Etiqueta: Ruy Otero

  • It’s all true: um sketch teatral

    It’s all true: um sketch teatral

    Num palco um actor muito parecido fisicamente com Biden está deitado na sua cama meio presidencial, parecendo ter um edredon roto a cobri-lo. Uma televisão Sony de tamanho médio está por cima de uma cómoda de estilo clássico em madeira de nogueira Bassano, totalmente feita em Itália por mestres artesãos, da qual se orgulha muito. Pelo menos parece, mas é tudo feito em esferovite.

    Tipo Teatro.

    A televisão Sony é mesmo Sony.

    No momento em que o telefone vermelho toca, Biden ensaia alguns movimentos de ginástica típicos para a idade, fazendo com que pareça uma aranha a tentar escapulir de uma armadilha com uma estranha coreografia, embora cómica e meio atabalhoada. O publico ri.

    Ilustração: Ruy Otero

    Biden parece estar bem disposto e atende.

    -Jo, como estás?

    É Trump. O conhecido Donald. A voz é igualzinha e não é feita pela A.I.

    O público bate palmas.

    -Estava a ver que não dizias nada, velho cowboy!

    -Viste?

    -Sim. Calma. Mas só vi hoje porque àquela hora, sabes como é que é…

    -Não, por acaso não sei Jo.

    Exclama Trump intrigado, parecendo, no entanto, estar a ser verdadeiro.

    -Um dia saberás. Já não falta muito.

    Ilustração: Ruy Otero

    Trump, pelo silêncio manifestado, mostra um certo desconforto não parecendo entender a frase misteriosa de Biden.

    -Sabes cowboy, tenho estado entretido com aquele país ao lado de Espanha…

    Continua o actual presidente.

    -Sim. Marrocos.

    Atira Trump sem acertar no alvo.

    -Não. Mais para cima.

    -Mais para cima é mar.

    O publico ri.

    Não interessa. Na televisão não param de dar uma notícia sobre um gang que fugiu de uma prisão de alta segurança, até parece uma cena de um filme com o velho Clint. Tinha lá um argentino que se disfarçava e tudo, com operações e não sei quê. E um inglês ou que é, que era bom até a mãe lhe dar uma pistola para as mãos. E confesso que ia alternando o teu debate com as noticias parvas desse país. E como tenho tradutor automático… Posso ver o mundo inteiro com todas as línguas. 

    -Ok. Compreendo. 

    Ilustração: Ruy Otero

    Responde Trump um pouco aturdido.

    -É aquele país que tem aquele presidente amalucado que já cá veio uma ou outra vez. Até acho que o conheceste. (Pigarreia para aclarar a voz).

    -Sim, sim. Portugal. Já sei.

    Lembra-se depois de fazer um esforço para avivar a memória.

    -Pois é. Portugal, temos lá numa das ilhas, coisas militares.

    -Esse país é muita maluco. É dos que mais devem e fazem tudo o que lhes dizem lá os outros, mas é conhecido por ter boas praias no Sul, tipo Flórida.

    Remata o homem do cabelo laranja.

    -Sim, isso mesmo. Jogam bem à bola. A Madonna vive ou vivia lá.

    Confirma Biden, contente pelo amigo ter acertado.

    -Sim, sim. Essa cab…

    Trump anui, embora se auto censure quando vai referir-se à cantora, e claro que o público ri. Depois continua:

    -Esse Presidente foi dos que mais disparates disse quando estive com ele numa cimeira qualquer. Mas era divertido, tentava dizer piadas e falava daquele jogador que tem a mãe sempre atrás e mais não sei quê… Ninguém lhe ligava.

    Remata Trump, ficando ligeiramente menos sério.

    -Mas era dos mais lambe-botas e não parecia regular muito bem. Não admira que nesse pequeno país, os criminosas fujam da prisão como quem vai a um acampamento tomar uma vacina.

    -Essa tá boa.

    Ilustração: Alex Farac

    Interrompe Trump enquanto Biden pigarreia novamente. Uma parte da audiência assobia quando ouve falar em vacina.

    -Donald, queres acreditar que fugiram nas calmas por uma escada enquanto fumavam uns cigarros americanos. E que o arame electrificado não estava ligado porque senão toda a energia da prisão ia abaixo, já para não falar dos infravermelhos que também estavam estragados.

    -Bolas! Foi de noite?

    -Não! Foi logo de manha à luz do dia. Tipo 10.

    -Inacreditável!

    -O director ou que é, estava de férias e outro qualquer que mandava estava doente há montes de tempo. Tenho-me divertido muito a ver televisão ultimamente. Já nem vou à net.

    -Estou a ver Jo.

    -Ah. Escuta… E quase ao mesmo tempo nesse país assaltaram o Ministério da Administração Inte…

    -O que é isso?

    É aquele Ministério que controla as policias.

    -Não acredito. Pensava que esse tipo de coisas acontecia no Cazaquistão.

    -Não. A Europa agora está assim. E sabes o que é que roubaram do Ministério?

    Tcham, tcham…

    -Dinheiro.

    Arrisca Trump.

    -Não. 8 computadores.

    -O mundo anda mesmo maluco.

    Ilustração: Alex Farac

    Conclui o dono da Trump Tower.

    -E esse tarado do presidente deles ainda veio minimizar o problema, ou qualquer coisa assim e toda a gente gozou. Sempre gostei do Teatro do Absurdo, de Ionesco. 

    -Eu já tinha ouvido dizer que nesse país atrasado, os prisioneiros de um estabelecimento qualquer, é que montaram o sistema de vigilância, com câmaras e tal, tipo esse teatro que tu gostas.

    O publico ri. 

    -Acho que sim. Tenho rido muito com notícias desse tipo, agora que tenho mais tempo. Outro país meio maluco é a Espanha. O catalão não sei quantos, não podia entrar no país senão ía preso e foi lá fazer um colóquio ou que é, numa praça, e depois fugiu. É muito cómico.

    -Mas o que é que achaste do debate?

    Biden cai um pouco em si.

    -Desculpa, Donald. Mas é que isto tudo o que está acontecer na Europa é tão entretido e sabendo que eles gozavam tanto connosco, sobretudo os franceses, que eu não dei assim tanta atenção ao teu show. Estou muito atento à queda deles. 

    -Percebo.

    Biden continua e é assaltado por uma súbita energia.

    -Por exemplo a França e aquele com nome de marca desportiva que trabalhou cá na Goldman…

    -O Macron!..

    Dispara Trump peremptoriamente.

    -Pois esse. Agora nomeou um qualquer para primeiro-ministro que ninguém quer. E é só problemas lá com a esquerda deles. Não viste os Jogos Olímpicos? Nós sabemos porque é que tem de ser assim esta confusão toda. Mas os europeus estão a exagerar. Ainda vão acabar com aquilo mais cedo que o previsto. É muito giro Donald. Tens de aceitar. Eu já nem preciso de ver filmes. Os telejornais estão cada vez melhores.

    -E na Bélgica viste aquilo da Audi?

    Pergunta Trump

    -Mais ou menos. Conta lá.

    -Os operários da fábrica da Audi roubaram para aí mais de 200 chaves dos novos carro para que os clientes não possam entrar nesse mesmos carros e fizeram greve e agora a Audi não pode enviar as viaturas aos novos donos. Acho que foi na Bélgica sim. É qualquer coisa do género. A Europa é isso. Carros brutais sem chaves.

    O público bate palmas,

    -Pois, até a Audi… Os alemães… Ou os belgas, quem diria. Biden dá uma gargalhada e quase que se engasga. E depois remata meio atabalhoadamente:

    -Isto cada vez lá na Europa está mais parecido com sei lá o quê…

    -Sim. Eu sei. Mas viste ou não com alguma atenção o nosso programa de ontem?

    Ilustração: Alex Farac

    Pergunta o ex-Presidente, mudando assim o tom da conversa.

    -Mais ou menos. Aquela mulher irrita-me muito. Tem uma voz muito nasalada acompanhada de umas flutuações estranhas para o meu gosto, e ao vivo também, ainda parece que faz de propósito para ser pior. Evito muito estar com ela, acho que sabes isso. E juro-te, quase não a consigo ouvir. Sabes que nunca gostei muito da Kamala e acho que a gentalha já percebeu. Também aqueles moderadores que faziam as perguntas deviam ter-te mais posto em causa com o fact-checking.

    -Sim. Chatearam pouco. Pensava que iam provocar mais. Isso até estava meio combinado.

    -Claro.

    -Mas são um bocado estúpidos.

    -Sabes como é que é a maralha da ABC… Mas deixa estar, já ninguém liga muito a isso. Está tudo quase a acabar e é melhor divertirmo-nos, mas é. Para problemas já basta Israel.

    -Sim, sim. Isso é um problema sério Jo.

    Confirma Trump.

    -E já agora é melhor ir ali ver os meus cães que podem não estar seguros e ainda aparece aí um haitiano esfomeado…

    -Pára Jo! Ouviste essa?

    -Foi muito boa. Mas como é verdade vou mesmo ver se o Duffy está ali no jardim.

    -E já agora não tens gatos?

    -Pára, Donald!

    Mas Biden não tira os olhos da televisão enquanto ri e conversa com Donald, pois passam mais noticias de Portugal. Desta vez dizem que os policias foram informados da fuga dos criminosos através de um canal dúbio de televisão, umas horas depois.

    O público aplaude de pé, em êxtase.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero e Alex Farac


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  • O youtuber mexicano

    O youtuber mexicano

    A Mónica Filipa apaixonou-se por um youtuber que difundia vídeos em que achava que provava que a terra era plana.

    Para ela, a terra não era plana, as mentiras e conspirações governamentais não podiam ter chegado tão longe. Se a terra fosse plana, tínhamos sido todo o tempo redondamente enganados e isso era impossível. Se a terra não fosse um berlinde então tudo o resto que nos contaram e ensinaram do mundo podia ser mentira.

    Mas o seu coração palpitava sempre que via o youtuber mexicano. Conseguiu até entrar no seu chat e agendar uma conversa supostamente romântica através de vídeochamada.

    A Mónica Filipa falava bem espanhol, tinha passado uns anos em Maiorca a trabalhar em discotecas e era, desde aí, louca pelas dobragens de filmes em espanhol, tendo aprendido a língua com facilidade. Mas a característica que melhor a identificava era a sua paixão pela cultura mexicana e por homens latinos, sobretudo mexicanos. Tinha até um poster do Marlon Brando, a fazer de Zapata, na sua casa de banho e o seu cão chamava-se Cancún.

    O dia da videochamada chegou. Estava nervosa e vestiu o seu top preferido.

    Eis a conversa que tiveram, traduzida para português.

    Olá! Estava ansioso para falar contigo.

    Disse o terraplanista mexicano.

    – Olá. Eu também.

    Respondeu ela meio nervosa e pouco segura.

    – Não conheço Portugal, mas dizem que é um país muito bonito.

    – E eu não conheço o México.

    Acredito. Mas sabes que nem o México nem Portugal são o que dizem.

    Atacou o youtuber sem contemplações. Era mais forte que ele.

    Como assim?

    – Sabes bem que a geometria do mundo como nos contam é uma falácia. Nesse sentido nem o México nem o teu país são como nos dizem. Por isso é normal não conheceres o México nem eu Portugal na sua integridade.

    – Quer dizer…

    A Mónica Filipa não esperava o tiro à queima-roupa tão cedo, embora soubesse que ele mais tarde ou mais cedo ía aparecer. 

    O youtuber continuou:

    Já expliquei e provei isso nos meus vídeos sobretudo nas lives.

    – Então porque é que aí agora é noite e aqui é dia?

    Arriscou a miúda.

    – Vê o vídeo em que entrevisto o Gutierrez e percebes logo.

    O Boliviano?

    – Sim. Ele explica tudo melhor que eu, tenho de admitir. E prova-o sem muita dificuldade se estiveres atenta e fores livre de preconceitos. É um génio do terraplanismo boliviano e mesmo mundial. Ganhou credibilidade no último encontro terraplanista de Barcelona.

    – Eu vi-o já a conselho teu. Mas dou mais atenção a ti. Aos teus gestos, gosto da tua maneira de falar, do teu sorriso. Muitas vezes não estou a ouvir exactamente o que dizes. A mim pouco me importa que a terra tenha a forma que tiver. Um algoritmo levou-me até ao teu mundo e eu gostei de ti.

    – Isso é lindo. Mas a terra é plana. Prefiro que saibas com toda a certeza que a terra é plana a que me aches o máximo.

    Preferia ser o Frankenstein e a terra ser plana, que o Brad Pitt e a terra ser redonda. Percebes?

    Jamais daria um beijo a alguém que achasse que a terra é uma bola de basket. Vomitava logo.

    E a ligação caiu.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • Bill, o Profeta

    Bill, o Profeta

    O homem acordou, mas aquilo não era bem um despertar.

    Pôs os óculos e levantou-se, mas o seu corpo não respondia como de costume.

    Bill sentiu-se assustado. Não estava habituado a esse tipo de sensação. Mas do que é que poderia ter medo? Se nem da própria morte tinha. Esse assunto fora resolvido há muito, tendo mesmo superado essa vertigem ainda adolescente, adquirindo o conhecimento tanto metafísico como esotérico com a ajuda do seu pai, para que pudesse andar descansado, minimizando-a, tornando mesmo a sua morte num não assunto.

    Até aí tratava-se de uma vitória sem dúvida.

    Mas por que razão então acordara tão assustado o filantropo mais filantropo do mundo? Andaria com medo de si mesmo?

    Andaria com medo da filantropia?

    Era culto e perspicaz o suficiente para saber que muitas vezes somos nós mesmos os nossos maiores inimigos, mas não era esse o caso.

    Ilustração: Bruno Rama

    Mesmo ainda criança, o seu pai tinha-lhe passado o conhecimento suficiente para abortar de imediato mal viesse a ser invadido por más sensações que se apresentassem sem consentimento e licença para massacrar-lhe o espírito, ou a carne ou mesmo os ossos.

    Aprendeu que seria preciso ter sempre um “bisturi” à mão e nunca haver contemplações para com os invasores, cortando o mal pela raiz. Bill cresceu com um pai não-ausente, um tutor, um criador de morte.

    Tinha passado ao longo da vida por momentos muito mais conturbados e esse sentimento nunca o havia atingido, pondo em prática esses sábios ensinamentos. Não seria agora que iria ter medo fosse do que fosse. Estava aparentemente bastante treinado e era importante e valioso demais para ser invadido por essa vulgaridade mórbida chamada dor. Ou não se chamasse Bill Gates e fosse o grande profeta do nosso tempo.

    Quantas pessoas eram ouvidas e tidas em conta acerca do curso do mundo?

    Sabia também da artificialidade em que o estado actual do estranho planeta se encontrava, e da importância que isso tinha para os seus “negócios”.

    Seria essa a razão da sua angústia?

    Em principio nada lhe escapava. Estava sempre a par de todas as novidades. Haveria afinal mais marés que marinheiros? Por norma controlava tanto uns como outros. 

    Estariam lá por cima a esconder-lhe alguma coisa? Sabia que alguma casta o achava um totó, embora nunca ninguém tenha tido a frontalidade de o dizer, muito menos o desprezível Elon Musk.

    Mal pensou nisso, foi imediatamente invadido por um suor, ainda mais frio que a sua casa. Não estava a conseguir aplicar a filosofia habitual para contrariar a aproximação da dor.

    Mas a verdade é que alguma coisa se estava a apoderar cada vez mais de si, começando até a ofegar. Chegou mesmo a questionar-se se teria oxigénio suficiente para mais um dia de árduo trabalho que se avizinhava na Fundação.

    Qual fundação? Seria a própria fundação mais um holograma, uma mentira, uma historieta

    montada para iludir o terceiro mundo? Gracejou para com os seus botões de pijama. Estaria a perder o tino?

    Demasiadas dúvidas estavam a deixá-lo deveras angustiado.

    Ilustração: Ruy Otero

    Levantou-se e foi beber da sua água, uma água a que muito pouca gente tinha acesso no mundo, era cristalina o suficiente para que, só de olhar, acalmasse qualquer um, como que por magia. Era uma água que não vinha de uma nascente qualquer. Nem ele mesmo conhecia a sua proveniência.  

    Mas não, a água mágica não teve o efeito desejado. Nem pelo olhar, nem pela ingestão.

    Chamou por Melinda, embora soubesse que ela não estava. Já não estava há muito tempo. Talvez nunca tenha estado mesmo.

    Estaria Bill sozinho no mundo e não o sabia?

    Lembrou-se do enorme Charles Dickens e da necessidade da moral e sentido nas histórias. Estaria isto tudo a querer dizer alguma coisa? Demasiadas perguntas sem resposta estavam a deixá-lo cada vez mais fora de si.

    Pensou em telefonar ao Doutor Johnson, médico amigo de uma vida e que sabia de muitas coisas que Bill também sabia, mas ultimamente achava que o Doutor Johnson também andava esquisito, mas de uma forma esquisita.

    Ainda mais esquisita.

    Na última vez que estiveram juntos falou de Saturno desnecessariamente, facto a que ninguém ficou alheio na última reunião secreta.

    O Doutor Johnson estava a ficar velho e não percebia os novos contextos, a nova inteligência, as novas atmosferas que estavam a ser desenhadas, tinha qualquer coisa de bafiento, não entendia esta recente filantropia, embora fosse ou tivesse sido um grande médico, sem dúvida, mas Bill não confiava em quase ninguém.

    Estaria a ficar velho, e como acontecia a toda a gente, isso começava a perturbar-lhe o sistema nervoso de certa maneira?

    Mas Bill não era toda a gente.

    De morte percebia ele, isso estava bem estudado, agora quanto à morte de células já tinha mais dúvidas, sabia por intuição que as células muitas vezes desenvolviam comportamentos poéticos. Tomava os químicos certos para contornar esse problema ou essa vicissitude. Nunca duvidara disso, pelo menos até àquele dia.

    Bill tinha medo da poética.

    Era o seu maior medo.

    Não gostava de não ter controle sobre si, sobre o que fosse. Nascera para mandar.

    Andaria Bill porventura enganado?

    Apenas por estar a questionar-se desta forma, já se sentia doente. Era como se coabitassem dois Gates num mesmo Bill, ao ponto de começar a sentir tonturas e náuseas.

    Ilustração: Ruy Otero

    Sabia que tinha uma casa inteligente, mas não assim tanto, ainda havia muito para evoluir e não seria certamente a sua casa com as suas casas-de-banho hiper inteligentes e sustentáveis das quais se orgulhava muito, que lhe resolveriam o problema das tonturas. De que serviria uma casa daquelas se o espírito baqueasse…

    Lembrou-se do Steve que também foi desta para melhor fora de tempo, sim desse Steve que ele tanto odiara e invejara ao longo da vida, desse Steve que tinha melhor gosto que ele, que era adorado como se fosse uma rock star e que não tinha medo de calçar Asics Tiger de corrida hiper coloridas, contrastando com o minimalismo Calvin Klein. O mesmo Steve que o tinha ofendido directa ou indirectamente vezes sem conta, ao ponto de o fazer chorar nalgumas situações.

    Não estava a perceber bem porquê, mas devido à fraqueza momentânea daquele despertar violento e anormal, lembrava-se agora do Steve que muito trabalho lhe havia dado. O que é que aprendera com Jobs que lhe valesse agora? 

    Nada, concluiu e isso até lhe trouxe algum conforto momentâneo.

    De que lhe serviria o cinismo astuto que aprendera com o homem da maçã num momento tão fora de controle como aquele?

    De nada.

    Teve de sentar-se no sofá para não sucumbir ao desmaio eminente. Estava sozinho e não encontrava a porta do quarto devido às tonturas que apareciam como se fossem o prato principal do dia. 

    Uma semana antes tinha dado várias entrevistas a umas cadeias de televisão que estavam “ingenuamente” loucas para saber o que o filantropo mais filantropo do mundo achava da terceira guerra mundial que o mesmo previra, da nova pandemia que o mesmo anunciara e quais os seus prognósticos que imaginavam grande prejuízos para as consequências das alterações climáticas que já por aí andavam e que o próprio também previra, tendo no entanto sempre uma solução.

    E agora estava ali na cama, como que abandonado a si próprio, entregue à sorte.

    Algo não estava a encaixar no guião.

    Seria culpa dos guionistas? Seria ele apenas o produtor, sabendo que qualquer Goldwyn Mayer tinha o seu fim como toda a gente. O pai não lhe ensinara isso.

    Questionou-se.

    Ora, um profeta não pode ter dúvidas nem tonturas…. Pensou.

    Estava o mundo a sofrer com as suas sábias previsões, portanto, não seria possível estar assim de rastos. Um profeta não hesita. Mas então que fazer?

    Ilustração: Ruy Otero

    Seria Bill um profeta a sério? Teria o mundo a possibilidade real de ter profetas, ou estaria o planeta a ficar refém da estupidez generalizada?

    Estaria a bola-mundo às voltas sem rumo, assim como o seu estômago? A Inteligência Artificial estava a fazer raccord com a estupidez natural?

    Encontrou finalmente a porta certa e Bill voltou para a cama. Ao fim de uns terríveis minutos sem segundos voltou a adormecer, cheio de dúvidas.

    Sonhou com flamingos a saltitar com graça e em harmonia sobre verdes pradarias em croma, invadidas pela luz suave do amanhecer californiano. 

    Quando acordou novamente, percebeu que alguma coisa continuava errada.

    Já não se sentia tonto, nem agoniado, mas sentia-se anormalmente leve.

    Leve demais, como se não tivesse peso.

    Talvez tivesse o peso de uma conspiração.

    Talvez o mundo fosse só e unicamente uma grande conspiração contra o próprio mundo. Uma auto-conspiração. Parecia que alguma coisa estava a chegar ao fim mas desta vez, Bill não tinha solução para o que aí vinha. Até parecia que já não estava cá.

    Era esquisito mesmo, (os americanos dizem weird. Toda a gente diz weird).

    Já na casa de banho percebeu que o espelho desaparecera do sítio, mas da janela continuava a ver-se uma imensa pradaria cheia de pássaros e árvores ainda sem denominação, de uma beleza refrescante e acolhedora, embora não tivessem uma forma comum e reconhecível pela biologia.

    Bill Gates imaginou-se a voar, mas depois voltou a si e conseguiu encontrar a espuma da barba.

    E depois desmaiou novamente.

    Não se percebia bem. Tudo começava a ter a forma de um pesadelo.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • Assange, o anti-herói

    Assange, o anti-herói

    Haverá muitas pessoas que não conhecem Julian Assange, outras só se lembrarão do filme ficcionado sobre o hacker-jornalista em que é representado como uma pessoa vaidosa e difícil. Não vi o filme, mas pelo estilo e depois de uma passagem na diagonal, acho que é daqueles cujo trailer é melhor que o próprio filme.

    Outros fixaram-se no suposto assédio sexual sobre uma mulher, ainda que anos mais tarde essa acusação se revelasse falsa, constatando-se ter sido orquestrada pela CIA.

    Também haverá cabeleireiros que se devem lembrar do seu cabelo louro, dourado ou quase branco e dos seus cortes trendy.

    Para outras pessoas mais incautas, a WikiLeaks poderá ser uma ilha paradisíaca no Pacífico que urge visitar porque deve ter resorts incríveis.

    Por outro lado, muitos jornalistas ao início viram na plataforma (impossível de desencriptar), informação de borla e verdadeira, não havendo forma de deturpá-la, uma vez que conduzia ao acesso às próprias fontes, a documentos e emails sigilosos por exemplo, passando sempre pela casa de partida como no velho Monopólio.

    Depois de Assange ser preso, foram deixando de o fazer, o que só nos elucida acerca da força do Poder, porque a informação é eterna no planeta virtual, onde tudo vai desaguar. Está lá, é só clicar.

    Não há político ou potência que não tenha sido interpelada por esta revolução tecnológica, que é a WikiLeaks, denunciando políticos que antes estavam completamente impunes, fazendo com que o jornalista mais tarde fosse acusado de espionagem por Biden, ainda quando era vice-presidente de Obama.

    Nunca se provou que tenha colaborado com qualquer organização ou país.

    Julian Assange
    (Ilustração: Manuel Silva)

    As pessoas do Livre deveriam consultar mais vezes a plataforma. Quem diz do Livre, diz do Chega, porque para Assange não havia bons e maus, dizem. Para outros será um terrorista que favoreceu uns em prol de outros, como se a vida não fosse assim quase sempre.

    Para muitos é um criminoso anarcocapitalista.

    Um exibicionista.

    Um megalómano.

    O western do australiano talvez seja mais parecido com aquelas coboiadas em que a personagem central é um justiceiro como nos filmes chunga spaghetti, já que de qualidade são poucos.

    Mas esses heróis não acabavam na prisão com derrames cerebrais. É o preço de ter aceitado a toma da cicuta como o Sócrates de Atenas, preferindo ser morto, ou ser preso no caso de Assange, já que ser cobarde e ter de viver conhecendo as miseráveis atrocidades do Poder, pode não dar boas noites de sono se não se fizer nada, e o melhor é sacrificar-se pelos valores e pela liberdade de expressão, que com ou sem WikiLeaks continua a ser posta em causa a toda a hora. Não é para todos.

    Mas está aí uma das diferenças entre o cinema e a vida real. O que interessa sobretudo é o que consta nos documentos. Factos.

    Mas quem sou eu?… Algum jornalista, algum cyber-bófia?

    Nada disso, apenas um parolo que de vez em quando está preocupado com a vida e com a ficção.

    Fica mal dizê-lo, mas as injustiças e a ignorância… Enfim, é melhor não… Vou parecer um cripto-romântico!

    A WikiLeaks é sem dúvida o melhor polígrafo de todos e não é feito por estagiários e vigaristas. Foi através da WikiLeaks, que ficámos a saber da proposta da senhora Hillary para bombardear a embaixada do Equador em Inglaterra com o objectivo de assassinar Assange através do uso de drones.

    Para muitos, Hillary Clinton é uma humanista e pacifista que teve o azar de ser enganada pelo outro senhor do Arkansas também humanista e sensível que até tocava trompete. Mas felizmente apareceu o psicólogo de massas Obama que bombardeou mais países do que a droga que o Lou Reed consumiu.

    A grande vitória de Assange foi a pior derrota da História para as agências de inteligência como a CIA, e o seu crime foi ser jornalista e expor o que os assassinos planetários em massa fazem sem que os media tradicionais denunciem, tornando-se eles mesmos até coniventes com o que escondem. Mas é tudo conspiração quando não rima com o verbo oficial, já sabemos.

    Mas que é verdade que a CNN em tempos publicou os crimes de guerra atrozes dos EUA no Afeganistão e no Iraque e depois deixou de o fazer, sabemos; que mostrou a aniquilação massiva de civis em vários locais do mundo, também sabemos; que Israel financiou o Hamas não é novidade para poucos, mas será para a maioria; que a plataforma expõe a forma como os governos da América Latina são completamente controlados pelos EUA também só não sabe quem não quiser. Mesmo os políticos mais esquerdistas, como Obrador, do México, que quis militarizar o país em conluio total com a presidência dos EUA ou Alberto Fernandez da Argentina também lá estão a fazer das suas, mas sempre com a conversa dos trabalhadores e das boas intenções esquerdistas a adocicar os discursos.

    Até os Kissinger papers da década de 70 por lá navegam como se fosse um barco que nunca vai ao fundo, já para não falar da informação secreta das monarquias europeias e até da saudita.

    Há também informação que baste acerca da tortura e do assassinato sem piedade de jornalistas e civis por parte de muitos que têm a bênção dos media mainstream em geral.

    Enfim, quem quiser ler a WikiLeaks despenderá mais tempo a fazê-lo que nos Miseráveis de Victor Hugo.

    Hilary Clinton
    (Ilustração: Manuel Silva)

    Assange só ficou oficialmente preso no governo Trump em 2019. O próprio Trump aproveitou informação da WikiLeaks para derrotar Hillary, mas depois não quis mais saber do jornalista, tendo inclusivamente prometido libertá-lo antes de ser presidente. Ainda há quem pense que o americano saído da casca é uma alternativa ao Deep State. É tão só um plano B de um traidor que gosta da Playboy e que chegou a dizer que nem conhecia a Wikileaks anos depois.

    Não é fácil libertarmo-nos desta gente, cujo desporto preferido é contrair dívida e alimentar bancos centrais.

    Numa entrevista, respondendo sobre quem era o seu maior inimigo, Assange disse tratar-se da ignorância. O jornalista, com nacionalidade equatoriana, não brinca em serviço, mas há quem não veja isso assim, considerando que revelar segredos de Estado não é a melhor via para se ser feliz e pode ser um crime grave. Mas isso seria tinta para outro papel, como dizem os polacos.

    Voltando um pouco atrás, sabe-se que antes de ser acolhido pela Embaixada do Equador esteve a viver durante anos disfarçado num bosque, numa cabana e movendo-se em hotéis com uma identidade falsa.

    Entre 2012 e 2019, esteve, então, “preso” num quarto nessa Embaixada latina, mas suspeita-se que o presidente Rafael Correa, espiava-o através uma empresa espanhola vinculada à CIA dentro da própria embaixada. É tramado ser presidente.

    Há cinco anos Assange foi direitinho para uma cela de três metros por dois em Inglaterra.

    Uns anos antes e já detido, ainda conseguiu participar na fuga de Snowden para a Rússia, planeando o resgate do informático num avião de John McAfee, outro hacker que depois apareceu morto em condições muito estranhas numa prisão em Barcelona.

    McAfee é o responsável pelo anti-vírus que temos no computador chamado… McAfee.

    Se Assange não conseguiu um asilo na Rússia foi porque nunca cedeu a ninguém e quis expor também as cumplicidades de Putin com os Clinton e com Bush, revelando a história do urânio por exemplo. Mas certamente haveria muito mais para expor da Rússia e de Putin. Nas condições em que Assange ficou, eu tentaria logo arranjar protecção, não sou maluco. Ser neutro, neste mundo, nem num poema. Por isso há quem jure que beneficiou Putin.

    Mas ao invés de se informarem melhor, as pessoas em geral preferem continuar a consultar sites pornográficos e vídeos de gatos a tocar piano. Não tem mal, é certo, mas há mais coisas interessantes para fazer.

    Uma das conquistas do Poder tecno-político foi esse. Esvaziou a mente humana com distracção, mas isso é ar para outro balão, como dizem os alemães.

    Ora eu cá também gosto de me distrair, mas prefiro um corneto de chocolate na praia mesmo sabendo que tanto a praia como o gelado devem estar cheios de químicos.

    Vás para onde vás, és sempre passível de ser sabotado. Até a alimentação saudável hoje já é uma doença. Uma obsessão… Vá. Obsessão também é doença segundo o DSM , mas para esse manual também tudo é doença mental e estamos todos a precisar de psicotrópicos. Sobretudo quem os inventa. Aqui estou a fugir do tema, ou talvez não.

    Entretanto, há dois meses e meio, o jornalista saiu da prisão voando directamente para a Austrália, o seu país de origem onde se juntou à sua mulher Stella que deu há uns tempos uma entrevista ao PÁGINA UM e que poderá ser vista aqui.

    Devo acrescentar que esse país dos cangurus, não é muito seguro. Criou “campos de concentração” para dissidentes do covid. Mas vamos ver se lhe corre bem a estadia, de forma que possa assistir em paz um dia a um encontro de ténis jogado por outro “herói” do nosso tempo, o tenista Djokovic, que não quis ser patrocinado pela Pfizer, dando um match point à pseudo-ciência. 

    Há esperança para a humanidade de vez em quando, mesmo que hoje uma parte significativa do mundo na sua auto-representação ache que tem os dias contados. Eu não penso isso e continuo a gostar de ver ténis mesmo que a Adidas agora se considere humanista e tenha entrado no desporto da moda da filantropia e do politicamente correcto. Talvez seja bom consultar a WikiLeaks e ver se há algum email da Adidas para a Coreia do Norte, nunca se sabe. Ir dar uma volta até à WikiLeaks deveria ser um desporto universal, mas também não quer dizer que esteja lá tudo. E se não estiver, não quer dizer que não tenha acontecido. A WikiLeaks não é Deus nem pretende formar uma religião. 

    A notícia da libertação do jornalista australiano parece ter trazido alguma novidade ao mundo, pelo menos no dia em que isso aconteceu foi notícia nalguns órgãos. Depois já não se falou de Assange porque ainda andam por aí muitos gatos à solta a tocar piano à espera de visualizações e muitos vírus mortais à espera do seu dia triunfal para sair do meio do “gelo” como anunciado, para começarem a assustar pessoas.

    Passando pela Wikipédia para ver o que se diz sobre o australiano e fiquei a saber alguma coisa, mas entretanto fui ver o que é que a Wikipédia diz da Wikipédia já que este texto é um pouco wiki até. Diz o seguinte:

    A Wikipédia é um projeto de enciclopédia colaborativa, universal e multilíngue estabelecido na internet sob o princípio wiki. Tem como propósito fornecer um conteúdo livre, objetivo e verificável, que todos possam editar e melhorar. O projeto é definido pelos princípios fundadores e o conteúdo é disponibilizado sob a licença Creative Commons BY-SA e pode ser reutilizado sob a mesma licença, desde que respeitando os termos de uso. Todos podem publicar conteúdo on-line desde que criem uma conta e sigam as regras básicas, como verificabilidade ou notoriedade.

    Henry David Thoreau
    (Ilustração: Manuel Silva)

    Desisti. Se nem a própria Wikipédia diz a verdade sobre a Wikipédia quanto mais sobre o Assange.

    Vários políticos e até presidentes de países deram as graças pela libertação de Assange, entre eles Lula da Silva, mas parece estranho políticos darem graças pelo jornalismo livre. O The Guardian também o fez, mas lembro-me da perseguição feita por esse órgão e quase todos, a quem não concordasse com as políticas abusivas inconstitucionais durante a pandemia, abrindo precedentes perigosos em nome de sabe-se lá de quê, chegando a ser escorraçados.

    É certo que há muita mentira e desinformação por aí, a começar pelo jornalismo mainstream e por malucos ligados à extrema-direita, por exemplo, e não será fácil lidar com essa esquizofrenia galopante. A única coisa que muitas pessoas pedem, estando eu aí incluído, é que os assuntos sejam discutidos com transparência e neutralidade, apanágio do verdadeiro jornalismo que quando foi nobre, adorava a diversidade de opinião e o contraditório. E depois que cada um tome as suas decisões e aí a plataforma de que falo pode ajudar a que todos sejamos um pouco jornalistas já que estamos a precisar de ir ao cinema outra vez, mas para ver filmes com princípio, meio e fim.

    Filmes que tragam novamente alguma poética ao espectador, e já agora alguma coerência. Porque isso de a realidade ser uma sala de cinema, já chega. Tem piada, mas cansa muito. Qualquer dia está tudo aos tiros. E é chato.

    Anda muita gente a ver-se ao espelho, mas a usar um espelho turvo e cheio de ferrugem ao qual nos estamos a começar a habituar. Precisávamos, mas era de um espelho feito de areia, é certo, mas não daquela que nos andam constantemente a atirar para os olhos.

    Thoreau disse que perante uma lei injusta é uma obrigação e um dever desobedecer.

    Assange certamente leu Thoreau.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • All That Jazz, o espectáculo tem de continuar e outras coisas do tipo

    All That Jazz, o espectáculo tem de continuar e outras coisas do tipo

    Ao fazer zapping na plataforma Filmin, choquei de frente com um filme que já tinha visto há muito tempo intitulado All That Jazz. Tinha uma fugaz boa impressão, mas lembrava-me de muito poucas cenas. E, então, vi-o novamente.

    Surpreendeu-me, e, como acho que, numa certa perspectiva, tem os elementos para uma pertinente interpretação à luz dos nossos dias, fiz o trabalho de casa e decidi escrever.

    Se eu fosse dono de um cinema de reposições como ainda vai havendo, considerando também o Cinema Nimas, último bastião resiliente de cinema em salas com grandes ecrãs em Lisboa, seleccionava este filme para estar em cartaz uns tempos.

    Iria trazer certamente estilo à cidade porque antes os cinemas eram também os jardins das cidades. 

    All That Jazz é um filme de Bob Fosse que estreou em 1979 e ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes ex aequo com Kagemusha – A Sombra do Guerreiro, de Akira Kurosawa em 1980.

    É um filme magnífico, posso jurar pela alma do cinema.

    Bob Fosse foi dos realizadores mais singulares do sistema mainstream norte-americano, mesmo que possa não ser considerado como tal por alguns críticos mais radicais ou puristas e até ser visto como um intrometido que veio do teatro musical, constando na sua filmografia apenas quatro longas-metragens, entre as quais Cabaret, que recebeu um total de 10 indicações ao Oscar (vencendo oito delas), detendo o recorde de obra com mais prémios da Academia para um filme, que não venceu o Oscar de Melhor Filme.

    Casting 1#

    Fui ver o que alguns sites diziam do filme e aqui transcrevo o que o site agregador de avaliações Rotten Tomatoes diz: 87% das 46 avaliações dos críticos são positivas, com uma classificação média de 7,6/10.

    O consenso do site diz: O diretor Bob Fosse e a estrela Roy Scheider estão no topo neste drama de palco deslumbrante e auto consciente sobre um diretor-coreógrafo obcecado pela morte.

    Vale o que vale.

    Este é mais uma daquelas longas-metragens em que, não obstante ter 45 anos, podemos sempre encontrar traços da actualidade, sobretudo pela forma como teatro, cinema, vida, vida real, espectáculo, dança, showbiz, e autobiografia se misturam, parecendo tratar-se de um convite muito sério (mas a brincar) para se entender o espírito tempo em que foi produzido e também o que haveria de chegar, com algo de premonitório, até atendendo à esquizofrenia latente que navega por lá, que com o passar do tempo mais a continuação do Plano Marshall, no Ocidente, passando pela inevitável queda do Muro de Berlim, só teria tendência para piorar, no que à psicose diz respeito.

    O Directório de Saúde Mental com os seus excessos em conluio com a indústria farmacêutica, são disso exemplo para a construção de outros muros que, entretanto, apareceram e não são para aqui chamados.

    Se há coisa em que Bob Fosse não falhou, e talvez não fosse difícil, foi na premonição da sua própria morte por insuficiência cardíaca, que veio a acontecer algum tempo depois aos 60 anos.

    Premonição? Morte?

    Toda a arte, metaforicamente falando, que se envolve subtilmente com o tempo, terá de arriscar alguma coisa quanto à sua expansão no futuro que nunca estará privado de História e a morte é sempre o melhor dos temas, quanto a mim. Pois este filme vive da morte, como não poderia deixar de ser…  

    Mas aqui, nestes milhões de fotogramas é-nos transmitido por outro lado, que o tempo é de espectáculo permanente e que vida e morte, ficção e realidade, podem estar a querer dizer que são água da mesma fonte, integrados numa cacofonia delirante armadilhada por todo o tipo de “redes sociais” e intrigas malignas, dignas da realidade actual, que não é mais que uma continuação natural das outras redes e de outros tempos. 

    Sim, sim. O digital é o prolongamento do dedo.

    Está tudo ligado e desligado ao mesmo tempo. Neste estranho e atípico filme é nos dito que a vida é aquilo que tem de ser, e só vivendo no sonho ou na imaginação é que existem possibilidades salvíficas.

    Casting 2#

    Este filme polvilhado por anfetaminas, parece uma longa selfie feita por alguém que sabe filmar e dançar. É um filme-slalom que está constantemente a ver-se ao espelho. Ou mesmo pode tratar-se de um filme-espelho, para ser mais preciso, ainda que toda a arte deva espelhar, nem que seja espelhar-se a si mesma, como também acontece nesta película, uma vez que não deixa de ser uma obra com tiques pós-modernos, já que mantém alguma sinuosidade kitsch típica desse mundo colorido e stressado, o que até lhe fica bem e na altura recomendava-se.

    Como sintoma, este filme fechava o fim de um ciclo de musicais que alimentaram e sustentaram alguma Hollywood. Seria o último musical indicado ao Oscar de Melhor Filme até que A Bela e o Monstro da Disney fosse indicado em 1992, e foi o último musical live-action a competir na categoria, até Moulin Rouge de Baz Luhrmann em 2002.

    É contemporâneo de A Febre de Sábado à Noite que imortalizou John Travolta e se tornou filme de culto, embora nada lhe deva, sendo muito mais profundo e arty, que a sobrevalorizada fita de John Badham.

    Neste estamos sempre à espera de que o espelho parta e com ele o próprio elenco (técnicos e actores) que estão por lá reflectidos, como se isso fosse coisa pouca. No outro não há espelhos humanos, aqueles que interessam, e os que há, estão instalados nas bolas refletoras das discotecas e clubes, ou servem apenas para John Travolta se pentear enquanto se reflete neles, não trazendo nem expondo a fractalidade da qual muita arte se alimenta. Aqui, a suposta falsidade e futilidade das coreografias e canções, ajudam a decalcar o mundo profissional e os seus inerentes dissabores. Mas todas as salas de ensaio naturalmente têm um espelho. Será a vida uma longa e interminável sala de ensaio com um espelho a olhar para nós?

    The show must go on, n´est pas?

    O mundo é um espectáculo, e aqui não deixo de citar e invocar, mesmo que o realizador não o tenha lido, (não sabemos), o livro de Guy Debord intitulado A Sociedade do Espectáculo, de 1967 e que acertou em cheio no desenlace para o admirável mundo novo ao qual a sociedade se sujeitou, sem que alguém disso duvide, pode é ser bom para alguns. E mau para outros, como sempre acontece em sociedades divididas. Chamou-se a isso democracia.

    Dancing scene 1#

    Bob Fosse foi dos principais encenadores-coreógrafos da Broadway nas décadas de 50, 60 e 70, e um grande viciado em anfetaminas, sexo, cigarros e Dexedrine, já para não falar de ser um workaholic de primeira, aspectos que o filme autobiográfico realça bem, pelo menos o seu alter ego Joe Gideon está sempre em zona de perigo, ostentando permanentemente um Camel ao canto da boca como um cowboy solitário e aventureiro que tem a morte à sua espera no fim da linha e o show time na ponta da língua no inicio do dia, repetindo-o várias vezes ao longo do filme, mas sempre filmado e editado de formas diferentes ainda que sempre de frente ao espelho da casa de banho.

    O próprio filme, é um excesso, caracterizado pela montagem cheia de ritmo e cortes rápidos, trazendo daí flashbacks e flashforwards necessários para a compreensão da narrativa e para a sensação de pesadelo e desespero light que o filme parece pretender criar, percepcionando um certo cansaço, mas também um divertimento ligeiro ao mesmo tempo, acompanhado sempre de movimentos de dança e de música entretida, típica daquele género de espectáculos no qual  todas as personagens estão envolvidas.

    Era frequente naquela época abusar-se um pouco de efeitos como o de fade in/fade out, ou sobreposições e outras distorções visuais e/ou sonoras. All That Jazz peca um pouco por isso. Talvez seja também misógino já que tudo circula à volta de Scheider, e não deixa de ser verdade que as mulheres podem aparecer como objecto do seu vício, apalpando as enfermeiras na cama do hospital sem a sua permissão, por exemplo. À luz dos dias de hoje com cancelamentos e auto-censura, não sei se o filme aguentava num cinema sem umas sprayzadas de tinta nos cartazes. Quase me sinto obrigado a dizer isto, embora o filme, seja como for, o faça com arte e criatividade e não creio que veicule uma apologia de masculinidade tóxica. 

    A narrativa desloca-se pouco do mundo do espectáculo em que o jogo está mais legitimado e é sobretudo dado um mergulho profundo nesse mundo, por alguém que caiu desde cedo no caldeirão do showbiz.

    Nesse sentido, Bob Fosse torna-se único, fundindo com realismo o cinema e o espectáculo como se nos tivesse a dizer que se fosse bombeiro só faria filmes sobre incêndios, mas auto-indulgentes e negativos, ou em parte.

    Mas o argumento para dar contraste e mesmo paradoxo visual e narrativo, acaba também por magistralmente envolver o corpo clínico que mais tarde aparece como elemento salvador dos excessos de Gideon em ambiente hospitalar, e talvez seja essa a grande novidade conceptual apresentada, fazendo confluir dois universos completamente dispares, ou talvez nem tanto…

    É também um filme feito de luzes e de lantejoulas com chapéus de coco e cadeiras a voar por todo o lado, a darem-nos permanentemente a convicção de que a vida não só é um espectáculo ainda que triste, como também um cabaret.

    Bob Fosse fez apenas quatro filmes, mas umas dezenas de encenações teatrais e musicais pelas quais foi inúmeras vezes premiado. E em pelo menos três obras cinematográficas, retratam-se pessoas que existiram, não só no mundo real, como também no cosmos das Broadways norte-americanas andando em torno, como no caso de Star 80 (o seu ultimo filme), do destino trágico da modelo playmate Dorothy Stratten que estava envolvida com o realizador Peter Bogdanovich (no filme tem outro nome), sendo este e Lenny, dois biopics que expõem os perigos e as perversões do mundo do show business, que o próprio tão bem conheceu, e cujas consequências viveu na pele. 

    Dancing scene 2#

    Parece dizer-nos também sem grande lamento, que em tempos freneticamente instáveis de esquizofrenias paradoxais universalmente expandidas e fragmentadas, num mundo globalizado e americanizado, justifica-se pôr o dedo nas feridas abertas de um mundo deprimente também gerado pelo excesso e pela sua velocidade imparável, alicerçado em cidades sujas como a Nova Iorque daquele tempo pré Giuliani, que dizem tê-la “limpo” anos mais tarde, com métodos dúbios e obscuros de tolerância zero. Como se a asseptização vindoura não trouxesse ainda mais lixo, mas isso são mãos para outro piano, como dizem os eslovenos.

    A série Fame também contemporânea deste filme e que retrata o mundo das artes cénicas a partir de uma escola, mostra uma Nova Iorque que já não é a do sonho americano, parecendo mais um pesadelo, ilustrada pela crueldade, dureza e competição a que os artistas se submetem na tentativa de ganhar um lugar ao sol.

    Esses tempos cinematográficos e televisivos mostravam cada vez mais a neblina, e isso era muito patente em Hill Street Blues, uma série televisiva daquele período com grande êxito mundial, em que se acompanhava o dia a dia dos agentes numa esquadra de polícia.

    Nova Iorque era viciante e viciosa e realizadores como Jim Jarmush que lá viveu nessa altura, disse tratar-se do melhor sítio do mundo para viver, ainda que fosse das cidades mais perigosas do ocidente na década de setenta e oitenta.

    Essa Nova Iorque carismática com cheiro de vão de escada e muito frenesim impregnado de adrenalina estão muito presentes em All That Jazz, embora seja ilustrada mais pelos personagens e as suas inerentes fragilidades que pela visão da rua. Sente-se o lixo e o crime sem se ver, cheira a comida exótica fast food por todo o lado como em Blade Runner feito uns anos depois. E ambos os filmes têm semelhanças na forma como a morte e o medo aparecem e mergulham na metafísica, mas Gideon jamais poderia ser um replicant, para aproveitar o balanço da citação ao filme de Ridley Scott.

    Este All That Jazz não deixa de ter alguma violência contida, mas bem expressa por exemplo nas incapacidades técnicas e criativas dos bailarinos e na manifesta dúvida existencial permanente em Gideon, realçando assim a intransigência conhecida para se ser bem sucedido no mundo do showbiz.

    A dúvida e a sua inerente violência psicológica são um elemento que acompanha o filme pouco contido, algo lacónico, cáustico, penetrante, confrontante, e até imperativo.

    Esta longa metragem atípica confere visibilidade ao invisível através das percepções e interpretações sensoriais, emocionais e até intelectuais dos actores, resvalando um pouco em Cassavetes, já que era um dos realizadores mais interessantes e experimentais do cinema norte-americano e que ainda influenciava parte do cinema, sobretudo o europeu, germinando nas personagens processos mentais imaginativos, cognitivos, e até reflexivos, constituindo-se como veículo de auto-representação de um mundo desconhecido para a maioria, tendo conhecimento apenas como espectadores mas sem acesso ao seu background que não era tão feliz como os media faziam crer nas revistas.

    Dancing scene 3#

    All That Jazz funciona como um canal de expressão, comunicação e conhecimento, e responde de lâmina afiada cortante com solidez, objectividade e contundência a um mundo que mergulha por vezes na crueldade e é cada vez mais escravo e servil do gosto dos espectadores e produtores. Gideon sabe disso.

    Fosse sabe disso. Até eu disso sei.

    É, pois, um meta-filme, ou um meta-espectáculo dentro do filme que acaba ele mesmo por instalar-se definitivamente num hospital, fazendo confluir o mundo clínico e frio com o mundo espectacular das cores e das coreografias.

    Essa acidez com vontade de se alcalinizar, é sem duvida um dos pontos centrais do filme, trazendo singularidade ao mundo asséptico da bata branca, fazendo lembrar algum Fellini, (Oito e Meio de certeza, ou mesmo Ammarcord, arrisco eu), obras nas quais o tempo parece ter compactuado com o os 24 fotogramas por segundo, andando para trás e para a frente sem tropeçar, de forma a mostrar-nos a cabeça e os pensamentos por vezes fragmentados, por vezes claros, dos protagonistas, dizendo que aquilo que estamos a assistir vive ao mesmo tempo dentro das suas mentes.

    Em Fellini e Fosse há sempre uma vontade intrínseca de ser cinema próximo da vida, sem o realismo muitas vezes associado, ou então traduzindo uma realidade delirante, e aí sim realista, porque a própria vida também ela pode ser excessiva, e sendo assim, mais uma vez podemos viajar no tempo, e parar no presente, num contexto em que as ciências médicas têm tido um protagonismo pouco científico e a esquizofrenia generalizou-se com o fim anunciado do jornalismo e sabemos lá se do cinema.

    All That Jazz não deixa de ser um filme íntimo e perturbador, é a cabeça de Roy Sheider que transporta toda a emoção ou a carpição sofrida e introspectiva da aridez de solidões, desamores, frustrações, e até incompreensões, fazendo com que cada um de nós se identifique mais ou menos com a confissão vulnerável do autor que vai dialogando ao longo do filme com uma espécie de imagem feminina interpretada por Jessica Lange, pueril, bela e branca, fazendo acreditar por vezes ser a morte disfarçada de anjo, ao contrário da morte representada em Sétimo Selo de Bergman, por um cavaleiro vestido de negro e com uma máscara branca. Um anjo exterminador.

    Rehearsal

    Sem dúvida que All That Jazz está também imbuído de fé e crença, mesmo que alimentadas pela falsidade do mundo do espectáculo, que precisa de acreditar no teatro da vida para ser eficaz nas suas deambulações tanto intelectuais como emocionais, estando sempre à frente do olhar e da acutilância dos produtores para ganhar dinheiro, tentando passar por cima das fraquezas humanas, e das pequenas falhas de carácter, marca estúpida dos humanos.

    Esta película está sempre a ver se a luva serve na mão, usando palavras despidas, perspicazes e fortes de nos arrepiar a pele pela crueza e até pelo humor cáustico vindo da boca do actor que interpreta o stand-up comedian e que aparece quase sempre dentro de um monitor da sala de visualização enquanto parte integrante de um filme que Gideon anda a acabar, autocitando-se uma vez que já realizara anos atrás, Lenny, uma longa metragem a preto e branco que retratava a vida do cómico e trágico Lenny Bruce com Dustin Hofmann.

    All That Jazz é uma esponja auto-biográfica do autor. Absorve, processa e escorre, dá ideia que o copo foi enchendo com o passar dos tempos que imaginamos muito preenchidos enquanto observador de uma realidade mais abrangente que a da sua vida no trabalho, na família e nas mulheres, carregada de todo o tipo de excessos. É uma obra com sangue, suor e lágrimas onde o fantasma do Vietnam e dos filmes de guerra dessa época excessiva paira, mas talvez mais pelos fantasmas cinematográficos do que pela realidade do filme que andava preocupada com outros negócios. 

    É o filme que Kubrick disse ser o melhor filme que já tinha visto, pelo menos até à época, o que é uma excelente carta de apresentação e já agora o realizador de Shinning é citado numa das cenas a propósito… De filmes.

    Arrisco mais uma vez fazer uma analogia com o nosso presente pela necessidade de encontrar uma válvula de escape que ali é representada pela imagem da mulher e hoje é trazida pela cultura new age mais uma vez com Yogas e Krav Magás, passando pelos spas que jorram pelos ginásios, onde o suor é outro e as lágrimas vão secando ao ritmo de outra musica, iludido que está o publico de apaziguamento, tanto pelo controlo da ansiedade, como pelo controlo da violência intrínseca, com a tentativa de dar murros na mesa às incongruências do presente e incertezas do futuro que lhe (nos) entram pelos olhos dentro no quotidiano, e não podem, e não devem ser passivamente ignoradas.

    Uma palavra também de apreço a Roy Scheider que até aí era mais conhecido por filmes onde fazia de duro como French Connection, ou pelo grande sucesso comercial Jaws, realizado uns anos antes por Spielberg. Mas o seu desempenho mostra capacidades ecléticas bastante assinaláveis dando sempre uma energia, um entusiasmo e paradoxalmente um desgaste credível à personagem. Supostamente Gideon está sempre sobre o efeito de drogas e Scheider nunca cai no overacting em que muitos caíram em filmes limite do género, embora o argumento peça que estejam na fronteira subtil, tanto o actor, como o realizador e a personagem, ao mesmo tempo, e aí Roy Scheider é exímio fazendo de todos e talvez até de si mesmo, como é comum nos bons actores que têm coisas a dizer não se ficando pelo exibicionismo da técnica. 

    Queria terminar com uma cena do filme:

    Gideon está na maca dirigindo-se para a sala de operações. Acompanham-no de um lado a ex.  mulher e mãe da filha, e do outro a actual namorada. Olha para a primeira e convicto de que pode sucumbir na perigosa operação ao coração, diz: Se morrer peço já desculpa por todo o mal que te fiz!

    Ela chora. Depois Gideon olha para a namorada e diz: Se continuar a viver, peço já desculpa por todo o mal que te vou fazer!

    Ela ri

    Esperemos é que o cinema não sucumba na mesa de operações, por onde tem sido visto ultimamente, estando a precisar de uma válvula cardíaca nova para contrariar a sua morte anunciada.

    Mas pronto… All That Jazz continua a respirar sem a ajuda da máquina.   

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • Silly season

    Silly season

    Calor.

    Nada para fazer.

    O tédio era uma palavra ainda tida em conta e vinha no dicionário. Ligava-se a televisão em horário nobre, e a notícia principal era… o calor.

    Lembro-me, há pelo menos vinte anos, de todos os telejornais abrirem em prime time, num dia normal de Agosto, com os repórteres perguntando às pessoas comuns que estavam nas praias do país, nomeadamente Carcavelos e praia da Rocha (ainda hoje essas praias servem para as mesmas reportagens), sobre o que achavam do tempo que fazia.

    O pôr-do-sol ao pôr-do-sol

    Invariavelmente, as pessoas olhavam para o céu, e a resposta era sempre a mesma – que estava calor, que o sol brilhava em pleno e a água, embora estivesse um bocadinho fria, no caso de Carcavelos, ornamentava-se sempre de uma temperatura bastante convidativa para o mergulho. E assim foi durante anos a fio. Todos os anos lá iam os pobres dos repórteres às mesmas praias fazer as mesmas perguntas nos mesmos dias de sol. Tanto que já não conseguíamos passar sem isso. Numa ou noutra época, podia haver uma ou outra variante balnear, como o famoso arrastão de Carcavelos, que até se veio a revelar mentiroso ou exagerado. Mas nada de novo debaixo do sol.

    A repórter invariavelmente falava na temperatura, normalmente acima dos trinta graus e incentivava estupidamente os telespectadores a irem até lá, esquecendo-se que a maioria da população estava a trabalhar ou não morava na zona da linha do Estoril ou em Portimão. Depois passava para o pivot, que já podia ser o Rodrigo Guedes de Carvalho ou a Clara de Sousa, e se não houvesse algum incêndio espectacular digno do envio de piquetes, a notícia seguinte podia mesmo tratar-se de uma tartaruga-de-couro salva nas Caraíbas por um grupo de excursionistas japoneses, acompanhada por um piscar de olhos do José Rodrigues dos Santos, caso fosse a pública RTP ou de uma lamechice pegada com melodrama Moulinex à mistura do Rodrigo G. C., o famoso poeta da SIC.

    A TVI nos anos noventa andava a rezar noutras paróquias pela falta de audiências até ao milagre do BB e pouco acrescentava ao estilo dominante. 

    Lagosta azul insuflável

    Os leitores estarão a pensar que hoje também se fazem estas reportagens, e é certo, mas até certa altura elas eram totalitárias, conseguiam preencher um telejornal inteiro, não existiam alternativas e actualmente estas notícias e reportagens aparecem no meio de outras, diluídas em formatos informativos cada vez com menos audiência. Até aos anos 2000 (não é óbvio situar), o fenómeno da televisão era determinante, e parecia ser mais credível para os consumidores. Se havia Silly Seasons é porque o mundo estava em silly season e a democracia era tão certinha que se chegava ao pico do Verão e o mundo puro e duro ia de férias.

    Dava-se também importância às férias de famosos, por exemplo do Paulo Portas ou do Figo, e os portugueses pareciam gostar de vê-los a beber “refrescos de whiskey” no Algarve. Mais uma vez, é certo que hoje também existem essas reportagens, mas com credibilidade zero. O planeta-Verão já não é acompanhado por uma banda sonora de música ligeira. O mundo comprou outra novela e por isso a presença assídua de fantasmas nestas crónicas.

    Nessa época, ainda antes da nova moeda, Santana Lopes era capaz de transformar uma cidade normal como a Figueira, num Rio de Janeiro, tal era o incentivo à dívida e ao Carnaval permanente.

    Até o Eric Cantona nos Verões santanistas, não saía da Figueira, arrastando-se espectacularmente na areia do futebol de praia e nas pistas do Casino, antes de se dedicar ao cinema de autor. 

    Toda esta festarola era sempre acompanhada pelos diferentes canais que viam nessa cidade o exemplo colorido a seguir. O Santana Lopes e a Cinha Jardim tinham um rumo para o Verão dos portugueses. O futuro era para cima, diziam os mais optimistas, o próprio Santana Lopes até falava em altos astrais para a política, até bater com a cara de frente na Serra da Boa Viagem, claro…

    O sol a fazer scroll

    Nesse período de fim de século, avizinhava-se sempre o grande acontecimento do Pontal em que os protagonistas do PSD apareciam todos bronzeados em mangas de camisa branca, ou às riscas, a abrir as primeiras hostilidades da época contra o PS, pairando sempre a sombra do Cavaco, que podia aparecer com um carro novo a fazer rodagem, fosse qual fosse o contexto ou a função do algarvio. O Cavaco sempre meteu medo ao PSD.

    Neste Agosto também como sempre houve Pontal, e o elenco do costume andou por lá certamente, mas… Ninguém viu. O Pontal não funciona em 4K.

    Já nesses anos dourados, o campeonato de futebol começava e os primeiros jogos aconteciam sem grande significado. Convém lembrar que havia poucos canais e o mundo ocidental ainda navegava em algum romantismo ainda que abstrato, em que as coisas tinham nome de coisas.

    Mas também existiam Big Show Sics e a canção do Iran Costa, “É o Bicho”, animava as discotecas com coreografias estúpidas e infantilizadas, embora os psicólogos de serviço já adivinhassem ali algum erotismo inapropriado. Mas sempre dentro do mesmo género soft banana split.

    Também havia crises, claro, e pequenas nebulosas, tipo um súbito aparecimento de uma alga na Ria de Aveiro que punha em causa a apanha de amêijoa branca. Podíamos estar em 96 ou 97 e o mundo parecia uma fábula de Walt Disney, em Agosto, ainda com Brancas de Neve e Sete Anões contadas às crianças, houvesse ou não guerras, houvesse ou não hospitais febris, houvesse ou não Clintons com bombardeiros prontinhos a agredir países, ou houvesse mesmo uma pobreza encapotada típica de Portugal. As tartarugas e a venda de bronzeadores estavam primeiro, e as férias eram um direito adquirido, sobretudo em família. As crianças eram entrevistadas para dar boa disposição ao telejornal e 35 graus eram uma bênção da natureza, tornando-se urgente desfrutar a consolidação da euforia perpétua proposta. Hoje, os mesmos dizem tratar-se do Inferno.

    SUN-SET

    Acabavam sempre as reportagens acentuando o cuidado a ter com a hora de mais calor, incentivando os mais velhotes a ficar em casa uma horita ou outra e a beberem muita água, que pelos vistos havia por todo o lado. O mundo de Verão era um carrossel que era preciso manter oleado. Hoje, as horitas são dias a fio, e a água, dos velhotes e não só, é da Nestlé e custa os olhos da cara. O sol parece fazer sempre mal e os raios dourados já não lhes pertencem. O céu é da NASA e do Elon Musk.

    Portugal continuava a endividar-se, mas o futuro parecia trazer sempre luz e a dívida permanente era apenas assunto para conversa dos chefes de família enquanto bebiam umas cervejas e comiam uns tremoços nas esplanadas de praia, como se isso fosse uma brincadeira para meninos que desse apenas umas boas piadas de Verão com a finalidade de chatear os comunistas.

    A guerra da Jugoslávia só voltaria no Outono, parecia que fechava para férias também, e os grandes acontecimentos paravam porque era Verão, que curiosamente era sempre azul, como a série espanhola do Chanquete.

    Anos depois, o mais parecido, mas do lado inverso, foi a pandemia Covid, em que o mundo também fez férias todo ao mesmo tempo, parando guerras, massacres e catástrofes naturais, mas ao invés de as pessoas irem para a praia, foram para casa ver o sol aos quadradinhos. O céu, que fora outrora azul, ficou mais que cinzento e pleno de drones autoritários que até falavam. No fundo, a pandemia foi a Silly Season do Inverno. Ainda hoje não acredito que tenhamos vivido naquela dimensão.

    Só de pensar nas regras… do Fauci.

    Introduzir tex…

    No Verão de 2020 cheguei a ver na televisão, por exemplo, como numa praia do sul de Espanha, um funcionário balnear de megafone na mão assinalava quem devia ou não ir ao banho, tipo “agora a senhora de azul pode ir para a toalha, o senhor de calções pretos pode tirar a máscara e ir dar um mergulho, mas vá em segurança e tire o pano só na água. O menino aí da direita, afaste-se do outro menino, por favor, e deixe de jogar à bola”. Vi também um jihadista suicida a dizer que tinha mais medo duma constipação do que de um soldado da ONU. E que depois, caso fosse contaminado, queixava-se ele, não parava de espirrar para cima da avó, uma velha também jihadista. “Deixa mas é lá isto passar que depois volto a dar uns tiros de bazuca, posso ser jihadista, mas não sou parvo”.

    O vírus não foi só digital e assustou mesmo, se não foi de uma maneira, foi de outra. As máscaras do Carnaval da Figueira da Foz foram substituídas por outras bem mais fúnebres.

    E, paulatinamente, desde a crise de Setembro de 2001, acompanhada pelo aparecimento da nova euro-moeda, que tem sido um a-ver-se-te-avias digital.

    Primeiro, o aparecimento de canais tanto televisivos como na net, não deu descanso às férias, depois o aparecimento das redes sociais, generalizando-se o Facebook por exemplo lá para 2007 ou 2008, que também acompanharam a crise do subprime, começaram a fazer das suas e as comidas exóticas e mesmo o típico bife com ovo a cavalo passaram para o planeta digital para serem comidos com os olhos. Já para não falar dos pôres-do-sol que se viam ao espelho nas lentes empoeiradas dos mortais, tornando-se banais e menos laranja.

    De lá para cá, os Verões vão ficando mais “gélidos” (quentes, segundo a versão oficial), e o mundo ainda está mais fragmentado do que o computador de Hunter Biden.

    Como estamos em 2024, façamos um apanhado de um dia normal de Verão, englobando todos os media, em que qualquer semelhança com aquela realidade de outrora é pura ficção, como dizem os brasileiros.

    Trump é quase assassinado por um puto com três nomes, como é da praxe. Guerra iminente entre o Irão e Israel. Puigemont foge de Espanha para Waterloo, sem que os moços de esquadra deem por ela. Um adolescente mata três crianças no Reino Unido gerando uma onda de violência da extrema-direita. A polícia propõe aos emigrantes que troquem as facas por uma assinatura à borla da Netflix, devolvendo os objetos cortantes na polícia local em troca da subscrição. Mais uma pandemia assumida pela OMS, desta vez a varíola dos macacos.

    Portugal, Portugal…

    Mais uma data de mortos na Ucrânia. Apagão informático que põe em causa o funcionamento de aeroportos e as partidas de aviões. Musk fala no fim do mundo e ele mesmo entrevista Donald Trump. Não sei quantos mortos nas praias portuguesas. Praias interditadas com salmonela; o fantasma do dentista da TVI a continuar a assustar e a pairar nos dentes dos portugueses sem, contudo, ouvirmos uma palavra da Cristina Ferreira ou da Fátima Lopes, que bem o promoveram durante anos a fio. Discussões intermináveis de comentadores sobre orçamentos preocupantes. As eternas dívidas dos clubes, as dívidas do FCP, a falta de água e a seca no Alentejo de sempre, os recordes de temperatura em Bilbao, ainda que os autóctones achem normal. A demência de Biden, a vida cada vez mais cara. Os jogos olímpicos mais woke de sempre. As lástimas de Pichardo e o Benfica. O Fogo da Madeira que é o mais “quente” de sempre.

    Enfim, podia continuar até ao infinito.

    Mas o que vale é que é Verão. Ainda assim, se tiver sorte e para refrescar, uma vez que o calor me chateia, talvez caia um bocado de granizo lá pelo fim da tarde já que o tempo não anda para brincadeiras.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Num destes sábados de Agosto, a RTP 2 emitiu um memorável filme de Miguel Gomes – Aquele querido mês de Agosto, de 2008, e revi-o.

    Com o passar dos anos, este filme ainda parece que ficou melhor, como se surgisse de uma boa casta cinematográfica, que com o tempo vai ganhando mais corpo e elegância (fazendo uma analogia com o vinho, e com os seus eternos segredos).

    Sem dúvida, que o tempo é amigo da boa arte.

    Ajusta-se e consagra-se nela e pode, no caso de ser compreendido, tornar-se no melhor ansiolítico para os artistas.

    De uma forma geral, os filmes de Miguel Gomes têm qualidade e são extremamente bem pensados por alguém que passou pela crítica de cinema e que se habituou a ver filmes para escrever sobre eles.

    Indubitavelmente, o cinema também é escrito, é palavra, e aqui temos um exemplo disso, fazendo, de uma forma muito sóbria, tudo encaixar em tudo, até Portugal lá está metido ao barulho, a fazer de Portugal. É um filme sobre o tempo, em que a espera e a falta de dinheiro verdadeiro ou não, contribuem e supostamente mudam a acção. Um filme que tem a urgência de ser cinema, mais do que a de agradar aos produtores. Isto podia ser a sinopse, ou mesmo a falsa sinopse, já que a longa-metragem vive dessa dicotomia entre realidade e ficção, elevando a arte a um ponto-chave, assinalado vezes sem conta por Jean-Luc Godard com as suas célebres afirmações acerca do documentário e da ficção, sendo que o ideal para o suíço é um integrar-se no outro.

    Lembro-me de outro singular filme de Joaquim Pinto Uma Pedra no Bolso –, cuja acção também se desenrola durante o Verão num Portugal específico, em Porto-de-Barcas, vila piscatória que conheço bem e onde também em tempos já pesquei imagens. Um filme talvez esquecido, que teve presença na RTP2 em Agosto, há um par de anos, mas que imaginamos o tempo a fazer o seu trabalho, para que estes fantasmas melancólicos ganhem corpo, já que alma têm de sobra, sendo mesmo essa alma a marca de uma boa parte do cinema português de autor.

    Vem-me à memória ainda Os Contos de Verão do super-francês Éric Rohmer, passado nas mágicas praias da Bretanha, em que a nostalgia e a palavra são iguarias do cardápio burguês e culto, tipicamente gaulês, como é hábito em Rohmer. Claro, há muitos outros filmes cujo calor contagia e derrete o ecrã. O Pecado Mora ao Lado de Billy Wilder é um deles e “queima” definitivamente o televisor sempre que aparece por aí, mas deste já se disse tudo e a Marylin Monroe tem direito ao seu descanso, uma vez que em vida não o conseguiu sem a ajuda de benzodiazepinas, imortalizando-se qualquer dia mais por elas do que pela sua presença nos fotogramas.

    Pessoalmente, adoro ver um bom filme de verão… No Verão. Mesmo se o céu não anda tão azul, chegando mesmo a não sair durante dias a fio dos tons cinzentos característicos desta época… Gris.

    Outra era virá, se o cinema, ao contrário de Deus, assim o quiser. A Cinemateca Portuguesa está lá para nos sussurrar ao ouvido, a doce melancolia da morte anunciada do cinema, que nunca mais chega.

    Em qualquer um destes quatro filmes que enumerei, é o amor que anda no ar, ao invés de drones. O filme de Miguel Gomes, como entidade própria que já é, percebeu que o cinema e a vida mais os sons que só existem na cabeça das pessoas sensíveis, têm mistério suficiente para não mais nos abandonarem os pensamentos. O cinema é um espírito com o qual os cinéfilos fazem telepatia. Porque o cinema também é memória, sobretudo memória futura para que a poética (seja ela qual for) nunca desapareça no meio da convulsão geral em que mergulhámos definitivamente, com guerras e ódio por todo o lado, tendo sido esta a marca destes últimos tempos bestiais.

    Aquele Querido Mês de Agosto vale e até “informa” mais do que um ano de telejornais e tem uma acção realisticamente climática sobre o espectador, coisa que a realidade vai paulatinamente abandonando, porque se transforma ela mesmo numa imitação de uma rede social.

    Neste filme ambicioso disfarçado de filme humilde, que tem a acção em terras da Beira Alta, durante o Verão, quando os emigrantes voltam para as férias e é tempo de bailaricos, procissões e incêndios, o povo não é só vítima ou testemunha, como habitualmente é tratado pelos media em geral. Aqui a realidade grita pela existência e saboreamos um documentário a fazer de ficção, senão mesmo de uma ficção a fazer de documentário, para citar o crítico Luís Miguel Oliveira a citar Godard.

    Aqui, o povo tem voz e canta a sua angústia através da lente justa e sonora do realizador e da sua equipa. Mesmo tratando-se da cruel realidade a que ninguém escapa, no qual se exalta o realismo mágico, mesmo que a ideia de terror sobrenatural parta mais de um trecho de um filme, que aparece dentro do filme, que da própria encenação de Miguel Gomes, trazendo para a sala uma preocupação estilística, participe de uma visão estética da vida que não exclui de todo a experiência do real.

    E alicerçado nesses degraus de continuidade, o fantástico filme vai cavalgando e surpreendendo por entre rituais em que até os próprios incêndios igualmente o são, como se vê nas cenas da torre de detecção e no plano dos botões luminosos no centro de controlo.

    Importante para a compreensão conceptual do filme, são travellings, como aquele em que a câmara acompanha de frente a carrinha de bombeiros com a música de Toni Carreira Sonho de Menino – a instalar-se paulatinamente na acção.

    Em poucos filmes, o som e o tratamento acústico estão tão singularmente presentes para habitar o campo narrativo, em que se ouve, mas pode não se ver, e escuta-se de “olhos bem fechados” (para citar Kubrick), devido às cinzas orgânicas que parecem sair do ecrã ou da tela. Esta é a poética do filme que arde, mas não se vê.

    A banda sonora assinalável é fundamental para o desenvolvimento das histórias fragmentadas, sobretudo da história central em que um pai, uma filha e o seu namorado-primo se relacionam, trazendo sempre novidades narrativas, até porque os próprios protagonistas fazem parte de uma banda musical que deambula pelas aldeias da zona, cantando-se e interpretando-se a si mesmos aludindo aos musicais clássicos.

    A banda sonora tem títulos como: ‘Escravo do teu encanto’, ‘Som de cristal’, ou ‘Passear contigo’, todas elas bastante reconhecíveis pelo público em geral.

    O verdadeiro e real(?) Vasco Pimentel que faz dele próprio a fazer dele próprio, dá-nos uma lição no fim da película acerca da eternidade e dos fantasmas que habitam os filmes, numa dimensão em que a imagem se apaga no som. A tecnologia desaparece perante tamanha grandeza e apenas prevalece aquilo que queremos acreditar ser a vida. A vida para lá de todas as vidas, a vida em que, como dentro dos filmes nunca nada morre. É sempre tudo a fingir. 

    Esta película não parou no tempo. Esta e outras obras cinematográficas feitas com arte, fazem, sim, parar o tempo. E como o Verão me torna melancólico, vou parecê-lo e dizer que o cinema também é amor e com ele mantenho uma relação de fidelidade amorosa ao longo dos anos, sabendo e aceitando a indústria e a sua artificialidade, e até reconhecendo a abundância de criminosos nefastos como o Harvey Weinstein que produziu filmes que hoje são autênticas elegias ao amor, como Shakespeare in Love, ainda que não seja grande filme.

    O cinema perdoa, daí a sua possibilidade de catarse. Se a vida fosse um filme, salvava-se, mesmo sabendo que o cinema foi o principal agente manipulador e transmissor de mensagens subliminares para o século XX e veículo de persuasão com sede em Hollywood. Mas a contradição é a flor e a pistola dos artistas e a realidade ganha sempre depois de vermos um bom filme.

    Ainda assim, sabemos que o cinema traz valor acrescentado e é muito mais do que isso, e esse cinema-muito-mais-do-que-isso é onde este filme se inscreve, e não será vítima do novo tecno-mundo, cujos realizadores são anónimos e não precisam de actores, podendo mesmo fabricá-los a partir da A.I. Isso não é Ser Cinema.

    Aqui o conteúdo de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens não é claro, mas existe, sim, a presença de elementos mágicos algumas vezes intuitivos, mas nunca explicados, ou mesmo a presença do sensorial como parte da percepção da realidade, trazendo uma singular distorção do tempo para que o presente se repita ou se pareça com o passado, baralhando-se cronologicamente. Como exemplo disso temos o “milagre” operado na personagem do pai do Fábio, quando fala na transformação que se deu no seu cativeiro impregnado de dor, ao cruzar-se com a Rainha Santa, feita de cerâmica, durante a procissão quando experimentava o auge da agonia, até ao triunfal cruzamento onde a dor desaparece definitivamente. Não conseguimos saber se aconteceu mesmo ou é produto do argumento ficcionado.

    Talvez pertença aos dois, e é isso que as novas tecnologias digitais inteligentes não percebem.

    Uma personagem inesquecível é o Paulo Moleiro, que não faz nada, segundo um amigo, mas todos os anos em fevereiro dá um salto da ponte para mostrar que está vivo.

    Aquele Querido Mês de Agosto é esse salto que nunca se vê.

    Ruy Otero é artista media

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  • O Eixo do Mal

    O Eixo do Mal

    Estava na rua e vi um amigo. Parei para o cumprimentar.

    Ao fim de um minuto, e depois de umas banalidades sobre se a vida corre bem ou mal, e uma ou outra sobre o tempo, passando pelo badminton, perguntou-me por que não fazia eu um texto sobre O Eixo do Mal, o programa da SIC Notícias que se arrasta há anos. 

    Disse-lhe que não estava interessado, que não via o programa há muito e que só a ideia de o voltar a ver me deixava mal-disposto. É claro que, às vezes, ainda ouço ou vejo ao longe, num café ou numa sala de espera, os comentadores a dispararem balas secas para algum lado, e até sinto a velha cumplicidade amiga entre eles, o que até podia ter piada. Mas depois, só de ouvir uns minutos, vem logo ao de cima a energia má onda da Clara Ferreira Alves, em que parece que as veias do pescoço vão rebentar para cima da mesa; as banalidades assertivas do Pedro Marques Lopes, com a sua voz tremendamente irritante; as lições de moral em ponto de ebulição do Daniel Oliveira, com o seu ar de sabichão marxista; e as mexidelas neuróticas na cadeira, com alguma verve à mistura, do jovem cinquentão Luís Pedro Nunes. Não mudaram muito desde a última vez que vi um programa completo para aí em 2010. Continuam exaltados a fingir que são cool

    Na verdade, as fisionomias não mudaram muito.

    Acrescentei ainda que o apresentador não era o mesmo, sobre o qual nada tinha a dizer por desconhecimento da personagem. Mas tinha bom ar, e lembro-me vagamente dele numas entrevistas aparentemente bem conduzidas no Canal Q e já agora, Aurélio é um nome com alguma piada fonética. Este programa não era certamente como os bons vinhos que ficam melhores com a idade. Fiz notar.

    Ilustração de Alex Farac

    Ele voltou a insistir para que escrevesse um texto, ainda que curto, só para dizer mais ou menos aquilo que acabara de ouvir como resposta. Nem era preciso desenvolver muito, era só para ficar a nota, palavra aliás muito usada no programa, fez-me saber.

    Este amigo nunca me levava a sério. Enquanto lhe ia dizendo estas coisas, ele só se ria, mas estranhamente via o programa como um acto masoquista, dizia ele com um flácido sorriso nos lábios. Era o hábito.

    Gostava da música do genérico e tinha um especial prazer em tentar adivinhar as roupas que iria ostentar a Clara Ferreira Alves em cada novo episódio, já que tinha alguma irreverência para a idade e até surpreendia nas cores e nas lãs. Disse-me até que já tinha adivinhado umas quantas vezes, num jogo absurdo de adivinhas fashion que mantinha com a namorada.

    Também jogava noutros canais e acertava com alguma frequência no prognóstico que fazia aos penteados da Raquel Varela, noutro programa similar na RTP3.

    A historiadora do trabalho, garantiu-me o meu amigo, mudava de penteado a cada semana e já lá iam mais de dez anos de programa. Portanto mais de 200 penteados pelo menos, deduzi. Garantiu-me que sim. Mas o que andava eu a perder… Não há cabeça que aguente tanto secador.

    Ilustração de Alex Farac

    Primeiro, eu não sou critico de televisão, disse-lhe aumentando o tom da minha voz só de pensar nos actores do programa com nome de Bush, ainda não aprendi a moderar-me. As coisas continuam a enervar-me como se ainda fosse um adolescente, embora, tenha já escrito alguns artigos sobre situações televisivas, já que ser critico da televisão é uma redundância, uma obrigação porque toda a gente devia ser critica de televisão por natureza. A televisão nasceu para ser criticada mesmo antes de a ligar. Quem inventou a caixa negra foi um génio, pertencia certamente ao Eixo do Mal. Inventou o melhor sonífero de sempre para que se sonhe acordado. Depois quem desenvolveu os programas de comentário devia ter muita raiva ao mundo.

    É verdade que exerce algum fascínio catódico sobre mim claro, a caixa idiota está feita para isso e vejo mais rapidamente os programas cor-de-rosa da Maya que os noticiários e programas de debate. É que nos eixos-do-bem somos obrigados a ouvir, por muito que não queiramos.

    O Rui Santos de blazer a falar de futebol consegue ser menos previsível que os do Expresso da Meia-Noite, de camisa e mangas arregaçadas na descontra, mas também calma, não vejo o jornalista desportivo a pregar moral futebolística todas as semanas, era o que mais faltava.

    Pareço aquela personagem do Caro Diário do Nanni Moretti que não conhecia as ilhas que deviam visitar, mas sabia tudo acerca delas, inclusivamente onde ficavam as melhores pastelarias, acrescentou o meu amigo em tom de gozo. Nunca via os programas, mas sabia tudo, género síndrome Big Brother em que no fundo toda a gente passa por lá, mas ninguém assume. A coscuvilhice funciona. É universal e a Endemol estudou em Tavistock.

    Lembrei-me dessa personagem do filme italiano e ri-me. Aliás, esse filme antigo ataca bem a televisão. Mas em 1994 ainda não havia Internet e redes sociais eram discotecas controladas por profissionais de relações publicas. O mundo mudou.

    O Eixo do Mal não.

    Ilustração de Alex Farac

    Escrever sobre um programa é estar a dar importância ao programa, embora ache que ninguém leia as minhas crónicas-ou-lá-o-que-isso-é, não o posso saber, não estou nas redes, não existo, o que para mim é igual ao litro.

    Escrevo porque gosto de escrever e assim posso mudar de estilo quando quiser. Até posso mentir que ninguém me chateia. Posso dizer mal, bem, mais ou menos mal, mais ou menos bem, posso até exagerar que ninguém me censura, muito menos o director do PÁGINA UM, que é um herói contemporâneo. Um Clint Eastwood do Macintosh sem os excessos musculados do americano. Um justiceiro que é preciso levar a sério mesmo que não tenha as paisagens do Texas atrás em planos heróicos e comprometedores como só o cinema sabe fazer. Precisamente uma coisa que me irrita nesses programas é nunca pegarem em nada que saia daqui do jornal online, como se os jornalistas do P1 andassem a brincar aos jornalismo. E por saber disso por dentro ainda me afasto mais. As Lusas e Reuters produzem, os Ricardos realizam, e os Oliveiras actuam. E amanhã será igual.

    Mas por outro lado, a verdade é que percebo bem qual o papel atribuído àquela gente no Matrix. Esquecemo-nos muitas vezes, mas todos eles recebem um cheque no fim do mês, ainda que vá ficando cada vez mais magro. O próprio “papel” começa a escassear. Há muitas alterações não só climáticas no horizonte e os comentadores têm de comer, o que torna a compreensão mais compreensível para ser redundante sem ninguém me chatear com o redundamento. Para regras, basta ver o Eixo do Mal semanalmente. Quem nos dera que não as seguissem.

    Já ninguém é punk? Charles Bukowski era.

    Se não houvesse uma Clara haveria outra obscura qualquer, vinda das universidades a fazer o que é preciso. 

    Os agentes de casting não param para comer uma sandes mista. O relógio chega a ter mais de 24h. O incrível aqui é o programa durar há tanto tempo. Ser um dinossauro em 16 por 9, catapultado ainda do 4 por 3, há-de ter algum segredo. E não deve ter grandes audiências como aliás muito poucos programas fora dos big brothers, têm. Já para não falar das dividas acumuladas pelos grupos mediáticos que sobrevivem sabe Deus como.

    Deus… E o PÁGINA UM.

    Todo um mistério… Para quem não leia o PÁGINA UM.

    A minha dúvida é se eles sabem do seu papel, se têm consciência do que representam, alguém tem de o fazer, é certo.

    Chego à conclusão que se trata de teatro, o problema é que já está toda a gente cansada da dramaturgia e não é fácil mudarem paulatinamente de peça. Os actores vão mudando de vez em quando, parece a série Neighbours. E o Shakespeare aqui não manda nada. Se há coisa que estes programas não têm é elegância. Às vezes é uma gritaria desenfreada, ouve-se na rua.

    Lembra mais Marquês de Sade representado pela Comuna.

    A Realidade também não é assim tão profícua, pelo menos da forma como a estratégia está montada. Já adivinhamos no futuro próximo as alterações climáticas ainda mais alteradas a ser debatidas com a culpa do Trump e da ganância capitalista, as fake news, as eleições dos EUA, as observações em falsete do Pedro, as indignações do Daniel, as irritações nervosas com olhares fugidios para o tecto da Clara, e o ar blasé como se nada tivesse a ver com aquilo do Luís.

    Uma seca expectável descomunal.

    Ilustração de Alex Farac

    E os cães ladram, mas qualquer dia as caravanas passam-se.

    Se é para jogar a sério ao Matrix mais vale ver uns putos conspirativos da terra plana no YouTube, é bem mais divertido, ao menos tem semelhanças com um filme de acção americano, com ritmo, suspense e finais inesperados. Se é para seguir a telenovela informativa do costume, aconselho os velhos e passarem pela plataforma e deixarem-se ir pelo algoritmo, que hão-de aprender alguma coisa, nem que seja que os répteis andam aí, tomam café connosco, os extraterrestres têm a cabeça na Lua e que os pássaros assim como a morte não existem, já que para mim quem não “existe” são estes 4.

    Não, definitivamente não vou escrever, disse eu ao meu amigo que se despediu a rir, sem mais uma vez me levar a sério.

    Ruy Otero é artista media


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  • Anthony Fauci, o artista

    Anthony Fauci, o artista

    Nos tempos que correm, passe a expressão coloquial, a Arte estende-se para muitas zonas, e uma delas é aquilo que se convencionou chamar de bioarte, que é o uso da biotecnologia como meio na produção de objectos artísticos, sendo por isso mesmo uma arte conceptual de difícil compreensão, como quase todas.

    Essa disciplina percebeu muito bem o comportamento humano e as sua engenharia associada, sendo por isso muitas vezes praticada por pessoas ligados à ciência e aos seus dúbios mercados.

    Ilustração de Alex Farac

    Especialistas acham mesmo que há uma relação directa em regime de parceria, entre os caminhos que a bioarte vai tomando e a galeria Tavistock. Já para não mencionar a ligação ao fantasma do sinistro projecto MK-Ultra levado a cabo pela CIA nos anos 60, ainda que considerado um projecto obscuro e perigoso principalmente porque não controlado por artistas.  

    Acredita-se que a primeira obra de bioarte foi criada em 1936 por Edward Steichen, e apresentada no Museum of Modern Art, em Nova York (Lipton, 2003), embora cientistas sociais mais contemporâneos contraponham essa moldura, dizendo que a bioarte é muito mais extensível à vida e aos seus sofismas que aos confins de galerias e laboratórios, uma vez que segundo princípios hodiernos muito em voga, a arte já saiu das galerias há muito tempo e foi dar uma curva até Big Billards (Bilhar Grande em português), para nunca mais voltar à casa de partida.

    E assim chegamos a A. Fauci, um artista de Brooklin, New York que devemos ter em conta e por isso acompanhamos o seu trabalho com interesse, pelo menos aquele que não está no segredo dos Deuses do Olimpo (MoMa).

    Ilustração de Alex Farac

    A Fauci é um criador e cientista ligado às artes performativas/visuais dos Estados Unidos há muito tempo. As artes aí nesse país, ao contrário do que muita gente pensa, são financiadas e produzidas em regime de co-produção com o próprio Governo, tendo tido um incremento e significativo avanço durante o legado do governo Obama, através de subsídios do Reserva Federal, pensa-se, não sendo um assunto muito claro para alguns especialistas. Ao contrário do que é comum pensar-se, os EUA não são um país de índole apenas capitalista ou mesmo liberal, como muitas vezes é eufemisticamente apelidado, e para o provar temos a obra pública deste renomado artista plástico, que não se deixa cativar só pelas feiras de Veneza e pelos Fóruns de São Paulo (ainda hoje controlados pelo curador Lula da Silva, outro artista de calibre magnum), mas também pela arte pública contemporânea já hegemónica em muitos países, com

    artistas revolucionários a ocuparem imensas fachadas locais e mesmo estações de metro e pastelarias.

    O mundo mudou definitivamente.

    Hoje sabe-se por exemplo, que a própria CIA financiou Jason Polock, mostrando não ficar à época atrás do KGB, que também financiou inúmeros artistas soviéticos, incentivando-os mesmo a brutais e magnificas performances para além de residências na Sibéria, que muitas vezes acabavam na morte dos próprios criadores naquilo que se chamou de Gulagart.

    Sabe-se hoje que a bioarte acarreta os seus perigos e não fossem os Estados a financiarem os criadores, seria uma arte de difícil expansão e aceitação, tendo mesmo na esfera pós-moderna ido para além da moral e até mesmo da ética como infelizmente adivinhamos que terá de ser, uma vez que esse é um dos apanágios da própria disciplina para que a evolução aconteça. Senão, como teríamos saído das cavernas?

    Ilustração de Alex Farac

    Michele Foucault e muitos outros legitimam teoricamente estas acções de intoxicação voluntária, pelo menos queremos acreditar, até mesmo pelas experiências corporais infringidas pelo próprio filósofo numa cultura sado-masoc, para se insurgir e desconstruir (e bem quanto a nós), a mediocridade e hipocrisia do poder dominante ainda elencado por pessoas e políticas conservadoras ligadas a Vichy. Também acreditamos que se trata de uma difícil tarefa para os artistas que não deixam também de ser vitimas de si mesmos, se olharmos para a psicanálise, ou mesmo para se tornarem mártires pós-modernos a quem muito temos de agradecer pelos seus sacrifícios a bem da humanidade e do progresso (não estando a ser cínico evidentemente mas sim clinico como mandam as regras do bom jornalismo).

    Podemos atirar as “culpas” também a outro vulto chamado Charles Darwin, apelidado por alguns dadaístas de monkey-artist (artista-dos-macacos), tendo sido a sua teoria da transmutação da espécie aceite pelo sistema depois de fortes polémicas.

    Não só as artes agradeceram a generosidade destes artistas, como também a própria ciência de onde provém inicialmente A. Fauci, vindo, no entanto, a doutorar-se mais tarde em Artes Performativas, sendo sempre agraciado pelos distintos governos, tanto democratas como republicanos, provando que a sua criatividade ultrapassa horizontes e fronteiras tanto horizontais como verticais.

    Fauci também tem ligações profundas a laboratórios de pesquisa na China onde tem feito e incentivado residências, nomeadamente na cidade de Huan, onde esfomeados morcegos se alimentam de ingénuos pangolins, tornando-se um terreno fértil de pesquisa no singular país dos dois sistemas.

    E por falar em fauna, sabemos também que o performer americano fez experiências com cães de raça com um exorbitante contrato federal de 1,8 milhão de dólares para performances científicas com cães de uma raça específico que por falta de dados não conseguimos apurar (tendo também em conta toda a desinformação que existe na Net).

    Ilustração de Alex Farac

    Este caso levantou sérias preocupações e questões a senadores conservadores que nada percebem de arte conceptual nos EUA, dedicando-se muitas vezes a doar fundos para igrejas e para “artistas” evangélicos. Naquele caso foi Joni Ernst do inefável e ignorante Estado do Iowa, que observou que experiências anteriores financiadas pelo Governo Federal, em cães sob a tutela de Fauci, incluíram cortar as suas cordas vocais, infestar os cães com pequenos aracnídeos ectoparasitas hematófagos, e ainda colocar os mesmos em gaiolas com moscas infecciosas em regime de co-habitaçao. Experiências artísticas com animais já tiveram melhores dias, mas Fauci não quer limitar-se a canídeos já que pretende fazê-lo também com humanos.

    Mas os caminhos já haviam sido abertos há muito pelo coelho de Beuyes, ou pelas ovelhas de Dolly, passando pelos tubarões de Damian Hirst ou pelos elefantes dos caçadores colonialistas. Temos pena.

    É preciso haver progresso.

    Sabe-se pelo Economist e, ainda que não tão detalhadamente, pelo New York Times, que A. Fauci prepara uma performance duradoura, arriscada, minuciosa e claro, como todas as geniais, sofrida, a nível mundial, em que os diferentes governos dos muitos países se propuseram financiar numa epopeia mais que transatlântica. Mas, devendo-se a um natural e aceitável segredo artístico-científico, sabemos apenas de alguns pormenores.

    Confirma-se, no entanto, a expectável excitação da maior parte dos artistas dos diferentes países, tanto conhecidos como menos, tendo já estes declarado o seu entusiasmo publicamente, chegando mesmo a voluntariarem-se uma boa parte para auxiliar na difícil tarefa performática a que o artista se propõe.

    Sabe-se também da anuência dos diferentes canais mainstream a nível global em que se incluem países diferentes como a Polónia, a Itália ou mesmo a Hungria do ditador Orban. O estranho aqui, mas digno de festejo, é a exuberância e entusiasmo dos diferentes quadrantes políticos desde a extrema-esquerda à extrema-direita que têm aderido ao quase-manifesto do artista norte-americano, provando que a arte esbate fronteiras sempre que seja o Humano a estar em jogo para nos unir nesta epopeia com contornos de novela gráfica.

    Ilustração de Ruy Otero

    Sabemos hoje que somos todos iguais, mas como diz Orwell ainda há uns mais iguais que outros. Ora é mesmo esse um dos paradigmas que o artista quer evidenciar criticamente.

    Temos conhecimento também que tem o apoio, entre outros monstros assinaláveis, da Bayer e mesmo da esquecida Pfizer. Ouvimos pela própria boca do artista que será na China onde a primeira performance terá lugar, o que só prova também a abertura democrática do país insular.

    Outro dos aspectos que se ouve falar em off é a do pedido especial às populações de todo o mundo, mesmo contando com a Tanzânia, para o uso prolongado da máscara hospitalar e da permanência em casa durante pelo menos quinze dias, de forma que o artista possa aplanar a curva em segurança.

    Ruy Otero é artista media


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  • América: um sketch teatral

    América: um sketch teatral

    Donald Trump está na sua Trump Tower. Toca o telefone vermelho feito de carbono.

    Uma das raparigas que desfila pelo luxuoso espaço aveludado, encaminha-se até ao telefone, a mando de Trump.

    A rapariga vê o número e diz ao ex. Presidente que é Jo Bi quem está a ligar. O homem do cabelo laranja veste o roupão e dirige-se para a mesinha onde está o telefone. Atende.

    – Olá, Jo. Se é para gozares comigo, mais vale ligares para o Martin.

    Atira logo à queima-roupa.

    – Não, aliás estou cansado demais para isso.

    Responde Jo Biden.

    E continua, depois de uma pausa em que pigarreia para aclarar a voz.

    Ilustração de Alex Farac.

    – Queria mesmo era falar do debate. Uma boa parte do mundo viu mas fomos os menos vistos dos últimos anos.

    – Que se foda!

    Responde Trump.

    – Digo-te já que não gostei nada daquilo que disseste do meu filho.

    – Jo… Eu não queria…

    Biden interrompe.

    – É que ele é muito pior do que insinuaste.

    E desata a rir.

    – Ah bom! Quase me assustaste.

    Trump sente uma espécie de alívio.

    – O anormal do Hunter só não está preso por causa de mim. Sempre foi estúpido o parvo do rapaz.

    – É como a Melania. As pessoas acham que ela é esperta só porque não fala muito.

    – Mas ainda é gira.

    – Que se foda! A beleza para mim é coisa do departamento da filosofia.

    – Sim, eu sei. Não gostei foi daquilo que disseste a propósito do golf, sabes que tenho um grande orgulho do meu jogo. Aí mentiste mesmo… Ou é impressão minha?

    – Não, não. É mesmo verdade que estou menos gordo e ainda bato bem. Talvez tu carregues melhor e sejas mais perspicaz na análise dos buracos, mas eu sou bom no green. O meu pai ensinou-me a jogar e eu sempre fiz tudo para ser melhor que ele.

    – Também disseste que eu próprio não percebia o que dizia às vezes. Tinhas razão. Eles deram-me uma merda esquisita para não sei quê, e estive um bocado à toa. Quase que dizia que era contra o aborto.

    – Mas tu és contra o aborto Jo.

    Riem ambos.

    – Jo… Sabes… Acho que vou ganhar, man.

    Disse Trump sem grande entusiasmo.

    – Espero bem que sim. Eu disse-lhes que, ou metem o holograma, ou não faço mais o espectáculo. Estas merdas já me cansam e eu agora queria desfrutar um bocado da vida. Sempre fui um desgraçado, tu sabes. E ainda tens cabedal para aquilo. Tu és um bom palhaço Donald, nunca te esqueças.

    – Obrigado, Jo. E já agora, sabes que temos aí um plano muito interessante na manga…

    – Boa!

    – Já alguma vez levaste com uma bala?

    – O que é isso?

    – Um balázio Jo!

    – Oh claro. Só de raspão.

    – Dói?

    – Depende. Porquê?

    – Tive um sonho muito estranho. Nada de importante.

    Diz Trump cabisbaixo.

    – Ouve, está a resultar isto das pessoas acharem que me estou a agarrar ao lugar.

    Trump mostra algum desconforto por Jo não ter dado muita importância ao tema do sonho. Biden continua.

    – Sempre foste é um desastre nos negócios, um looser… Tive de o dizer. Foi mais forte que eu. Ninguém me escreveu a frase. Saiu-me.

    Ilustração de Alex Farac.

    – Não tens de estar a lembrar-me sempre disso. O Obama também tem essa mania. E o Michael ainda é pior.

    – Tens razão. Já me esquecia. Não digo mais “verdades”, pelo menos sem audiência por perto.

    – Certo. Andas muito esquecido, Presidente!.. E já agora… Verdades?.. É para gozar, não?

    Desatam a rir.

    – Claro. Ainda damos cabo da pós-verdade.

    – Qual pós verdade? Andamos mesmo muitos esquecidos, não é Jolito?

    Jo está deveras bem disposto. A amizade é o melhor do mundo. Jo continua:

    – E ainda não viste nada. No outro dia lá na Casa Branca confundi uma girafa com uma jarra. O pior é que fui dar festinhas à jarra como se fosse a Molly.

    – Oh! Quando estive lá, aconteceu-me muito pior. Nem te vou contar as coboiadas man. Tu até estás bem. Acho que a táctica está a resultar. Deixa a maralha pensar que estás demente enquanto o próprio mundo se medica. Não tomes é aquelas merdas verdes. Esses comprimidos são perigosos. São cristais. Se tiveres problemas, já sabes que a lixívia resulta.

    – Essa história da lixívia foi muita bem metida.

    – Sim eu sei.

    Responde Trump.

    – Sim, eu sei também… Quanto aos comprimidos, claro. Não estou maluco.

    Responde Biden.

    – Já agora Jo, não gostei muito de teres dito aquilo referente à prostituta.

    Ataca Trump sem atacar.

    – O que é que eu disse? Queres ver que cometi uma gafe das minhas outra vez!..

    – De certa maneira sim. Disseste que eu devia estar com a minha família, enquanto estava com a prostituta.

    – Desculpa. Foi sem intenção.

    Lastima Biden.

    – Devias era ter dito a verdade. Que eu estava com dez.

    Desatam a rir novamente.

    – Mas se eu ganhar, aquela ameaça que fiz ao Zelensky é para manter. Ainda ninguém me deu ordens do contrário. O anão não leva mais papel.

    – Claro, claro.

    Responde Biden sem qualquer emoção.

    – É que o ucraniano já anda a abusar. E depois vai para a Vogue fazer aquelas figuras. Não achas, Jo?

    – Sim, sim. Está a levar-se muito a sério. Ando a pensar um dia chamar-lhe Putin, como se fosse uma das minhas gafes

    Ilustração de Ruy Otero.

    – Essa é muita boa.

    – E à Kamala vou chamar-lhe… Adivinha!

    – Tina Turner?

    – Não. Trump.

    – Pára Jo. Ainda tenho um enfarte, só de rir.

    – Sabes que lá em Hollywood já estão a preparar um filme com o Zel?

    Pergunta Jo

    – Sim. Mas não vai ser bem ele, pois não?

    – Sim, vai. O contrato era esse. Ele gosta mesmo de representar. Não está velho como nós. Mas não é grande actor, digo-te já. O Putin safa-se melhor, mas é frio como tudo. Eu falei com o KGBs (alcunha de Putin no meio diplomático), e parece muito em baixo. O tempo lá em Moscovo também não ajuda, e os aviões têm andado parados. Há umas greves e não sei quê… Comunistas; sabes como é que é. Boa gente, mas…

    – Ai sim?

    – O último filme do Clint Eastwood já foi com A.I. não foi Jo?

    – Dizem que sim. Até acho que o Clint já morreu. Ele e os westerns.

    – Pena. Mas não é morrer, morrer.

    Lamenta Trump.

    – Não. Mas não te liguei para falar de codrilhices digitais. Queria mesmo saber se vais amanhã ver os Chicago Bulls?

    – Posso ir sim. Tenho tido bastante tempo desde que sou um avatar de mim mesmo.

    Riem, e Biden quase que se engasga.

    – Essa… Está…. bo… a!

    – Está não está? Saiu-me.

    Diz Trump nitidamente contente com a frase

    – Agora me lembro, foi também por isso que te liguei.

    Ilustração de Alex Farac.

    Continua Jo, que, entretanto, superara a tosse do engasgo. E continuou.

    – Queria ter uma vida normal. Começo a ficar seriamente cansado desta palhaçada. Levo a outra cara, se é que me entendes…

    – Entendo muito bem.

    – …E até posso pedir cachorros que ninguém me reconhece. Donald, a tecnologia foi o melhor que nos aconteceu. Esta vida no século XX dava mesmo trabalho e não se ganhava muito. As pessoas nem imaginam. Tu aí nem querias sab…

    Trump interrompe.

    – Jo, desculpa, mas vou ter de atender mesmo. É o Musk. Ele está em Marte e se não atender em 10 segundos, a merda da chamada ainda não aguenta mais tempo de espera e cai.

    – Sim atende. Eu também já falei há uns dias com ele. Está a apanhar uma grande seca lá em Marte.

    Confirma Jo.

    – Então deixa-me atender. Tchau, meu velho!

    – Velho, eu?

    (CAI O PANO. O PÚBLICO BATE PALMAS ENQUANTO TRUMP E BIDEN AGRADECEM, MAS TRUMP QUANDO SE AGACHA PARA O AGRADECIMENTO TEM UMA DOR NAS COSTAS QUE O PARALISA. O PÚBLICO RI E BIDEN AJUDA. O PÚBLICO RI AINDA MAIS).

    FIM

    Ruy Otero é artista media


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