perceber o meu amigo que citei há pouco. Não se pode dizer o mesmo dos jornalistas a quem foram atribuídas várias tarefas, como por exemplo, a de cómicos de serviço.

    O mais degradante ainda, foi o facto de terem de fazer de políticos, como já atrás tinha referido, parecendo ser essas intromissões a cereja no topo do bolo estragado que nunca ninguém comeu.

    A Sandra Felgueiras, a melhor ainda assim a cumprir a tarefa, fazia de Mariana Mortágua, usando para isso uma peruca semelhante ao cabelo liso e comprido que a política nos habituou. O jornalista desportivo e agora director Sousa Martins, fazia de líder do PCP, estando mesmo sem cabelo para interpretar o Paulo Raimundo… mas se nem o próprio Paulo sabe fazer de Raimundo!

    Parecia, no entanto, que se vingava de uma prestação que o político,  ainda jovem e com cabelo à CDS, teve nos anos 90, no programa da Cornélia, descoberto pela equipa do cómico oficial, RAP e exibido com algum desdém, uma semana antes, no seu programa dos domingos.

    Dificilmente me lembro de uma charge tão má como esta dos jornalistas a tentar imitar políticos, mesmo contando com os piores sketches do Prédio do Vasco.

    Havia uns que nem os mínimos faziam para se assemelharem aos originais. Ninguém se ria nesses supostos directos à falsa casa do Big Brother.

    Fez o Big Brother, que está agora na grelha do canal, parecer um filme do Ingmar Bergman em comparação, e elevou o La Féria a Bob Wilson.

    É assim que o mundo por comparação funciona, as coisas parecem sempre melhores do que aquilo que são.

    Exemplo disso, foi o aparecimento da CMTV, que fez parecer os outros canais, obras de arte. Mas por pouco tempo.

    Não percebo como é que canais tão grandes, para a dimensão do país, passam pelos pingos da chuva que por sinal… Escasseia.

    Uma hora antes tinha assistido ao programa do RAP em que gozava com o líder do PS, porque tinha chorado no programa do Daniel Oliveira (director de conteúdos da SIC), programa esse, conhecido pela actividade lacrimal, que todos os portugueses já ouviram falar alguma vez, e que dura há décadas.

    Mas será que os convidados não sabem ao que vão? Claro que sabem, mas chorar fica sempre bem, é catártico e depurador.

    Ainda assim o Pedro Nuno Santos fazia melhor de Pedro Nuno Santos que o jornalista destacado pela direção para esse papel. Mas se este putativo primeiro-ministro chora assim tão facilmente, podemos prever uma epopeia de lágrimas numa eventual catástrofe sísmica, ou na eventualidade de outra visita da Troika, não nos deixando esse cenário muito seguros quanto à frieza necessária para combater tais hipotéticos teatros de operações. Será assim? Noutros tempos é que se exigia aos políticos mais capacidade de raciocínio e menos espectáculo. A mudança dos paradigmas também não é necessariamente sempre para pior, até porque isso seria absurdo, mas depois de ver jornalistas a fazerem de políticos sem qualquer possibilidade de humor, que havendo, até poderia suavizar a actuação, fiquei aturdido. Por outro lado, parecia ser um espelho bastante realista do nosso momento actual, em que a verdade levou um pontapé e foi dar uma volta ao bilhar grande.

    Agora, quando vir esses jornalistas a debitarem a moral do costume envoltos em chroma key a falar da Palestina, não sei…

    Ainda assim, nada supera as performances “covidianas” do Rodrigo Guedes de Carvalho nas noites informativas e poéticas da SIC por altura da pandemia.

    Logo no início, o Goucha e o Cláudio Ramos fizeram uma brincadeira com uma conhecida música brasileira, em que cantavam e dançavam. Cantar e dançar? Teríamos de rever o dicionário.

    Mas o mais incrível de tudo é que imaginamos que tenha havido ensaios. Ensaios? Abram novamente o dicionário. Foi um pesadelo.

    Gostava de ver a cara dos criativos, quando conceberam o guião, a exultar de alegria com as ideias. Então naquela de pôr jornalistas a fazer de políticos, devem ter aberto uma garrafa de… Espumante.

    Confrangedor também foi ver o director José Eduardo Moniz, que ia aparecendo no palco, a dizer umas piadas escritas, (o improviso parece ser proibido nestes eventos), para festejar e elogiar os 31 anos da estação. Convém lembrar que quando esta estação apareceu, ainda ligada à Igreja, um ano depois da SIC, ele era o director da RTP, encetando uma concorrência severa e desleal aos canais privados, sobretudo à SIC, com dinheiro publico, facto pelo qual foi bastante criticado. E agora quem diria, estava à frente do canal concorrente, a exultar os resultados e a liderança de audiências.

    A memória em Portugal parece ser apenas coisa do canal com o mesmo nome, canal esse que ninguém deve ver, muito menos o José Eduardo.

    Jornalistas a cantar e a anunciar bandas, jornalistas a dizer piadas, jornalistas a dançar, jornalistas sem responsabilidade a massacrar a arte da representação, deve ter sido um vexame para os actores, que, coitados, lá têm de andar de novela em novela a comer o pão que o Rangel amassou.

    O desfile ia ficando cada vez mais grotesco, mas a Cristina Ferreira era a única que se ria, só que das próprias piadas, com um humor pouco refinado e requentado como é habitual, no meio de auto-elogios ao próprio evento, aludindo ao cuidado que tiveram na execução.

    Qual execução? Estava tudo mal.

    Os Anjos e os D´zrt, entre muitos outros, também animaram a festa, e era nesses momentos de música, com as bandas e os cantores em acção, em que não se ouvia o ruído suicida de fundo, que parecia um programa normal e fluído, tanto que os inserts mostravam pessoas a cantar com os artistas, a bater palmas e a rir que nem loucos sempre que a câmara os focava.

    Este modelo de eventos televisivos, inventado pelos americanos, já teve melhores dias, mas como a falta de imaginação parece ser um dos atributos das funestas estações, nada de anormal então na ‘frente ocidental’.

    A promiscuidade cada vez mais intensa entre o espectáculo e a política, com a contaminação daquilo que já foi o jornalismo, é que me parecem bastante preocupantes.

    Ficamos à espera de uma análise mais detalhada do Daniel comentador, que muito terá a dizer sobre o assunto.

    Dizem que temos milhões de anos de existência, mas cada vez estamos mais infantis, e agora é que parece mesmo que estamos a brincar com os dinossauros.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero


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  • Uma foto, ou um fundo no fundo

    Uma foto, ou um fundo no fundo

    Se há uma coisa que me fascina são as cores, outra são os insetos, mas  desses invertebrados pouco amigáveis nada direi neste texto.

    Fascinante também, é o mundo atual e as suas incongruências.,

    Diz a ciência que cada um vê a sua cor. Cada um tem a cor que merece, acrescento, não querendo ser profundo. Saiu-me assim de rompante, da massa cinzenta, sem mais nem menos. Sei também que para uns, mais é menos, mas não quero entrar por essa porta fonética, cheia de pregos ferrugentos quando mal aberta, ou fechada, que para esta coluna, quer dizer o mesmo. 

    No mundo das cores só sei que, se aquilo para mim é verde-eucalipto, pode não ser para o outro(a). Se aquela jarra é violeta para o João, pode perfeitamente ser rosa para a Carla. Se aquele carro elétrico a lítio é azul céu para o E. Musk, não quer dizer que para o B. Clinton o seja, nem mesmo para a H. Clinton, já agora. Aliás, ‘adoro’ mesmo muito este casal muito democrático e muito colorido, se me é permitida a redundância… Poderia até ser vermelho, para eles, e serem um caso grave de daltonismo, mas isso será sempre especulativo (conspirativo) e também não interessa aqui para este espaço que pretende, apesar de tudo, ser pouco monocromático e não político.

    Até neste tema das cores, haverá sempre argumentos para os seres humanos discordarem uns dos outros e arranjarem confusão. 

    Se até por causa de um verde alface podem pessoas andar à porrada e acabarem a enfiarem uma garrafa partida pela goela abaixo de um(a) desgraçado(a), que apenas proferiu uma banalidade, por exemplo, sobre o arco-íris. Imaginemos então, o que não poderia suceder, numa discussão sobre identidade de género, mais acalorada, ou numa em que se usassem terminologias políticas, tipo capitalismo ou liberalismo.

    Mas ainda assim, eu quero falar de cores e de um recente episódio que me aconteceu, que até me quis fazer mudar aquilo que estão a ver aí em cima deste texto, bem redondinho que é… A minha cara. 

    Sim, hoje deveria constar uma bola preta, sem qualquer tipo de interesse para a maioria das pessoas. Para mim, continuaria a ter interesse, porque essa não-cor mesmo que seja discutível, ainda, é uma cor, ou não? E remete para a arte conceptual. Arte simplória e complexa, dependendo sempre de quem a faz e olha.

    Mas não.

    A programação do site não o permite, mudaria para sempre a minha face aí dentro da bolinha, Daí a necessidade deste texto. 

    Terei todo o cuidado na abordagem deste assunto, e peço que não abandonem já a leitura – primeiro porque não vou entrar, nem por questões polémicas e fracturantes, de raça ou de género, tipo se as cores são masculinas ou femininas, como já vi a matemática ser tratada. Aí não me apanham. Sou completamente normal e pela igualdade de tudo.  Ponto final. E segundo… não há segundo.

    Gostaria mesmo de referir-me a duas cores, o azul e o amarelo, duas cores que estão no meu top-colour. 

    Se estiverem atentos a pormenores, e fizerem zoom à minha cara, para verem o que quiserem nela, percebem certamente que o fundo é uma publicidade, cujo amarelo e o azul são predominantes. 

    Ou não…

    Ilustração de Rita Belchior

    Tenho um amigo que percebe bastante de fundos e também da mente humana. Depois do meu primeiro texto publicado aqui, ele ligou-me no dia seguinte à publicação. 

    Disse-me:

    – Tu agora és daqueles que estão a favor da Ucrânia?

    Entrou logo a matar. 

    – Não. Nem a favor nem contra. Não percebo nada desta guerra. Mas não gosto de invasões, é claro. Não estou a perceber! Não é preciso entrares assim a matar só porque estás a falar de guerras. 

    Disse eu, deveras intrigado, porque vindo dele era estranha a entrada à bruta e sem subtileza.  

    – Não estás?

    – Não. Mas já agora, tu é que sempre foste deliberadamente a favor da Ucrânia e naturalmente contra a Rússia, embora até sejas do PCP. 

    – Não estás mesmo a perceber? E calma, já não sou do PCP. E era dos Verdes, já que estamos na atmosfera das cores. 

    Respondeu com aquele tom irónico que lhe é característico. 

    – Não. Até me estás a chatear. Diz lá. 

    – A tua fotografia que acompanha o texto anterior, vista assim e à primeira, parece que tem a bandeira da Ucrânia atrás.

    – O quê? Aquilo é uma publicidade à Fidelidade, ou lá o que é. 

    Respondi de rajada. Jamais gostaria de estar conotado com bandeiras. A minha costela de esquerda nunca o permitiria. Para a esquerda não há pátrias, há a Internacional Socialista. 

    – Mas visto assim não parece e pode gerar equívocos. 

    – Quais equívocos?

    – Não é bom para o teu tipo de textos, que te associem a movimentos e tendências e até a países. É um conselho que te dou, depois é contigo. Aposta na ambiguidade, é amiga do tempo.

    – Então se eu tiver uma parede vermelha atrás, vão associar-me imediatamente ao Benfica?

    – Não. Mas aqui trata-se de outra coisa. Muita gente vestiu a camisola da Ucrânia para protestar contra o que está a acontecer, inclusivamente eu, e essas cores tornaram-se icónicas de um tempo. Por isso… Está dito. Não imponho nada. Tu é que sabes… .

    – Estou aqui a ver a foto no meu iPhone, e realmente tem as mesmas cores da Ucrânia, e até tem aqui uma risca que parece de uma bandeira. 

    Mas, e fazendo zoom, isto mesmo assim, só tem para aí uns 8mm de azul por exemplo, ou de amarelo. Não sei se é assim tão evidente. Pelo menos no telemóvel. 

    -Tu é que sabes. 

    Disse, peremptório e com algum enigma à mistura. 

    -Mas eu é que sei, o quê?

    -Não digo mais nada. Tenho de ir à piscina nadar crawl

    E desligou. 

    Ilustração de Rita Belchior.

    Fiquei a pensar. Normalmente, o Filipe fazia-me pensar nas coisas, encontrava sempre uns ângulos interessantes sob os quais olhar, mas desta vez surpreendeu-me deveras. Andaria a ver coisas novas na Net? A verdade é que já não falávamos há algum tempo. 

    A alternativa seria meter um fundo de uma só cor, mas também, no caso de alguém ter reparado no pormenor, também seria estranho agora alterar o fundo. 

    Ainda pensei em arranjar outra fotografia, tenho muitas, mas inequivocamente aquela era de longe a melhor.

    O programa tiraria esta foto do texto anterior, e assim este texto perderia o sentido. E ainda para mais, naquela eu reconhecia-me totalmente. É raro encontrar uma fotografia justa em relação às pessoas. Ou fazem muitas poses, ou usam os programas de edição em demasia, ou não têm cuidado algum e vai a que for, mesmo que o efeito da grande angular lhes meta o nariz do tamanho de um porta aviões. Tenho um amigo que tem tão pouco cuidado com a sua imagem que já chegou a dar para o bilhete de identidade a fotografia de outro, por engano, ainda por cima, muito mais gordo e com cara de vilão da Disney. 

    Odeio quando conheço ao vivo uma pessoa e já vi a fotografia dela, normalmente é uma desilusão, embora já me tenha habituado ao fenómeno. 

    Encontrar a fotografia justa, não é óbvio nem comum. A luz, o ângulo, as olheiras anormais desse dia, a expressão tensa, enfim, imensas variáveis em que não é fácil ajustarem-se todas à mesma hora para uma boa “flashada”.  Mas aquela fotografia era perfeita. Quem me visse ao vivo, iria automaticamente reconhecer-me. E isso é reconfortante. Não haveria cá tangas… Mesmo que ao vivo tenha olheiras, ou a barba feita, ou o cabelo mais curto, ou mesmo um olho negro por ter tido uma discussão sobre… Cores. 

    Será bem assim? Às vezes  claro que tenho dúvidas. Quando uma pessoa se olha ao espelho, ou se vê numa foto, tende a deformar-se, tende a não gostar.

    Quando uns olhos olham outros, que são os mesmos, não vêm nada. Este é um dos dramas do mundo. O outro é a raiva que me mete aquelas pessoas que no Inverno, mal aparece um bocadinho de sol e calor, calçam logo os chinelos e põem manga curta.

    Como é que um pouco de azul ou de amarelo, tem a capacidade de quase me estragar o dia. 

    Estarei a exagerar?

    Aquilo é tão pequeno, e duvido que as pessoas façam zoom para ver caras. Por dia já vêm, sem querer, um milhão. Quem é que procura caras?.. Os do tinder ainda percebo. Será que aí faria mal, ou bem, ter a bandeira da Ucrânia por trás da carantonha? Nunca se sabe.

    Mas também quem está no tinder não está bem à procura de grandes debates sobre geopolítica. Digo eu. Bem, mas também há todo o tipo de fantasias…

    Tentei fazer uma foto novamente da minha cara, da qual me orgulhasse, e que não fosse mais uma corriqueira. A primeira selfie saiu logo mal, demasiada pose, a segunda desfocou demais, a terceira queimou, na quarta, eu por estar tão irritado com o falhanço das anteriores, tinha uma cara de chateado. Não estava a resultar de forma nenhuma. A única vantagem em relação à “ucraniana” era o fundo que realmente escolhi bem. Era branco e neutro. Sei que há apps no telemóvel que já põem o fundo que quisermos, mas não gosto de usar apps, a minha costela de direita conservadora está sempre a fazer soar o alarme. 

    Ilustração de Nuno Bettencourt

    À quinta, fiz uma cara nojenta que, de certeza não é a minha, e se for, mete nojo.

    Delete.

    Espero que tenha sido da lente, estes iPhones às vezes…

    Não é a minha cara que está deformada, é a lente. Reconforta-me este tipo de pensamentos. À vigésima desisti, e pensei ir a um programa de IA para dar uns retoques na original, e manter a alma. Mas pensei melhor, e arrependi-me. O algoritmo de alma não percebe um caracol. 

    Também, qual é o problema se uma parte dos leitores me associarem eventualmente à defesa desse país, ostracizado pelos russos?

    Até podia ser justo. Claro que seria sempre sem querer, dessa guerra não tenho grande conhecimento. Uma vez até, tentei ver aquele programa com o José Milhazes e o Nuno Rogeiro, para adquirir alguma informação relevante, mas não consegui. Parecia que estava a ver um sketch dos Malucos do Riso. 

    Nunca gostei do Putin, que já anda aí ao tempo, do Zelensky nada sabia, até ter estoirado a guerra, mas, e tenho esse direito, odeio as t-shirts que ele usa, e soa-me a falso demais. Fez umas fotos para a Vogue que não me caíram lá muito bem, e a voz irrita-me, mas daí a saber se tem razão ou não…

    Ainda para mais, não sei nada desse país que uns dizem que tem imensos Neonazis lá metidos ao barulho. Dizem, não sei. Nunca gastei o dedo a pesquisar.

    Claro que os ucranianos não têm culpa disso, e poderia perfeitamente estar a dar o meu contributo desta forma imagetica à causa, sem que venha daí mal ao mundo.  Não será por oportunismo, tratou-se de um acaso, já está, mas não, por outro lado… Ficaria mal, sem dúvida. Poderia efetivamente ser visto como oportunismo digital, um oportunismo bastante na moda. 

    Sei, no entanto, que até cairia bem a muita gente, hoje as guerrilhas são feitas assim no sofá, mas os leitores do PÁGINA UM, parecem diferentes. 

    No entanto, sei lá eu quem são. 

    O mundo é hoje muito pequeno, mas o desconhecimento geral é muito grande, como o meu por exemplo, em relação a esta guerra da qual não sei nada. Uma vez um amigo perguntou-me por quem estava, e respondi aquilo que me pareceu evidente – pelos mais fracos. Mas pensando hoje sobre o assunto, será que é uma questão de fortes e fracos, tipo, Benfica contra o Arouca!.. . Não será tudo mais complexo?

    É confuso.

    Ilustração de Rita Belchior

    Seria até simplista demais da minha parte, depois do meu texto sobre Davos, ver a coisa sem o mínimo de complexidade, mas a verdade é que me parece difícil saber realmente o que está a acontecer naquela zona. É deplorável um país invadir outro, disso estou seguro.

    Até depois de uma pesquisa rápida na Net, percebi que até agora, morreram várias centenas de milhares de soldados russos, o que também é estranho, uma vez que são pintados como uma potência militar. Sei que na Rússia, quem não estiver com o presidente acaba invariavelmente na prisão. E eu cá não quero ter nada a ver com isso. Mas, e se estiver, ainda que sem querer, do lado dos ucranianos, será que não estou a ser injusto com outros ucranianos que até se sentem russos? Mas porque é que uma pessoa tem de estar sempre do lado de alguma coisa? Já me chegam as dificuldades que por vezes acarreta ter de apoiar os amigos. 

    Perguntei a uma amiga se a fotografia lhe remetia para a Ucrânia. Disse que não, que isso já era coisa do passado, que agora devia era dar apoio à Palestina. Mas desse assunto também sei pouco, senti-me até culpado depois. Já tenho tanta coisa em que pensar, e mesmo julgando ter informação sobre outros acontecimentos do mundo político, não me é fácil relacionar as coisas. Ela insinuou até, que eu, agora, era sionista. Vi logo onde é que o prolongamento daquela conversa iria dar e fui nadar crawl.  

    Umas horas depois, perguntei à minha mãe se a fotografia de facto me conotava com a Ucrânia, e ela disse que sim. Acontece, que ela é uma fervorosa apoiante do Putin. Ficou chateada e não me deu a mais pequena chance de contrariá-la. Disse-me ainda, quando saía, que eu era facilmente manipulável pela televisão. Já nem respondi. 

    Se virem bem, a coisa está negra, ou será só um exagero da minha parte?

    Há uns anos, esta questão não se teria posto. Era amarelo e azul, e então?

    A maior parte das pessoas que reparasse nisso, iria achar que eu era apoiante e adepto do Estoril Praia, quando muito, e seria motivo de gozo. Mas hoje as coisas não se passam bem assim. 

    Hoje, por um lado, até é melhor, se virmos bem e pelo ângulo certo. Hoje podemos escrever um texto sobre essa ficção em que a realidade não só se confunde, como facilmente a penetra, ao ponto de sermos nós próprios a linguagem. 

    E isso, lamento, mas é bom. 

    Não sei nada sobre a Ucrânia, ok, qual é o problema!

    Ilustração de Rita Belchior

    A maior parte das pessoas também tenho dúvidas que saibam, mesmo os que andaram a carregar com as cores da bandeira às costas. Então, mas a guerra continua e já não se vê grandes apoios nas janelas e nos computadores, que são outras janelas, mas onde é que andam hoje as bandeiras?

    Não sou contra, evidentemente, que se apoie seja o que for, sobretudo se  parecer justo, mas convém saber do que se fala. Eu, nesse caso, estarei sempre à vontade, porque em todo o tempo, fui contra todas as guerras. Nem a tropa fiz. 

    Já saber as regras do trânsito é um problema, ou escrever sem erros ortográficos, quanto mais ter de reconhecer Dombass no mapa político, ou ter de saber se o Shaktar Donetsk ainda joga à bola. A vida não pode ser a metáfora da entrada num supermercado.

    Não. Deixo ficar a foto e pronto, não se fala mais nisso. Se calhar também ninguém repara, nem mesmo depois da leitura do texto.

    Acho que o mundo precisa mais de cor, anda tudo muito a preto e branco. Estamos quase dentro de um filme mudo, em que todos gritam ao mesmo tempo mas ninguém consegue ouvir o realizador. 

    Ruy Otero é artista media


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  • Davos Hotel

    Davos Hotel

    Pedro Sanchez toma o pequeno almoço enquanto passa a vista pelo seu El País. Depara com um par de fotografias da sua cara bastante animadoras, certamente dadas pelos seus spins, que têm excelentes relações com o jornal castelhano. Este Presidente de Governo tem muito know-how, dizem os experts. Prepara-se para ir de Falcon até à Suíça, onde será um dos participantes. Entretanto, compõe a gravata com a qual se apresentará no Fórum, embora tenha durante o Verão pedido de urgência aos Espanhóis para não a usarem por causa do clima cambiático (alterações climáticas na boca da dissidência espanhola).

    Há uns dias, aconteceu o Fórum Económico Mundial de 2024, em que se reúniu a flora e a nata da política e economia mundial, uma «coisa» fundada em 1971 por Klaus Schwab (KS), ainda que tenha começado por se chamar Fórum Europeu de Gestão, mas desde 1973 que tem o seu actual nome. Ainda é o mesmo presidente 53 anos depois. Klaus Schwab é também membro da importante família Rothschild. Como sempre, e mais uma vez, além de outros assuntos fulcrais para o nosso tempo de bem-estar e insegurança, falou-se da pegada de carbono, a grande obsessão de Davos e de Schwab, embora seja já comum, nomeadamente através de activistas da Net ligados muitas vezes às extremas-direitas, (pelo menos, assim denominados pelas extremas-esquerdas), a crítica à quantidade de aviões privados dos actores principais e secundários que aterram na zona. Neste departamento, e muito estranhamente (ou não), as «esquerdas» (ou sinistras) não se metem. Não querem voar nesses aeroportos cheios de algoritmos humanos desinformativos que são a maioria dos canais de YouTube com visibilidade. Escrevo isto, mas posso assegurar que não sou de nenhum extremo político. Aliás, digo já que nem sou de direita, nem de esquerda, sou normal.

    Queres ver os últimos e impressionantes modelos de aviões do mercado? Dá uma volta até ao aeroporto, leva os teus óculos escuros cheios de style e echa un vistazo, como dizem os Espanhóis e mesmo os Catalães. Vais ficar surpreendido com os últimos modelos ultra, mega, espectacularmente sónicos desses ecomultimilionários, enquanto descansam as asas nesses não-lugares cheios de estilo pós-moderno. Esses jactos têm, no mínimo, só para abrir o apetite, serviços de mensagens de texto e telefone NetJets Connects, tecnologia Wi-Fi e Bluetooth à discrição, sistemas de entretenimento em voo on-demand, tablets iPadCozinha completa, com assistente de bordo, chega? Ou os Falcon 50, por exemplo, cujo modelo PW307A tem, só para começar, a Honeywell a trabalhar para a arquitectura de avionics, tem Auxiliary Power Unit (APU), e sistema de gestão do ar, brincamos? Parker Hannifin para o sistema gerador de energia e freios, e a TRW Aeronautical Systems para os sistemas de Flap hidromecânico… Não é preciso dizer mais nada, pois não?

    O Fórum, neste ano, ofereceu-nos sinais de mão beijada acerca da direcção das políticas no imediato. Se o mundo fosse ainda mais redondo e justo, saberíamos, pelos canais mainstream oficiais, mais sobre esses encontros de contornos duvidosos, não ignorando de antemão, que muitas coisas são sempre negociadas por baixo da mesa, o que não é nenhuma ilegalidade em si, e se for, também quem é que está acima daquela gente?… Só Deus… mas como vi num programa da National Geographic, Ele não existe, por isso, não se pode fazer nada. Não estou a ver também a bófia a entrar por ali, muito menos a bófia suíça, que deve andar preocupada com canivetes o tempo inteiro.

    A maior parte das pessoas que conheço, quando muito, acha que Davos é uma estância na Suíça em que se podem partir umas pernas em cima de um ski e pouco mais. Quanto a partir umas pernas, talvez estejam certos, economicamente falando, para ser bonzinho, já que não estou a falar da Cosa Nostra nem de Francis Ford Copolla. Nem tão-pouco, a realidade atingiu o glamour do cinema. Se há gente sem glamour é aquela, basta tirar uma foto ao KS e ficar à espera da revelação para percebermos que, quando muito, estamos perante um daqueles vilões dos anos 70 com passado duvidoso, que fumam o cigarro entre os dedos anelar e o médio (nunca percebi se os nazis fumavam mesmo assim ou se é uma criação do cinema).

    O sotaque kissingeriano de KS é, por si só, assustador. Também é verdade que a maior parte das pessoas não sabe quem é o KS. Para alguns mais velhos a quem perguntei, foi um jogador do Fortuna Düsseldorf, dos anos 80 do século passado. Errado, metam-lhe uma bola nos pés e vislumbrará logo um planeta verde (negro) cheio de futuro, em que não terás nada e serás feliz, expressão inventada pelo menino, que entretanto fez parte de um vídeo com os dez novos mandamentos da Agenda 2030, mas já retirado de circulação. Os conspiradores e fascistas da Net devoraram e partilharam até à medula esse vídeo(game), a ponto de termos até tido pena do pobre KS, que para alguns, muito se esforça para que tenhamos um futuro verde sustentável, assegurado. Ele certamente quer morrer com a consciência tranquila de que fez tudo para nos proteger. Como não sou romântico, fico-me só pela parte do fez tudo. Uma vez, tentei melhorar a imagem do KS no Photoshop, e ainda veio pior. Talvez só a Inteligência Artificial lhe consiga melhorar a imagem. Ele agora também nos quer salvar da má imagem da IA, quando usada e ensinada pelos desinformadores.

    Estará mesmo o mundo a precisar de tanta salvação?. O António Guterres não fala de outra coisa. O planeta é um pântano.

    Web 2.0 já não nos dá a hipótese de ver sempre o sol sem quadradinhos quando nos apetecer. E esperem pela Web 3.0, ela virá como um asteróide a alta velocidade contra o planeta, que por acaso, para uns nem redondo é.

    Às vezes, pergunto-me, se esta gente não se achará uma espécie de anjos na terra, ou anjos caídos, ou se não serão mesmo um bando de psicopatas que perdeu o norte e agora está com medo de perder a Antárctida.

    A verdade é que estas elites estão a entrar a pés juntos à boa maneira do Paulinho Santos, é tudo muito rápido. Agora vem aí o vírus X, outro tema de passadeira vermelha, mas ainda não sabem bem o que é, ainda que nos garantam que é vinte vezes pior do que o coronavírus, e pelo que imagino, já terão na manga, medidas vinte vezes mais radicais do que as «choninhas» do covid, que até deixavam as pessoas sair, se fosse para ir comprar Sonasol ao Pingo Doce.

    Klaus e companhia, neste ano, estão a passar mensagens e ideias, de forma que se perceba efectivamente que têm um projecto bem definido.

    O pior é que não é nada bom para as pessoas a curto prazo, vejamos: combate ruidoso à desinformação, que já se sabe que é tudo aquilo que não coincide com as ideias deles; alterações climáticas, que vão trazer mais restrições às pessoas em grosso modo e à classe média particularmente; vírus que agora será o X, um vírus virtual hipotético, mas que infunde vinte vezes mais medo; combate às guerras, embora a guerra à desinformação seja considerada a principal; imigração; mundo árabe; Irão… Enfim, urge combater os maus, sendo eles naturalmente os bons. Tudo isto até soa a cómico, uma vez que vivo finalmente em Gotham City, e posso desfrutar do filme por dentro sem o incómodo dos óculos RV, que ainda não acertaram no alvo, já que desfocam demasiadamente e causam muitas tonturas, para não falar da porcaria do joystick. Não sei é se há outra realidade à minha espera.

    Mas acho que as pessoas estão a perceber aos poucos que nesta saga, infonarrativa, aos «bons» também se vira, de vez em quando, o feitiço contra o feiticeiro. Sim, a IA faz ricochete e tem efeitos boomerang.

    Andam preocupados com o GPT, e por isso o seu CEO estará lá neste ano. Outro actor importante desta saga é Yuval Harari, um filósofo israelita que pinta uma realidade bastante virtual com hackeamentos radicais à mistura e deuses na Terra, que até imaginamos que seja a velha guarda do costume mais os outros invisíveis que ninguém há-de conhecer, o que é bom para a especulação matrix da nossa era, e para os conspiranóicos do QAnnon, de origem duvidosa. Há quem jure a pés juntos que esta espécie de organização se trata de dissidência controlada, mas também quem o jura pertence à esfera da conspiração. O mundo já é a sua própria conspiração e, às vezes, respirar ar puro digital torna-se difícil, se não tiveres um dogma prêt-à-porter a dar-te guarida… digital. Esqueçamos o puro.

    Será tudo isto uma questão de entretenimento? De quando em quando, pergunto ao espelho negro que tenho em casa, à imagem da série de televisão (que também tenho em casa com o mesmo nome), e não percebo bem se ainda estamos na sociedade do espectáculo debordiano, que as esquerdas sociais tanto citavam, ou se já não somos mesmo a carne para o canhão do cinema moribundo com guiões de série B pouco recomendáveis.

    É que eu não preciso de mais entretenimento. Não fui daqueles que se agarraram à Netflix nos confinamentos, nem muito menos dos que fizeram o pão que o Diabo amassou, enquanto os padeiros faziam as carcaças e as vianinhas do costume, sem câmaras a bombardear as redes exibicionistas. Tanto entretenimento também farta. Agora, queria um bocadinho de descanso. E já agora paz como pediria o Mister Universo.

    Sem dúvida, o globalismo é isto. Eu até gosto da palavra, mas quando percebi que o globalismo é a tentativa de controlar a globalização, ou seja, de controlar o livre intercâmbio de recursos, ideias, pessoas e produtos, fiquei a achar que estes voadores hipersónicos, na verdade, nunca o quiseram, ao contrário do que se pensa, porque isso implicaria diversidade, e não hegemonia das multinacionais às quais pertencem, tendo assim os pobres dos Estados na mão, com a conivência dos políticos e das políticas, em que se inclui a comunicação social, claro. Isto tudo baseado num sistema económico fraudulento na sua essência, que está alicerçado na ideia de dinheiro fácil criado do nada, sujeito a crises recorrentes controláveis e até antecipáveis como o vírus X. Mas que se mantém, porque permite os agarrados à liquidez (e estamos a vê-lo com Wall Street), a manutenção de modelos de negócio obsoletos que só podem funcionar com a manipulação dos juros.

    Também percebo que é difícil parar o tsunâmi, sobretudo quando ele vem cheio de ideias de paz e de amendoeiras em flor, em que um pássaro vale mais do que uma pessoa, e até do que mil palavras. O pior e mais estranho é que são pessoas que votam, e não pássaros. Este sistema, quanto a mim, já deu sinais de ser problemático em 2001 e causou crises como a de 2008, que trouxe consequências graves para Portugal, deixando os Portugueses sem frangos no congelador, trocando-os pelos ordenados. O mundo ficou em respiração assistida, como os doentes covid anos mais tarde. O problema, como sempre, são os efeitos secundários do uso e abuso de tubos a entrar-nos pelos pulmões. Começámos finalmente a acelerar com uma scooter numa auto-estrada, mas em segunda. Já para não falar da inflação e da corrupção institucional. E agora usam como argumento a religião climática que até vem pôr Picassos em apuros, não fossem os vidros hiper-sofisticados a proteger as obras dos climáticos do lítio. É bom ter inimigos externos contra os quais não podemos lutar.

    Pessoalmente, tento lutar contra as alterações climáticas e até contra o clima, embora tudo me pareça cada vez mais gelado na aproximação (aludindo a um antigo jogo da minha infância), mas não sei muito bem como, se isto está sempre em mudança. Ainda pensei em comprar um carro a lítio, sabendo também que o lítio é a substância usada para as crises disfuncionais da bipolaridade. Ainda faria um dois em um, antecipando a crise nervosa que virá inevitavelmente, depois de perceber definitivamente que estes carros poluem sete vezes mais do que os Vauxhall Deluxe dos anos 70 do século passado. Ao menos, nesses, simulávamos assaltos a bancos como nos filmes, e a brincar, uma vez lá dentro, pensávamos que éramos gangsters, longe de imaginarmos fóruns de Davos. Eram cá umas banheiras… que hoje só me fazem lembrar, por livre associação, água ou a falta dela. Mas abro a torneira e saem-me imediatamente inúmeros Vauxhalls em catadupa. Ou melhor, segundo os conspiradores, água cheia de metais pesados.

    É tudo muito confuso. É tudo associação, é tudo psicanálise, é tudo fado. É tudo infância.

    Acho que as alterações climáticas são uma inevitabilidade. A esquerda caviar acha que não, acha que podemos ficar sempre com sol à vista sem que produza queimaduras. Basta… não consumir. Problema do capitalismo. Então mas Davos é o quê? Não me parece que os actores cheguem de trenó nem lanchem uma tostinha de alface com queijo Philadelphia.

    É frequente pensar, que esta esquerda sensível é composta por uma espécie de neoliberais… de esquerda… como Davos. Mas também há quem tivesse previsto este romance. O que ninguém previu, que eu saiba, é que o Bill Gates e o Bill Clinton, dois frequentadores assíduos do Fórum, não parassem de entrar no Lolita Express como quem entra nas Amoreiras, e se viesse a descobrir. Mas não sei se as Amoreiras são uma boa metáfora. São grandes, altas e estão um bocado envelhecidas. Há coisas que convém não dizer nesta democracia totalitária. A verdade é que ambos os Bills têm muito que dizer sobre o Fórum Económico Mundial. Uma vez que falei neles, também devo dizer que este ano, os organizadores garantiram que não haveria prostituição de luxo, à semelhança do ano anterior. O Fórum é assumidamente feminista.

    Mas a ementa deste Fórum, foi o ataque às redes de desinformação, ainda por cima em ano de eleições trumpistas.

    A ideia, no fundo, é que a opinião pública seja igual à opinião publicada. Se não for assim, seremos dissidentes e agentes da desinformação. Tenho a certeza de que este texto, mais tarde ou mais cedo, caso seja lido por um algoritmo, será varrido do mapa. Rock and roll hoje, só com camisolas da Zara. Tenho uma dos Clash comprada lá. Mas também tenho uma da NASA. Na pós-modernidade, é tudo uma festa, desde que não digas mal da Pfizer e da Apple. Tens de concordar com o Great Reset, caso contrário és um conservas de primeira apanha. Great Reset é um livro escrito por KS, e publicado três meses depois do início da pandemia. Só um génio para escrever em três meses um livro daquela envergadura e importância, que explica abertamente que o grande cancro da nossa era somos nós, os humanos. Até parece que ele não é!…

    Um dos temas preferidos destas elites foi precisamente o da desinformação. Discutiu-se a ideia de dares os teus dados primeiro para acederes à Net, tipo, dispara primeiro e pergunta depois à boa maneira do Dirty Harry, que por sinal, também lutava contra os maus. O próprio Bush dizia que se não aceitasses a invasão ao Iraque, estavas contra os Estados Unidos, e se dissesses que o país do Saddam podia não ter armas nucleares, eras persona non grata. Ou estás connosco ou és contra nós, e se fores contra, o teu avatar vai direitinho para a prisão do silêncio. O que vale é que eu sou o meu próprio avatar e raramente discutimos em público.

    De vez em quando, penso se não terão mesmo administrado clorofórmio à grande maioria da população, uma vez que parecem tão absurdos certos paradoxos vindos destes encontros. Não digo que dormir não seja bom, mas por vezes, convém acordar para desentorpecer as pernas, isto para não falar do cérebro. Por outro lado, se a grande maioria, pelo menos em Portugal, não se revela crítica destes paradoxos, pode querer dizer que até está tudo bem.

    E os académicos, onde andam os académicos? Se calhar, estão todos a jogar na Académica, que anda a arrastar-se por ligas menores há muito tempo, sem nenhum fulgor. Efectivamente, não estou na cabeça de milhões de pessoas para o saber, mas também não quero que esses milhões invadam a minha. Para isso, basta não ver televisão e não ler jornais. Quanto às redes sociais, também não sou grande adepto. Não gosto de discutir penáltis nem foras-de-jogo, prefiro meter uns golos de quando em vez, nem que seja na própria baliza.

    O mundo está a precisar de um checkup. Parece que estamos como no Titanic: enquanto o barco se afundava, ainda havia passageiros a fazer planos para o futuro. Estamos na era do complexo Titanic. O mundo é uma selfie meio desfocada. Mas eu não. Eu vejo o guião como literatura. Sempre é mais libertador. Hoje é tudo uma questão de dados. Estás sempre a enviá-los, são a tua corrente sanguínea. Os dados são o poker, os truques és tu. Se quiseres, ou não, és o próprio produto. A diferença é que ninguém tem trinta dias para a reclamação. Os dados, para mim não são o lixo, são os camiões do lixo todos a trabalhar ao mesmo tempo. Os dados são as discotecas em que os cavalos nunca se abatem. Estás sempre ligado à corrente. Se a corrente vai para um lado, embora para esse lado. Só um estúpido é que rema contra a maré. Já não há bem marés. Hoje há mais marinheiros e bots. Há mesmo mais bots do que marinheiros. A táctica é seres mais dados do que os próprios dados. Ser mais banqueiro do que os banqueiros. Seres um único e grandioso dado.

    Um BOT-PLUS.

    Enfim, ser o próprio Banco e ficar lá sentado à espera de que tudo se desmorone. Por isso, eu até posso compreender esta passagem para o mundo twilight definido pelo Fórum, e até de o desejar, é certamente uma forma de ser o actor e espectador ao mesmo tempo, ainda para mais com a possibilidade de viver para sempre. Mas assim não dá.

    Claro que quero um robot escravo a trabalhar para mim movido a hidrogénio. Claro que quero uma torradeira high tech com design do Philippe Starck a dizer piadas sobre a liga de carbono. E se, no meio disto, puder comer hambúrgueres de oxigénio com sabor a carne de vaca, melhor ainda. Se puder viajar no tempo, ui!… Ia de imediato até ao paraíso Viking, chamava-lhes nomes, gozava com os capacetes e pisgava-me logo, accionando a mente e nunca um botão anacrónico, como se vê nos filmes, antes que eles me dessem uma espadeirada. Mas assim não dá. A vossa táctica parece a do treinador do Fafe.

    Por muito estúpidas e incultas que as pessoas sejam, vocês estão a exagerar. Eh pá, aviões supersónicos e converseta do carbono? Vírus inexistentes vinte vezes piores do que o monstro de Lochness? Eh pá, não terás nada e serás feliz? Fogo… crises recorrentes? Ameaças? Blackrocks, Vanguards? Os juros da dívida dos países a subir em flecha… Eh pá… qualquer dia, a maralha percebe, e lá se vai o nosso futuro quântico e cyborg 4.0, cheio de novas possibilidades narrativas para o galheiro.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações da autoria de Ruy Otero com a colaboração de Nuno Bettencourt.


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